quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Kant os juízos

o problema epistemológico da “Crítica da Razão Pura”, de Kant 16/05/2016 problema epistemológico da “Crítica da Razão Pura”, de Kant 16/05/2016 OSVALDO PALOTTI JUNIOR [1] – Desembargador e professor 1. A pergunta de Kant e seus pressupostos O problema da “Crítica da Razão Pura”, de Kant, é de natureza epistemológica e se traduz em três perguntas, aparentemente independentes umas das outras: (i) como é possível a Física como Ciência, (ii) como é possível a Matemática como Ciência e (iii) se a Metafísica é possível como Ciência. Kant quer saber, em resumo, como são possíveis juízos sintéticos “a priori”. O exame do problema kantiano começa pela explicitação de um pressuposto, comum à época (e hoje definitivamente superado, pelo menos a partir do falseacionismo de Karl Popper): para Kant, Ciência é conhecimento universal e necessário. No campo científico, a primeira metade do Séc. XVIII é marcada pela disputa entre a Física de Descartes e a Física de Leibniz. É nesse cenário que surge a Física de Newton, que a todos empolga, inclusive a Kant, que se encontrava justamente a meio de seu desenvolvimento intelectual e acaba aderindo em definitivo à nova Física [2]. O racionalismo moderno, embora tenha revolucionado o conteúdo da Ciência, manteve, contudo, o conceito que Aristóteles lhe atribuiu: Ciência é conhecimento universal e necessário. Kant adere à Física de Newton, porém não a vê como conhecimento que se ocupa, apenas, com as relações entre fenômenos naturais, e não mais reflete sobre a natureza última desses fenômenos. Kant se mantém fiel à ideia clássica de Ciência, de modo que, para ele, Ciência é conhecimento absolutamente certo e, por isso, imutável. É conhecimento pelas causas (ou pelas razões), é conhecimento demonstrado. Conhecimento científico, destarte, é aquele que tem caráter explicativo, e não meramente informativo. Dito de outro modo: o conhecimento científico deve não apenas dizer o que acontece, mas deve também demonstrar porque um fenômeno acontece de determinado modo e porque não poderia acontecer de outro [3]. Se conhecimento demonstrado é conhecimento certo, então conhecimento demonstrado é conhecimento necessário [4] e essa necessidade é transmitida ao próprio fenômeno. 2. As diversas formas de conhecimento e de juízo No exame da questão epistemológica que se propôs a enfrentar, Kant distingue as formas de conhecimento de acordo com o modo como ele pode ser fundamentado. Para ele, conhecimento “a posteriori” é aquele que pode ser suficientemente fundamentado na experiência. Portanto, é conhecimento cuja verdade ou falsidade é revelada pelos dados sensoriais (se afirmo que “a parede é branca”, a verdade ou falsidade dessa afirmação pode ser constatada assim que meu interlocutor voltar seus olhos para a parede a que me refiro). Conhecimento “a posteriori”, então, é sinônimo de conhecimento empírico. Conhecimento “a priori” é, por definição, aquele que não é conhecimento “a posteriori”. É dizer: é aquele cuja verdade ou falsidade não pode ser suficientemente fundada na experiência. A definição, porém, não diz em que se funda um conhecimento “a priori”. O conhecimento “a priori” distingue-se do conhecimento “a posteriori” justamente por sua universalidade e necessidade (quando digo que “a linha reta é a menor distância entre dois pontos”, não me refiro a nenhuma linha reta em particular, mas a qualquer linha reta, que sempre será a menor distância entre dois pontos). Então, qualquer juízo que pretende ser universal é um juízo “a priori”, embora faça menção a objetos empíricos. A par da distinção entre conhecimento “a posteriori” e conhecimento “a priori”, importa diferenciar, para Kant, juízo analítico de juízo sintético. Juízo, na concepção kantiana, é um enunciado que se submete a valores de verdade. Kant também aqui segue o pensamento de Aristóteles, para quem todo juízo se articula de acordo com a estrutura sujeito-verbo-predicado. De outro giro: “um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função de predicado” [5]. Por conta dessa estrutura, toda forma de inferência se deixa reduzir a um silogismo, que expressa justamente uma “combinação” de sujeito e predicado. E há duas formas de juízo: o juízo analítico e o juízo sintético. Na esteira da teoria de Leibniz, para Kant juízo analítico é aquele em que o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Ele expressa, portanto, uma identidade, explícita ou implicitamente. Se digo que “um triângulo tem três lados” (o exemplo é do próprio Kant), emito um juízo implicitamente analítico. E se digo “um triângulo é um triângulo”, emito um juízo explicitamente analítico. Daí se extrai importante consequência: se no juízo analítico, o predicado está contido no sujeito, então o juízo analítico é “logicamente necessário”. E se o juízo é “logicamente necessário”, a sua negação implica uma contradição. Juízo sintético, ao contrário, é aquele que reúne duas coisas diferentes, já que, nele, o predicado não está contido no sujeito.Dizer que “o corpo é extensão” é emitir um juízo sintético. O juízo sintético divide-se em juízo sintético “a posteriori” e juízo sintético “a priori”. 3. A Física e a Matemática, na concepção de Kant vê, na Física newtoniana, a realização da ideia clássica de Ciência. Mas a Física de Newton, embora descreva adequadamente fenômenos e, para mais do que isso, relacione fenômenos que pareciam ser absolutamente independentes uns dos outros (como, por exemplo, o movimento da lua e o movimento das marés), o fato é que ela não demonstra os fundamentos das leis que estabelece. Em outras palavras: a Física newtoniana diz “o quê”, mas não explica o “porquê” [6]. A mecânica newtoniana assenta-se sobre as noções de tempo e espaço absolutos (e também sobre o princípio de causalidade). O tempo e o espaço absolutos são abstrações matemáticas, insuscetíveis, bem por isso, de terem sua existência constatada pela experiência. Dito de outro modo: tempo e espaço absolutos são realidades cuja existência Newton não demonstra, mas apenas pressupõe. Aí reside o problema dos juízos que se querem “universais”: embora se refiram a objetos empíricos (fatos), eles não podem ser demonstrados [7]. Eles são, por isso, juízo sintéticos “a priori”, ou juízos “puros”. Contudo, se para Kant a Física de Newton é a realização da ideia clássica de Ciência e, por assim ser, Kant reconhece que a Física newtoniana se constitui em conhecimento universal e necessário, a pergunta que se apresenta é: como são possíveis juízos necessários, mas não logicamente necessários? De outro giro: o princípio dos juízos sintéticos “a posteriori” é a experiência. Mas qual é o fundamento da “síntese”, nos juízos sintéticos “a priori”? Não pode ser a experiência, porque a experiência não pode fundar a necessidade e a universalidade. A mesma reflexão se aplica à Matemática (cujo modelo, para Kant, é a Geometria Euclidiana). Para ele - ao contrário de Leibniz -, a Matemática não lida com juízos analíticos, mas com juízos sintéticos “a priori”. Em resumo: para Kant, a Matemática e a Física operam com juízos sintéticos “a priori”. E ele se pergunta se isso também é possível em relação à Metafísica. Para ele, pelo menos a princípio, por serem necessárias, “as afirmações metafísicas devem ter um status a priori, pois não podemos determinar que elas são necessárias por meros meios a posteriori” [8]. Como explicam Giovanni Reale e Dario Antiseri, “conseguindo-se estabelecer qual a natureza e o fundamento da ‘síntese a priori’, poder-se-á resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física, e se poderá, por fim, resolver o problema se é ou não possível uma ‘metafísica como ciência ‘, ou então, se isso não for possível, por que a razão humana se sente tão irresistivelmente atraída pelas questões metafísicas” [9]. [1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP. [2] Cf. Mário Ariel Gonzáles Porta, in “A Filosofia a partir de seus problemas”, Edições Loyola, 2007, p. 108. [3] Na medida em que Aristóteles concebe a Ciência como conhecimento explicativo, demonstrativo, torna-se necessário investigar em que hipóteses se pode considerar “válida” uma demonstração. É nesse contexto que surge a Lógica, como disciplina que estabelece critérios (meramente formais) para distinguir uma demonstração válida de uma demonstração não-válida. [4] “necessário” é aquilo que “não pode não ser”. [5] Giovanni Reale e Dario Antiseri, in História da Filosofia, ed. Paulus, volume 4, 2009, p. 356. [6] O próprio Newton reconheceu esse fato. Ao ser indagado sobre os fundamentos da lei da gravitação universal, respondeu: hypotheses non fingo. [7] Coloca-se, em relação a eles, o chamado “problema da indução”. [8] In Dicionário de Filosofia de Cambridge, ed. Paulus, 2006, verbete “Kant, Immanuel”. [9] Ob. cit., p. 355. ACESSO RÁPIDO DÚVIDAS FREQUENTES ARTIGOS BIBLIOTECA CONVÊNIOS E CURSOS CURSOS ENFAM LINKS NEWSLETTER NOTÍCIAS EPM - ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA OSVALDO PALOTTI JUNIOR [1] – Desembargador e professor 1. A pergunta de Kant e seus pressupostos O problema da “Crítica da Razão Pura”, de Kant, é de natureza epistemológica e se traduz em três perguntas, aparentemente independentes umas das outras: (i) como é possível a Física como Ciência, (ii) como é possível a Matemática como Ciência e (iii) se a Metafísica é possível como Ciência. Kant quer saber, em resumo, como são possíveis juízos sintéticos “a priori”. O exame do problema kantiano começa pela explicitação de um pressuposto, comum à época (e hoje definitivamente superado, pelo menos a partir do falseacionismo de Karl Popper): para Kant, Ciência é conhecimento universal e necessário. No campo científico, a primeira metade do Séc. XVIII é marcada pela disputa entre a Física de Descartes e a Física de Leibniz. É nesse cenário que surge a Física de Newton, que a todos empolga, inclusive a Kant, que se encontrava justamente a meio de seu desenvolvimento intelectual e acaba aderindo em definitivo à nova Física [2]. O racionalismo moderno, embora tenha revolucionado o conteúdo da Ciência, manteve, contudo, o conceito que Aristóteles lhe atribuiu: Ciência é conhecimento universal e necessário. Kant adere à Física de Newton, porém não a vê como conhecimento que se ocupa, apenas, com as relações entre fenômenos naturais, e não mais reflete sobre a natureza última desses fenômenos. Kant se mantém fiel à ideia clássica de Ciência, de modo que, para ele, Ciência é conhecimento absolutamente certo e, por isso, imutável. É conhecimento pelas causas (ou pelas razões), é conhecimento demonstrado. Conhecimento científico, destarte, é aquele que tem caráter explicativo, e não meramente informativo. Dito de outro modo: o conhecimento científico deve não apenas dizer o que acontece, mas deve também demonstrar porque um fenômeno acontece de determinado modo e porque não poderia acontecer de outro [3]. Se conhecimento demonstrado é conhecimento certo, então conhecimento demonstrado é conhecimento necessário [4] e essa necessidade é transmitida ao próprio fenômeno. 