sexta-feira, 23 de junho de 2023

Umwlt

Ciênc. cogn. vol.17 no.2 Rio de Janeiro set. 2012 Artigo Científico Significação sem representação: a teoria pragmática da significação de Jakob von Uexküll Meaning without representation: Jakob von Uexküll's pragmatic theory of meaning Arthur Octávio de Melo Araújo Departamento de Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, Espírito Santo, Brasil ________________________________________ Resumo Este trabalho procura mostrar que a teoria da significação de Jakob von Uexküll é implicitamente uma teoria pragmática. Como teoria pragmática, ela coincide com alguns aspectos da crítica da filosofia analítica à noção de representação mental ao longo do Século XX, por exemplo, entre autores como Austin, Ryle e Wittgenstein, desde o pragmatismo de Charles S. Peirce e William James. De modo similar, a teoria de Uexküll coincide com aspectos da crítica de Francisco Varela à noção de representação nas ciências cognitivas e sua ideia de 'trabalhar sem representação'. E, finalmente, procuro indicar uma possível alternativa não-representacionista nas ciências cognitivas, assim como uma alternativa de tratar o problema da 'lacuna explicativa' (explanatory gap). © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 098-114. Palavras-chave: significação; representação; pragmatismo; ciências cognitivas. ________________________________________ Abstract This work aims to show that Jakob von Uexküll's theory of meaning is implicitly a pragmatic theory. As pragmatic theory of meaning it seems to coincide with some aspects of the critics of the analytical philosophy to notion of mental representation during the 20th century, for example, among authors like Austin, Ryle and Wittgenstein since from the pragmatism of Charles S. Peirce and William James. Similarly, Uexküll's theory of meaning coincides with some aspects of Francisco Varela's critic to the notion of representation in cognitive sciences and his idea of 'working without representation'. And finally I seek to indicate an eventual non-representational alternative to the cognitive sciences, as well as an alternative of dealing with the problem of the explanatory gap. © Cien. Cogn. 2012; Vol. 17 (2): 098-114. Keywords: meaning; representation; pragmatism; cognitive sciences. ________________________________________ Introdução A partir dos chamados anos cibernéticos na década de 40 do Século XX, a noção de 'representação' tornou-se central entre as ciências cognitivas na década de 70. No entanto, como assinala Jean-Pierre Dupuy (1996, p. 138-9), as ciências cognitivas retomaram o espírito cibernético dos anos 40 de 'deconstrução da metafísica do sujeito'. Na tradição de Leibniz, considerado o 'patrono' da cibernética por Norbert Wiener (1948/1985, p. 35), a ideia é que um modelo de cálculo, combinação entre lógica simbólica e matemática, no nível de análise, podia representar os processos de informação em animais (humanos e não-humanos) e máquinas. Assim, a estratégia cibernética procurou unificar o estudo de diferentes tipos de sistemas naturais e artificiais de processamento de informação. A partir do ideal cibernético de mecanização dos processos de informação, entre as ciências cognitivas na sua versão funcionalista, por exemplo, isso significou a crença de que a cognição humana supõe a criação de um nível representações cuja análise é completamente independente dos níveis biológico ou sócio-cultural (Gardner, 1985, p. 20). Em particular, nos anos 70, por sua influência racionalista, supostamente, quando se substituiu a 'alma' cartesiana por um software e a glândula pineal por um hardware, a noção de representação teve um papel importante no estudo funcionalista da mente entre as ciências cognitivas. Muitos cientistas cognitivos acreditavam que a mente é um software do cérebro (Block, 1995). Entretanto, o nível de estudo do software (ou nível de representação informacional) não se reduzia ao nível do hardware. De fato, o interesse nas ciências cognitivas não tinha como objeto o estudo da mente a partir do chamado problema ontológico (ou mente-cérebro). Mas, mente e cérebro estão sujeitos a uma dupla descrição matéria ou física, de um lado, e informacional ou funcional, de outro, entre dois níveis (hardware e software) independentes (Andler, 1992/1998, p. 28). A partir do racionalismo cibernético, entre as ciências cognitivas, tem lugar a noção de 'representação mental' como estados internos e referentes a entidades externas ao sistema cognitivo. Assim, o estudo da mente tornou-se estudo da cognição e cognição significava computação (Fetzer, 2000, p. 9, p. 15) - no quadro abaixo desta Introdução, ao longo do desenvolvimento das ciências cognitivas, o paradigma representacionista está presente entre os itens 1 e 2. Varela (1998) emprega a expressão 'paradigma representacionista'. No sentido de Thomas Kuhn (1962/2007), por exemplo, podemos afirmar uma verdadeira mudança de 'paradigmas' nas ciências cognitivas entre representacionismo e não-representacionismo? Talvez sim, talvez não! Andler (1992/1998, p. 28) não hesita e afirma a existência de 'paradigmas concorrentes' e ao representacionismo de Varela ele identifica o 'cognitivismo'. Nos últimos 20 anos, no entanto, o que parece certo é que a perspectiva mudou entre filósofos e cientista cognitivos. O estudo da cognição já não corresponde somente à representação computacional dos processos referentes às atividades cognitivas (e, em particular, linguagem, memória e percepção). De um lado, consciência fenomenal e 1ª pessoa e, de outro, o que acontece fora de um sistema também estão incluídos entre o estudo dos processos cognitivos. Elaborada por Varela (1988, p. 91), por exemplo, a noção de 'enação' caracteriza a 'emergência' ou o 'emergir' da significação como 'acoplamento estrutural' entre organismo e meio (Varela, 1988, p. 110) e, contrariamente, indica uma alternativa crítica ao 'paradigma representacionista' nas ciências cognitivas (Varela, 1996, p. 89). A partir da crítica filosófica continental à representação entre a dissensão fenomenológica (Heidegger e Merleau-Ponty) e o estruturalismo (Foucault), Varela (1988, p. 92-93) designa 'circularidade' a relação entre ação e interpretação. A ideia é tornar predominante a ação sobre a representação ou 'enação' - sistemas cognitivos são ações e interpretações e não representações do mundo. Um possível traço ancestral da noção de enação teria tido lugar na teoria da significação de Uexküll (1956/1982). Aliás, comparativamente, quanto à cognição como 'cognição distribuída' [e não representação], Andler (1992/1998, p. 20) identifica textualmente o biologista von Uexküll [grifo meu]. É inegável, portanto, o papel deste personagem na recente história das ciências cognitivas. O biólogo estoniano Jakob von Uexküll (1864-1944) teria esboçado um tipo de teoria não-representacionista da significação e, implicitamente, um tipo de teoria pragmática da significação. Constituído por 'mundo de percepção' e 'mundo de ação', o Umwelt ou 'mundo-próprio' de um organismo cria ou interpreta o meio a partir de um modo subjetivo e não diretamente acessível à observação externa1. O que é significativo ou 'objeto significante no mundo-próprio' de um organismo é aquilo que tem influência na sua ação no meio. Assim, a partir de uma perspectiva cognitiva, e de acordo com Uexküll, a significação implica ação no mundo (e não representação), o que me parece caracterizar os traços de uma teoria pragmática da significação. Uma teoria pragmática que se mostraria alternativa a certo tipo de realismo implícito nas ciências cognitivas dos anos 70 quanto a suas concepções de significação e cognição - um sistema cognitivo representa adequadamente aspectos do mundo real pré-definido. Aliás, Varela (1988, p. 100-101) já assinala uma possível alternativa de representação pragmática ao representacionismo nas ciências cognitivas que não tem implicações ontológicas ou epistemológicas. A partir da década de 40 do Século XX, é oportuno assinalar, como parte do desenvolvimento da filosofia analítica entre diferentes autores como Austin, Ryle e Wittgenstein, a crítica e a separação entre significação e representação mental levou à chamada 'virada lingüística-pragmática': analisar como as palavras são usadas e elucidar seu significado e não sua referência a um possível conteúdo mental interno. Assim, a noção de uso das palavras mostrou ser o ponto de partida de uma concepção de significado como correspondência a sua influência prática na ação ou uma concepção de significação sem representação. A significação de alguma coisa é, portanto, determinada por seu uso ou sua utilidade na ação, o que nos remete aos princípios do pragmatismo de Charles S. Peirce e William James. Assim, comparativamente à teoria da significação de Uexküll, uma concepção pragmática da significação assume igualmente a forma de um 'monismo' como já está presente nas visões de Peirce e James (Sharov, 2001, p. 213): as distinções ou as fronteiras de significação como, por exemplo, entre matéria e mente, são operacionais, instrumentais, convenções no sentido de 3ª pessoa ou subjetivas no sentido de um componente de auto-interesse ou utilidade na 1ª pessoa. Isso implica unicamente que, para um organismo, portanto, o interesse ou a utilidade na ação geram as condições de significação e existência de alguma coisa entre as perspectiva de 1ª e 3ª pessoas. Assim, do ponto de vista de Uexküll, há tantos mundos e significação no mundo quanto há sujeitos. Ou, resumidamente, de um ponto de vista pragmático, o significado de uma alguma coisa corresponde ao seu uso e influência na ação ou o que Uexküll designa 'Umwelt' ou 'mundo-próprio' de um organismo. Quadro histórico das ciências cognitivas (Varela, 1988, p. 24): • Anos cibernéticos. • Símbolos: a hipótese cognitivista. • Emergência: uma alternativa à hipótese cognitivista. • Enação: uma alternativa à representação. Assim, ao contrário do paradigma representacionista nas ciências cognitivas, presentes nos itens 1 e 2 acima, a hipótese que desenvolverei aqui parte da referência aos itens 3 e 4. Esta me parece ser uma possível referência histórica e filosófica da teoria pragmática da significação de Uexküll, que coincide com a ideia de 'trabalhar sem representação' de Varela, e indica uma alternativa não-representacionista para as ciências cognitivas. Experiência e significado A Teoria ou Doutrina dos Significados corresponde à Parte II da Teoria dos Mundos-Próprios e, inicialmente, Uexküll (1934/1956, p. 94; 1982, p. 141) considera a eventual transformação nas propriedades dos objetos quando eles entram no mundo-próprio de um organismo. No exemplo proposto por Uexküll, um objeto 'pedra', cujas propriedades são forma, peso, dureza, formação cristalina, etc., tem um significado primário de 'objeto neutro no caminho' ou simplesmente uma pedra no caminho ! Mas quando a pedra entra na relação com um sujeito, ocorre uma transformação no seu significado primário. Agora, ela tem o 'teor de arremesso', quando, por exemplo, se lhe é atribuído a função de instrumento de defesa na eminência do ataque de um cão. De acordo com Uexküll, a transformação no significado tem uma influência direta nas propriedades do objeto. O significado do objeto, com efeito, corresponde à função atribuída a ele no interior de um mundo-próprio. Se considerarmos o processo de significação na ecologia entre organismo e meio, além das propriedades que são características e particulares aos objetos, a transformação do significado corresponde à emergência de uma nova propriedade e que simplesmente não existia antes como, por exemplo, quando uma pedra assume o teor de arremesso. Uexküll (1934/1982, p. 142) assinala que é na relação com o sujeito, i.e., no interior de um mundo-próprio, que podemos ver nos objetos o que os escolásticos chamavam 'propriedades em essentia e em accidentia' (respectivamente propriedades 'essenciais' e 'acessórias'). Nos respectivos vocabulários de Galileu e Locke, comparativamente, essa distinção corresponde às propriedades 'primárias' e 'secundárias' dos objetos. Cores, sons, sabores, odores, etc., são propriedades acessórias dos objetos que, no entanto, são inseridas no quadro da natureza em função do significado atribuído a elas no mundo-próprio de um organismo. Se considerarmos o mundo-próprio do ser humano, cores, sons, sabores, odores, etc., têm significado nesse contexto particular da relação com os objetos e não têm, por outro lado, significado algum no mundo-próprio de certo tipo de morcego. O que entra no mundo-próprio de um organismo é convertido a 'objeto com significado útil'. A ideia de significado útil parece indicar um critério pragmático de relevância quanto à compreensão do significado dos objetos. No sentido de William James, comparativamente, o pragmatismo é uma teoria do significado ou significação e sua influência na ação. Assim, considerada a teoria da significação de Uexküll, um objeto tem uma função enquanto significa algo útil ou biologicamente relevante no interior de um mundo-próprio (como cores, sons, sabores, odores, etc.). Mas a determinação pragmática do significado