sábado, 10 de junho de 2023

palestra cle 10-06-23- 12-27

Palestra cle 10-06-23-12-27 y7 "Aristóteles observa que o homem é um ser que necessita de coisas e dos outros, sendo, por isso, um ser carente e imperfeito, buscando a comunidade para alcançar a completude. E a partir disso, ele deduz que o homem é naturalmente político. Além disso, para Aristóteles, quem vive fora da comunidade organizada (cidade ou polis) ou é um ser degradado ou um ser sobre-humano (divino). Conforme Aristóteles, o conceito de cidadão varia de acordo com o tipo de governo. Isso porque o cidadão é aquele que participa ativamente da elaboração e execução das leis, sendo estas elaboradas pelo rei (monarquia), por poucos (oligarquia) ou por todos os cidadãos livres (democracia). No entanto, nem todos os que moram na cidade são cidadãos. Aristóteles diferencia habitante de cidadão, pois aqueles apenas moram na cidade, não participam dela, enquanto que esses dos que realmente pensam sobre ela tem o direito de deliberar e votar as leis que conservam e salvam o Estado. Dito de outro modo, cidadão é aquele que tem o poder executivo, legislativo e judiciário. Os velhos e as crianças não são realmente cidadãos. Os velhos pela idade estão isentos de qualquer serviço e as crianças não têm idade ainda para exercer as funções cívicas. Seguindo a etiologia estabelecida em sua metafísica, Aristóteles concebe, também, as quatro causas que determinam uma comunidade. Estas são agrupamentos de homens unidos por um fim comum, relacionando-se pela amizade e justiça, isto é, por um vínculo afetivo. São características da comunidade: - Causa Material: Lares, vilarejos, etc. É a partir de onde nasce a cidade;" Veja mais sobre "O conceito de animal político em Aristóteles" em: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/o-conceito-animal-politico-aristoteles.htm Epitáfio ao eurocentrismo Creio que o paradoxo de Zenão de Elea, discípulo do filósofo grego Parmênides, se presta a provocar o tema desta apresentação. Com o seu paradoxo, Zenão quer demonstrar a inexistência do movimento, do espaço, do tempo e da velocidade. Aquiles jamais alcançaria a tartaruga porque, sempre que tivesse de percorrer a metade do caminho, teria de percorrer a metade da metade e, assim, ao infinito. Trata-se, obviamente, de um reducionismo, uma falácia, que consiste em seccionar a continuidade da distância, que caracteriza a espacialidade do movimento, em secções, ou fragmento descontínuos, o que contraria a noção de movimento, que se assume como continuo. O caráter falaz do paradoxo esconde-se numa operação que consiste em reduzir o todo pela parte, a continuidade pela descontinuidade, a realidade pela lógica. A lógica opera com conceitos, e os conceitos, por definição formal, são descontínuos, discretos, nas suas delimitações como diferentes de outros conceitos, assim como os entes de razão que habitam no plano da abstração. A lógica não se aplica ao todo da existência, que aqui chamo de realidade, pois a realidade não é lógica, embora não seja ilógica. A realidade é não lógica, faz entender Aristóteles na filosofia pragmática. Na pragmática, que é a ciência do comportamento, em contraposição à sua filosofia teorética, que é o estudo do ser, Aristóteles reúne a política, a ética e a estética, que em comum se caracterizam por não realizarem juízes apodíticos, verdades certeiras, como as que se obtêm mediante o recurso a um silogismo a partir de suas premissas. Aristóteles, o primeiro no Ocidente a formular o princípio da identidade e não contradição observa que a sua aplicação não é universal. O princípio não se aplica à pragmática, que é o campo do comportamento, devendo a sua aplicação limitar-se ao estudo especulativo do ser enquanto tal, ou das abstrações. Na existência, que é comportamento, nada é, nada é enquanto tal. Considerado como marco da modernidade científica, Galileu procede do mesmo modo de Zenão, no sentido de que reduz a continuidade do movimento à descontinuidade, ao formular a sua equação da velocidade uniformemente acelerada. Em desatenção para com o caráter limitado do campo em que se aplica a lógica, Galileu, levado pela abstração que a caracteriza, juntamente com a matemática, atribui aplicação universal à lógica, fazendo da matemática a linguagem com a qual Deus teria escrito as leis do Universo; e isso corresponde a elevar a realidade ao plano da abstração e nesse plano permanecer, uma operação reducionista, uma operação linear. A operação consistiu em converter o problema concreto da medida da velocidade do movimento, do qual se ocupavam os medievais, no problema abstrato da velocidade instantânea, velocidade que não caracteriza nenhum movimento ¬efetivo, uma vez que não percorre nenhum espaço em tempo algum. A velocidade de Galileu já não é um atributo