2. As diversas formas de conhecimento e de juízo No exame da questão epistemológica que se propôs a enfrentar, Kant distingue as formas de conhecimento de acordo com o modo como ele pode ser fundamentado. Para ele, conhecimento “a posteriori” é aquele que pode ser suficientemente fundamentado na experiência. Portanto, é conhecimento cuja verdade ou falsidade é revelada pelos dados sensoriais (se afirmo que “a parede é branca”, a verdade ou falsidade dessa afirmação pode ser constatada assim que meu interlocutor voltar seus olhos para a parede a que me refiro). Conhecimento “a posteriori”, então, é sinônimo de conhecimento empírico. Conhecimento “a priori” é, por definição, aquele que não é conhecimento “a posteriori”. É dizer: é aquele cuja verdade ou falsidade não pode ser suficientemente fundada na experiência. A definição, porém, não diz em que se funda um conhecimento “a priori”. O conhecimento “a priori” distingue-se do conhecimento “a posteriori” justamente por sua universalidade e necessidade (quando digo que “a linha reta é a menor distância entre dois pontos”, não me refiro a nenhuma linha reta em particular, mas a qualquer linha reta, que sempre será a menor distância entre dois pontos). Então, qualquer juízo que pretende ser universal é um juízo “a priori”, embora faça menção a objetos empíricos. A par da distinção entre conhecimento “a posteriori” e conhecimento “a priori”, importa diferenciar, para Kant, juízo analítico de juízo sintético. Juízo, na concepção kantiana, é um enunciado que se submete a valores de verdade. Kant também aqui segue o pensamento de Aristóteles, para quem todo juízo se articula de acordo com a estrutura sujeito-verbo-predicado. De outro giro: “um juízo consiste na conexão de dois conceitos, dos quais um (A) cumpre a função de sujeito e o outro (B) cumpre a função de predicado” [5]. Por conta dessa estrutura, toda forma de inferência se deixa reduzir a um silogismo, que expressa justamente uma “combinação” de sujeito e predicado. E há duas formas de juízo: o juízo analítico e o juízo sintético. Na esteira da teoria de Leibniz, para Kant juízo analítico é aquele em que o conceito do predicado está contido no conceito do sujeito. Ele expressa, portanto, uma identidade, explícita ou implicitamente. Se digo que “um triângulo tem três lados” (o exemplo é do próprio Kant), emito um juízo implicitamente analítico. E se digo “um triângulo é um triângulo”, emito um juízo explicitamente analítico. Daí se extrai importante consequência: se no juízo analítico, o predicado está contido no sujeito, então o juízo analítico é “logicamente necessário”. E se o juízo é “logicamente necessário”, a sua negação implica uma contradição. Juízo sintético, ao contrário, é aquele que reúne duas coisas diferentes, já que, nele, o predicado não está contido no sujeito. Dizer que “o corpo é extensão” é emitir um juízo sintético. O juízo sintético divide-se em juízo sintético “a posteriori” e juízo sintético “a priori”. 3. A Física e a Matemática, na concepção de Kant Kant vê, na Física newtoniana, a realização da ideia clássica de Ciência. Mas a Física de Newton, embora descreva adequadamente fenômenos e, para mais do que isso, relacione fenômenos que pareciam ser absolutamente independentes uns dos outros (como, por exemplo, o movimento da lua e o movimento das marés), o fato é que ela não demonstra os fundamentos das leis que estabelece. Em outras palavras: a Física newtoniana diz “o quê”, mas não explica o “porquê” [6]. A mecânica newtoniana assenta-se sobre as noções de tempo e espaço absolutos (e também sobre o princípio de causalidade). O tempo e o espaço absolutos são abstrações matemáticas, insuscetíveis, bem por isso, de terem sua existência constatada pela experiência. Dito de outro modo: tempo e espaço absolutos são realidades cuja existência Newton não demonstra, mas apenas pressupõe. Aí reside o problema dos juízos que se querem “universais”: embora se refiram a objetos empíricos (fatos), eles não podem ser demonstrados [7]. Eles são, por isso, juízo sintéticos “a priori”, ou juízos “puros”. Contudo, se para Kant a Física de Newton é a realização da ideia clássica de Ciência e, por assim ser, Kant reconhece que a Física newtoniana se constitui em conhecimento universal e necessário, a pergunta que se apresenta é: como são possíveis juízos necessários, mas não logicamente necessários? De outro giro: o princípio dos juízos sintéticos “a posteriori” é a experiência. Mas qual é o fundamento da “síntese”, nos juízos sintéticos “a priori”? Não pode ser a experiência, porque a experiência não pode fundar a necessidade e a universalidade. A mesma reflexão se aplica à Matemática (cujo modelo, para Kant, é a Geometria Euclidiana). Para ele - ao contrário de Leibniz -, a Matemática não lida com juízos analíticos, mas com juízos sintéticos “a priori”. Em resumo: para Kant, a Matemática e a Física operam com juízos sintéticos “a priori”. E ele se pergunta se isso também é possível em relação à Metafísica. Para ele, pelo menos a princípio, por serem necessárias, “as afirmações metafísicas devem ter um status a priori, pois não podemos determinar que elas são necessárias por meros meios a posteriori” [8]. Como explicam Giovanni Reale e Dario Antiseri, “conseguindo-se estabelecer qual a natureza e o fundamento da ‘síntese a priori’, poder-se-á resolver com facilidade o problema de como e por que são possíveis as ciências matemático-geométricas e a ciência física, e se poderá, por fim, resolver o problema se é ou não possível uma ‘metafísica como ciência ‘, ou então, se isso não for possível, por que a razão humana se sente tão irresistivelmente atraída pelas questões metafísicas” [9]. [1] Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Professor do Departamento de Teoria Geral do Direito na Faculdade de Direito da PUC-SP. Graduando em Filosofia na PUC-SP. [2] Cf. Mário Ariel Gonzáles Porta, in “A Filosofia a partir de seus problemas”, Edições Loyola, 2007, p. 108. [3] Na medida em que Aristóteles concebe a Ciência como conhecimento explicativo, demonstrativo, torna-se necessário investigar em que hipóteses se pode considerar “válida” uma demonstração. É nesse contexto que surge a Lógica, como disciplina que estabelece critérios (meramente formais) para distinguir uma demonstração válida de uma demonstração não-válida. [4] “necessário” é aquilo que “não pode não ser”. [5] Giovanni Reale e Dario Antiseri, in História da Filosofia, ed. Paulus, volume 4, 2009, p. 356. [6] O próprio Newton reconheceu esse fato. Ao ser indagado sobre os fundamentos da lei da gravitação universal, respondeu: hypotheses non fingo. [7] Coloca-se, em relação a eles, o chamado “problema da indução”. [8] In Dicionário de Filosofia de Cambridge, ed. Paulus, 2006, verbete “Kant, Immanuel”. [9] Ob. cit., p. 355. ACESSO RÁPIDO DÚVIDAS FREQUENTES ARTIGOS BIBLIOTECA CONVÊNIOS E CURSOS CURSOS ENFAM LINKS NEWSLETTER NOTÍCIAS EPM - ESCOLA PAULISTA DA MAGISTRATURA

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Comunidade e constituição federal bbb

COMUNIDADE E COMUNITARISMO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/4203/2414

Comunidade indivíduo aristoteles bbb

Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo AUTORIASCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS Resumos O caráter comunitário da filosofia de Aristóteles resulta das diversas formas de análise da política que o filósofo apresenta na articulação dos seguintes aspectos: a tese de que o ser humano é um animal político; o modo como esta é realizada na comunidade política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana, sobretudo, a amizade; a autossuficiência do cidadão e o seu vínculo com a autarquia da comunidade política. A retomada de um moderno conceito de comunidade, na tentativa de reatualizar os princípios gerais do comunitarismo aristotélico, pode ser compatível com determinadas teses liberais, sobretudo a questão da liberdade (autonomia) individual e o fato do pluralismo ético e político nas sociedades modernas. Aristotelismo; comunitarismo; liberalismo The communal nature of Aristotle's philosophy results from the various forms of analysis of the politics the philosopher shows in the articulation of the following features: the thesis that man is a political animal; the way the political community is accomplished through this thesis, in which the logos itself manifests as a shared discoursive activity; the cultivation of certain ethical and political virtues present in the human companionship, above all, friendship; citizen self-sufficiency and its relationship with the autarchy of the political community. In an attempt to bring up to date the general principles of Aristotelian communitarianism, the resumption of a modern concept of community can be compatible with certain liberal theses, especially the issue of individual freedom (autonomy) and the fact of the ethical and political pluralism in the modern societies. Aristotelianism; communitarianism; liberalism ARTIGOS Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo Cesar Augusto Ramos Professor titular do Departamento de Filosofia da PUC-PR, cauramos@uol.com.br RESUMO O caráter comunitário da filosofia de Aristóteles resulta das diversas formas de análise da política que o filósofo apresenta na articulação dos seguintes aspectos: a tese de que o ser humano é um animal político; o modo como esta é realizada na comunidade política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana, sobretudo, a amizade; a autossuficiência do cidadão e o seu vínculo com a autarquia da comunidade política. A retomada de um moderno conceito de comunidade, na tentativa de reatualizar os princípios gerais do comunitarismo aristotélico, pode ser compatível com determinadas teses liberais, sobretudo a questão da liberdade (autonomia) individual e o fato do pluralismo ético e político nas sociedades modernas. Palavras-chaveAristotelismo, comunitarismo, liberalismo. ABSTRACT The communal nature of Aristotle's philosophy results from the various forms of analysis of the politics the philosopher shows in the articulation of the following features: the thesis that man is a political animal; the way the political community is accomplished through this thesis, in which the logos itself manifests as a shared discoursive activity; the cultivation of certain ethical and political virtues present in the human companionship, above all, friendship; citizen self-sufficiency and its relationship with the autarchy of the political community. In an attempt to bring up to date the general principles of Aristotelian communitarianism, the resumption of a modern concept of community can be compatible with certain liberal theses, especially the issue of individual freedom (autonomy) and the fact of the ethical and political pluralism in the modern societies. KeywordsAristotelianism, communitarianism, liberalism. 