dos objetos não implica a negação do realismo quanto à existência e ao significado ontológico das propriedades acessórias - 'ser vermelho', por exemplo, é uma propriedade de estados físicos na superfície de certos objetos. No entanto, 'ser vermelho' corresponde a uma propriedade disposicional no interior de certos mundos-próprios no qual ela mostra ter relevância significativa na ação do organismo e sua relação com o meio. A noção de 'propriedades disposicionais' mostra ter tido interesse entre duas áreas recentes da filosofia: filosofia da ciência e filosofia da mente. No primeiro caso, entre as discussões acerca da distinção precisa entre propriedades primárias e secundárias, e, no segundo caso, quanto à significação dos conteúdos mentais. Assim as propriedades disposicionais como, por exemplo, solubilidade, fragilidade e elasticidade, que só se mostram sob certas circunstâncias particulares, como, por exemplo, imersão em líquido ou pressão, igualmente os verbos psicológicos como crer, desejar, esperar, sentir, etc., significariam uma disposição de ação e não a existência de conteúdos internos dos estados mentais (Ryle, 1949/2005, p. 209). Alguém crê, deseja, espera ou sente alguma coisa sob certas circunstâncias. Assim, de acordo com Ryle, o que determina o significado dos conteúdos mentais são certas disposições de ação e não a existência de conteúdos mentais internos. Nos anos 40, desenvolveu-se uma nova virada lingüística agora intitulada 'virada lingüística-pragmática' na recente tradição analítica da filosofia. Além da crítica e separação entre representação e significação, diferentes autores como Austin, Ryle e Wittgenstein procuravam explorar as propriedades pragmáticas da linguagem cuja característica fundamental se remete à relação entre um termo, seu uso e sua influência na ação. A hipótese linguística-pragmática é que a significação não depende de representação pré-definida e apresenta uma concepção de significação sem representação - significar não corresponde à representação mental de alguma coisa. Assim, por exemplo, Austin (1980, p. 34) introduz a noção de erro gramatical e desloca o problema de caracterização dos conteúdos mentais internos do nível ontológico ao nível linguístico. No sentido de Austin, portanto, o problema não é o que é, mas o que significa os termos mentais visto que o termo 'mente' não corresponde à realidade ontológica de uma coisa mental ou física. Aqui, comparativamente, talvez seja oportuno mencionar a noção de 'erro categorial' de Gilbert Ryle (1949/2005). Do ponto de vista de Ryle, quando se considera a 'mente' uma coisa material ou imaterial, e se lhe aplicam categorias ontológicas fisiológicas ou psicológicas, comente-se um erro categorial. Os termos mentais, e, usualmente, são os verbos da psicologia popular (crença, desejo, intenção, sentimento, etc.), referem-se à disposição de ação e não a supostos estados internos de uma coisa material ou imaterial. Assim, por exemplo, crer ou sentir alguma corresponde à disposição de ação sob certas circunstâncias: 'A crê ou sente X, sob a circunstância C'. De certo modo, a concepção de propriedades disposicionais caracteriza uma dissolução do problema mente-corpo. Na análise conceitual de Ryle, portanto, 'mente' corresponde ao conjunto de termos referentes à descrição da ação e não à existência de alguma coisa material ou imaterial. Austin (1949/1980, p.38), por exemplo, argumenta contra o que ele designa 'falácia descritiva' e defende que os enunciados não têm apenas (ou essencialmente) a propriedade descritiva, mas, eles têm também um caráter performativo - a ideia reflete a máxima da tese de Austin que afirma 'dizer é fazer'. Aliás, entre o início e meados do Século XX, por influência do Círculo de Viena, a análise lingüística dos termos filosóficos se remetia unicamente às proposições descritivas e redutíveis ao cálculo proposicional. Mas, a partir da crítica à falácia descritiva de Austin, em particular, tem início a chamada 'virada linguística-pragmática' na análise da linguagem: analisar como as palavras são usadas e elucidar seu significado. Assim, a análise visa identificar as propriedades pragmáticas da linguagem quando se estabelecem as relações entre as palavras e seu uso. De acordo com Austin, ao nível pragmático ou performativo das propriedades lingüísticas corresponde, portanto, o uso das palavras por sujeitos falantes. Assim, comparativamente, além das características pragmáticas da teoria da significação de Uexküll, ela parece também assimilar a noção de propriedades disposicionais. Uma coisa torna-se 'objeto significante' no interior de um mundo-próprio, se e somente se ela mostra utilidade na ação do organismo e sua relação com o meio. A atividade significante do organismo não implica, no entanto, uma representação interna do objeto. No exemplo da teia de aranha, Uexküll (1934/1982 p. 163) mostra que a teia é um 'protótipo' do objeto. No trabalho de construção da teia, a aranha atribui a ela a função de significar o objeto (ou a mosca). Como 'réplica', a teia significa e não representa a mosca porque, evidentemente, elas não têm entre si a menor semelhança. Protótipo ou réplica é o que se designa no vocabulário da Semiótica de Peirce um 'índice'. Como um tipo de signo, um índice significa um objeto por referência a uma possível relação causal com ele (Araújo, 2010, p. 61-2). Assim, na teoria de Uexküll, a significação não implica representação do objeto. E o que parece determinar a significação de um objeto é a disposição da ação no mundo-próprio do organismo - a teia significa (e não representa) mosca no mundo-próprio da aranha. Sharov (2001, p. 214), por exemplo, assinala a 'virada biológica de Uexküll no pragmatismo'. A partir da referência ao pragmatismo de Charles S. Peirce, William James e John Dewey, 'o que define as distinções e os limites de um sistema é subjetivo no sentido de que eles são operacionais, instrumentais ou convencionais'. Assim, as distinções ou os limites têm um significado subjetivo dado que, a princípio, este caracteriza 'auto-interesse' ou 'utilidade' para um organismo ou um sistema e, portanto, parcialmente predicável. Como se apresenta no exemplo teia e aranha é a utilidade da primeira que implica a atividade de significação do objeto 'mosca' no mundo-próprio da segunda. Uexküll não parecia ter conhecido James ou Peirce, embora pareça claro que sua teoria da significação evoque traços nitidamente pragmáticos e semióticos. O que ele considera essencial na significação é a utilidade do objeto na ação do organismo (Uexküll, 1934/1982, p. 142-143). Assim, como assinala Sharov (2001, p. 215), enquanto a semiótica de Peirce se aplica ao indivíduo capaz de usar signos, Uexküll aplica seu pragmatismo aos diferentes tipos de organismo vivos e inclusive células individuais. Talvez, resumidamente, se possa dizer que a semiótica de Peirce seja um caso particular da pragmática de Uexküll. Significação e ciclo de função Um elemento fundamental da teoria de Uexküll é o que ele designa 'ciclo de função'. Pode-se dizer que o ciclo de função é um 'modelo' ou uma 'estrutura' (Dupuy, 1996, p. 23): um objeto abstrato ou formal que estrutura outros objetos e, com efeito, constitui um sistema de relações funcionais. Figura 1 - 'Ciclo de função' - Funktionskreis ou functional cyrcle nas versões originais em alemão (esquerda) e inglês (direita) (Kull, 2001; Uexküll, 1934/1982, p. 36; Uexküll, 2004, p. 9). Nota-se no esquema do ciclo de função uma clara distinção entre Innerwelt, Internal world ou mundo interno e o Umwelt estruturado entre percepção e ação do organismo em torno do objeto. O ciclo de função desempenha um duplo papel de descrever igualmente as características objetivas e subjetivas da experiência ou comportamento de um organismo. Assim, no célebre exemplo de Uexküll (1934/1982, p. 144-5), um talo do ramo de uma flor tem, respectivamente, quatro possíveis significados dado a relação funcional entre certo organismo e ele: para uma moça, o talo significa 'adereço de cabeça'; para uma formiga, o meio de alcançar o topo; para uma larva, material de construção de seu abrigo; e, finalmente, para uma vaca, fonte de alimentação. Como forma ou estrutura, o ciclo de função descreve diferentes mundos-próprios e sua relação de significação com um objeto. Temos, com efeito, a seguinte equação: Diferentes mundos-próprios, diferentes significados possíveis de um mesmo objeto. Do ponto de vista de Uexküll (1934/1982, p. 154), portanto, 'o ciclo de função como ciclo de significação' descreve, na percepção e ação, a correlação funcional entre o corpo do organismo e o objeto. A ideia principal do ciclo de função talvez seja que os componentes de um mundo-próprio têm um significado funcional referente a certo organismo particular e, portanto, 'o problema primacial é o significado [e não] ... investigar os processos causais, que são sempre extremante limitados' (Uexküll, 1934/1982, p. 155). Uexküll (1934/1982, p. 165; 1956, p. 116), com efeito, era pouco simpático ao tipo de explicação 'mecanicista', designada por ele assim - nos últimos 50 anos, diríamos explicação fisicalista - e talvez tivesse interesse por um tipo de explicação funcionalista da relação entre organismo e meio. O ciclo de função mostra a relação funcional entre organismo (ou receptor) e objeto (ou portador) de significação e, assim, descreve objetivamente o mundo-próprio subjetivo de um organismo. Não interessa tanto à explicação funcionalista de Uexküll a base material ou física de realização das atividades do organismo. Ela é abstraída da explicação. O que interessa é que o ciclo de função determina a estrutura funcional de diferentes organismos e sua relação com os objetos do meio. O ciclo de função descreve o mundo-próprio como um campo de significação: o objeto torna-se significativo ou 'objeto significante' no interior de um mundo-próprio. Assim, o interesse ou a utilidade geram na ação as condições de significação e existência de alguma coisa independentemente de uma representação externa ao organismo porque, de um ponto de vista pragmático, por exemplo, as distinções ou os limites entre organismo e meio são subjetivos (i. é, operacionais, instrumentais ou convencionais). O ponto importante da concepção pragmática de significação de Uexküll me parece ser igualmente que ela coincide com a crítica da filosofia analítica à noção de representação. Um organismo significa e não representa ou cria uma cópia interna do objeto porque, exatamente, a significação corresponde à relação prática entre organismo e objeto no interior de um mundo-próprio. No contexto da crítica analítica à representação, por exemplo, é oportuno assinalar aqui um pequeno ensaio de Ryle (1954/1993, p. 149) dedicado à análise conceitual da 'percepção'. De um ponto de vista tradicional, a percepção corresponde à ocorrência de eventos internos fisiológicos ou psicológicos. Mas, ao contrário, Ryle empreende uma análise conceitual da percepção, exatamente nos termos semelhante a sua 'análise do conceito de mente' (Ryle, 1949/2005), e procura mostrar que perceber corresponde a significar alguma coisa. Assim, por exemplo, verbos como 'ver' e 'ouvir' teriam função semelhante a 'vencer' um jogo. Influenciado por Wittgenstein, de acordo com Ryle, a partir de certas regras, 'ver' e 'ouvir' realizam processos de significação e não representações internas de condições fisiológicos ou psicológicos de percepção. E igualmente aos termos do 'erro categorial', identificado na análise conceitual da mente, a 'fonte do erro' consiste em supor que se possam descobrir processos internos fisiológicos ou psicológicos 'por trás das pálpebras' correspondentes à percepção de alguma coisa (Ryle, 1954/1993, p. 159; 161). "O que espero é mostrar que existe algo que está drasticamente errado em todo programa de tentar catalogar minha visão de uma árvore como o estágio fisiológico ou psicológico final de processos (...) Não é um fenômeno intratável ou oculto, nem mesmo um fenômeno, introspectivo, porque não é fenômeno nenhum." (Ryle, 1954/1993, p. 163) De acordo com Ryle, portanto, o que determina a significação de alguma coisa é certa disposição de ação e não necessariamente a ocorrência de eventos internos no organismo. No exemplo do talo flor de Uexküll, comparativamente, o que determina a significação é a relação prática no interior de um mundo-próprio particular - constituídos entre percepção e ação, mundos-próprios são significações e não representações do mundo. A significação tem, no entanto, também um poder causal na ação do organismo, o que me parece satisfazer o critério funcionalista de eficácia causal das propriedades internas de um sistema (e Fodor diria a eficácia causal das propriedades mentais) - organismos percebem e agem no mundo. De modo semelhante, portanto, a concepção de significação de Uexküll parece coincidir com o princípio geral da 'virada pragmática' na filosofia analítica: a concepção de linguagem como uma forma de ação e não de representação da realidade. Embora pouco simpático a explicações mecanicistas na biologia, como zoologista, evidentemente, Uexküll não ignorava o significado da