terça-feira, 18 de outubro de 2022

Marx Rússia a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução

Marx: a comuna camponesa russa e a teoria marxiana da Revolução Marx: a russian peasant commune and the marxiantheory of the Revolution Nilo Sérgio Silva Aragão 1 Resumo: Durante os anos 1872 e 1883 ano de sua morte , Karl Marx aprendeu russo para se dedicara um estudo de grande fôlego sobre as possibilidades de transformação social da Rússia,particularmente sobre o papel que a comuna rural russa poderia desempenhar em uma transição aosocialismo. Torna-se cada vez mais clara nesses estudos, cartas, textos, prefácios, uma concepção não-linear e não-determinista de história. Essa abertura a uma pluralidade de formas da transição aosocialismo tem uma enorme importância no debate sobre a revolução na Rússia e nos países atrasados,nas vicissitudes dos bolcheviques no poder e do papel das classes populares nos processosrevolucionários. Essa concepção da história como totalização aberta, como processo de disputa que éfeito e refeito na transformação da realidade, posiciona Marx como um autor que propõe umaantifilosofia e, assim, confronta toda a tradição que isolou a filosofia da vida, das dores e mudanças domundo. 1 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará e professor nos cursos de extensãouniversitária do Centro Universitário Sete de Setembro (UNI7). É autor de livro didático de filosofia parao ensino fundamental pelo Sistema Ari de Sá. É também professor do ensino médio da rede particular deensino em Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: niloarag@gmail.com Universidade do Estado da BahiaDepartamento de Educação – Este artigo busca iniciar um processo de mapeamento das concepções de Marx,sobretudo, e Engels, sobre as possibilidades revolucionárias na Rússia a partir do finaldo século XIX, entrecruzando-se com as suas considerações a respeito do processohistórico desigual e combinado do capitalismo. Se como afirma Étienne Balibar, Marx é “antifilósofo” ao propor uma não -filosofia, é legítimo imaginar que está, assim, lançadoum desafio que exige da filosofia sua reaproximação transformadora da realidade, como Marx declara na décima primeira das Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos apenas interpretaram o mundo diferentemente, imposta é transformá-lo” (MARX,2007, p. 613).Assim, teremos em Marx uma “crítica do progresso”, não como abstração, mas como resultado concreto da análise histórica, que só pode efetivar-se em um programade transformação radical da vida social, das relações de produção e propriedade quecompreende as contradições presentes neste procedimento. O filósofo Daniel Bensaid esclarece que não temos uma proposição do tipo “filosofia da história em seu sentidoúnico”. A ambição é outra, mais profunda e impactante: simplesmente “uma novaescrita da história” (BENSAID, 1999, p. 13). Em sua avalia ção, o alfabeto dessa novaescrita, [...] já vem proposto nos Grundrisse. O Capital, portanto, põe em ação umanova representação da história e uma organização conceitual do tempo comorelação social: ciclos e rotações, ritmos e crises, momentos e contratemposestratégicos. A antiga filosofia da história extingue-se, por um lado, na críticado fetichismo mercantil e, por outro, na subversão política da ordemestabelecida. (BENSAID, 1999, p. 13). É, desse modo, que a crítica da razão histórica impõe uma dimensão mais amplae incerta, que exige novos meios para poder desvendar a processualidade do real econtribuir com sua superação. Se O Capital é um momento ímpar nessa nova escrita aexigir um novo alfabeto, se, como propõe Bensaid, esse procedimento inovador já seencontra nos Grundrisse e se desenvolve na obra mais significativa de Marx, ele não termina aí. Não isento de tensões teleológicas e ainda presas às “ideologias doprogresso”, é no debate sobre as condições russas que Marx e Engels afinam suas concepções sobre o papel das determinações