1 Introdução O pensamento de Aristóteles representa uma notável contribuição à filosofia política no que diz respeito à qualificação do homem como um ser que realiza os seus mais altos fins na relação indissociável com a comunidade (polis) na efetivação de um bem comum. Tal perspectiva orientou um modo quase programático de pensar a ação humana na matriz comunitária, repercutindo no chamado comunitarismo contemporâneo em contraste com o individualismo liberal.1 Este último concebe a comunidade como uma associação composta por indivíduos que possuem suas próprias e independentes concepções em relação a um bem comum que, eventualmente, a comunidade poderia professar como essencial para o viver humano. Em oposição a este modo de ver a sociedade, e nela os valores ético-políticos que orientam a ação dos indivíduos, o comunitarismo propõe uma filosofia baseada no pertencimento social. Ao ressaltar valores comunais próximos ao ideal da virtude cívica, sob o lema de que o bem deve ser correlato ao justo, pretende destacar a conformação social do sujeito engajado e imerso nas diversas configurações do viver comum. O comunitarismo aspira, assim, não só a corrigir os desvios da filosofia liberal na obliteração dos valores sociais, como também reavaliar a acusação antimodernista do comunitarismo de Aristóteles. Alguns comunitaristas - como M. Walzer e, sobretudo, C. Taylor - recusam os pressupostos epistemológicos liberais ancorados no individualismo e defendem uma política do bem comum no âmbito dos direitos como forma de melhor resguardar o pluralismo. Na análise de C. Taylor, por exemplo, o comunitarismo, mesmo recusando determinadas noções vinculadas à epistemologia do individualismo liberal, não implica necessariamente a negação de certas conquistas da modernidade. O que os comunitaristas reclamam é que determinados valores sociais, incluindo a própria noção de justiça, pressupõem uma sociabilidade cooperativa do homem a partir de uma antropologia informada por razões morais, constituídas segundo uma determinada concepção de bem comunitário. Além disso, algo só pode ser repartido e distribuído, mediante princípios neutros de justiça, se tiver um significado geral, um valor de uso comum que se articula com as valorizações intersubjetivas, marcadas pela dinâmica social do mútuo reconhecimento. Com base no caráter dialógico da ação humana que se configura na perspectiva de uma comunidade de discursos expressivos, Taylor reivindica o sentido comunitário de um espaço público, no qual os direitos e os interesses individuais adquirem consistência e base para a sua defesa. Uma linha de interpretação mais aderente ao pensamento de Aristóteles dentro do comunitarismo provém de MacIntyre, que se declara um aristotélico-tomista. Criticando as tendências das filosofias morais contemporâneas que vinculam o agir moral às emoções e ao caráter do agente, ou à maximização da utilidade ou das consequências da ação, ou ao formalismo do imperativo do dever - todas essas tendências são sintomas do fracasso do relativismo utilitarista ou do universalismo do projeto iluminista -, MacIntyre procura reabilitar o conceito aristotélico de virtude como uma fonte capaz de dar conta dos desafios morais de nossa época. Este conceito, estabelecido no contexto histórico do agir humano, caracteriza-se pela indispensável dimensão comunitária, a qual se orienta por uma determinada concepção forte do bem comum, constituído pela via de uma racionalidade prática, mediante a qual todos são capazes de ordenar valores, seja na vida individual, seja na coletividade. "De acordo com essa concepção do bem comum, a identificação do meu bem, de como é melhor eu dirigir minha vida, é inseparável da identificação do bem comum da comunidade, de como é melhor para essa comunidade dirigir a sua vida" (Macintyre, 1981, p. 241). Apesar da diversidade de suas fontes na elaboração da crítica ao atomismo liberal, os comunitaristas são simpáticos à perspectiva "neoaristotélica" na partilha de uma herança que defende o valor prioritário da comunidade. Em contraste com uma defesa restritiva do justo, segundo o valor universal de princípios éticos e políticos dos direitos subjetivos do liberalismo - propiciando, inclusive, resistências ideológicas a uma análise alternativa mais abrangente destes direitos e da liberdade dos indivíduos -, o comunitarismo propõe a importância do bem que ele veicula na interação comunitária dos indivíduos. A questão a ser discutida intenciona ir além da mera influência ou mesmo da presença do pensamento aristotélico - e que se mostra de modo não uniforme - na filosofia política contemporânea do comunitarismo.2 Pretende-se, antes, destacar que determinados aspectos na filosofia prática de Aristóteles, e que configuram uma matriz comunitarista, podem ser reatualizados sem ferir os ganhos da modernidade, sobretudo, porque eles, na medida em que não representam a negação ou a antítese dos valores positivos do individualismo, permitem um diálogo com as conquistas hodiernas, notadamente, a liberdade individual, o pluralismo e os direitos humanos, as quais foram considerados apanágios do liberalismo. Estes aspectos são: a) o homem como animal político por natureza diante das diferentes formas da convivência comunitária e a superioridade da comunidade política; b) o logos compartilhado e as virtudes ético-políticas; c) a autossuficiência dos indivíduos e a autarquia da polis. 2 A dimensão comunitarista da filosofia política de Aristóteles No que diz respeito ao primeiro aspecto, a tese aristotélica da radical sociabilidade do ser humano atesta a insuficiência de uma vida isolada: aquele que vive sem cidade ou é um ser degradado (um animal) ou está acima da humanidade (um deus), "comparável ao homem ignominiosamente tratado por Homero como 'sem família, sem lei sem lar" (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a, 5, grifos do original). No Livro IX da "Ética a Nicômaco", o filósofo, ao analisar a virtude ética da amizade, observa que a felicidade está atrelada à convivência humana, ao fato do viver junto com os outros em relações de compartilhamento social, uma vez que "não menos estranho seria fazer do homem feliz um solitário, pois ninguém escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade" (Aristóteles, 1973, IX, 9, 1169 b 18/20). A polis é uma criação da natureza e que "o homem é por natureza um animal político (zoon politikon)" (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a 2 e III, 6, 1278 b, 20). Se o bios politikós constitui uma finalidade essencial para o homem, esta característica deve ser concebida como uma inclinação que, muito embora não seja um destino inelutável, representa um telos que porfia pela sua realização. Isto é, a tendência social (e política) da natureza humana se realiza quando o homem alcança o estatuto ontológico de um ser que vive na comunidade política (polis). Porém, esta tendência pressupõe, de algum modo, o concurso do fazer artificial (o nomos) - o campo da ação humana na criação de leis e instituições políticas que levam o homem à sua plena realização - que completa o fazer natural da physis. Por obra e arte dos homens é possível dar continuidade ao processo de realização do fim, isto é, da natureza política como destinação da vida humana. A natureza se manifesta, assim, coroada pelo concurso da ação artificial da atividade humana, não só pelo concurso da formação (paideia) para a cidadania, como também pela interveniência do legislador, cuja atuação no conhecimento do fim da polis (a felicidade de uma vida boa e virtuosa) concorre para efetivar o bios politikós. O homem é um zoon politikon por natureza, isso significa afirmar que há apenas uma pressuposição virtual da vida política. Se a consecução do fim não é arbitrária (já está dada potencialmente na origem), o seu termo final é a cidade, de tal modo que a tendência natural do homem para ser um animal comunitário deve ser atualizada, mediante o concurso da ação humana (cultura) norteada pelo logos.3 Se Aristóteles destaca o significado do processo teleológico na constituição do homem como zoon politikon, e que culmina no seu vínculo com a comunidade, qual o papel dos indivíduos na formação, organização e funcionamento desta comunidade? A posição aristotélica é a de que o Estado, embora sendo uno, não deve almejar o ideal da unidade platônica exposta na "República", a despeito da tese aristotélica - de resto nitidamente platônica - sobre a importância da totalidade. A crítica a Platão no Livro II da "Política" tem por base a tese de que a felicidade da polis vincula-se à felicidade individual dos cidadãos que a compõem, denunciando a desconsideração do indivíduo em prol do ideal platônico da unidade. Na medida em que as diferenças individuais são eliminadas, a comunidade política inclina-se à aspiração de uniformidade apropriada à família, tornando a vida política um ente que se assemelha a um ser individual exclusive e excludente. Obter tal identidade significa destruir o Estado, pois "é evidente que se o processo de unificação for perseguido com muito rigor não haverá mais o Estado" (Aristote, 1982, II, 1261 a, 20). A comunidade política não é apenas formada por muitos homens, mas também pela diversidade que eles apresentam, de modo a evitar a homogeneidade familiar que os semelhantes produzem. A família apresenta uma maior unidade porque nela - e muito mais no indivíduo - a tendência à identificação repele as diferenças. Uma vez que a cidade é por natureza uma pluralidade, e se sua unificação for excessivamente compelida, de cidade ela torna-se família, e de família indivíduo: com efeito, podemos afirmar que a família é mais una que a cidade, e o indivíduo mais uno que a família. Por conseguinte, mesmo supondo que alguém tem condições de realizar esta unificação, deve-se resguardar de fazê-lo, pois isto conduziria a cidade à ruína. A cidade é composta não apenas de uma pluralidade de indivíduos, mas ainda de elementos especificamente distintos (Aristote, 1982, II, 2, 1261 a, 15-25). Entretanto, esta