fisiologia ou os elementos temporais da análise evolucionista no estudo do mundo animal. No entanto, creio, ele parece estar comprometido com um tipo de análise estrutural do organismo por referência à relação fundamental entre mundo-próprio e significação. Assim como me parece, no sentido de Uexküll, a análise da relação mundo-próprio e significação indica a possibilidade de uma alternativa entre os campos funcional e evolutivo da biologia contemporânea. Ao contrário das explicações por causas proximais ou distais, respectivamente, explicações fisiológicas e evolutivas, Uexküll parece estar interessado no tipo de relação funcional entre o mundo-próprio e o meio. Apresentada no esquema do ciclo de função, em particular, a significação consiste na correlação estrutural entre organismo, objeto e meio (ver ilustração 1). Assim, do ponto de vista de Uexküll, o ciclo de função se mostra além do reducionismo das causas proximais da biologia fisiologista ou a determinação temporal das causas distais na biologia evolutiva no estudo dos organismos vivos. Homologia tem sido uma noção central na biologia evolutiva e significa a semelhança entre estruturas de diferentes organismos em relação unicamente a uma mesma origem embriológica. As estruturas homológicas podem ter ou não a mesma função. O braço do homem, a pata do cavalo, a asa do morcego e a nadadeira da baleia são estruturas homológicas entre si em função da mesma origem embriológica. Mas, não há similaridade funcional entre elas. A homologia entre estruturas de dois organismos diferentes sugere que eles se originaram de um grupo ancestral comum, embora ela não indique um grau de proximidade comum: exemplos de estruturas homólogas são o braço do homem, a pata dianteira do cavalo, a asa do morcego e nadadeira da baleia. Entre diferentes organismos, ao contrário de estruturas homólogas e independente de origem embriológica, por exemplo, a noção de estruturas análogas refere-se à semelhança entre estruturas adaptadas à execução de uma mesma função - exemplos de estruturas análogas são asas nos insetos e aves ou tubos respiratórios e pulmões que, embora tenham diferentes origens embriológicas, têm a mesma função biológica: exemplos de estruturas análogas são a asa do inseto e a asa da ave. A analogia caracteriza a semelhança entre diferentes organismos unicamente como adaptação a uma mesma função. Assim, e independente da origem embriológica e determinação genética dos organismos, comparativamente, o que me parece ser crucial assinalar aqui é que mundos-próprios podem ser considerados a expressão de estruturas análogas - e, comparativamente a uma visão funcionalista, entre diferentes organismos, os respectivos mundos-próprios têm a mesma função biológica fundamental como campos de significação. Assim como os funcionalistas não são partidários de explicações por padrões de homologia, do ponto de vista de Uexküll, igualmente, algo só significa alguma coisa no interior de um mundo-próprio e, portanto, a significação não pode ser determinada fora de um campo funcional de significação. E ainda, comparativamente à noção de estruturas análogas, pode-se afirmar que a implementação funcional de diferentes mundos-próprios satisfaz ao chamado princípio da 'múltipla realização'. De fato, pode-se ver o ciclo de função, por exemplo, como uma forma ou uma estrutura comum aos diferentes tipos de organismos. Independentemente do tipo de base física ou material, portanto, mundos-próprios têm a mesma função como campo de significação entre diferentes organismos. O que determina um ciclo de função são disposições funcionais e, conseqüentemente, a constituição material ou física do organismo tem um papel secundário. Princípio da Múltipla Realização: MP = R1 v R2 v R3 ... v Rn MP: mundo-próprio. R1, R2, R3, ... Rn: múltipla realização. O princípio da múltipla realização tem sido um argumento influente contra as teorias da identidade na filosofia da mente e um forte argumento a favor do funcionalismo. Muitos filósofos (Putnam, 1967/1980) têm adotado a múltipla realização como uma alternativa não-reducionista ao reducionismo psicofísico. Em particular, é importante destacar o caráter disjuntivo do princípio da múltipla realização ao contrário da identidade reducionista psicofísica (por exemplo, 'certo tipo de dor' = 'ativação das fibras-C'). Parece plausível afirmar que, comparativamente, mundos-próprios (acima indicado MP) podem ser realizados por diferentes organismos (acima indicado R1 v R2 v R3 ... v Rn) ou eles são multiplamente realizáveis. Um traço do funcionalismo do ciclo de função de Uexküll pode ser notado na seguinte passagem: "O fim é igual, mas, o meio é diferente ... Os meios morfogenéticos usados para permitir que os diferentes animais possam subir por uma parede lisa são variados, embora conduzam todos ao mesmo fim: ultizar como caminho o objeto significante - a parede lisa (Uexküll, 1934/1982, p. 160)... A determinação de significado é sempre a mesma, só muda radicalmente a determinação morfogenética." (ibidem, p. 161)2 Assim, comparativamente ao mundo-próprio como um tipo de estrutura analógica e funcional, parece oportuno assinalar a noção de 'acoplamento estrutural' de Varela e que, curiosamente, mostra a comparação entre dois mundos-próprios e seus respectivos campos de significação e realização múltipla: "Formulé autrement: l'historique bien différent du couplage structurel des oiseaux et des primates a fait-émerger un monde de pertinence pour chacun d'eux qui est inseparable de leur vécu" (Varela, 1988, p. 110). Assim, do ponto de vista de Varela, a noção de 'enação' caracteriza a 'emergência' ou o 'emergir' da significação como 'mundo de pertinência' a partir do acoplamento estrutural entre organismo e meio e, comparativamente, no sentido de Uexküll, embora distintos entre si, por exemplo, entre pássaros e primatas, os mundos-próprios têm igual função biológica de determinar distintos campos de significação ou eles são multiplamente realizáveis. A noção de 'vivido' na citação de Varela acima ('vécu'), igualmente, parece indicar a possível caracterização fenomenológica de diferentes experiências de mundo ou aquilo que caracterizaria uma interpretação particular do mundo. Da noção de 'enação' ou 'emergir', portanto, e ao contrário da 'cognição como representação adequada de um mundo exterior pré-determinado', Varela (1988, p. 90-1, 98) retoma o sentido de 'senso comum' e assinala que os critérios de pertinência cognitiva são contextuais e criativos - a cognição é atividade criativa, sensível ao contexto e incorporada. A partir da crítica filosófica à representação e da noção de corporeidade de Merleau-Ponty, Varela (1993, p. 18) estabelece os princípios da 'cognição incorporada': 'Pour Merleau-Ponty, dès lors, comme pour nous, la corporéité possède un double sens: elle designe le corps à la fois comme strucuture vécue et comme contexte ou lieu des mécanismes cognitifs'. De um lado, entende-se a corporeidade como experiência vivida no sentido fenomenológico e, de outro, como estrutura cognitiva. Aliás, é interessante destacar aqui que Merleau-Ponty (1957-8/2000, p. 271) já assinalava o significado filosófico que a noção de mundo-próprio de Uexküll poderia ter além da clássica distinção cartesiana entre alma e corpo. Lacuna explicativa e ciclo de função Talvez aqui pudéssemos ter uma possível alternativa de revisão do problema 'explanatory gap' ou 'lacuna explicativa' na filosofia da mente. De um ponto de vista tradicional, o problema tem origem a partir da disjunção e distinção ontológica entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas e sua conseqüente assimetria epistemológica: embora o traço distintivo de uma experiência mental (ver, perceber, sentir, etc.) seja uma característica de 1ª pessoa, o acesso a ela está limitado a uma descrição de 3ª pessoa. No contexto da filosofia da mente, a expressão 'experiência mental' é eventualmente designada 'consciência fenomenal'. De fato, a lacuna explicativa é um problema epistemológico. Se, por exemplo, considerado o problema mente-corpo, estados mentais são realmente estados físicos, ainda assim não se sabe como isso possa explicar o traço distintivo de uma experiência mental (ver, perceber, sentir, etc.) por meio da descrição das propriedades físicas do cérebro. Dado que, por exemplo, 'ter certa dor' é ou é idêntico à 'ativação das fibras-C' ou ela corresponde a certo estado funcional, de fato, isso não nos mostra nada quanto ao significado de ter uma experiência de sentir dor ou a consciência fenomenal de dor. Do ponto de vista fisicalista, por exemplo, se consideramos o termo 'dor' (e), ele significa 'experiência de sentir' (q) ou 'ativação das fibras-C' (p). Mas, como a experiência de sentir dor não é senão ativação das fibras-C, então, 'dor' significa ativação das fibras-C: e â†' (p v q) e p = q; logo, s â†' p. Assim, temos uma 'lacuna explicativa' entre o físico e o mental. A explicação fisicalista de 'dor' elimina o sentido fenomenológico de sentir dor da descrição da experiência de dor e 1ª e 3ª pessoas são, portanto, realidades ontologicamente distintas e disjuntivas. Aliás, como assinala Gardner (1995, p. 20), e dado o problema da lacuna explicativa, entre as ciências cognitivas, por exemplo, uma estratégia tem sido excluir metodologicamente aspectos subjetivos, afetivos, emocionais ou fenomenais do estudo da cognição - 'qualia' ou 'o que é ser como' têm sido eventualmente alguns termos dados ao traço distintivo de uma experiência mental ou consciência fenomenal e excluídos do estudo da cognição. O modo como certas coisas parecem ser na experiência significa o que é ter uma experiência mental dessas coisas (aparência, sonoridade, cheiro, gosto, etc.) e que não parecem física ou funcionalmente relevantes no estudo da cognição. Muitos filósofos, comparativamente, consideram existir uma lacuna explicativa entre a característica mental ou fenomenal de uma experiência e a descrição dos mecanismos físicos e biológicos geradores dessa característica no cérebro (Chalmers, 1996). O problema está, portanto, no fato de que enquanto a característica mental ou fenomenal de uma experiência tem ontologia na 1ª Pessoa, nosso acesso a ela está limitado a uma descrição física ou funcional da atividade cognitiva do cérebro na 3ª Pessoa. De fato, desde a navalha de Okcham aplicada por diferentes estratégias fisicalistas, e inclusive estratégias funcionalistas, o problema da lacuna explicativa parece resultado de uma decisão metodológica de excluir da descrição da atividade cognitiva o que caracteriza os aspectos subjetivos, afetivos, emocionais ou fenomenais porque exatamente eles não teriam acomodação entre as descrições físicas ou funcionais das propriedades do cérebro - a descrição da experiência elimina a própria experiência! Não apenas agora, mas, a princípio, nunca a descrição de uma experiência na 3ª Pessoa vai reproduzir as características de 1ª pessoa da atividade cognitiva ou o que é ter uma experiência. E, de fato, não parece ser o caso. Mas a impossibilidade de reprodução das características de 1ª pessoa não implica sua eliminação do estudo da atividade cognitiva. Um tipo de esquizofrenia filosófica parece motivar o problema da lacuna explicativa quando ele é tido como o abismo a uma realidade inacessível ou como algo misterioso na própria experiência (Chalmers, 1996). Aliás, Chalmers é um exemplo claro da esquizofrenia filosófica (Searle, 1997, p. 145). Entre filósofos da mente que são simpáticos às estratégias cognitivistas, Chalmers é um exemplo claro. De acordo com ele, enquanto 'a cognição parece funcionalmente explicável, a consciência [fenomenal] resiste a uma explicação funcionalista' (Chalmers, 1996, p. 172). De um lado, ele advoga a impossibilidade de acomodação e acesso na 3ª pessoa às condições da experiência na 1ª pessoa; de outro, e ao mesmo tempo, afirma as condições funcionais de caracterização da atividade cognitiva. De uma perspectiva fisicalista, comparativamente, o problema da lacuna explicativa se mostra como parte de uma estratégia de explicação que exatamente exclui da explicação o que torna cognitiva uma atividade do cérebro. Que alternativa teríamos de lidar com a lacuna explicativa diante desse quadro de esquizofrenia filosófica? Eu diria que uma estratégia de explicação da atividade cognitiva que não inclua a perspectiva de 1ª pessoa não é completa. O ciclo de função de Uexküll caracteriza um modelo pragmático de significação de uma experiência e significação sem representação a partir da descrição de 3ª pessoa. O cérebro é, por exemplo, um sistema dinâmico e interativo com o mundo. Um mundo de significação emerge e se abre aos diferentes mundos-próprios - o estudo da atividade cognitiva do cérebro não está separado de um mundo-próprio que concede a ela significação. Assim, a enação (Varela, 1988, p. 112) corresponderia à emergência de um mundo de distintas significações comparativamente aos distintos modos de experiência ou, no sentido de Uexküll, aos distintos mundos-próprios. Igualmente, assim como me parece, o ciclo de função mostra características semelhantes à noção de enação, como acoplamento