históricas. Daí sua relevância e anecessidade de seu estudo.Em 1911, David Riazanov, militante marxista e revolucionário ucraniano,encontra entre os papéis de Paul Lafargue – militante socialista e um dostestamenteiros de Marx – esboços de uma carta de K. Marx. Sua destinatária era arevolucionária russa Vera Zasulitch, que pertencia a uma fração dissidente domovimento narodiniki -os chamados “populistas” russos. O movimento narodiniki havia surgido em meados do século XIX como uma opção política para a intelligentsia russa diante dos impasses e possibilidades do futuro do país: era necessário “ir aopovo” – povo concebido como o camponês russo – em que sobreviveria um espírito euma prática comunitária em decorrência da sobrevivência da propriedade camponesa coletiva. O encontro entre a intelligentsia e o mujique permitiria criar uma soluçãorussa para o problema do progresso do país. Assim A “campanha ‘Ir ao Povo’ em 1873 -1874, mobilizou milhares de jovensuniversitários que abandonaram os bancos escolares e foram para o campoviver, trabalhar, comer e vestir como os camponeses, e organizá-los para a revolução” (FERNANDES, 1982, p. 31). Esse poderoso movimento foi levado a um impasse pelo seu próprio sucesso,pois instalou-se uma forte repressão por parte do governo czarista. E por isso, na buscade viabilizar a atividade prático-política interditada pela violência policial, as prisões,os exílios siberianos, a organização mais forte entre os narodinikis , o “Terra eLiberdade”, adota uma postura de ação direta: a violência estatal deveria se rrespondida com a violência popular. E o principal alvo deveria ser a fonte originaldessa violência, no caso do hipercentralizado Estado russo, o próprio czar; objetivo quealcançam em 13 de março de 1881 – um bem-sucedido atentado a dinamite mata oczar Alexandre II.Sobre o movimento pesou, então, uma ainda mais brutal repressão que destrói aliderança da organização Terra e Liberdade . O grupo A Vontade do Povo assume acontinuidade dessa tarefa política revolucionária. Entretanto, uma organizaçãominoritária que havia defendido a manutenção dos objetivos originais do movimento narodiniki , intitulada Partilha Negra , já emigrada para o Ocidente e radicada emGenebra, desviando-se da tradição narodiniki , aproximava-se da obra de Marx e Engelsatravés da leitura de sua obra maior, O Capital . Faziam parte desse grupo, que em 1883fundaria A Emancipação do Trabalho , a primeira organização marxista da Rússia,nomes como Georgi Plekhanov, Vera Zasulitch e Pavel Axelrod – futuros líderes dafração menchevique do Partido Operário Social Democrata Russo (POSDR).É em nome desse grupo de exilados que refletiam sobre a derrota da fração majoritária do “populismo” russo que Vera escreve a Marx em fevereiro de 1881. Zasulich, além de fazer parte do grupo dirigente da Partilha Negra , tinha ficado bastante conhecida por atirar “no governador de São Petersburgo, Trepov, por açoitarum prisioneiro”. Julgada, é inocentada, em um grande e rumoroso julgamento político (SANDERS, 2017, p. 254).Em sua carta, Zasulich comunica a Marx o sucesso de sua obra – apesar do confisco ordenado pelo governo. Segundo ela “as poucas cópias remanescentes foram lidas e relidas pela massa de pessoas mais ou menos instruídas de nosso país; homens sérios o estudaram” (ZASULITCH, 2017, p.146). Zasulitch aponta, ainda, que a obradesempenha um papel central no debate sobre a questão agrária russa – um temaabsolutamente decisivo para o movimento narodiniki . Para ela, essa questão é “de vidaou morte, sobretudo para nosso partido socialista” e é expressa na forma de duas, esomente duas, possibilidades: a primeira, que a comuna rural, libertando-se daopressão estatal e da nobreza, na forma de impostos e má administração, seja capaz de organizar a “produção e distribuição em bases coletivistas” (Ibid,p.146/147). ocorresse, a via socialista na Rússia passaria necessariamente pela comuna camponesa e seria a obrigação do