análise não autoriza pensar a polis segundo o modelo do arranjo atomístico de indivíduos dispersos. Os membros da polis devem constituir uma organização política de cidadãos livres e iguais que guardam um sentido de pertencimento comunitário. Se a polis não constitui uma unidade indistinta, e nem é um agregado social que reúne indivíduos sob a forma de uma simples aglomeração, ela deve retratar o ideal político de uma comunidade que possui o caráter da identidade de uma formação comunitária plena, e que tem prioridade em relação às partes que compõem o todo social. Porém, este ideal não deve, de forma alguma, estimular a nulidade do indivíduo, absorvendo-o na unidade indiferenciada da comunidade política. Mesmo como partes do todo, os indivíduos devem diferir, pois a identidade da polis permite e até exige indivíduos diferenciados, só possível pela diversidade.4 Ao recomendar o caráter plural da cidade, Aristóteles entende que a existência de cidadãos que diferem em suas distintas capacidades na execução de tarefas, mediante a cooperação, torna-se indispensável para o cumprimento da diversidade de fins que são próprios à comunidade política. Num Estado onde a multiplicidade está garantida, a igualdade não possui o sentido de uma uniformidade irrestrita. Sendo iguais em parte e desiguais em outros aspectos, o princípio que rege as relações interindividuais é o da reciprocidade proporcional. Em relação ao segundo aspecto comunitarista da filosofia política de Aristóteles, ou seja, o logos compartilhado e as virtudes ético-políticas, é preciso ressaltar que o homem não é um simples animal gregário, portador de uma espécie de "sociabilidade" que ele partilha com outras espécies, também solidárias, como as abelhas e as formigas. A afirmação de que o homem é por natureza um animal político retrata a ideia de que ele é o único ser que possui a capacidade discursiva, e que é capaz de fazer da linguagem um uso compartilhado com outros homens para estabelecer fins comuns. Que o homem seja um animal político no mais alto grau do que uma abelha ou qualquer outro animal vivendo num estado gregário, isso é evidente. A natureza, conforme dizemos, não faz nada em vão, e só o homem dentre todos os animais possui a palavra. Assim, enquanto a voz serve apenas para indicar prazer ou sofrimento, e nesse sentido pertence igualmente aos outros animais [...] o discurso serve para exprimir o útil e o prejudicial e, por conseguinte, também o justo e o injusto; pois é próprio do homem perante os outros animais possuir o caráter de ser o único a ter o sentimento do bem e do mal, do justo e o injusto e de outras noções morais, e é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a, 7-12). O discurso só é possível pela mediação do homem como ser político, e a maneira mais adequada para analisar a dimensão do logos discursivo é, propriamente, uma forma específica de conhecimento político, o qual é definido como a ciência suprema ou arquitetônica por excelência, pois ela "utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer" (Aristóteles, 1973, I, 1, 1094 b, 5). O estudo da política não possui um fim em si mesmo, não tem por objeto as coisas necessárias e eternas, e nem visa apresentar um conhecimento axiomático e metafisicamente normativo. Destarte, o estagirita concede à política um estatuto epistemológico peculiar - aquele que tem por objeto a praxis na classificação proposta por Aristóteles sobre as ciências. Esta forma de saber não visa à posse de um conhecimento ideal submetido ao rigor de um saber contemplativo, mas aquele que concerne à contingência das ações humanas enraizadas na vida da comunidade. A política (bem como o seu conhecimento) tem por finalidade esclarecer o sentido destas ações, segundo o critério da boa razoabilidade fornecida pela sabedoria prática (phronesis) e pela experiência da repetição dos casos e das situações particulares. Na medida em que a política é um conhecimento deste tipo, ela se distancia do modelo abstrato das essências universais. Ao retratar a atividade adequada ao modo próprio de atuação (praxis) que se dá na polis e pela polis, a política se constitui em instrumento essencial para se alcançar a eudaimonia, possível apenas no seio da comunidade. As atividades humanas constitutivas do bios politikós eram a ação (praxis) e o discurso (logos). Quem vive na polis deve possuir a disposição discursiva do logos, do homem (cidadão) que fala e discorre pela palavra como instrumento de persuasão que se dirige a outrem em pé de igualdade, com o objetivo de buscar um entendimento geral no espaço público da ágora e da ekklesía. Entre iguais, a disputa (polemos) ocorre pelo diálogo, pelo convencimento por meio do discurso como forma superior do relacionamento entre os cidadãos. O modo político de decidir exclui a violência, pois o convencimento pela palavra é feito por argumentos produzidos por uma razão dialógica. Para os gregos [observa Arendt] forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização familiar (Arendt, 1981, pp. 35-36). Em sintonia com esse logos compartilhado, os homens atualizam a dimensão do viver junto numa forma de sociabilidade comunitária, mediante um relacionamento conveniente a esse viver com base na justiça e na amizade, as quais, por isso mesmo, constituem virtudes ético-políticas.5 Por fim, no que diz respeito ao terceiro aspecto, a saber, a autossuficiência dos indivíduos e autarquia da polis, o filósofo, no livro VII da "Política", discute a questão se o bem supremo que a cidade deve realizar é o mesmo para o indivíduo, observando que "temos que nos pôr de acordo sobre o modo de vida o mais digno de ser escolhido para todos por assim dizer e, depois, ver se este modo de vida é o mesmo para a comunidade e para o indivíduo tomado isoladamente, ou se ele é diferente" (Aristote, 1982, VII, 1, 1323 a, 17-20). Ou seja, trata-se de saber em que consiste para todos uma vida que se apresenta como a mais predileta, para avaliar se aquela que o indivíduo escolhe para si coincide ou não com a vida que ele leva na comunidade. Aristóteles não titubeia em afirmar que é possível realizar uma vida mais perfeita, que vale tanto para o indivíduo como para a comunidade. "Vê-se, assim, claramente que a vida mais perfeita deve necessariamente ser a mesma, tanto para cada indivíduo em particular como para os Estados e os homens tomados coletivamente" (Aristote, 1982, VII, 3, 1325 b, 30). Se é plausível sustentar a tese de que a felicidade do indivíduo e da cidade não se opõem, é porque para ambos a autossuficiência (autarquia de bens e de caráter) é fundamental, tanto para a consecução do fim comunitário como dos fins individuais. A convergência ou o paralelismo entre ser livre e ser cidadão é evidente para Aristóteles, pois, a polis é uma "comunidade de homens livres" (Aristote, 1982, III, 6, 1279 a, 21). Isso porque, o homem não só tem em si mesmo a finalidade do seu agir, como também, na condição de cidadão, não está submetido ao domínio de outrem, nem a constrangimentos ou impedimentos externos que impendem o exercício de uma vida feliz e virtuosa. Se a felicidade do homem inclui a noção de realização de fins no cumprimento de sua natureza, então, esse fim inclui a dimensão da autossuficiência, e o seu pleno desenvolvimento requer bens comunitariamente compartilhados em consonância com a autarquia da comunidade. Nessa medida, não constitui uma exorbitância ética e política afirmar que a felicidade da cidade e a do indivíduo podem coincidir, e que a melhor constituição é aquela que assegura aos cidadãos a melhor vida com base no critério da autossuficiência para os indivíduos e da medida maior da autarquia para a comunidade. É bem verdade que, no contexto cultural e ideológico da antiga Grécia, a autossuficiência exigia o afastamento de entraves ou de dependências que impediam a sua consecução. Apenas os cidadãos livres das ocupações servis não estavam compelidos a proverem suas necessidades cotidianas, permitindo que se dedicassem à política.6 Os membros da polis são os cidadãos (politai) livres, desobrigados da servidão do trabalho da vida, da necessidade, e esta condição não pode ser atribuída aos escravos e aos trabalhadores, cuja ocupação laboral lhes retira toda possibilidade da cidadania e, até mesmo, do exercício de uma vida virtuosa com base no ócio e na contemplação. O conceito de virtude não se aplica a qualquer homem livre, mas apenas àqueles que "não estão submetidos aos trabalhos indispensáveis à existência" (Aristote, 1982, III, 5, 1278 a, 10).7 Para os gregos, no momento em que a identidade do indivíduo se afirmava na comunidade política, os interesses individuais estavam alinhados com o bem comum, e não tinham o significado de direitos individuais, pois a instância privada não era digna de atenção para se postular a sua autonomia, estabelecendo uma relação dicotômica entre o indivíduo (privado) e o Estado (público), tal como os modernos a concebem. Se o homem se realiza na e pela polis, a cidade só efetiva essa finalidade se ela permitir e estimular ações morais, e se os indivíduos forem moralmente educados para nela viverem. Quando cidadãos de uma cidade ideal comparecem à assembleia e decidem como votar, eles o fazem não com o objetivo de representar suas famílias, clãs ou qualquer outro partido. Eles vêm como indivíduos para avaliar a força de argumentos competentes, não como partidários de uma subcomunidade que procuram proteger ou ampliar seu quinhão. Como cidadãos, o objetivo não é favorecer algum setor, mas sempre promover o bem da comunidade como um todo (Kraut, 2002, p. 353). Mais do que instrumento para a proteção dos indivíduos pela mediação do Estado que detém a autoridade e que assegura as trocas mercantis e pune os crimes, a comunidade política é uma força moral para a consecução de uma vida feliz, uma vez que "a cidade não é uma simples comunidade de lugar, estabelecida com vistas a impedir as injustiças recíprocas e favorecer as trocas" (Aristote, 1982, III, 9, 1280 b, 30). Ela é uma comunidade moral e política que se organiza não apenas com o objetivo de proteger e manter a vida - esta finalidade representa apenas um meio para a realização do fim superior boa vida -, mas, também, promover o bem viver de homens bons, amigos e justos. Na medida em que o cidadão deixa de participar direta e ativamente do poder, a moderna concepção de liberdade, marcada pelo individualismo, pelo gozo pacífico da independência privada, não tem lugar no mundo político grego. Não havia, então, direitos individuais privados, mas o dever do cidadão de colaborar para a realização do bem comum da comunidade. No Estado grego, que desconhecia o sistema de representação política, a liberdade era compatível com a submissão do indivíduo à autoridade pública, uma vez que a cidadania não era definida como prerrogativa do indivíduo para reivindicar, defender ou postular os seus direitos subjetivos e de não estar submetido à autoridade de outrem senão por força da lei. Em síntese, são estes os aspectos (o homem como animal político por natureza diante das diferentes formas da convivência comunitária e a superioridade da comunidade política; o logos compartilhado e as virtudes ético-políticas e a autossuficiência dos indivíduos bem como a autarquia da polis) que, articulados, conferem à filosofia prática de Aristóteles o epíteto de comunitarista. 