estrutural entre organismo e meio avançada por Varela, e que, portanto, incluiria a perspectiva de 1ª pessoa. Mas, é importante assinalar aqui a distinção entre dois sentidos de 'representação' indicados por Varela (1988, p. 99-0): (1) 'representação do estado do mundo'; e (2) 'noção pragmática de representação'. De acordo com Varela, no primeiro sentido, temos um tipo de concepção realista de representação cuja significação corresponde a uma assimilação interna de um mundo pré-determinado - 'um sistema opera a partir de representações internas' (Varela, 1988, p. 99). A chamada 'metáfora do computador' talvez seja o que ilustra melhor o imperativo de determinação entre representação e significação nas ciências cognitivas. Assim como o próprio sistema, a significação depende de representações internas já pré-definidas. Aliás, ao contrário de Ryle e Wittgenstein, Jerry Fodor (1978) parece sustentar, ao modo de um internalismo cartesiano, que as explicações do significado dos conteúdos mentais dependem do reconhecimento de representações internas, privadas e pré-definidas de um sistema. "L'hypothèse cognitiviste prétend que la seule façon de rendre compte de l'intellegence et de l'intentionnalité est de postuler que la cognition consiste à agir sur la base de représentations qui ont une réalité physique sous la forme de code symbolique dans le cerveau ou une machine ... L'hipothèse est donc que les ordinateurs offrent um modèle mécanique de la pensée, ou, en d'autres mots, que la pensée s'effectue par une computation physique de symboles." (Varela, 1988, p. 38-9) No segundo sentido, ao contrário, uma noção pragmática de representação destitui a assimilação interna de um mundo pré-determinado e a significação se constitui como circularidade entre ação e interpretação - 'a representação pragmática não veicula implicação epistemológica ou ontológica' (Varela, 1988, p. 100). Aliás, uma circularidade ação e interpretação que, de modo semelhante, o ciclo de função descreve como o mundo-próprio de um organismo entre seus campos de percepção e significação - ver exemplo do talo da flor: é a ação e a interpretação do organismo que determina a significação do talo. Assim, comparativamente, do ponto de vista de Varela, a partir da noção pragmática de representação, a ideia é tornar predominante a ação sobre a representação ou 'enação' - sistemas cognitivos constituem ações e interpretações e não representações de um mundo pré-determinado. E de acordo com o modelo do ciclo de função de Uexküll, a noção de circularidade entre ação e interpretação avançada por Varela se mostra como uma possível alternativa de lidar com o problema da lacuna explicativa. O que parece ser crucial na teoria da significação de Uexküll, portanto, é que a noção de 'mundo-próprio' caracteriza objetivamente no comportamento a característica subjetiva da experiência de mundo de um organismo. Assim, as distinções ou os limites de um organismo ou sistema têm um significado subjetivo no sentido de que são operacionais, instrumentais ou convencionais entre dois domínios distintos de significação. Como descrição de diferentes mundos-próprios, o ciclo de função tem uma dupla função ou circularidade entre o que se designam os pontos de vista de 1ª e 3ª pessoas - ver Ilustração 1. Do ponto de vista de 1ª pessoa, por exemplo, as distinções e os limites são, de fato, subjetivas e parcialmente predicáveis no sentido de que são determinadas a partir do ponto de vista de um organismo - de novo, ver exemplo do talo de flor. Quanto ao ciclo de função, no sentido do ponto de vista de 1ª pessoa, portanto, temos as seguintes alternativas: • Alternativa que não aceita modelos determinísticos ou probabilísticos, i.e., é um modelo 'observador-independente'; • Concepção de determinismo subjetivo (como expectativa ou meta de um sujeito) - organismos e sistemas cognitivos são intérpretes de 1ª ordem. Do ponto de vista de 3ª pessoa, no entanto, o ciclo de função caracteriza os limites e as distinções a partir de observadores externos e, comparativamente ao ponto de vista de 1ª pessoa, são também operacionais, instrumentais ou convencionais. Mas, no sentido da 3ª pessoa, a diferença é que os limites ou as distinções são interpretações de interpretações de 1ª ordem. Para Uexküll, comparativamente, o problema primordial consiste em saber como um observador pode reconhecer, decodificar ou representar sem distorcer os processos de significação característicos dos diferentes mundos-próprios. Segunda Cibernética e lacuna explicativa Aqui, me parece oportuno citar uma referência de Varela na Introdução ao trabalho do biofísico austríaco Heinz von Foerster (1984, p. xiii) sobre 'sistemas auto-observantes' cuja característica fundamental mostra uma 'coerência interna' ou 'eigenbehaviour' (ou 'comportamento próprio' - um neologismo entre 'eigen' do alemão e 'behaviour' do inglês). Como nome expressivo da história recente da cibernética no Século XX, a partir da década de 60, Foerster é considerado o inventor da 'cibernética de segunda ordem', ou 'cibernética da cibernética'. No sentido da cibernética de segunda ordem, portanto, o investigador é parte do sistema investigado. O investigador precisa estar ciente de que nunca pode ver como um sistema funciona a partir de uma visão exterior a ele porque está associado ciberneticamente ao sistema observado: quando um investigador observa um sistema, ele afeta e é afetado por ele. As ciências cognitivas entre 1ª e 2ª Cibernéticas: Entre 1ª e 2ª Cibernéticas, as ciências cognitivas se desenvolvem entre paradigmas representacionalista e não-representacionalista. No primeiro paradigma, Varela (1988, p. 14-15) considera ser o domínio ortodoxo das ciências cognitivas. Grande parte das ideias de Varela teve a influência decisiva de Foerster e ele mesmo reconhece sua dívida. Se, como assinala Varela (1984, p. xviii), a 'primeira cibernética' corresponde ao estudo de 'sistema observados' e supostamente, associados à noção de representação, ao contrário, na 'segunda cibernética', o estudo tem como objeto 'sistema observantes'. E 'objeto' significa 'sinais de eigenbehaviour' e não uma realidade dada à representação objetiva de um observador exterior. No sentido de Foerster (1984, p. 2; 5-7), por exemplo, embora não seja representacional, a relação entre sistemas observantes e meio é estrutural, o que nos remete, novamente, ao ciclo de função de Uexküll, i.e., a significação é resultado de uma relação funcional entre organismo e meio. Assim, na teoria pragmática da significação de Uexküll, comparativamente à cibernética de segunda ordem, o ciclo de função tem o duplo papel de caracterizar as distinções e os limites ente os pontos de vista de 1ª e 3ª pessoas: de um lado, é a caracterização de uma experiência vivida no sentido fenomenológico (e sinal de eigenbehaviour); e, de outro, é a caracterização dos mecanismos cognitivos de um organismo ou um sistema (e o observador como parte do objeto observado). O ciclo de função, portanto, toma a forma de um conceito-operador de caracterização operacional, instrumental ou convencional entre dois domínios de distintas significações. Assim, comparativamente ao desenvolvimento da cibernética como parte do desenvolvimento da teoria dos sistemas, me parece razoável afirmar que mundos-próprios constituem sistemas observantes e sinais de eigenbehaviour. E considerando o desenvolvimento da cibernética de segunda ordem, é exatamente o duplo papel do ciclo de função que indica e se aproxima de uma possível 'alternativa à representação' e a estratégia de 'trabalhar sem representação' nas ciências cognitivas (Varela, 1988, p. 113). A partir do duplo papel do ciclo de função, portanto, Uexküll procura estabelecer conceito-operador de caracterização do comportamento animal além da clássica distinção cognitivista entre 'descrição' e 'existência' (Berthoz & Petit, 2006, p. 45). De um lado, a caracterização na 3ª pessoa como descrição do comportamento e, de outro, no sentido da 1ª pessoa, a caracterização da existência como experiência. Como vimos acima, o problema da lacuna explicativa é a oposição entre 1ª e 3ª pessoas no estudo da atividade cognitiva. Mas, ao contrário, o duplo papel do ciclo de função entre descrição e existência parece sugerir o que Varela (1988, p. x) designa 'uma circulação entre uma primeira pessoa e um discurso externo à experiência humana'. Existência teria o sentido de experiência na 1ª pessoa enquanto descrição significaria o discurso na 3ª pessoa. Como assinalado anteriormente, de acordo com uma visão pragmática, para um organismo ou um sistema, as fronteiras ou os limites de significação são sempre instrumentais, operacionais ou convencionais entre 1ª ou 3ª pessoas. Talvez tivéssemos aqui uma possível alternativa de lidar com esquizofrenia filosófica da lacuna explicativa. Para as ciências cognitivas, de acordo com Varela, portanto, o que significaria a circulação entre 1ª e 3ª pessoas? A princípio, ela significaria uma estratégia não-representacionista. Ao invés de representação, a ação cognitiva é sempre interpretação pragmática ou significação entre as distinções ou os limites de dois domínios. Por exemplo, Uexküll afirma que o trabalho do biólogo consiste em investigar o 'sujeito' dos diferentes mundos-próprios. Assim, considerando as distinções e os limites no esquema do ciclo de função, o que significa o sujeito senão um domínio de 1ª pessoa ou característica de uma experiência de mundo? E quanto ao trabalho do biólogo? Dado a perspectiva de 3ª pessoa, ele significa o domínio de descrição objetiva do comportamento. A partir da noção de duplo sentido da corporeidade tirada de Merleau-Ponty, comparativamente, o duplo papel do esquema do ciclo de função entre 1ª e 3ª pessoas parece indicar o que Varela (1993, p. 18-19), respectivamente, assinala ser a 'circulação entre ciências cognitivas e experiência humana'. De acordo com Varela (1993, p. 36), portanto, do ponto de vista da enação, a circulação entre experiência e ciências cognitivas torna-se central. Ao contrário das estratégias representacionalistas, como, por exemplo, entre neurocientistas cognitivos, cognição e experiência são realidades separadas - estuda-se a cognição a partir da análise das propriedades neurofuncionais do cérebro independentemente de nossa interação com ele. E o cérebro é um sistema dinâmico e constantemente interativo com o mundo. Ainda de acordo com Varela (1993, p. 36-37 - Figure 1.4), portanto, 'uma descrição científica, que seja biológica ou mental, é ela mesma um produto da estrutura de nosso próprio sistema cognitivo'. O que a descrição científica mostra é nossa atividade reflexiva a partir de um 'plano de fundo' de nossas experiências e práticas biológicas ou culturais. E, comparativamente, na 'cibernética de segunda ordem' ou 'cibernética da cibernética' de Foesrter, o investigador é parte do sistema investigado e constituem ambos partes de um sistema cognitivo entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas. Significação e circulação entre 1ª e 3ª pessoas Assim, creio, é possível uma alternativa ao problema da lacuna explicativa e a significação de uma experiência entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas. Ao invés de determinar as condições de possibilidade de significação de uma experiência a partir de critérios externos a ela, de fato, a distinção de significado entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas mostraria ser conceitual e não ontológica: o conceito de uma coisa (por exemplo, 'dor') teria dois modos de significação ou referência: E = 'dor'; p = significado fenomenológico de dor na 1ª pessoa (ou experiência de sentir certo tipo de dor); ou q = significado epistemológico de dor na 3ª pessoa (ou descrição da ativação das fibras-C). Logo, 'dor' significa uma experiência de sentir alguma coisa ou ativação das fibras-C: [e -> (p v q)]. A significação de 'dor' se mostra entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas e, no entanto, não implica uma distinção ontológica entre ambas - 'p' e 'q' são modos complementares de significação de uma única realidade 'E'. A noção de modos complementares de significação mostraria uma alternativa à concepção tradicional da lacuna explicativa como resultado da distinção ontológica entre as perspectivas de 1ª e 3ª pessoas. Ao invés da distinção ontológica, 1ª e 3ª pessoas correspondem a distintos níveis de significação. No período entre o 'Tractatus Lógico-Philosophicus' (1922) e as 'Investigações Filosóficas' (1952), aqui, comparativamente, talvez seja oportuno assinalar uma parte da 'filosofia da psicologia' de Wittgenstein referente à assimetria de uso dos verbos psicológicos entre 1ª e 3ª pessoas. Além do tema da assimetria, a filosofia da psicologia de Wittgenstein corresponde ao estudo do comportamento dos verbos psicológicos e sua referência ao conteúdo interno de uma experiência entre 1ª e 3ª pessoas. Assim, por exemplo, seria o caso de um uso dos verbos psicológicos em que não haveria uma 1ª pessoa, um 'eu' ou um 'si mesmo' ontologicamente distinto da 3ª pessoa: "Uma linguagem na qual 'acredito que p' é expresso apenas através do tom de voz da afirmação 'â"œ p '. Em vez de 'Ele acredita...', diz-se aí 'Ele está inclinado a dizer...' e existe também a hipótese 'Suponhamos que eu estava inclinado a dizer...', mas não uma expressão 'Estou inclinado a dizer...'" (Wittgenstein, 2007,.