movimento socialista investir suas forças “em prol da liberação edo desenvolvimento da comuna”. Contudo, e aqui temos a segunda possibilidade, se “acomuna está destinada a perecer” todo o trabalho socialista entre o campesinato éesforço destinado ao fracasso. A atividade política socialista deveria “conduzir a propaganda apenas entre os trabalhadores das cidades, que serão continuamenteinundados pela massa camponesa que, com a dissolução da comuna, será jogada nas ruas, em busca de um salário” (Ibid, p.146/147). Apresentado o dilema, Zasulitch solicita ao Cidadão Marx uma opinião Porém, Engels alerta que abolição da servidão (1861), ainda que obra do Estado czarista, iria impelir os camponeses ao “movimento histórico”. O aumento da misériadevido a “esperteza” da medida czarista geraria mais insatisfação e essa insatisfaçãocamponesa “já é um fato que tem de ser levado em conta tanto pelo governo quanto por todos os insatisfeitos, incluindo os partidos de oposição” (Ibid, 2013, p. 35 -36).O trecho acima citado é uma apresentação a um conjunto de textos intitulada “Literatura de Refugiados”, escrita e publicada entre 1874 e 1875. Especificamente ocaso russo é tratado nos artigos 3, 4 e 5, tendo caráter de polêmica com os narodinikis – ainda que com visões diferentes do processo político russo P. Lavrov e P. Tkatchov.O interesse de Marx e Engels sobre a Rússia os levou a estudo da língua e à leitura deuma grande quantidade de livros sobre o país. É adequado lembrar que O Capital foitraduzido pela primeira vez para o russo, já em 1872, pelo narodiniki N. Danielson,após traduções não-concluídas de G. Lopatin e M. Bakunin.É em 1877, contudo, que a posição de Marx sobre a Rússia recebe uma claranova inflexão. Como já vimos, a obra de Marx despertara grande interesse na Rússia.Um historiador comunista inglês afirma que, na Europa oriental, “nenhuma outra explicação do fenômeno que transformou o século XIX em modernidade podiacompetir com o marxismo, cuja influência tornou-se correspondentemente profunda” – o que não seria o caso da Europa ocidental. A lém disso, na Rússia “terra de um estratosocial desajustado, a ‘intelligentsia’ crítica, produziu leitores devotados de O Capital antes de qualquer outro país”. (HOBSBAWN, 2011, p. 203). Nesses intensos debates, o economista J. Jukovski publica no influente periódico O Contemporâneo uma duracrítica à obra de Marx. Em defesa do autor alemão vem N. Mikhailovsky. Em sua revista Notas Patrióticas publica o artigo K. Marx sob o julgamento do Sr. J. Jukovski . Ainda quemuitos contemporâneos russos de Mikhailovsky vissem em seu texto uma defesa umtanto irônica da obra de Marx, ele próprio não entendeu assim e, como veremos,apressou-se em responder-lhe.Mikhailovsky afirma que na sétima seção de O Capital , o capítulo intitulado Aassim chamada acumulação primitiva , teria pretendido “traçar aí um esboço históricodos primórdios do modo de produção capitalista”, mas teria ido muito além pois“traçou toda uma teoria histórico filosófica”. (MIKHAILOVSKY, 1982, p. 159).Mikhailovsky avança na descrição do processo de separação dos meios de produçãodos produtores, indicando a necessidade desse processo para a criação de uma classede trabalhadores apta a vender livremente sua força de trabalho, que seria encontradoem toda realidade capitalista. Sua leitura de Marx leva até a afirmar que o processo da acumulação primitiva “foi difícil, penoso e longo, com séculos de duração, mas, semdúvidas, necessário” (Ibid, 1982, p. 160). Sem deixar de elogiar a cientificidade e a capacidade de rigor lógico da análise marxiana, Mikhailovsky conclui que para o leitorrusso, essa bela exposição traria mais problemas que soluções. Um deles: o processo deexpropriação servil/camponesa não teria avançado tanto na Rússia quanto na Europa.Assim, Mikhailovsky conclui que, aqueles que se apoiassem nas ideias de Marx para interpretar a Rússia se veriam no dilema de afirmar que “deveríamos percorrer