3 A atualização do comunitarismo aristotélico ante o liberalismo Se assim é, em que medida este comunitarismo - na linha de uma filosofia ético-política que concebe a prioridade do bem (no sentido de uma vida feliz e bem- sucedida) sobre o justo (da prevalência de regras universais regidas por princípios procedimentais) - pode ser, definitivamente, considerado antiquado, de tal maneira que a filosofia política aristotélica não mais permite sustentar teses que poderiam embasar alguma forma de conciliação com o liberalismo, sobretudo, no que diz respeito à autonomia do indivíduo e aos direitos humanos? Uma linha de interpretação, que destaca de forma seminal a inadequação do pensamento político de Aristóteles com a modernidade, provém de B. Constant, cuja análise comparativa entre a liberdade dos antigos e a dos modernos tornou-se paradigmática. "A liberdade individual constitui a verdadeira liberdade moderna" (Constant, 1980, p. 509), sublinha o liberalismo de Constant no diagnóstico que ele faz das vantagens da liberdade dos modernos. A liberdade individual representa uma necessidade moderna porque supõe a livre disponibilidade do indivíduo em relação aos vínculos comunitários, e a liberdade política não é outra coisa senão a garantia desta liberdade. Para os antigos, na visão de Constant, quanto mais presença e participação nos assuntos públicos, mais livres os indivíduos eram, daí a necessidade de uma vida política com participação direta. Para os modernos, a ausência dos assuntos públicos determina um alcance mais amplo para as questões privadas e, portanto, maior fortalecimento da representação política dos direitos individuais. O exercício da política, mediante um governo representativo, permite a existência de um espaço livre e intocável para a realização dos interesses privados. O princípio que informa a cultura do individualismo liberal realça a concepção de que cada indivíduo, no uso de sua liberdade, pode escolher o bem que julga ser o melhor para si na sua utilidade ou conveniência. O valor da individualidade se traduz, assim, no livre exercício da vida privada e que exige a liberdade para a sua fruição e o consequente direito a ela. O liberalismo difunde a ideia de que o indivíduo é, portanto, juiz dos seus fins, interesses e ações, e a esfera pública deve assegurar essa prerrogativa como uma necessidade moral e jurídica. Na medida em que a sociedade tem que ser neutra no tocante à questão da boa vida e da felicidade dos seus membros, limitando-se ao compromisso procedimental de tratar as pessoas com igual respeito segundo a regra básica da prioridade do justo, o liberalismo defende a pluralidade das concepções de bem, caracterizada pela existência de diversas doutrinas morais, filosóficas e religiosas, e cujo reconhecimento moral e jurídico é essencial para resguardar a liberdade e o interesse de cada indivíduo na sociedade. Por isso, o liberalismo se reporta aos direitos (subjetivos), definidos numa esfera pré-política, sobretudo, a liberdade (negativa), mediante a qual cada um pode seguir da maneira que mais lhe convém uma determinada concepção de bem, a qual pode, a qualquer momento, ser revisada sem nenhum impedimento de terceiros, inclusive do próprio Estado. Os direitos representam uma garantia contra toda e qualquer forma de sacrifício ou barganha em relação ao Estado, que tem por missão protegê-los, uma vez que foi constituído para esse fim, mediante um acordo (contrato) coletivo legítimo. Assim, qualquer concepção mais forte ou densa de comunidade - como a aristotélica - é inadequada às teses do moderno individualismo, sobretudo, a necessidade da liberdade (autonomia) individual para a realização da diversidade de fins e interesses dos sujeitos. Por conseguinte, constitui um ponto fundamental na formulação do liberalismo político o reconhecimento teórico e histórico do pluralismo nas sociedades democráticas modernas. Para a realização desses princípios, faz-se necessário o abandono do ideal ético e político abrangente de comunidade, a qual deve se reger apenas por uma teoria da justiça circunscrita à estrutura de base das sociedades democráticas liberais modernas. É o que dispõe o liberalismo político de J. Rawls. A teoria da justiça como equidade ao não se fundamentar numa doutrina exaustiva moral, religiosa ou filosófica, abandona o ideal de comunidade política e considera a sociedade como um conjunto de associações ou de indivíduos distintos que só cooperam para alcançar sua própria vantagem pessoal ou associativa sem compartilhar nenhum fim último (Rawls, 2008, p. 54). Contudo, a relação da filosofia prática de Aristóteles com o liberalismo não se limita a um confronto que resulta em desdém das teses filosóficas do primeiro, sobretudo, aquelas do âmbito da política, por considerá-las inadequadas ao moderno individualismo. Uma outra linha de interpretação procura evitar a relação dicotômica entre o caráter comunitarista de Aristóteles - se bem avaliado - e os valores importantes da modernidade, mormente, aqueles veiculados e defendidos pelo liberalismo, como, por exemplo, a liberdade e os direitos individuais. Höffe perfila entre aqueles que não veem incompatibilidade entre a filosofia prática de Aristóteles e a filosofia política do liberalismo moderno.8 Este autor procura uma posição de conciliação entre o comunitarismo de Aristóteles (que se exprime na ideia do bem) e o individualismo liberal (que se manifesta na ideia do justo), chamando a atenção para a presença de aspectos conceituais na filosofia prática aristotélica que não se opõem às teses de um "liberalismo autêntico",9 com exceção daqueles aspectos que não se identificam com a época moderna no que diz respeito aos princípios universais da dignidade da pessoa e aos seus direitos. Na interpretação de Höffe, Aristóteles não promove o confronto entre o justo e o bem, mas apresenta a alternativa conciliadora de que a vida feliz e boa caracteriza-se por aquilo que é, também, justo. Ao contrário do que se lhe atribui hoje, Aristóteles representa não uma alternativa ao liberalismo, mas a consolidação desse último: em vez de uma prioridade do bem sobre o justo, a sua identidade. O bem de uma comunidade-sociedade reside no reconhecimento de princípios comuns do justo e do injusto [...] Em suma, aquele que lê Aristóteles não encontra nele o antepassado do comunitarismo, o qual se compreende como alternativa ao liberalismo e ao universalismo, mas os traços fundamentais da forma de filosofia política e de filosofia social que hoje é necessária, a saber, um universalismo liberal, que vai até aliar à compreensão e ao direito a necessidade de pertenças particulares (Höffe, 2001, pp. 176-177). Uma outra tendência interpretativa na recepção do pensamento político de Aristóteles procura realçar aquilo que lhe é peculiar e auspicioso: a dimensão comunitária, sobretudo, no que diz respeito à atualização dos aspectos anteriormente já analisados, e que estimulam revisitar este pensamento. Esta outra perspectiva de análise é possível a partir da recepção crítica da filosofia prática aristotélica.10 Com efeito, a tese comunitarista de Aristóteles - formulada no princípio de que as pessoas precisam e desenvolvem um sentido ético-político de pertencimento e de integração em uma forma social mais abrangente, e que estabelece fins comuns, propósitos compartilhados, práticas cooperativas - subsiste com os valores que são atribuídos ao homem na particularidade da sua vida e da sua atuação como indivíduo livre. A rigor, o indivíduo não pode ser pensado de forma isolada, e o seu significado como ser comunitário deve ser visto como um atributo moral e político importante para a sua independência como cidadão, capaz de discutir, avaliar e julgar bem em prol da comunidade com um todo, e não na consideração de razões partidárias utilitaristas ou do espírito individualista de secessão.11 A questão básica para Aristóteles não diz respeito à demanda, de resto moderna, da representação política de interesses privados; mas em saber qual é a melhor forma de vida, a mais adequada para o homem não só na sua singularidade como, também, para os outros. A diversidade da convivência comunitária que o cidadão constitui para si e para os seus semelhantes, com vistas à realização de diferentes objetivos que cada comunidade propicia para o bem viver e para a felicidade, encontra na forma de vida política o modo supremo desta convivência. O vínculo orgânico que o indivíduo mantém com a comunidade política, mediante a qual ele pode orientar a sua ação por um conjunto de valores éticos e políticos, qualificados de virtudes comunitárias, permite a realização da sua felicidade na convivência com os outros. Assim, a sabedoria prática, a justiça e, sobretudo, a amizade, são virtudes morais que adquirem um sentido nitidamente comunitário, pois envolvem a convivência humana no seu aspecto mais profundo na constituição de objetivos comuns. Do ponto de vista político, um cidadão moralmente virtuoso deve realizar, junto com os outros, a finalidade maior da comunidade: a busca de uma vida autossuficiente, permeada pelo ideal ético das virtudes.12 4 Conclusão A análise que o estagirita propõe é, portanto, significativa para se compreender a relação do indivíduo com a comunidade e constitui, ainda hoje, estímulo teórico importante para a reflexão comunitarista e, também, liberal. Assim, a tese aristotélica da condição comunitária do homem não demonstra ser incompatível com a atualização de um tipo de comunitarismo que não exclui os valores da modernidade, como a liberdade individual e o pluralismo, e que foram considerados apanágios ideológicos do liberalismo.13 Com base na hipótese de que a contribuição da filosofia prática de Aristóteles é plausível na reavaliação de um moderno comunitarismo, é possível afirmar que o caráter comunitário da sua filosofia assume a condição de um elemento teórico indispensável ao articular as diversas formas de análise da política que o filósofo apresenta; seja