§83) O que se nota na citação de Wittgenstein é que, por exemplo, o uso do verbo 'acreditar' entre duas sentenças 'Ele está inclinado a dizer' e 'Estou inclinado a dizer' mostra que os conteúdos expressos são simétricos entre 1ª e 3ª pessoas. Assim, a distinção de significado entre as 1ª e 3ª pessoas mostraria ser conceitual, não ontológica e não implicaria a existência de um 'eu' accessível introspectivamente a si mesmo. De fato, Wittgenstein parece indicar uma possível dissolução ontológica entre 1ª e 3ª pessoas a partir da noção do uso significativo dos verbos referentes a conteúdos psicológicos. É um aspecto importante. Por exemplo, um uso do termo 'dor' significa dizer 'dor' e não o que é o sentido ontológico da experiência de dor entre 1ª e 3ª pessoas. Não sei se é uma expressão precisa minha aqui, mas, talvez, seja um tipo de 'neutralismo ontológico' o que a filosofia da psicologia de Wittgenstein sugere quanto ao significado dos verbos psicológicos entre 1ª e 3ª pessoas. Aliás, ao empreender uma análise conceitual dos termos mentais, como um bom wittgensteiniano, comparativamente, Ryle (1949/2005) dissolve o uso ontológico dos verbos psicológicos a partir da dissolução do problema mente-corpo. No sentido de Ryle, portanto, o que determina o significado de um verbo psicológico são o uso e a disposição na ação e não uma suposta representação mental introspectiva de uma entidade privada. Assim, comparativamente à dissolução da assimetria ontológica entre 1ª e 3ª pessoas na filosofia da psicologia de Wittgenstein, ambas constituem partes significativas e complementares de um sistema cognitivo. 'Dor' não significa somente o que o estudo da ativação das fibras-C mostra, mas, igualmente, significa uma experiência de sentir alguma coisa no ponto de vista de um sujeito particular e parte de um meio social e cultural. E considerando-se a aproximação entre ciclo de função (Uexküll) e enação (Varela), portanto, temos uma possível alternativa de abordar o problema da lacuna explicativa a partir da noção de 'circularidade' entre a perspectiva de 1ª pessoa e nossa visão externa à experiência na 3ª pessoa. Por exemplo, a análise dos aspectos cognitivos de 'dor' se constituiria sobre a circulação de significação entre a experiência de sentir alguma coisa na 1ª pessoa e a descrição da ativação das fibras-C na 3ª pessoa. Assim, finalmente, 1ª e 3ª pessoas constituiriam partes significativas e complementares de um mesmo sistema cognitivo. A distinção entre 1ª e 3ª pessoas se constituiria, portanto, entre níveis de significação e não entre níveis ontologicamente distintos. E, comparativamente a um ponto de vista pragmático, as distinções e limites de significação entre domínios de 1ª e 3ª pessoas são, portanto, sempre operacionais, instrumentais ou convencionais como, por exemplo, mostra ser o modelo do ciclo de funções de Uexküll; e ciclo no sentido de circularidade de perspectivas como afirma Varela. Conclusão O texto procurou identificar os elementos pragmáticos da teoria da significação de Jakob von Uexküll. A partir de uma referência primeira a Peirce e William James, como teoria pragmática, me pareceu fundamental mostrar suas possíveis coincidências com alguns aspectos da crítica da filosofia analítica à noção de representação mental, por exemplo, entre autores como Austin, Ryle e Wittgenstein, e a ideia de significação sem representação. De modo similar, procurei mostrar que a teoria da significação de Uexküll coincide com aspectos da crítica de Varela à noção de representação nas ciências cognitivas e sua ideia de 'trabalhar sem representação'. Procurei, finalmente, indicar uma possível alternativa não-representacionista nas ciências cognitivas, assim como indicar uma alternativa de tratar o problema da 'lacuna explicativa' a partir da aproximação entre as noções de ciclo de função (Uexküll) e circulação entre 1ª e 3ª pessoas (Varela). Referências Bibliográficas Andler, D. (1998). Introdução às Ciências Cognitivas. (Amoretti, M. S. M. , Trad.). São Leopoldo (RS): Editora UNISINOS. Araújo, A. (2010). Qualia e Umwelt. Revista de Filosofia: Aurora, 22 (30). [ Links ] Austin, J. L. (1980). Outras mentes. (Silva Lim, M. G. da, Trad.). São Paulo: Abril Cultural. (Original publicado em 1949). Berthoz, A.; Petit, J.L. (2006). Phénoménologie et Physiologie de l'Action. Paris: Odile Jacob. [ Links ] Block, N. (1995). The Mind as the Software of the Brain. Em: Osherson, D.; Gleitman, L.; Kosslyn, S. Smith, E.; Sternberg, E. (Ed.). An Invitation to Cognitive Science. Cambridge: MIT Press. [ Links ] Chalmers, D. (1996). The Conscious Mind. Oxford: Oxford University Press. [ Links ] Dupuy, J.P. (1996). Nas Origens das Ciências Cognitivas. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora da UNESP. Fetzer, J.H. (2000). Filosofia e Ciência Cognitiva. (Rapucci, C., Trad.). Bauru (SP): EDUSC. Fodor, J. (1978). Representation. Cambridge: The MIT Press. [ Links ] Foerster, H., von. (1984). Observing Systems. California: Intersystems Publication. [ Links ] Gardner, H. (1995). A nova ciência da mente. (Caon, C.M., Trad.). São Paulo: Editora da USP. (Original publicado em 1985). Kuhn, T. (2007). A estrutura das revoluções científicas. (Boeira, B. V. e Boeira, N. Trad.). São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1962) Kull, K. (2001) Jakob von Uexküll: An introduction. Semiotica, 134 (1/4), 1-59. [ Links ] Merleau-Ponty, M. (2000) A Natureza. (Cabral, A., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. Putnam, H. (1980) The Nature of Mental States. Em: Block, N. (Ed.) Readings in Philosophy of Psychology (Vol. 1). Cambridge: Harvard University Press. (Original publicado em 1967). [ Links ] Ryle, G. (2005). La notion d'esprit. (Stern-Gillet, S., Trad.). Paris: Payot. (Original publicado em 1949). [ Links ] Ryle, G. (1993). Dilemas. (Cabral, A., Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1954). Searle, J. (1997). The Mystery of Consciousness. New York: The New York Review of Books. [ Links ] Sharov, A. (2001). Umwelt theory and pragmatism. Semiotica, 134, 211-228. [ Links ] Wierner, N. (1985). Cibernética - o el control y comunicación en animales y máquinas. (Martín, F., Trad.). Barcelona: Tusquets Editores. (Original publicado em 1948). Wittgenstein, L. (2007) Últimos escritos sobre a Filosofia da Psicologia - Parte I. (Marques, A.; Venturinha, N.; Proença, J.T., Trad.). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Uexküll, von J. (1982). Dos animais e dos homens. (Candeias, A.; Pereira, A.G., Trad.). Lisboa: Livros do Brasil. (Original publicado em 1934). Uexküll, von J. (1965). Mondes animaux et monde humain. (Muller, P., Trad.). Paris: Denoël. (Original publicado em 1934). Uexküll, von T. (2004). A teoria da Umwelt de Jakob von Uexüll. Galáxia, 7, 19-48. [ Links ] Varela, F. (1984). Introduction. Em : von Foerster, H. Observing Systems. California: Intersystems Publication. [ Links ] Varela, F. (1988). Invitation aux Sciences Cognitives. Paris: Édtitions du Seuil. [ Links ] Varela, F.; Thompson, E. ; Rosch, E. (1993). L'inscription corporelle de l'esprit. Paris: Seuil. [ Links ] Notas A. Araújo Endereço para Correspondência: Departamento de Filosofia, CCHN, UFES, Av. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário Goiabeiras, Vitória, ES 29.075-910, Brasil. Telefone/Fax para contato: +55-27-4009-2513. E-mail para correspondência: aart037@gmail.com. (1) 'O termo Umwelt corresponde em português a ambiente, mundo ambiente ou, com menos propriedade, meio ambiente. No sentido, porém, em que o autor [von Uexküll] o emprega, ele significa qualquer coisa que depende do ser vivo considerado, e resulta de uma como que selecção por este realizada, dentre todos os elementos do ambiente, em virtude da sua própria estrutura específica - o seu mundo-próprio' (Uexküll, 1982, p. 24 - nota do tradutor). Em um artigo de revisão do trabalho de seu pai, Thure von Uexküll (2004, p. 24 - nota 3) procura evitar ambigüidade no uso do termo Umwelt. Inicialmente, ele usa o termo 'automundo' ('Self-world' no original em inglês), como referência à organização de uma estrutura interna e específica da espécie, por oposição a mundo externo ou ambiente e, em seguida, usa o termo Umwelt. Assim, o filho teria resolvido um problema terminológico na teoria do pai, em termos de um sutil intercâmbio entre 'automundo' e Umwelt, cujo sentido me parece equivalente a 'mundo-próprio' como sugere a tradução portuguesa. Na tradução francesa, no entanto, Umwelt corresponde à expressão 'monde vécu' (Uexküll, 1956, p. 15). Neste sentido particular do termo Umwelt, a ideia talvez seja que Uexküll procura um conceito-operador de caracterização do comportamento animal além da clássica distinção entre 'descrição' e 'existência' (Berthoz & Petit, 2006, p. 45) - 'mundo vivido' (monde vécu) parece sugerir a caracterização fenomenológica dos diferentes tipos de experiência. Comparativamente, e quanto a uma recente concepção fenomenológica nas ciências cognitivas, assinala Varela (1988, p. X), o que se procura é 'uma circulação entre uma primeira pessoa e um discurso externo da experiência humana' e que, no entanto, não significa uma distinção entre os dois campos (descrição e experiência). Assim, no sentido de 'experiência vivida', a noção de 'mundo-próprio' descreve objetivamente no comportamento a característica subjetiva da experiência de um organismo (Araújo, 2010, p. 55). (2) É oportuno igualmente assinalar aqui que a significação de um objeto (a parede lisa) corresponde a sua utilidade e, portanto, é determinada pragmaticamente em função da ação do organismo. Revista Ciências & Cognição A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Ciências da Saúde Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho Sala G2-032, Bloco G, Av. Carlos Chagas Filho S/N - Cidade Universitária - Ilha do Fundão 21941-902 Rio de Janeiro - RJ - Brasil Tel.: +55 21 2562-6562 revista@cienciasecognicao.org

Marx e Vera Zasulitch,

Vera Zasulitch, Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução Marx: a russian peasant commune and the marxian theory of the Revolution Nilo Sérgio Silva Aragão Resumo: Durante os anos 1872 e 1883 – ano de sua morte –, Karl Marx aprendeu russo para se dedicar a um estudo de grande fôlego sobre as possibilidades de transformação social da Rússia, particularmente sobre o papel que a comuna rural russa poderia desempenhar em uma transição ao socialismo. Torna-se cada vez mais clara nesses estudos, cartas, textos, prefácios, uma concepção nãolinear e não-determinista de história. Essa abertura a uma pluralidade de formas da transição ao socialismo tem uma enorme importância no debate sobre a revolução na Rússia e nos países atrasados, nas vicissitudes dos bolcheviques no poder e do papel das classes populares nos processos revolucionários. Essa concepção da história como totalização aberta, como processo de disputa que é feito e refeito na transformação da realidade, posiciona Marx como um autor que propõe uma antifilosofia e, assim, confronta toda a tradição que isolou a filosofia da vida, das dores e mudanças do mundo. Palavras-chave: Marx e Marxismo. Comuna Russa. Revolução. Transição Socialista. Abstract: During the years 1872 and 1883 - the year of his death -, Karl Marx learned Russian in order to dedicate himself to a great study about the possibilities of social transformation of this country, particularly on the role that the rural Russian commune could perform in the transition to the socialism. In these studies, letters, texts, prefaces, a non-linear and non-deterministic conception of history becomes increasingly clear. This openning to a plurality of forms of the transition to socialism is of great importance to the debate about the revolution in Russia and in back countries, in vicissitudes of the Bolsheviks in power and in the role of the popular classes in the revolutionary processes. This conception of history as open totalization, as a process of dispute that is made and remade in the transformation of reality, positions Marx as an author who proposes an antiphilosophy and, thus, confronts the whole tradition that isolated of life and pains and world changes the philosophy. Keywords: Marx and Marxism. Russian Commune. Revolution. Socialist Transition. Este artigo busca iniciar um processo de mapeamento das concepções de Marx, sobretudo, e Engels, sobre as possibilidades revolucionárias na Rússia a partir do final do século XIX, entrecruzando-se com as suas considerações a respeito do processo histórico desigual e combinado do capitalismo. Se como afirma Étienne Balibar, Marx é “antifilósofo” ao propor uma não-filosofia, é legítimo imaginar que está, assim, lançado um desafio que exige da filosofia sua reaproximação transformadora da realidade, como Marx declara na décima primeira das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, imposta é transformá-lo” (MARX, 