aquele mesmo processo descrito e elevado ao status de uma teoria histórico-filosófica por Marx” (Ibid, 1982, p. 162). Diz mais: citando uma passage m em que Marx aponta as tragédias que acompanham o processo da acumulação primitiva de forma “cáustica”, saca da leitura do texto marxiano a conclusão da inevitabilidade bem-vinda daacumulação primitiva, pois:[...] do ponto de vista da teoria histórica de Marx, nós não deveríamosprotestar contra elas, pois isto seria o equivalente a agir contra os nossosinteresses; e mais, deveríamos saudá-las com alegria como degrausnecessários, ainda que árduos, na subida em direção ao templo da felicidade.(Ibid, p. 163). A visão de Marx como um determinista defensor da inevitabilidade dosviolentos e cruéis processos da acumulação primitiva capitalista, de produtor de umafilosofia da história regida pela teleologia da necessidade histórica, leva Marx aescrever para a revista uma resposta. Não a enviou, entretanto. Engels desconhecia arazão do não envio e só tomou conhecimento dela depois da morte de Marx em marçode 1883. Em março de 1884 a carta de Marx é enviada para Genebra ao grupo;“Emancipação do Trabalho”,; aos cuidados de Vera Zasulitch. Porém, os jovensconvertidos ao marxismo não a publicam (FERNANDES, 1982, p. 158). Será publicadapela revista O Mensageiro da Vontade do Povo, fora da Rússia, em 1886. Duaspublicações anteriores feitas na Rússia haviam quase que totalmente caído nas mãosda polícia russa. Em 1888, com tradução de N. Danielson ocorre a primeira publicaçãoem veículo legal dessa carta de Marx. (MARX & ENGELS, 2013, p. 60-61).A resposta de Marx primeiramente enfrenta as acusações de ser um detrator dopensamento de A. Herzen. Essa pequena passagem, publicada como apêndice de OCapital e retirada na segunda edição revista e corrigida do primeiro volume,publicada na cidade de Hamburgo em 1872 – não está no cerne da avaliação de Marx,como ele mesmo afirma em carta ao redator da publicação Notas Patrióticas . Aocontrário, Minha apreciação desse escritor pode ser justa ou pode ser falsa, mas emnenhum caso ela fornecerá a chave da minha visão sobre os esforços ‘dos homens russos para encontrar o caminho do desenvolvimento para suapátria, diferente daquele que foi e é trilhado pela Europa ocidental’ (MARX,2013, p. 65).A comprovação de seu argumento – contrário tanto a Jukovski quanto aMikhailovsky – é seu elogio a N. Tchernichevski. Sendo o grande autor russo favorávela comuna rural preservada e desenvolvida, poderia servir de base a um processo histórico que não passasse pelas “torturas” da acumulação primitiva. Tendo assim afirmado sua concordância com Tchernichevski, reafirma, a fim de evitar deixar algo “para ser adivinhado”, sua dedicação à língua russa e ao estudo de suas realidadeseconômicas e esclarece que o resultado alcançado por anos de estudo foi que “se a Rússia prosseguir no rumo tomado depois de 1861, ela perderá a melhor chance que a história já ofereceu a um povo, para, em vez disso, suportar todas as vicissitudes fataisdo regime capitalista. (Ibid p. 66). Para Michael Löwy, esse pequeno documento é degrande importância, pois impede qualquer leitura unilinear, evolucionista, ‘etapista’ e eurocêntrica do materialismo histórico. A partir de 1877, eles sugerem que ainda que não de forma desenvolvida, umaperspectiva dialética, policêntrica, que admite uma multiplicidade de formasde transformação histórica, e, sobretudo, a possibilidade que as revoluçõessociais modernas comecem na periferia do sistema capitalista [...] (LÖWY,2013, p. 9). Assim, a carta que Vera Zasulitch envia a Marx lhe dá margem para pensar eclarear suas opiniões e análises sobre o desenvolvimento econômico e social da Rússiae as possibilidades revolucionárias daí decorrentes, para além do que havia feito emseu debate com Mikhailoski. Seu interesse é crescente pela Rússia, após finalizar aredação do primeiro volume de O Capital , publicado em 1867. Segundo Teodor Shanin,na