na tese de que o ser humano é um animal político; seja no modo como essa tese se realiza nas diferentes formas da vida comunitária, culminando na superioridade da forma política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; seja pelo cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana. Estes aspectos, nitidamente comunitaristas, acabam determinando a posição e o bem do indivíduo em relação à comunidade, definindo com propriedade a articulação de duas faces na constituição da política: a liberdade individual e a autarquia comunitária, o bem desta última e o bem dos indivíduos. Sem a presença da face da liberdade, a dimensão comunitária pode oscilar para uma abstração vazia ou evoluir para uma ordem totalitária; e, sem o viver junto, o indivíduo simplesmente não pode compreender e realizar aquilo que é valioso para si mesmo - a liberdade e a felicidade como bens propriamente individuais. Uma retomada moderna do conceito de comunidade, com base nos princípios gerais do comunitarismo aristotélico, não se revela necessariamente anacrônica. Ao contrário, ela pode, inclusive, ser compatível com determinadas teses liberais modernas, sobretudo, a questão da liberdade (autonomia) individual e a existência do pluralismo ético e político. O apego comum a valores comunitários, e que requer a participação do cidadão na perspectiva do republicanismo, pode representar um aspecto importante para a defesa dos direitos do indivíduo. O gênio de Aristóteles ecoa, assim, através dos séculos alcançando o comunitarismo contemporâneo, na medida em que este procura, juntamente com o ideal republicano da virtude cívica, ressaltar valores comunais, os quais - sob o lema de que o bem deve estar articulado com o justo - estimulam a possibilidade de conexão com o significado normativo do ideal dos direitos subjetivos, sobretudo, a liberdade e a igualdade. Destarte, é possível afirmar que a reflexão ética e política de Aristóteles, ao compreender a ação humana norteada pela ideia do bem comum e por práticas e fins públicos ou comunitários, permite um diálogo com a perspectiva liberal de ênfase aos fins individuais ou particulares, os quais encontram um solo mais seguro de realização quando estão comunitariamente assegurados. Artigo recebido em 21/09/2012 e aprovado em 10/03/2013 ARENDT, H. "A condição humana". Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Forente; Salamandra; Edusp, 1981. ARISTÓTELES. "Ética a Nicômaco". Tradução de Leonel Valandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Vol. IV: Os Pensadores. ARISTOTE. "La politique". Tradução de J. Tricot. Paris: Vrin, 1982. ARISTOTLE. "The works of Aristotle translated into english". Ed. by W. D. Ross. Oxford: Clarendon Press, 1966. AUBENQUE, P. "Aristóteles era comunitarista?" Dissertatio, pp. 19-20, 2004. AVINERI, S., DE-SHALIT, A. (ed.). "Communitarianism and individualism". Oxford: Clarendon Press, 1992. BARKER, E. "Teoria política grega". Tradução de Sergio Bath. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1978. BERTI, E. "Aristóteles no século XX (Aristotele nel Novecento)". Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Loyola, 1997. CONSTANT, B. "De la Liberté chez les modernes". Paris: Librairie Générale Française, 1980. GUARIGLIA, O. 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"Aristóteles e a política". Tradução de Thereza Stummer e Lygia Watanabe. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. 1 Com a publicação da "Teoria da Justiça" de Rawls, da obra de R. Nozick, "Anarchy, state and utopia" (1974) e de R. Dworkin, "Taking rights seriosly" (1977), todas elas na perspectiva da renovação do liberalismo, surge a partir da década de 1980, nos Estados Unidos da América, uma reação contra o individualismo abstrato neoliberal. Essa reação foi provocada pelas críticas de autores denominados comunitaristas. Dentre eles, destacam-se: A. MacIntyre, "After virtue" (1981); M. Sandel, "Liberalism and the limits of justice" (1982); M. Walzer, "Spheres of justice: defense of pluralism and equality" (1983); C. Taylor, "Philosophy and the human sciences: philosophycal papers" (1985) e "Sources of the self" (1990); J. Raz, "The morality of freedom" (1986). A despeito da não existência de uma unidade sistemática destes autores em torno da bandeira comunitarista - pois, eles mesmos divergem quanto ao estatuto filosófico do sentido da comunidade em suas filosofias -, o que os une, entretanto, é a crítica à insuficiência do modo liberal de tratar a importância da comunidade na formação da identidade dos sujeitos, dos direitos e das liberdades individuais, bem como as consequências que esse déficit traz à vida das pessoas e da sociedade no mundo contemporâneo. 2 C. Taylor, por exemplo, busca respaldo para o seu projeto comunitarista apoiando-se na filosofia da linguagem de Herder e Wittgenstein no que concerne à definição de sujeito imerso numa comunidade linguística, na qual os significados e valores da vida estão articulados, e da qual o sujeito retira, por intermédio de relações dialógicas, tanto a sua própria identidade quanto seu posicionamento no mundo. Contudo, ao incorporar esses elementos modernos, o autor, na crítica ao individualismo liberal e à atomização das sociedades modernas, ressalta o valor da ideia de comunidade próxima ao aristotelismo (e, também, ao hegelianismo). E essa proximidade diz respeito ao sentido geral do modo como determinadas formas de sociabilidade envolvem a participação de todos na elaboração e sustentação de um sentido comum de vida política no espaço público, seja ele um "espaço comum tópico", e que aparece na conversação e na reunião de pessoas, mas, sobretudo, no "espaço comum não local 'metatópico" que é propriamente político, pois representa o compartilhamento de projetos comuns com vistas a procedimentos de cooperação (Taylor, 2000, pp. 280-281). É bem verdade que se, de um lado, Taylor está consciente de que a comunidade é parte constitutiva do indivíduo, de outro, é preciso articular a esse espírito comunitário o self individual de uma identidade moderna. 3 Aubenque, ao sublinhar a ideia de que a natureza humana participa do processo teleológico que anima as coisas naturais, chama a atenção para o "elemento de indeterminação que introduz a liberdade humana e faz com que a natureza do homem seja uma natureza inacabada [...] que tem a necessidade da cultura para produzir seus frutos mais perfeitos. Na ordem da vida em comum, o instrumento desta cultura é o logos, a palavra trocada, e mais particularmente a deliberação ( bouleusis), que permite aos cidadãos reunidos tomar, a cada vez e após um exame dos argumentos a favor e contra, a decisão mais razoável para o bem maior da comunidade. É somente por estas mediações racionais que a natureza humana pode realizar suas virtualidades mais elevadas" (Aubenque, 2004, pp. 13-14). 4 Segundo Barker, numa linguagem que ecoa o hegelianismo, "na lógica, como na política, apenas um universal concreto, o qual reconhece e dá aos seus membros individuais seu pleno significado pode ter alguma possibilidade de ser verdadeiro" (Barker, 1978, p. 404). Barker conclui que Aristóteles "não estava de fato atacando a unidade como o fim do Estado, mas uma falsa unidade [...] A unidade indiferenciada pertence a uma escala mais baixa da evolução. A unidade heterogênea à mais alta escala [...]" ( ibidem, p. 404). 5 No comentário de Aubenque, "é pelo fato de possuir a linguagem que o homem tem a percepção das noções morais e, possuindo os homens esta percepção em comum com outros homens, eles constituem com estes uma comunidade, seja familiar, seja política" (Aubenque, 2004, p. 7). Aubenque chama a atenção para a importância do pertencimento comunitário pela mediação da capacidade de comunicação, inexistente para um indivíduo absolutamente autossuficiente que, como um deus, não tem necessidade dos outros. "Não pode fazer parte de uma comunidade um indivíduo incapaz de 'comunicar' ( koinonein). A pertença à comunidade implica, da parte do indivíduo, a vontade e a capacidade de comunicar, de compartir, de partilhar, de participar" ( ibidem, p. 7). Alguns comentadores chegam a dizer que "o conceito de koinonia politiké elaborado por Aristóteles é o primeiro modelo da livre ação comunicacional - para utilizar a terminologia de Habermas - que se apresenta na história das ideias" (Guariglia, 1979, p. 41). 6 Aristóteles admite que o estatuto de cidadão varia conforme o tipo de constituição da polis. Na democracia, são cidadãos aqueles que têm o direito de participar ativamente de uma função pública, do governo, da justiça, ou da assembleia, uma vez que essa forma de governo se caracteriza pelo governar por turnos. Numa constituição aristocrática, em que o critério é o mérito (virtude), os trabalhadores, não tendo oportunidade nem tempo para exercitar atividades dignas da vida virtuosa, não são admitidos como cidadãos. Na oligarquia é possível aceitar o artesão como cidadão, uma vez que o critério, nessa constituição, é a riqueza. 7 Arendt afirma que a liberdade entre os gregos só podia ser política, isto é, um fato da polis, contraposta à necessidade que é fenômeno "pré-político", próprio da vida privada, da família, na qual é possível o monopólio da força, da violência, da subjugação. "Todo conceito de domínio e de submissão, de governo e de poder no sentido em que o concebemos, bem como a ordem regulamentada que os acompanha, eram tidos como pré-políticos, pertencentes à esfera privada, e não à esfera pública" (Arendt, 1981, p. 41). 8 Alguns intérpretes querem, até mesmo, remontar a Aristóteles a presença de teses reconhecidamente liberais (Cf. Miller, 2001). 9 Esse liberalismo autêntico é caracterizado por Höffe pelos cinco elementos seguintes: "1. A coexistência dos homens está sujeita a regras coercitivas de que o direito, gramática (parcial) da sociedade, apresenta a totalidade. 2. O direito não está sujeito a regras arbitrárias, mas a regras que merecem ser reconhecidas por todas as partes [...] 3. Tanto a determinação imediata do direito (universalista) como a sua execução, e sobretudo a decisão autoritária nos casos litigiosos, não resulta de opiniões privadas e do poder privado, mas dos poderes públicos. 4. Já legitimação destes últimos resulta em última instância do acordo de todos os interessados; por outras palavras, todo o poder procede do povo. 5. Devido já às tarefas diferenciadas, mas em seguida, também, com o fim de impedir todos os abusos de poder, os poderes públicos estão divididos e sujeitos a um mútuo controle" (Höffe, 2001, p. 172). 