2007, p. 613). Assim, teremos em Marx uma “crítica do progresso”, não como abstração, mas como resultado concreto da análise histórica, que só pode efetivar-se em um programa de transformação radical da vida social, das relações de produção e propriedade que compreende as contradições presentes neste procedimento. O filósofo Daniel Bensaid esclarece que não temos uma proposição do tipo “filosofia da história em seu sentido único”. A ambição é outra, mais profunda e impactante: simplesmente “uma nova escrita da história” (BENSAID, 1999, p. 13). Em sua avaliação, o alfabeto dessa nova escrita, [...] já vem proposto nos Grundrisse. O Capital, portanto, põe em ação uma nova representação da história e uma organização conceitual do tempo como relação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratempos estratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na crítica do fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordem estabelecida. (BENSAID, 1999, p. 13). É, desse modo, que a crítica da razão histórica impõe uma dimensão mais ampla e incerta, que exige novos meios para poder desvendar a processualidade do real e contribuir com sua superação. Se O Capital é um momento ímpar nessa nova escrita a exigir um novo alfabeto, se, como propõe Bensaid, esse procedimento inovador já se encontra nos Grundrisse e se desenvolve na obra mais significativa de Marx, ele não termina aí. Não isento de tensões teleológicas e ainda presas às “ideologias do progresso”, é no debate sobre as condições russas que Marx e Engels afinam suas concepções sobre o papel das determinações históricas. Daí sua relevância e a necessidade de seu estudo. Em 1911, David Riazanov, militante marxista e revolucionário ucraniano, encontra entre os papéis de Paul Lafargue – militante socialista e um dos testamenteiros de Marx – esboços de uma carta de K. Marx. Sua destinatária era a revolucionária russa Vera Zasulitch, que pertencia a uma fração dissidente do movimento narodiniki – os chamados “populistas” russos. O movimento narodiniki havia surgido em meados do século XIX como uma opção política para a intelligentsia russa diante dos impasses e possibilidades do futuro do país: era necessário “ir ao povo” – povo concebido como o camponês russo – em que sobreviveria um espírito e uma prática comunitária em decorrência da sobrevivência da propriedade camponesa coletiva. O encontro entre a intelligentsia e o mujique permitiria criar uma solução russa para o problema do progresso do país. Assim A “campanha ‘Ir ao Povo’ em 1873-1874, mobilizou milhares de jovens universitários que abandonaram os bancos escolares e foram para o campo viver, trabalhar, comer e vestir como os camponeses, e organizá-los para a revolução” (FERNANDES, 1982, p. 31). Esse poderoso movimento foi levado a um impasse pelo seu próprio sucesso, pois instalou-se uma forte repressão por parte do governo czarista. E por isso, na busca de viabilizar a atividade prático-política interditada pela violência policial, as prisões, os exílios siberianos, a organização mais forte entre os narodinikis, o “Terra e Liberdade”, adota uma postura de ação direta: a violência estatal deveria ser respondida com a violência popular. E o principal alvo deveria ser a fonte original dessa violência, no caso do hipercentralizado Estado russo, o próprio czar; objetivo que alcançam em 13 de março de 1881 – um bem-sucedido atentado a dinamite mata o czar Alexandre II. Sobre o movimento pesou, então, uma ainda mais brutal repressão que destrói a liderança da organização Terra e Liberdade. O grupo A Vontade do Povo assume a continuidade dessa tarefa política revolucionária. Entretanto, uma organização minoritária que havia defendido a manutenção dos objetivos originais do movimento narodiniki, intitulada Partilha Negra, já emigrada para o Ocidente e radicada em Genebra, desviando-se da tradição narodiniki, aproximava-se da obra de Marx e Engels através da leitura de sua obra maior, O Capital. Faziam parte desse grupo, que em 1883 fundaria A Emancipação do Trabalho, a primeira organização marxista da Rússia, nomes como Georgi Plekhanov, Vera Zasulitch e Pavel Axelrod – futuros líderes da fração menchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR). É em nome desse grupo de exilados que refletiam sobre a derrota da fração majoritária do “populismo” russo que Vera escreve a Marx em fevereiro de 1881. Zasulich, além de fazer parte do grupo dirigente da Partilha Negra, tinha ficado bastante conhecida por atirar “no governador de São Petersburgo, Trepov, por açoitar um prisioneiro”. Julgada, é inocentada, em um grande e rumoroso julgamento político (SANDERS, 2017, p. 254). Em sua carta, Zasulich comunica a Marx o sucesso de sua obra – apesar do confisco ordenado pelo governo. Segundo ela “as poucas cópias remanescentes foram lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos instruídas de nosso país; homens sérios o estudaram” (ZASULITCH, 2017, p.146). Zasulitch aponta, ainda, que a obra desempenha um papel central no debate sobre a questão agrária russa – um tema absolutamente decisivo para o movimento narodiniki. Para ela, essa questão é “de vida ou morte, sobretudo para nosso partido socialista” e é expressa na forma de duas, e somente duas, possibilidades: a primeira, que a comuna rural, libertando-se da opressão estatal e da nobreza, na forma de impostos e má administração, seja capaz de organizar a “produção e distribuição em bases coletivistas” (Ibid, p.146/147). Caso isso ocorresse, a via socialista na Rússia passaria necessariamente pela comuna camponesa e seria a obrigação do movimento socialista investir suas forças “em prol da liberação e do desenvolvimento da comuna”. Contudo, e aqui temos a segunda possibilidade, se “a comuna está destinada a perecer” todo o trabalho socialista entre o campesinato é esforço destinado ao fracasso. A atividade política socialista deveria “conduzir a propaganda apenas entre os trabalhadores das cidades, que serão continuamente inundados pela massa camponesa que, com a dissolução da comuna, será jogada nas ruas, em busca de um salário” (Ibid, p.146/147). Apresentado o dilema, Zasulitch solicita ao Cidadão Marx uma opinião: Você estaria nos fazendo um grande favor se apresentasse suas ideias sobre o possível destino de nossa comuna rural e sobre a teoria de que é historicamente necessário que cada país do mundo passe por todas as etapas do desenvolvimento capitalista. Por fim, propõe ao menos uma carta a ser publicada por ela e seus amigos na Rússia (Ibid, p. 147-148). As simpatias do grupo Partilha Negra estavam com a segunda hipótese. Sua leitura de O Capital era feita de um ponto de vista determinista: a destruição da comunidade camponesa seria inevitável, e desejável, posto que era parte da passagem do feudalismo ao capitalismo. Sem o pleno desenvolvimento do capitalismo, não haveria possibilidade para ao socialismo. E o apelo à autoridade de Marx – e, por outro caminho, de Engels – era uma convergência de interesses com estudos que ambos já desenvolviam sobre a Rússia. Engels, em 1875, expõe assim as causas do olhar atento que o movimento operário e revolucionário alemão deveria ter sobre o império czarista: A evolução dos eventos na Rússia se reveste da maior importância para a classe trabalhadora alemã. O Império Russo que aí está constitui o último grande esteio de todo reacionarismo europeu ocidental [...]. Nenhuma revolução poderá obter a vitória definitiva na Europa ocidental enquanto ao seu lado ainda existir o Estado russo [...]. A derrubada do Estado czarista russo e a destituição de seu império, constituem, portanto, uma das primeiras condições para a vitória definitiva do proletariado alemão (ENGELS, 2013, p. 34). Podemos constatar que Engels tem sobre a situação da vida camponesa russa uma avaliação negativa: o polo revolucionário se encontra na Europa ocidental, sendo o czarismo russo e seus exércitos a última e mais formidável reserva da contrarrevolução. Apesar de reconhecer que existiam elementos internos ao império que atuavam para derrubá-lo, sendo destacado o papel dos poloneses, Engels tem uma visão bastante negativa da realidade do campesinato russo. O fato é que a massa do povo russo, os camponeses, há séculos vegeta, de geração em geração, numa espécie de pântano a-histórico; e a única variação que talvez tenha interrompido esse estado letárgico foram algumas revoltas infrutíferas, que só levaram a novas opressões por parte da nobreza e do governo (Ibid, p. 35-36). Porém, Engels alerta que abolição da servidão (1861), ainda que obra do Estado czarista, iria impelir os camponeses ao “movimento histórico”. O aumento da miséria devido a “esperteza” da medida czarista geraria mais insatisfação e essa insatisfação camponesa “já é um fato que tem de ser levado em conta tanto pelo governo quanto por todos os insatisfeitos, incluindo os partidos de oposição” (Ibid, 2013, p. 35-36). O trecho acima citado é uma apresentação a um conjunto de textos intitulada “Literatura de Refugiados”, escrita e publicada entre 1874 e 1875. Especificamente o caso russo é tratado nos artigos 3, 4 e 5, tendo caráter de polêmica com os narodinikis – ainda que com visões diferentes do processo político russo – P. Lavrov e P. Tkatchov. O interesse de Marx e Engels sobre a Rússia os levou a estudo da língua e à leitura de uma grande quantidade de livros sobre o país. É adequado lembrar que O Capital foi traduzido pela primeira vez para o russo, já em 1872, pelo narodiniki N. Danielson, após traduções não-concluídas de G. Lopatin e M. Bakunin. É em 1877, contudo, que a posição de Marx sobre a Rússia recebe uma clara nova inflexão. Como já vimos, a obra de Marx despertara grande interesse na Rússia. Um historiador comunista inglês afirma que, na Europa oriental, “nenhuma outra explicação do fenômeno que transformou o século XIX em modernidade podia competir com o marxismo, cuja influência tornou-se correspondentemente profunda” – o que não seria o caso da Europa ocidental. Além disso, na Rússia “terra de um estrato social desajustado, a ‘intelligentsia’ crítica, produziu leitores devotados de O Capital antes de qualquer outro país”. (HOBSBAWN, 2011, p. 203). Nesses intensos debates, o economista J. Jukovski publica no influente periódico O Contemporâneo uma dura crítica à obra de Marx. Em defesa do autor alemão vem N. Mikhailovsky. Em sua revista Notas Patrióticas publica o artigo K. Marx sob o julgamento do Sr. J. Jukovski. Ainda que muitos contemporâneos russos de Mikhailovsky vissem em seu texto uma defesa um tanto irônica da obra de Marx, ele próprio não entendeu assim e, como veremos, apressou-se em responder-lhe. Mikhailovsky afirma que na sétima seção de O Capital, o capítulo intitulado A assim chamada acumulação primitiva, teria pretendido “traçar aí um esboço histórico dos primórdios do modo de produção capitalista”, mas teria ido muito além pois “traçou toda uma teoria histórico-filosófica”. (MIKHAILOVSKY, 1982, p. 159). Mikhailovsky avança na descrição do processo de separação dos meios de produção dos produtores, indicando a necessidade desse processo para a criação de uma classe de trabalhadores apta a vender livremente sua força de trabalho, que seria encontrado em toda realidade capitalista. Sua leitura de Marx leva até a afirmar que o processo da acumulação primitiva “foi difícil, penoso e longo, com séculos de duração, mas, sem dúvidas, necessário” (Ibid, 1982, p. 160). Sem deixar de elogiar a cientificidade e a capacidade de rigor lógico da análise marxiana, Mikhailovsky conclui que para o leitor russo, essa bela exposição traria mais problemas que soluções. Um deles: o processo de expropriação servil/camponesa não teria avançado tanto na Rússia quanto na Europa. Assim, Mikhailovsky conclui que, aqueles que se apoiassem nas ideias de Marx para interpretar a Rússia se veriam no dilema de afirmar que “deveríamos percorrer aquele mesmo processo descrito e elevado ao status de uma teoria histórico-filosófica por Marx” (Ibid, 1982, p. 162). Diz mais: citando uma passagem em que Marx aponta as tragédias que acompanham o processo da acumulação primitiva de forma “cáustica”, saca da leitura do texto marxiano a conclusão da inevitabilidade bem-vinda da acumulação primitiva, pois: [...] do ponto de vista da teoria histórica de Marx, nós não deveríamos protestar contra elas, pois isto seria o equivalente a agir contra os nossos interesses; e mais, deveríamos saudá-las com alegria como degraus necessários, ainda que árduos, na subida em direção ao templo da felicidade. (Ibid, p. 163). A visão de Marx como um determinista defensor da inevitabilidade dos violentos e cruéis processos da acumulação primitiva capitalista, de produtor de uma filosofia da história regida pela teleologia da necessidade histórica, leva Marx a escrever para a revista uma resposta. Não a enviou, entretanto. Engels desconhecia a razão do não envio e só tomou conhecimento dela depois da morte de Marx em março de 1883. Em março de 1884 a carta de Marx é enviada para Genebra ao grupo “Emancipação do Trabalho”, aos cuidados de Vera Zasulitch. Porém, os jovens convertidos ao marxismo não a publicam (FERNANDES, 1982, p. 158). Será publicada pela revista O Mensageiro da Vontade do Povo, fora da Rússia, em 1886. Duas publicações anteriores feitas na Rússia haviam quase que totalmente caído nas mãos da polícia russa. Em 1888, com tradução de N. Danielson ocorre a primeira publicação em veículo legal dessa carta de Marx. (MARX & ENGELS, 2013, p. 60-61). A resposta de Marx primeiramente enfrenta as acusações de ser um detrator do pensamento de A. Herzen. Essa pequena passagem, publicada como apêndice de O Capital – e retirada na segunda edição revista e corrigida do primeiro volume, publicada na cidade de Hamburgo em 1872 – não está no cerne da avaliação de Marx, como ele mesmo afirma em carta ao redator da publicação Notas Patrióticas. Ao contrário, Minha apreciação desse escritor pode ser justa ou pode ser falsa, mas em nenhum caso ela fornecerá a chave da minha visão sobre os esforços ‘dos homens russos para encontrar o caminho do desenvolvimento para sua pátria, diferente daquele que foi e é trilhado pela Europa ocidental’ (MARX, 2013, p. 65). A comprovação de seu argumento – contrário tanto a Jukovski quanto a Mikhailovsky – é seu elogio a N. Tchernichevski. Sendo o grande autor russo favorável a comuna rural preservada e desenvolvida, poderia servir de base a um processo histórico que não passasse pelas “torturas” da acumulação primitiva. Tendo assim afirmado sua concordância com Tchernichevski, reafirma, a fim de evitar deixar algo “para ser adivinhado”, sua dedicação à língua russa e ao estudo de suas realidades econômicas e esclarece que o resultado alcançado por anos de estudo foi que “se a Rússia prosseguir no rumo tomado depois de 1861, ela perderá a melhor chance que a história já ofereceu a um povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fatais do regime capitalista. (Ibid p. 66). Para Michael Löwy, esse pequeno documento é de grande importância, pois impede qualquer leitura unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico. A partir de 1877, eles sugerem que ainda que não de forma desenvolvida, uma perspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formas de transformação histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluções sociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista [...] (LÖWY, 2013, p. 9). Assim, a carta que Vera Zasulitch envia a Marx lhe dá margem para pensar e clarear suas opiniões e análises sobre o desenvolvimento econômico e social da Rússia e as possibilidades revolucionárias daí decorrentes, para além do que havia feito em seu debate com Mikhailoski. Seu interesse é crescente pela Rússia, após finalizar a redação do primeiro volume de O Capital, publicado em 1867. Segundo Teodor Shanin, na década final de vida de Marx entre 1872 e 1882, “houve uma crescente interdependência entre suas análises das realidades da Rússia e o movimento revolucionário russo”, ou seja, o movimento narodiniki (SHANIN, 2017, P. 26). Talvez por isso, sua hesitação em responder a carta, pois produz quatro rascunhos antes de encontrar uma forma final. Seu papel na nova escrita da história que Marx teria iniciado em “O Capital”, como afirma um filósofo marxista francês: Se Marx retomasse por sua conta a teodiceia hegeliana do Espírito, o encadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo desfiaria simplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o paraíso recuperado. Suas célebres cartas a Vera Zassulich sobre a Rússia desmentem categoricamente tal possibilidade (BENSAID, 1999, p 50-51). Quais são os argumentos de Marx, quais conceitos desenvolve ao buscar a conexão entre o desenvolvimento histórico-econômico da Rússia, a luta de classes e as possibilidades revolucionárias neste país? E por qual razão foram necessários quatro rascunhos, posto que o tema da comuna rural russa e seu possível papel na transição ao socialismo não era novo para Marx? A segunda questão recebeu uma multiplicidade de respostas. Rubens César Fernandes, um pioneiro do estudo desses documentos e temas no marxismo brasileiro, aponta várias razões: a variedade de tendências narodinikis existentes e, em particular, a estranha tendência chamada de marxismo legal – que usava as teorias de Marx para defender a necessidade de desenvolver o capitalismo na Rússia; a preocupação em atender a dois grupos diferentes, pois, a carta de Zasulitch representava a busca da chancela de Marx às teses da Partilha Negra e o comitê executivo de A Vontade do Povo solicitara a Marx uma brochura sobre o mesmo tema – o que Marx teria prometido, mas não cumprido. Para Fernandes, diante da situação “Marx primou pelo cuidado: escreveu três longos rascunhos, detalhadamente corrigidos, que afinal foram guardados e substituídos por uma carta de duas páginas” (FERNANDES, 1982, p. 169170). Assim, para Fernandes, a razão fundamental para os três rascunhos – maiores que a carta final – estava em seu extremo cuidado no trato do tema, diante da possibilidade de apropriação política indevida, no quadro de repressão e censura vivido na Rússia. Foi David Riazanov quem encontrou os rascunhos da carta entre os papeis de Marx que se encontravam com seu genro, Paul Lafargue. Cabe lembrar que Riazanov se comunica imediatamente após o encontro dos rascunhos com G. Plekhanov, que nega o conhecimento da carta. Entretanto, a memória do próprio Riazanov registrava um evento ligado às cartas e aos líderes mencheviques: eu me lembrava de ter ouvido, durante minha estadia na Suíça em 1883, uma narrativa por vezes fantástica sobre uma troca de correspondências entre o grupo Emancipação do Trabalho e Marx sobre a comuna camponesa russa. Circulavam até mesmo anedotas muito inverossímeis sobre um embate pessoal entre Plekhanov, que nega a propriedade comunal, e Marx, que a teria defendido (RIAZANOV, 2013, p. 71). Entretanto, em 1923, o pesquisador B. Nicolaievski encontra nos arquivos de P. Axelrod, outro líder da Partilha Negra e fundador do grupo A Emancipação do Trabalho, uma carta de Marx que era a reprodução reduzida de um dos esboços. Segundo Riazanov, Nicolaievski era da opinião “de que a insatisfação de Marx com o grupo Partilha Negra fez com que ele tivesse deixado de escrever algo franco e detalhado” (Ibid, 2013, p. 71). Para Riazanov duas razões se impõe a uma carta tão mais curta que os rascunhos e mesmo para tantos rascunhos: “a única coisa que o impediu de responder tão extensamente como havia planejado foi sua própria capacidade de trabalho, já solapada, cujas marcas se percebem nos esboços”. Além disso, cita com aprovação a tese de E. Bernstein que o ceticismo de Marx diante das possibilidades da transição socialista se basear na comuna camponesa russa não era claramente expresso a fim de não “decepcionar demais” os revolucionários russos (Ibid, p. 73-74). Polêmica antiga, como se vê, dentro dos próprios círculos revolucionários russos. Para Teodor Shanin, a questão é muito maior que a preocupação com o ânimo dos revolucionários russos ou um eventual declínio intelectual. Para ele, Marx havia desenvolvido “uma consciência crescente a respeito de um novo problema fundamental”. A escrita de quatro rascunhos “atestam o tamanho do trabalho e do pensamento que lhe dão base – como se toda uma década de estudos de Marx com suas 30 mil páginas de notas, embora sem nenhum texto finalizado, viesse junto” (SHANIN, 2017, P. 42). Assim, os esboços e a carta a Vera Zasulitch e ao grupo Partilha Negra – que não a publicaram ou divulgaram – seria um ponto decisivo nos estudos de Marx sobre a Rússia e um desdobramentos de seus estudos históricos já presentes nos Grundrisse sobre as formações econômicas pré-capitalistas. Jean Tible lembra que Marx havia lido e comentado, entre 1874 e 1875, o livro de M. Bakunin, Anarquismo e Estatismo e que, apesar dos comentários nada simpáticos de Marx, as críticas de Bakunin às “características primitivas” da comunidade rural russa, teriam exercido certa influência sobre as análises de Marx (TIBLE, 2017, p. 79). Éttienne Balibar considera que as críticas de Marx a Bakunin e ao Programa de Gotha, em 1875, repõem a questão do “enfraquecimento do Estado na transição para o comunismo”. Há uma “abertura comparável” na correspondência russa de Marx (BALIBAR, 1995, p. 126-127). Considerando que o tema não era novo para Marx, o filósofo francês propõe outra solução para as hesitações presentes na redação de quatro rascunhos e numa resposta final excessivamente tímida. Para ele, Marx teria dificuldade em assumir claramente a formulação nova de sua ideia, pois “o que é proposto nesses textos, portanto, é a ideia da multiplicidade concreta de vias de desenvolvimento histórico”. Mais ainda, através de uma surpreendente reviravolta da situação, sob pressão de uma questão vinda do exterior (e com certeza também das dúvidas suscitadas nele quanto a exatidão de algumas de suas próprias formulações, pela aplicação que lhe propõe então os ‘marxistas’) o economismo de Marx dá à luz o seu contrário: um conjunto de hipóteses antievolucionistas. (BALIBAR, 1995, p. 128). No prefácio à primeira edição de O Capital, logo após reconhecer que seus estudos se centram na Inglaterra e citar, especificamente, que nada serviria aos alemães imaginarem que não se falava deles, pois então Marx teria de gritar-lhes “A fábula fala de ti!”, anuncia que “O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017, p. 77). A leitura de O Capital como um texto evolucionista não foi feita apenas pelos russos. Saudando a Revolução de 1917, A. Gramsci, jovem redator do jornal socialista Avanti, propõe ser ela uma “uma revolução contra O Capital de Karl Marx”. E argumenta que O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dos proletários (...) Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dos quais a história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones do materialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx: afirmam – e com o testemunho da ação explicitada, das conquistas realizadas – que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou. (GRAMSCI, 2011, p.62). Quais são, então, os centros teóricos e seus desdobramentos práticos presentes nesses rascunhos durante tanto tempo esquecidos, nessa carta-documento solicitada para arbitrar divergências e proclamar um lado como correto, que termina por ser suprimida e retornar como um fantasma ao debate, após a tão ansiada revolução ter sido vitoriosa em 1917 e muitas vezes mais depois? 1. O primeiro esboço Em seu primeiro esboço, não datado, Marx desenvolve um primeiro argumento. O processo por ele descrito no capítulo sobre a acumulação primitiva de capital falava do processo histórico inglês e apontava sua generalização pela Europa ocidental. Para demonstrar sua posição, cita a passagem de O Capital em havia escrito que a história dessa expropriação [...] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as várias fases em sucessão diversa e diferentes épocas históricas. Apenas na Inglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação se apresenta em sua forma clássica (MARX, 2017, p. 787-788) para logo depois reafirmar a generalidade cheia de diversidade desse desenvolvimento para a Europa ocidental. Destaca, com outra citação de O Capital, que o processo inglês que antecipa de forma não-linear eventos europeus ocidentais de expropriação, são do tipo em que “propriedades nanicas de muitos em propriedade gigantesca de poucos” (Ibid, p. 831). A partir daí, aponta que ocorre a transformação de uma forma de propriedade privada em outra forma de propriedade privada. A terra nas mãos dos camponeses russos jamais foi a a sua propriedade privada; então como se aplicaria esse desenvolvimento? (MARX, 2013, p. 89). Argumento que é histórico e também lógico, como se vê. Seu segundo argumento enfrenta os defensores da “dissolução fatal”: considerando que a comuna rural camponesa não é uma exclusividade russa. E sim “um tipo mais ou menos arcaico de propriedade comum” que “se encontra em toda parte da Europa ocidental” e que “desapareceu completamente” porque acreditar na Rússia seria diferente? A resposta de Marx é singela e cortante: um conjunto único de características históricas tinha preservado a comuna rural russa em escala nacional. Sua “contemporaneidade da produção capitalista” possibilitaria uma superação de suas características primitivas – já criticadas por Bakunin em artigo lido e comentado por Marx – e “se apropriar das conquistas positivas” do capitalismo, sem passar por suas terríveis provações (MARX, 2013, p.89). Para reafirmar seu ponto de vista, Marx apresenta um exemplo do “desenvolvimento desigual e combinado” da sociedade capitalista: a Rússia, “para explorar máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, ...” não teria precisado passar “por um longo período de incubação da indústria mecânica”, que atravessou o Ocidente em séculos (Ibid, p. 90). Assim, o argumento dialético das vantagens do atraso – o salto tecnológico e social possível graças a convivência no amplo quadro das sociedades capitalistas de tempos históricos, formas de propriedade e relações sociais de produção diferentes – é apresentado com bastante clareza. A conclusão – cheia