década final de vida de Marx entre 1872 e 1882, “houve uma crescente interdependência entre suas análises das realidades da Rússia e o movimento revolucionário russo”, ou seja, o movimento narodiniki (SHANIN, 2017, P. 26). Talvezpor isso, sua hesitação em responder a carta, pois produz quatro rascunhos antes deencontrar uma forma final. Seu papel na nova escrita da história que Marx teria iniciado em “O Capital”, como afirma um filósofo marxista francês: Se Marx retomasse por sua conta a teodiceia hegeliana do Espírito, oencadeamento mecânico dos modos de produção para o comunismo desfiariasimplesmente as etapas de uma marcha inexorável para o paraísorecuperado. Suas célebres cartas a Vera Zassulich sobre a Rússia desmentemcategoricamente tal possibilidade (BENSAID, 1999, p 50-51). russa, teriam exercido certa influência sobre as análises de Marx (TIBLE, 2017, p. 79).Éttienne Balibar considera que as críticas de Marx a Bakunin e ao Programa de Gotha, em 1875, repõem a questão do “ enfraquecimento do Estado na transição para o comunismo”. Há uma “abertura comparável” na correspondência russa de Marx (BALIBAR, 1995, p. 126-127). Considerando que o tema não era novo para Marx, ofilósofo francês propõe outra solução para as hesitações presentes na redação dequatro rascunhos e numa resposta final excessivamente tímida. Para ele, Marx teriadificuldade em assumir claramente a formulação nova de sua ideia, pois “o que é proposto nesses textos, portanto, é a ideia da multiplicidade concreta de vias de desenvolvimento histórico”. Mais ainda, através de uma surpreendente reviravolta da situação, sob pressão de umaquestão vinda do exterior (e com certeza também das dúvidas suscitadas nelequanto a exatidão de algumas de suas próprias formulações, pela aplicação que lhe propõe então os ‘marxistas’) o economismo de Marx dá à luz o seucontrário: um conjunto de hipóteses antievolucionistas . (BALIBAR, 1995, p.128). No prefácio à primeira edição de O Capital , logo após reconhecer que seusestudos se centram na Inglaterra e citar, especificamente, que nada serviria aosalemães imaginarem que não se falava deles, pois então Marx teria de gritar-lhes “Afábula fala de ti!”, anuncia que “O país industrialmente mais desenvolvido não faz maisdo que mostrar ao menos desenvolvido a imagem de seu próprio futuro” (MARX, 2017, p. 77). A leitura de O Capital como um texto evolucionista não foi feita apenas pelosrussos. Saudando a Revolução de 1917, A. Gramsci, jovem redator do jornal socialista Avanti , propõe ser ela uma “uma revolução contra O Capital de Karl Marx”. E argumenta que O Capital de Marx era, na Rússia, o livro dos burgueses, mais do que dosproletários (...) Os fatos fizeram explodir os esquemas críticos dentro dosquais a história da Rússia deveria se desenvolver segundo os cânones domaterialismo histórico. Os bolcheviques renegam Karl Marx: afirmam – e como testemunho da ação explicitada, das conquistas realizadas – que os cânonesdo materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e sepensou. (GRAMSCI, 2011, p.62). Quais são, então, os centros teóricos e seus desdobramentos práticos presentesnesses rascunhos durante tanto tempo esquecidos, nessa carta-documento solicitadapara arbitrar divergências e proclamar um lado como correto, que termina por sersuprimida e retornar como um fantasma ao debate, após a tão ansiada revolução tersido vitoriosa em 1917 e muitas vezes mais depois? 