do movimento, como era para os medievais, mas a de um corpo num determinado instante em um ddeterminado ponto geométrico. (Observe-se que o instante, por definição, não tem densidade temporal alguma, nem dimensão espacial alguma). O caráter instantâneo atribuído à velocidade, em vez de resolver o problema concreto e intuitivo dos medievais, mudou a natureza do problema, tornando-o abstrato e racional. A velocidade instantânea já não diz respeito ao movimento uniformemente acelerado do corpo, mas à posição geométrica do corpo num determinado instante, posição que exclui o problema concreto do movimento, ao reduzi-lo a uma sucessão descontínua de instantes em posições geométricas abstratamente adjacentes. O instante, além de não corresponder à experiência do tempo real presente, não mantém vínculo real algum com o passado do movimento nem com o seu futuro (Stengers, I. 1989). O movimento, ao ser submetido ao seu fracionamento artificial, dá origem a entes de razão, a conceitos, mediante a operação abstrativa da lógica e da matemática. Mas a realidade não se reduz à lógica e à matemática; a realidade não se reduz a conceitos, pois a realidade compreende tudo, e nesse tudo também se encontram a lógica e a matemática, que se se legitimam e se exercitam no plano da abstração, que é parte da realidade. O paradoxo de Zenão é somente paradoxal por confundir a abstração com a realidade. A visão de mundo ocidental, que assume na sua conotação negativa o nome de eurocentrismo enfatiza a linearidade, em detrimento da complexidade não quantitativa. (Logo à frente explicito o que entendo por complexidade). Trata-se de um particularismo, uma ideologia e uma prática teórica e política, que consistem em assumir-se uma parte pelo todo. Particularismo, pois essa visão de mundo não contempla a sabedoria chinesa e, por extensão, a sabedoria oriental, nem é a visão de mundo dos ameríndios, dos africanos e dos asiáticos, na sua ancestralidade. Essa é a visão do Sul-Global, em contraste com o Norte-Global. O Sul-Global, graças aos valores remanescentes de sua ancestralidade, de caráter comunitário, rejeita e resiste aos valores liberais (individualismo) do eurocentrismo, com a sua democracia liberal, a sua justiça comutativa, que restringe a função do Estado a operar a garantia dos contratos. Democracia liberal (cidadão, função); democracia comunitária (sujeito e seus papeis). Ocorre que a visão de mundo eurocentrista, que se seguiu à visão colonialista, impregnou com a suas instituições apenas a superfície da realidade do Sul-Global, restritas que são ao âmbito das instituições de interesse direito e indireto de uma parte de seu todo, as elites extrativistas. É por opção ideológica e política de se limitar a uma visão de mundo linear, que o eurocentrismo construiu e impôs a sua visão de mundo ao mundo ocidental. Como ideologia que é, essa visão de mundo revela-se incapaz de lidar ao mesmo tempo com a dimensão da continuidade e a dimensão da descontinuidade. É disso que se vai falar aqui, ante a evidência de que a distância entre Ulisses e a tartaruga é continua como movimento, na realidade da semântica, graças à qual se dota de valor, ou sentido, a existência; é descontinua como abstração do movimento, na fragmentação que Zenão faz do movimento, ao identificar indevidamente abstração com realidade. Ou seja, Zenão parte da realidade do percurso real da tartaruga e do percurso real de Ulisses, para elevá-la ao plano abstrato da lógica. Um salto logicamente inconsistente da realidade para a abstração. Observe-se que é do plano da abstração que Zenão retira o seu paradoxo, uma atividade que mais se presta ao exercício da criação de paradoxos do que a enxergar a realidade como constituída de ambas as dimensões. De um construtor de paradoxos, como Zenão, se diria o que se diria dos fabricantes de palavras: tomadas as palavras ao pé da letra, eles não sobreviveriam. É na ambiguidade contextual do significado da palavra que se instala no diálogo, ou seja, entre ambas as dimensões, que se inscreve o exercício da democracia de Aristóteles, na Pólis, feita de igualdade e diferença, condição na qual todos se reconhecem como iguais uns outros, no sentido de que se reconhecem igualmente diferentes uns dos outros. Ou seja, a democracia é diálogo, e o diálogo somente é possível na ambiguidade entre uma visão e outra da mesma realidade, opiniões diferentes e irredutíveis na sua diferença, uma atividade recorrente e infinda, diferentemente da obtenção artificial do consenso, que encerraria o diálogo, transferindo o dizer da palavra à autoridade racional da lógica e à matemática, que só entendem de certezas indiscutíveis e irrefutáveis. O diálogo consiste em que cada interlocutor (nó) no seu comportamento na rede social, busca construir a sua própria certeza, para