de ousadia de Marx – citando um “autor americano nem um pouco suspeito de tendências revolucionárias” – é que o arcaísmo do comuna russa não é problema, pois as formas superiores são renascimentos mais desenvolvidos de formas anteriores (Ibid, p. 91). Através de um excurso histórico que começa com as fontes romanas de Tácito e Júlio Cesar, Marx esclarece que a comuna russa é “o tipo mais recente da formação arcaica”, que transitou na Europa ocidental da “propriedade comum para a propriedade privada”. Mas imediatamente afirma que “sua forma constitutiva admite a seguinte alternativa: ou o elemento de propriedade privada implicado nela prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre o primeiro”. Não há fatalismo, “Tudo depende do ambiente histórico em que a comuna se encontra localizada”. E se falamos na concepção da história em Marx, falamos em lutas sociais, falamos em luta de classe (Ibid, p. 93). Marx desenvolve ainda mais o argumento da contemporaneidade entre a comuna (arcaica) e o presente (capitalista) em âmbito mundial. Para não deixar qualquer dúvida a respeito de sua posição, afirma que a comuna rural russa “pode tornar-se um ponto de partida direto do sistema econômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem se suicidar” (Ibid, 2013, p.96). Para isso, todavia, há que se “descer da teoria pura à realidade russa”. Como afirma o filósofo francês Daniel Bensaid a respeito da formação da concepção histórica de Karl Marx e suas implicações, não há qualquer necessidade de postular uma causalidade implacável ou um juízo ultimo para considerar que aquilo que se segue constitua um progresso em relação a algo imediatamente precedente. O critério pode permanecer sobriamente comparativo. (BENSAID, 1999, 56). Assim também, a análise histórica que os revolucionários devem realizar – pois não se trata de um debate acadêmico – parte da vida social e econômica russa em direção à teoria; e não ao contrário, para o revolucionário alemão, a teoria não é uma camisa de força em que se espreme a realidade. O terceiro argumento de Marx é que não se deve cultivar ilusões. Desde o decreto imperial que suprimiu a servidão, em 1861, a comuna rural russa estaria sobre ataque. Usurários, comerciantes, o fisco e grandes proprietários avançam sobre ela e seu colapso econômico é uma possibilidade. Estando em conexão com as transformações mais gerais do mercado mundial em geral e da Rússia em particular, as fontes de suas possibilidades positivas – a superação em direção a uma organização social superior – e negativas - seu desaparecimento na transição capitalista – não estão decididas por uma fatalidade histórica qualquer, pela necessidade de lutar “com uma potente reação” contra “as influências destrutivas” que pesam sobre ela (Ibid, 2013, p. 102). A dialética da comuna rural está sempre presente na resposta de Marx. As possibilidades mudam a cada evento, a cada ação das forças de superação positiva – em direção ao socialismo ou destrutivas, que só tem a oferecer o tenebroso quadro descrito por Marx em O Capital. A dinâmica histórica, sem fatalismos. É regida por possibilidades, que, entretanto, não são eternas, pois o conflito social é sempre presente, ainda que nem sempre visível. Forças diversas, interesses de classe, ações governamentais, dinâmicas econômicas mundiais, inovações tecnológicas se conjugam e se entrechocam na tessitura da realidade. Para Bensaid é essa complexidade, “essa dialética do necessário e do possível [que] permanece incompreensível para os detratores de um Marx rasamente determinista, aferrados a imputar-lhe um conceito mecânico de necessidade” (BENSAID, 1999, p. 386). Marx se desvincula claramente desses que chama, no primeiro rascunho, ironicamente de “porta-vozes dos ‘novos pilares sociais’” (MARX, 2013, p.102). Seu quarto argumento ressalta que, apesar das dificuldades da pesquisa histórica sobre o tema, que ainda estava engatinhando em 1881, Marx garante que é possível afirmar que a comuna rural euro-russa é dotada de enorme vitalidade – historicamente mais duradoura que a própria sociedade capitalista! – e que os fatores limitantes endógenos que as levaram ao desaparecimento não pesam mais sobre a comuna russa historicamente existente no momento em que ele escreve (Ibid, p. 101). Sua recomendação, também, se dá em relação ao trato das fontes. A historiografia burguesa é comprometida; historiadores, sociólogos, economistas, filósofos, não são neutros. Seu quinto argumento não traz ideias que já não tenham sido apresentadas anteriormente, mas é mais duro com aqueles “lacaios literários dos ‘novos pilares da sociedade’” que, ao “tempo em que se sangra e tortura a comuna”, apresentam esse procedimento “como sintomas de sua decrepitude espontânea”. A estes, nenhuma trégua: “Aqui não se trata mais de um problema a resolver; trata-se de um inimigo a derrotar” (Ibid, 102). Uma dissociação política e teórica de tais interpretes de O Capital não poderia ser mais incisiva. 2. O segundo esboço Segue, inicialmente, o roteiro do primeiro esboço, com Marx numerando seus pontos centrais. Recorre aos mesmo trechos de O Capital, mas, ao falar da propriedade comunal, reforça seu caráter comunista. Torna claro que a destruição da propriedade comunal é um desejo dos liberais russos e, no ponto dois, em que rispidamente afirma: “Os ‘marxistas’ de que me falais me são desconhecidos. Os russos com quais tenho relações pessoais, ao que eu saiba, têm pontos de vistas totalmente opostos” (Ibid, p. 104). Se, no primeiro esboço, o enfrentamento com os defensores do ponto de vista fatalista da dissolução inevitável, em nome da opus magna de Marx, demoraram a ser enfrentados, sua confrontação avança para o começo do segundo esboço. No seu terceiro argumento, Marx destaca que [...] a morte da propriedade comunal e o nascimento da produção capitalista estão separados por um intervalo de tempo imenso, abrangendo toda uma série de revoluções e sucessivas evoluções econômicas, das quais a produção capitalista é apenas a mais recente. (Ibid, p. 104). As “vantagens do atraso” da Rússia continuam sendo lembradas, e, portanto, não há impedimento que a Rússia trilhe um caminho diferente do ocidente europeu em seu desenvolvimento em direção à produção cooperativa e a “propriedade comunista”. O quarto argumento deixa mais nítido o papel negativo do Estado na preservação e superação, por parte da comunidade rural russa de seu atraso em direção a formas superiores de produção. E no quinto argumento. A “discordância de tempos” na formação social russa é indicada com firmeza, pois assim como as camadas geológicas mostram “suas diversas idades” sobrepostas umas às outras, “a formação arcaica da sociedade nos revela uma série de tipos diferentes, marcando as épocas progressivas. A Comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa corrente” (Ibid, p. 105). E tendo ressaltado os riscos e entraves que ameaçavam a valoração socialista positiva da comuna, Marx chega ao seu quinto argumento, em que alerta contra as forças que se erguem contra a comuna camponesa: “Certo gênero de capitalismo, nutrido às expensas dos camponeses por intermédio do Estado”, associados aos grandes proprietários rurais, a quem interessa o “trabalho barato” que se tornaria disponível com a destruição da Comuna (Ibid, p. 107). 3. O quarto esboço O terceiro esboço Estando dividido em, basicamente, duas partes, Marx rearranja os argumentos dos esboços anteriores, alcançando uma forma de redação um pouco mais coesa. Porém, o esboço se encontra interrompido, ou seja, foi abandonado. Já no quarto esboço, muito menor do que os demais, Marx desculpa-se afirmando estar acometido de “uma doença nervosa”. Avisa a missivista que havia prometido ao “Comitê de São Petersburgo” “um escrito sobre o mesmo assunto”. O tom seco, extremamente sintético, que termina por ser apenas um pouco mais extenso na carta enfim enviada em 8 de março de 1881 – mesma data do esboço -, a referência ao Comitê de São Petersburgo que receberia um texto mais longo e completo e uma leve ironia na resposta – “Espero (...) que algumas linhas sejam suficientes para livrar-nos sobre o mal-entendido acerca da minha assim chamada teoria” – nos levam a crer que algo mudou na abordagem e na consideração que Marx faz a sua interlocutora e destinatária. Primeiramente, afirma que em O Capital não há argumentos nem a favor nem contra a vitalidade da comuna russa”. Em seguida, assertivo, afirma que “Os estudos especiais que fiz, para os quais pesquisei em fontes originais, convenceram-me que essa comuna é a alavanca natural da regeneração social da Rússia. (Ibid, p. 113). A carta enviada nunca foi publicada, apesar da permissão de Marx para que isso fosse feito. Em 1883, com Marx já morto, o grupo representado por Zasulitch já havia rompido com o movimento narodiniki – ruptura acelerada pelo intenso debate causado pela carta de Marx sobre Jukovski e Mikhailovsky finalmente publicada. Assumem-se, sob a liderança de G. Plekhanov, como os primeiros marxistas da Rússia e não queriam sofrer com a discordância do “mestre”. 4. À guisa de conclusão O que dizer desse debate travado de forma epistolar, travado nas sombras de gabinetes e quartos de revolucionários exilados, tendo em vista os destinos do desenvolvimento econômico e da revolução no país mais extenso do mundo, no Império que havia sido desde o Congresso de Viena (1815) a reserva sagrada da revolução europeia? Sua importância, assim apresentada, deveria ser evidente: a revolução na Rússia teria impacto em toda a Europa, possibilitando uma mudança na correlação de forças em âmbito continental. A transição que se discute no tocante à Comuna russa é mais amplo que o país dos czares, podendo ser exemplar para os países retardatários do capitalismo? Se a Rússia poderia saltar, ou atravessar de forma completamente diferente, a etapa capitalista conforme seu desdobramento europeuocidental, chega-se a uma problemática central da filosofia – ou antifilosofia – de Marx: quem seria nessa hipótese o “sujeito histórico revolucionário”? A resposta clássica para o ocidente era a classe trabalhadora industrial. Mas essa resposta não deveria ser a mesma para a Rússia, caso a Comuna servisse de ponto de partida para uma radical transformação da vida social e econômica russa. Verdade que em seus esboços Marx alerta para a necessidade de passar da teoria à prática – o conceito de práxis – pois a resolução dessas questões será tarefa da vida real, obra de homens e mulheres reais, pois a filosofia só é de valor quando colabora à transformação do mundo. Referências BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx. Tradução: Lucy Magalhães, consultor Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX). Tradução: Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ENGELS, Friedrich. Observação prévia à brochura “Questões sociais da Rússia”, in MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo. 2013. FERNANDES, Rubem César (Org.). Dilemas do Socialismo: A controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos. Tradução: Lúcio F. R. Almeida e Rubem César Fonseca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. GRAMSCI, Antonio; A revolução contra o capital. In: COUTINHO, Carlos. O leitor de Gramsci: escritos escolhidos 1916-1935. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. HOBSBAWN, Eric J. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo 1840-2011. Tradução: Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. LÖWY, Michael. Introdução – Dialética revolucionária contra a ideologia burguesa do Progresso. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia. Tradução: Nélio Schneider. Boitempo: 2013. MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach, in MARX, Karl; ENGELS, Friederich; A Ideologia Alemã. Tradução, prefácio e notas de Marcelo Backes. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2007. MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia. Tradução Nélio Schneider, Boitempo; 2013. MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política – Livro I. Tradução: Rubens Enderle. 2ª edição. São Paulo; Boitempo, 2017. MIKHAILOVSKY, N. K. O dilema do marxista russo, In: FERNANDES, Rubem César (Org.), Dilemas do Socialismo: a controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos. Tradução: Lúcio F. R. Almeida e Rubem César Fonseca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. RIAZANOV, David. Vera Zasulitch e Karl Marx. In: MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia. Tradução: Nélio Schneider, São Paulo: Boitempo, 2013. SANDERS, Jonathan. O cenário russo: uma nota biográfica. In SHANIN (Ed.), Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo. São Paulo: Expressão Popular; 2017. SHANIN, Teordo. Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo, São Paulo, Expressão Popular; 2017. TIBLE, Jean. Marx Selvagem. 4ª Ed. São Paulo: Autonomia Literária, 2017. ZASULICHT, Vera. Carta a Karl Marx em 16 de fevereiro de 1881. In: SHANIN (Ed.), Marx tardio e a via russa: Marx e as periferias do capitalismo, São Paulo: Expressão Popular, 2017. Recebido em: 10 de jul. 2020 Aceito em: 13 de ago. 2020