1. O primeiro esboço Em seu primeiro esboço, não datado, Marx desenvolve um primeiro argumento.O processo por ele descrito no capítulo sobre a acumulação primitiva de capital falavado processo histórico inglês e apontava sua generalização pela Europa ocidental. Parademonstrar sua posição, cita a passagem de O Capital em havia escrito que a históriadessa expropriação [...] assume tonalidades distintas nos diversos países e percorre as váriasfases em sucessão diversa e diferentes épocas históricas. Apenas naInglaterra, e por isso tomamos esse país como exemplo, tal expropriação seapresenta em sua forma clássica (MARX, 2017, p. 787-788) para logo depois reafirmar a generalidade cheia de diversidade dessedesenvolvimento para a Europa ocidental. Destaca, com outra citação de O Capital queo processo inglês que antecipa de forma não-linear eventos europeus ocidentais de expropriação, são do tipo em que “propriedades nanicas de muitos em propriedadegigantesca de poucos” (Ibid, p. 831). A partir daí, aponta que ocorre a transformação de uma forma de propriedade privada em outra formade propriedade privada. A terra nas mãos dos camponeses russos jamais foi aa sua propriedade privada ; então como se aplicaria esse desenvolvimento?(MARX, 2013, p. 89). Argumento que é histórico e também lógico, como se vê.Seu segundo argumento enfrenta os defensores da “dissolução fatal considerando que a comuna rural camponesa não é uma exclusividade russa. E sim“um tipo mais ou menos arcaico de propriedade comum” que “se encontra em toda parte da Europa ocidental” e que “desapareceu completamente” porque acreditar na Rússia seria diferente? A resposta de Marx é singela e cortante: um conjunto único decaracterísticas históricas tinha preservado a comuna rural russa em escala nacional. Sua “contemporaneidade da produção capitalista” possibilitaria uma superação de suas características primitivas – já criticadas por Bakunin em artigo lido e comentado por Marx – e “se apropriar das conquistas positivas ” do capitalismo, sem passar por suas terríveis provações (MARX, 2013, p.89). Para reafirmar seu ponto de vista, Marx apresenta um exemplo do “desenvolvimento desigual e combinado” da sociedadecapitalista: a Rússia, “para explorar máquinas, os barcos a vapor, as ferrovias, ...” nãoteria precisado passar “por um longo período de incubação da indústria mecânica”, que atravessou o Ocidente em séculos (Ibid, p. 90). Assim, o argumento dialético das vantagens do atraso -o salto tecnológico e social possível graças a convivência noamplo quadro das sociedades capitalistas de tempos históricos, formas de propriedadee relações sociais de produção diferentes - é apresentado com bastante clareza. Aconclusão – cheia de ousadia de Marx -citando um “autor americano´ nem um pouco suspeito de tendências revolucionárias” – é que o arcaísmo do comuna russa não éproblema, pois as formas superiores são renascimentos mais desenvolvidos de formasanteriores (Ibid, p. 91). Através de um excurso histórico que começa com as fontes romanas de Tácito e Júlio Cesar, Marx esclarece que a comuna russa é “o tipo mais Entre abril de 1874 e janeiro de 1875, Karl Marx anotou, em russo, em um caderno longos extratos desua leitura de Estatismo e Anarquia , publicada em Zurique em 1873. Marx ali comenta suas divergênciascom Bakunin a respeito da participação eleitoral, o papel do proletariado e do campesinato, as questõesétnicas e nacionais entre ocidente e oriente europeus, entre outras tantas polêmicas.recente da formação arcaica”, que transitou na Europa ocidental da “propriedadecomum para a propriedade privada”. Mas imediatamente afirma que “sua forma constitutiva admite a seguinte alternativa: ou o elemento de propriedade privadaimplicado nela prevalecerá sobre o elemento coletivo ou este último prevalecerá sobre o primeiro”. Não há fatalismo, “Tudo depende do ambiente histórico em que a comuna se encontra localiza da”. E se falamos na concepção da história em Marx, falamos em lutas sociais, falamos em luta de classe (Ibid, p. 93). Marx desenvolve ainda mais oargumento da contemporaneidade entre a comuna (arcaica) e o presente (capitalista)em âmbito mundial. Para não deixar qualquer dúvida a respeito de sua posição, afirma que a comuna rural russa “pode tornar-se um ponto de partida direto do sistemaeconômico para o qual tende a sociedade moderna; ela pode trocar de pele sem se suicidar” (Ibid, 2013, p.96). Para isso, todavia, há que se “descer da teoria pura àrealidade