10 É viável apreciar a pertinência da filosofia prática a partir de uma perspectiva neoaristotélica, sobretudo, na teoria ético-política. O termo neoaristotelismo foi utilizado pela primeira vez, no contexto alemão, por Habermas e Apel no debate sobre a interpretação aristotélica feita por Gadamer e seus discípulos, considerada conservadora. O IX Congresso Alemão de Filosofia (1969) tematiza a necessidade de uma retomada da filosofia prática, estimulando interpretações diferentes da filosofia prática aristotélica por autores como K.-O. Apel, J. Habermas, M. Riedel, F. Kambartel e outros (cf. Riedel, 1972-1974). O neoaristotelismo de autores como H. Arendt - esta última também influenciada por Heidegger, a partir de seus cursos sobre Aristóteles realizados em Friburgo, no período de 1919-1923, e em Marburgo, no período de 1923-1928 -, J. Ritter, P. Aubenque, E. Anscombe, A. MacIntyre, B. Williams, A. Sen, H. Jonas, E. Berti e outros pretende fornecer uma livre interpretação do pensamento de Aristóteles visando adaptá-lo aos problemas e à situação da vida contemporânea. Com efeito, como observa Berti, "frequentemente, ainda hoje - e não por acaso é assim há dois mil anos -, a leitura de uma página de Aristóteles faz pensar, faz refletir, faz meditar, ensina algo acerca do sentido de certas realidades, algo diferente do que se pode aprender pelas obras de ciência ou de literatura, ou ainda de poesia" (Berti, 1997, p. 326). 11 Ainda que atribuindo à filosofia política de Aristóteles um caráter eminentemente comunitarista e que se opõe claramente ao formalismo e ao procedimentalismo dos modernos, Aubenque defende a tese de que o logos aristotélico, ao se realizar na comunidade pela deliberação em comum, se pluraliza pela presença das diversas formas de vida sem, contudo, cair no relativismo e no artificialismo. "A polis [conclui Aubenque] não é uma agregação artificial de indivíduos naturalmente solitários, que somente, acederiam à vida política por um contrato, em que cada um só alienaria sua independência sob a condição da representação de uma utilidade mais elevada: logo, Aristóteles não é liberal no sentido da modernidade. Não é a solidão (como em Rousseau), mas é a participação na comunidade que é para ele 'natural" (Aubenque, 2004, pp. 8-9). 12 Embora seja verdade que a ética parece se inclinar mais para um ideal de felicidade pessoal, contemplativo e intelectualista, a política volta-se para uma forma de realização comunitária (o supremo bem humano), inseparável da virtude, pois a felicidade não é o fim do homem só, isolado, mas do cidadão. F. Wolff, no comentário sobre a relação entre a ética e a política, observa que "a conduta dos indivíduos constitui a matéria-prima da ética, e a história das cidades com seus regimes constitui o da política. De uma para outra, há múltiplos laços, com sentido duplo: a política continua sendo, para Aristóteles - é ao menos o que ele afirma no início de sua Ética -, a suprema ciência, da qual dependem o estudo e a efetivação do 'soberano bem'; o homem só pode realizar sua natureza de homem na e pela cidade. Inversamente, a cidade, quando digna desse nome, tem uma finalidade altamente moral, como Aristóteles não para de repetir na Política. Além do mais, a conduta individual somente poderia ser boa em geral com o auxílio das leis da cidade, que mostram permanentemente qual é a regra e dispõe de um poder coercitivo quando falta virtude; reciprocamente, são necessários muitos legisladores virtuosos para dar boas leis à cidade. A ética, portanto, não é independente da política. E a política depende da ética em seu direcionamento quanto em seus meios" (Wolff, 1999, p. 20). 13 Ao lado do significado moral e sociológico, o sentido político de comunidade é descrito por Honneth como aquele conceito que "serve hoje, na maioria das vezes, para enfatizar as formas de participação comunitárias, que devem figurar como condições necessárias de uma democracia viva. Considera-se que as chances de tal participação são maiores se os sujeitos puderem saber-se ativamente ligados a um objetivo comum. Aqui o conceito de 'comunidade' é, portanto, utilizado para mostrar, no espírito do pragmatismo americano, que quanto mais forte for o apego comum aos valores, tanto mais ativa será a participação" (Honneth, 2003, p. 292). Datas de Publicação Publicação nesta coleção 01 Jul 2014 Data do Fascículo Jun 2014

Renascimento civilização humanismo

https://www.jstor.org/stable/pdf/10.7476/9788568576939.5.pdf grande cultura e civilização do Renascimento. Referências BARON, Hans. The Crisis of the Early Italian Reinaissance. Princeton: Princeton University Press, 1966. BIGNOTTO, Newton. Republicanismo e Realismo: um perfil de Francesco Guicciardini. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006. BIGNOTTO, Newton. Origens do Republicanismo Moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2001. ________. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. ________. Nota Metodológica: Gicciardini leitor de Maquiavel. Discurso, São Paulo, n. 29, p. 111-131, 1998c. ________. Maquiavel Republicano. São Paulo: Loyola, 1991. BURCKHARDT, Jacob. The civilization of the Renaissance in Italy. New York: The Modern Library, 2002. GARIN, Eugenio. L’Humanisme Italien: Bibliothèque de l’évolution de l’humanité. Traduit de l’allemand et de l’italien This content downloaded from 177.103.1.230 on Mon, 19 Feb 2024 10:54:02 +00:00 All use subject to https://about.jstor.org/terms sobre a civilização do renascimento | 31 par Sabina Crippa et Mario Andrea Limoni. Paris: Albin Michel, 2005. ________. Le Zodiaque de la Vie: Polemiques Antiastrologiques a la Renaissance. Traduit de l’italien par Jeannie Carlier. Paris: Les Belles Lettres, 1991. ________. Moyen Âge et Renaissance. Traduit de l’italian par Claude Carne. Paris: Gallimard, 1989. KRISTELLER, Paul Oskar. Renaissance Thought I: the Classic, Scholastic and Humanistic Strains. New York: Harper and Row, 1961. ________. Tradição Clássica e Pensamento do Renascimento. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1995. MIRANDOLA, Pico dela. Discurso sobre a dignidade do Homem [1487]. Trad. Maria de Lourdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70, 2008. MONTAIGNE, M. Les Essais. Éd. Pierre Villey. Paris: PUF, 1999. MORE, Thomas. L’Utopie. Présentation, texte original, apparat critique, exegèse, traduction et notes de André Prévost. Paris: Mame, 1978. PINTO, Fabrina Magalhães. O discurso humanista de Erasmo de Rotterdam: uma retórica da interioridade. Tese de doutorado. PUC-Rio, Rio de Janeiro, 2006. SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. Tradução de Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

Temporalidades conflito e e crise financeira bbb

Les crises financières comme conflit de temporalités bbb Cette discordance des temps comme source de crises ne porte pas seulement sur les relations entre finance et économie, même si elles sont cruciales. Donnons quelques exemples. Pourquoi s’avère-t-il si difficile de contenir les effets dévastateurs de la crise de la dette grecque ? Probablement parce que le temps de la délibération politique, en particulier à l’échelle intergouvernementale qui est celle de l’Europe, ne peut se couler dans celui de la finance. Pourquoi, de façon récurrente, la flambée des prix du pétrole et des matières premières vient-elle enrayer la croissance des pays consommateurs de ses ressources ? La raison se trouve sans doute dans le fait que le temps de l’exploration, de la découverte et de la production de nouveaux gisements est bien supérieur à celui du cycle d’accumulation du capital productif. Par ailleurs, lorsqu’une récession mondiale renverse la dynamique des prix des matières premières, les acheteurs réduisent leurs efforts d’économie, de sorte que la prochaine expansion vient à nouveau buter sur le renchérissement du prix des ressources naturelles. Cet écart entre l’horizon temporel de décision des entreprises productrices de biens industriels et celui des entreprises spécialisées dans l’extraction des matières premières est à l’origine de crises parfois brutales ou encore d’ondes longues de type Kondratieff? [45][45]Nikolaï D. Kondratieff et Wolfgang F. Stolper, op. cit.. 32Lorsque l’on étend encore l’horizon temporel, il faut bien sûr mentionner les conséquences de deux autres temporalités. En premier lieu, l’évolution démographique obéit à ses propres paramètres et constantes de temps, qui s’inscrivent dans un horizon beaucoup plus long que celui de la succession des cycles économiques, dès lors que l’on s’éloigne de la régulation ancienne qui prévalait avant l’épanouissement du capitalisme industriel et financier? [46][46]Ernest Labrousse, Histoire économique et sociale de la France,…. Comme les générations futures ne sont pas présentes à la table des négociations portant sur la réforme des retraites, il ne faut pas s’étonner si, à la génération du baby boom, relativement bien lotie, peut succéder une autre génération qui redoute un statut beaucoup moins enviable lorsqu’elle atteindra elle-même l’âge de la retraite, et qui agit en conséquence en matière de travail, d’épargne et consommation? [47][47]Michel Aglietta, Didier Blanchet et François Heran, Démographie…. Dans le même ordre d’idées, la politique chinoise de limitation à un seul enfant de la taille de la famille est longtemps apparue comme un facteur favorable à l’amélioration du niveau de vie, mais la montée attendue du taux de dépendance peut poser de redoutables problèmes à l’économie dans les décennies à venir. 33Enfin, le conflit entre le temps de l’écologie et celui de l’économie est plus évident que jamais? [48][48]Olivier Godard et Jean-Pierre Ponssard (dir.), Économie du…. On a ainsi pu observer de longue date que les incitations économiques à exploiter un gisement de poissons pouvaient déclencher une brutale expansion du secteur économique de la pêche, dissimulant un temps le fait que se tarissaient ainsi les possibilités d’une reproduction de ce gisement. Lorsque l’épuisement des ressources se traduit par une flambée des prix, il peut être trop tard pour enrayer la disparition d’une espèce ou tout au moins sa brutale contraction. Avec la montée des problèmes environnementaux liés au réchauffement climatique, l’économie mondiale bute sur le fait que les mécanismes de marché seront a priori incapables de détecter de façon suffisamment précoce l’entrée dans une zone dangereuse pour l’écosystème terrestre. En conséquence, ils ne pourront donc pas prévenir les graves problèmes géopolitiques, tant est important le décalage entre les émissions de CO2 liées à l’activité de production et de consommation et leurs effets en retour sur la viabilité économique à très long terme des divers pays. C’est évoquer la question du conflit entre l’irréversibilité de certains phénomènes physiques et l’idéal de réversibilité que postule une logique purement marchande. ... le crédit se développe beaucoup plus rapidement que la mise en valeur de l’innovation, et la crise vient sanctionner le décalage entre les temporalités régissant respectivement la finance et l’activité économique. Tel semble être un invariant des sociétés régies par l’existence du crédit et de la monnaie. Cette répétition de génération en génération n’est pas sans questionner la théorie de la rationalité prêtée à l’homo oeconomicus. C’est le point de départ d’une théorie alternative du comportement des individus face aux choix financiers? ... On pourrait donc avancer l’hypothèse selon laquelle le retour des crises financières tient au caractère limité de la mémoire historique qu’en ont les acteurs, d’autant plus qu’ils se succèdent de génération en génération. Certains acteurs peuvent certes conserver cette mémoire et en profiter pour traverser sans trop de problème les crises financières, mais ils sont trop peu nombreux pour déterminer la direction du marché sur lequel domine l’amnésie des crises précédentes. 