russa”. Como afirma o filósofo francês Daniel Bensaid a respeito da formação da concepção histórica de Karl Marx e suas implicações, não há qualquer necessidade de postular uma causalidade implacável ou um juízoultimo para considerar que aquilo que se segue constitua um progresso emrelação a algo imediatamente precedente. O critério pode permanecersobriamente comparativo. (BENSAID, 1999, 56). Assim também, a análise histórica que os revolucionários devem realizar poisnão se trata de um debate acadêmico – parte da vida social e econômica russa emdireção à teoria; e não ao contrário, para o revolucionário alemão, a teoria não é umacamisa de força em que se espreme a realidade.O terceiro argumento de Marx é que não se deve cultivar ilusões. Desde odecreto imperial que suprimiu a servidão, em 1861, a comuna rural russa estaria sobreataque. Usurários, comerciantes, o fisco e grandes proprietários avançam sobre ela eseu colapso econômico é uma possibilidade. Estando em conexão com astransformações mais gerais do mercado mundial em geral e da Rússia em particular, asfontes de suas possibilidades positivas - a superação em direção a uma organizaçãosocial superior – e negativas - seu desaparecimento na transição capitalista – não estão decididas por uma fatalidade histórica qualquer, pela necessidade de lutar “com umapotente reação” contra “as influências destrutivas” que pesam sobre ela (Ibid, 2013, p.102). A dialética da comuna rural está sempre presente na resposta de Marx. Aspossibilidades mudam a cada evento, a cada ação das forças de superação positiva – emdireção ao socialismo ou destrutivas, que só tem a oferecer o tenebroso quadrodescrito por Marx em O Capital . A dinâmica histórica, sem fatalismos. É regida porpossibilidades, que, entretanto, não são eternas, pois o conflito social é semprepresente, ainda que nem sempre visível. Forças diversas, interesses de classe, açõesgovernamentais, dinâmicas econômicas mundiais, inovações tecnológicas se conjugam e se entrechocam na tessitura da realidade. Para Bensaid é essa complexidade, “essa dialética do necessário e do possível [que] permanece incompreensível para osdetratores de um Marx rasamente determinista, aferrados a imputar-lhe um conceito mecânico de necessidade” (BENSAID, 1999, p. 386). Marx se desvincula claramente desses que chama, no primeiro rascunho, ironicamente de “porta vozes dos ‘novospilares sociais’” (MARX, 2013, p.102). As “vantagens do atraso” da Rússia continuam sendo lembradas, e, portanto, não há impedimento que a Rússia trilhe um caminho diferente do ocidente europeu em seu desenvolvimento em direção à produção cooperativa e a “propriedade comunista”. O quarto argumento deixa mais nítido o papel negativo do Estado napreservação e superação, por parte da comunidade rural russa de seu atraso em direção a formas superiores de produção. E no quinto argumento. A “discordância detempos” na formação social russa é indicada com firmeza, pois assim como as camadas geológicas mostram “suas diversas idades” sobrepostas umas às outras, “a formação arcaica da sociedade nos revela uma série de tipos diferentes, marcando as épocasprogressivas. A Comuna rural russa pertence ao tipo mais recente dessa corrente” (Ibid, p. 105).E tendo ressaltado os riscos e entraves que ameaçavam a valoração socialistapositiva da comuna, Marx chega ao seu quinto argumento, em que alerta contra asforças que se erguem contra a comuna camponesa: “Certo gênero de capitalismo,nutrido às expensas dos camponeses por intermédio do Estado”, associados aosgrandes proprietários rurais, a quem interessa o “trabalho barato” que se tornaria disponível com a destruição da Comuna (Ibid, p. 107). 