39Mais comment expliquer la quasi-disparition des crises bancaires et financières dans les décennies postérieures à la Seconde Guerre mondiale ? La raison principale tient sans doute à ce que les autorités publiques avaient alors tiré un certain nombre de conséquences de la crise de 1929 en matière d’organisation et de réglementation des banques : il fallait éviter que les emballements spéculatifs provoqués par les banques d’investissement ne contaminent les banques commerciales ; il convenait de généraliser l’assurance sur les dépôts bancaires pour éviter les paniques du passé ; la banque centrale devait intervenir comme prêteur en dernier ressort, afin d’éviter l’effondrement en chaîne de l’ensemble du système financier. Tous ces objectifs firent l’objet de dispositifs institutionnels, dotés d’une notable permanence, et qui ont canalisé, et en un sens limité, les comportements risqués des agents privés. En quelque sorte, la mémoire incorporée dans les institutions économiques s’institua comme un garde-fou contre le caractère limité du recul temporel des agents privés. Cette forme de supériorité du collectif sur l’individuel est aux antipodes de la doxa néolibérale, selon laquelle la puissance cognitive de l’agent est telle qu’elle parvient à percer la complexité des processus économiques, surpassant la capacité des organisations et des institutions. ... Il convient d’inclure aussi dans l’analyse l’impact de la succession des générations sur la conception des institutions économiques. La génération qui a vécu la crise des années 1930 puis la Seconde Guerre mondiale a cherché à construire un ordre économique susceptible d’en éviter la répétition, grâce à un encadrement collectif des mécanismes de marché et une intervention active de l’État pour régler une économie potentiellement instable. Il s’ensuit une période de croissance rapide et relativement régulière, au cours de laquelle se forme une nouvelle génération dont les attentes sont façonnées par cette prospérité qui semble aller de soi. Lorsque ce régime socio-économique montre ses limites, à partir de la fin des années 1960, il est tentant d’incriminer l’excès des réglementations et interventions publiques comme cause de l’inflation, du chômage et du ralentissement de la progression du niveau de vie. La plupart des gouvernements se rangent à la stratégie néolibérale et reviennent sur les bases institutionnelles du régime de l’après-guerre. Aux États-Unis, on abolit une grande partie des lois héritées du New Deal qui segmentaient le système bancaire et financier. Certains responsables de la protection financière des citoyens américains plaident en 2003 en faveur d’une réglementation des produits dérivés, mais leur proposition est refusée par la commission du Sénat : les meilleurs experts affirment que la concurrence du marché est le meilleur des régulateurs de ces nouveaux produits financiers. De la même façon, on abaisse considérablement les critères de solvabilité requis pour avoir accès aux prêts hypothécaires, ce qui donne naissance aux subprimes. Ainsi, se reconstitue progressivement le contexte institutionnel de laisser-faire financier qui conduit à la crise ouverte en septembre 2008. 41Nul doute que la nouvelle génération, qui va faire face à une ou plusieurs décennies de stagnation, d’incertitude et de difficultés d’accès à un emploi stable, ne manquera pas de développer une approche de l’intervention et de la réglementation économiques, susceptible de corriger les excès de la période de libéralisation financière tous azimuts. On retrouve ainsi une onde longue qui trouve son origine dans le processus de constitution des institutions économiques, dépositaires d’une mémoire collective, de plus longue portée que celle des individus. ... Ces transformations opèrent à l’échelle quasi séculaire, car telle est la temporalité qui régit la transformation des rapports sociaux et politiques, la constitution de systèmes techniques et l’émergence d’arrangements institutionnels permettant d’assurer la reproduction économique des sociétés correspondantes. Selon l’adage de l’école des Annales : « chaque société a la conjoncture et les crises de sa structure? [5 ... penseurs classiques anglais, on considère que les crises sont de simples perturbations d’une économie par ailleurs dotée de stabilisateurs ou que l’on suit l’approche inaugurée par Karl Marx, qui met en évidence la manière dont les contradictions propres au capitalisme font des crises une caractéristique intrinsèque de ce régime économique. Ainsi, la Grande Dépression des années 1930 marque une nouveauté : les économies connaissent une chute cumulative de la production et une déflation, sans que pour autant on observe une reprise permettant de retrouver la forte croissance des années 1920. ... Le déroulement et l’issue de ces grandes crises montrent nombre de traits idiosyncrasiques qui importent pour les analyses de sciences sociales. De ce trop bref historique, il apparaît que petites et grandes crises jouent un rôle déterminant dans la périodisation des régimes socio-économiques. C’est une autre raison pour remettre périodiquement en chantier l’histoire et la théorie des crises. CONCORRÊNCIA E CONVERGÊNCIA DAS TEMPORALIDADES. Mao ze dong e as medalhas aos soldados. X une unicité des temporalités à travers lesquelles s’ajuste l’activité économique. Diferença entre o contingente e o necessário. Ebtre estrutura e função. Ainsi les crises financières résultent-elles du grand écart apparu dans les périodes de spéculation entre le temps fiévreux de la finance et les exigences de continuité de l’activité productive. ... Si le conflit entre deux temporalités est une constante dans l’histoire des crises, chaque grande époque les colore des caractéristiques du régime socio-économique en vigueur. Les grandes crises sont des épisodes au cours desquels la viabilité de l’architecture institutionnelle héritée du passé est en jeu. Elles déclenchent en général un réajustement de la hiérarchie des temporalités régissant les diverses sphères. Le plus souvent c’est le temps de la négociation de nouveaux compromis politiques qui lève les incertitudes radicales nées de la destruction de l’ordre ancien et qui détermine la durée des grandes crises. Or il n’est rien de mécanique dans les processus sociaux correspondants, ce qui explique la durée très variable des sorties de crises. Conclusão: Les crises permettent ainsi une périodisation des sociétés, elles rappellent qu’existent des points de bifurcation entre le possible effondrement d’un régime socio-économique et une laborieuse recomposition du lien social, les déterminismes antérieurs n’assurant plus la reproduction et la compatibilité des arrangements institutionnels hérités du passé. À la lumière de ce constat, on peut avancer l’hypothèse que la crise actuelle marque d’ores et déjà une date clé dans l’histoire moderne. Il se pourrait qu’une approche par le conflit des temporalités se révèle fructueuse, en vue d’une meilleure intégration des sciences sociales autour d’un objet commun. Cet ambitieux programme de recherche pourrait être l’occasion d’une nouvelle alliance entre économistes et historiens. S’il est rendu difficile par la spécialisation et le relèvement contemporain des barrières disciplinaires, liés au processus de professionnalisation au sein des sciences sociales contemporaines, ce projet sur le traitement du temps apparaît sans nul doute riche de potentialités.

Universalismo crítica ao bbb

Universalismo crítica ao bbb L’universalisme des Lumières : débats et controverses - Antoine Lilti https://www.youtube.com/watch?v=FvWRx_Ny4dY (L'universalisme des Lumières : un héritage contesté, par Antoine Lilti) https://www.youtube.com/watch?v=afF3pGBy8DM

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Borrell o jardim de

Borrell o jardim de Serguei Lavrov e o jardim de Borrell por Wevergton Brito Publicado 27/04/2023 12:09 | Editado 27/04/2023 14:33 Ficou tristemente famoso, nas relações internacionais, o discurso de outubro de 2022, do Alto Representante da União Europeia para Política Externa, Josep Borrell, na Academia Diplomática da UE. Falando para os futuros diplomatas do velho continente, Borrel ensinou: “Sim, a Europa é um jardim. Tudo funciona. […] A maior parte do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim”, disse Borrell. A fala foi lembrada pelo ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, nesta terça-feira (25), em coletiva de imprensa no Conselho de Segurança da ONU. “Todas essas reivindicações sobre, como disse Borrell, o ‘jardim’, cercado de selva, além de ser racismo e nazismo, refletem uma filosofia prejudicial a toda a humanidade, incluindo os pregadores dessa filosofia“. Lavrov expressou que os esforços do Ocidente para impor obstáculos à formação de um mundo multipolar só podem retardar esse processo, mas não por muito tempo, declarou. O chefe da diplomacia russa reiterou que o “mundo multipolar está sendo formado objetivamente” e, embora ainda não se saiba como será configurado, disse acreditar que “é melhor contar com a Carta da ONU, e com um Conselho de Segurança reformado”. A humanidade deve muita coisa à Europa, mas no belo jardim de Borrell (e Lavrov não deixou de lembrar este aspecto) frutificaram o colonialismo, o racismo, o fascismo e o nazismo, que até hoje, quais ervas daninhas, infestam jardins alheios ao redor do mundo e, repetindo velhas táticas com novas roupagens, tentam impedir que, como desejava Mao Tse Tung, “flores de todos os tipos desabrochem“.