3. O quarto esboço O terceiro esboço Estando dividido em, basicamente, duas partes, Marxrearranja os argumentos dos esboços anteriores, alcançando uma forma de redação umpouco mais coesa. Porém, o esboço se encontra interrompido, ou seja, foi abandonado.Já no quarto esboço, muito menor do que os demais, Marx desculpa-se afirmando estar acometido de “uma doença nervosa”. Avisa a missivista que haviaprometido ao “Comitê de São Petersburgo” “um escrito sobre o mesmo assunto”. O tom seco, extremamente sintético, que termina por ser apenas um pouco mais extenso nacarta enfim enviada em 8 de março de 1881 – mesma data do esboço -, a referência aoComitê de São Petersburgo que receberia um texto mais longo e completo e uma leveironia na resposta – “Espero (...) que algumas linhas sejam suficientes para livrar -nossobre o mal- entendido acerca da minha assim chamada teoria” – nos levam a crer quealgo mudou na abordagem e na consideração que Marx faz a sua interlocutora edestinatária. Primeiramente, afirma que em O Capital não há argumentos nem a favor nem contra a vitalidade da comuna russa”. Em seguida, assertivo,afirma que “Os estudos especiais que fiz, para os quais pesquisei em fontes originais, convenceram-me que essa comuna é a alavanca natural daregeneração social da Rússia. (Ibid, p. 113). A carta enviada nunca foi publicada, apesar da permissão de Marx para que issofosse feito. Em 1883, com Marx já morto, o grupo representado por Zasulitch já haviarompido com o movimento narodiniki – ruptura acelerada pelo intenso debate causadopela carta de Marx sobre Jukovski e Mikhailovsky finalmente publicada. Assumem-se, Nilo Sergio Silva Aragão 26 Anãnsi: Revista de Filosofia, Salvador, v. 1, n. 1, 2020. sob a liderança de G. Plekhanov, como os primeiros marxistas da Rússia e não queriamsofrer com a disco rdância do “mestre”. 4. À guisa de conclusão O que dizer desse debate travado de forma epistolar, travado nas sombras degabinetes e quartos de revolucionários exilados, tendo em vista os destinos dodesenvolvimento econômico e da revolução no país mais extenso do mundo, noImpério que havia sido desde o Congresso de Viena (1815) a reserva sagrada darevolução europeia? Sua importância, assim apresentada, deveria ser evidente: arevolução na Rússia teria impacto em toda a Europa, possibilitando uma mudança nacorrelação de forças em âmbito continental. A transição que se discute no tocante àComuna russa é mais amplo que o país dos czares, podendo ser exemplar para ospaíses retardatários do capitalismo? Se a Rússia poderia saltar, ou atravessar de formacompletamente diferente, a etapa capitalista conforme seu desdobramento europeu-ocidental, chega-se a uma problemática central da filosofia – ou antifilosofia – de Marx: quem seria nessa hipótese o “sujeito histórico revolucionário”? A resposta clássica para o ocidente era a classe trabalhadora industrial. Mas essa resposta não deveria ser amesma para a Rússia, caso a Comuna servisse de ponto de partida para uma radicaltransformação da vida social e econômica russa. Verdade que em seus esboços Marxalerta para a necessidade de passar da teoria à prática – o conceito de práxis – pois aresolução dessas questões será tarefa da vida real, obra de homens e mulheres reais,pois a filosofia só é de valor quando colabora à transformação do mundo. Referências BALIBAR, Étienne. A filosofia de Marx . Tradução: Lucy Magalhães, consultor CarlosNelson Coutinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.BENSAID, Daniel. Marx, o intempestivo: grandezas e misérias de uma aventura crítica(séculos XIX e XX). Tradução: Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1999.ENGELS, Friedrich. Observação prévia à brochura “Questões sociais da Rússia”, in MARX, Karl; ENGELS, Friederich. Luta de classes na Rússia . Tradução: NélioSchneider. São Paulo: Boitempo. 2013.FERNANDES, Rubem César (Org.). Dilemas do Socialismo: A controvérsia entreMarx, Engels e os populistas russos . Tradução: Lúcio F. R. Almeida e Rubem CésarFonseca. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.GRAMSCI, Antonio; A revolução contra o capital. In: COUTINHO, Carlos. O leitor deGramsci: escritos escolhidos 1916-1935 . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.