o que se torna necessário e indispensável cotejá-la com a busca da certeza de outro interlocutor (nó), para se assegurar de que não delira, que é o modo como procede o ditador no isolamento de seu solipsismo. Essa é a lição que se extrai do encerramento de um diálogo entre Alice, do país das maravilhas, e Humpty Dumpty. Encontrando-se e desacordo quanto ao sentido contextual de uma palavra, Alice se vê silenciada abruptamente pelo interlocutor, que diz: “É assim, porque quem decide sou eu”. Em sua Política e em sua ética, objetos de estudo que Aristóteles desenvolve na sua filosofia pragmática (de práxis), ao lado da estética, não se propõe a busca da certeza assegurada pelo silogismo – e ele o diz explicitamente. Como dimensões da reflexão dialogal (dialética), o que ele busca na sua pragmática é a “eudaimonia” a busca da excelência, que não se encerra, na sua construção recorrente. Com a sua filosofia pragmática, Aristóteles retoma o princípio mítico da cosmogonia da Grécia Antiga, que se entende como o devir (transformação, metamorfose), da realidade do cosmos, em estado de mudança, a realidade que passa a ser assumida sob a autonomia da reflexão humana. Isso vem a ser precisamente o que se entende na atualidade por rede social. O que digo não é uma metáfora; é precisamente isto: Em seu comportamento, o ser humano, no seu modo de proceder é idêntico ao modo como se comportam os interlocutores na rede. Peço paciência, pois creio que é preciso transitar por algumas mediações para se chegar lá, aonde me proponho chegar, ou seja, até que se desvaneça a surpresa, se houver, para debulhar a ideia em sua inteira compreensão, se possível, de se aproximar a ideia de rede com a pragmática de Aristóteles, pois se trata de uma ideia intuitiva, que é tão fácil como difícil de se apreender à primeira vista. Antes, porém, uma afirmação cáustica. A modernidade impregnou a visão de mundo ocidental de uma vaidade e arrogância de que ela é o ponto alfa da reflexão humana, relegando a cultura do passado a um depositório de ideias superadas, dentro do qual se retiram eventualmente uma ou outra aproveitável. Incluo nesse passado também um passado recente, pois, em minhas aulas de sociologia, no curso de filosofia na USP, nunca ouvi de que foi o francês Gabriel Tarde quem reintroduziu o tema da rede social nos estudos acadêmicos. Em seu livro L’opinion et la foule” (1900), Tarde equipara a rede social ao falatório, ao mexerico, à opinião pública, à qual atribui o poder de estabilizar e desestabilizar o modo como os governantes governam. Antes de adentrar a ideia de complexidade, que caracteriza a rede, exponho a metodologia assumida nesta apresentação, em confronto com outras metodologias. Como instrumentos operatórios, selecionei apenas dois, assim como poderia ter selecionado outros dois, não, porém mais que isso, e vou justifica por que. Escolhi as dimensões da continuidade e descontinuidade, por me parecerem como um divisor de águas entre a Política do Conceito (estrutura, sistema) e a Política do Sujeito (rede), por entender que já com duas dimensões me vejo num entranço de vice-versa, como descreve as touceiras de espinhos Guimarães Rosa, na paisagem seca, rústica e agressiva da Caatinga, ou Agreste. E na leitura de historiadores da filosofia e da ciência e de textos filosóficos, dei-me conta de que quanto mais se multiplicam os instrumentos heurísticos, mediante categorias e subcategorias, classes e subclasses, níveis, divisões, hierarquias, ordenações, escaninhos, nichos, sequências, mais distante se está de apreendê-la. Eu poderia acrescentar a essa fieira de instrumentos heurísticos também os neologismos, introduzidos no linguajar acadêmico no debate a propósito da complexidade, que já teria alcançado coisa de trinta definições diferentes. Estou convencido que se poderia chegar a um número ainda maior, se se prosseguir no mesmo entendimento do que é a complexidade com base no que entendem por isso Norbert Wiener e Ross Ashby, nomes associados à criação da cibernética, uma complexidade e as suas variantes, todas de caráter quantitativo, ou linear. Aprendi-o na leitura de Wiener, que define a complexidade pelo número de componentes. E, como a complexidade quantitativa colide com toda reflexão de caráter pragmático, terreno no qual ocorre também a qualidade, observo que na busca de uma solução logográfica para o problema, retenho a impressão de que a história da reflexão humana se teria desviado por algum atalho, à falta de um dicionário, que contivesse todas as palavras capazes de descrever com precisão o caminho. É assim que, frustrado, busco a explicação adicional na proliferação de neologismos, cuja fecundidade concorre somente com a dos coelhos. Reconheço que tenho aprendido, para meu dissabor, mas também para estímulo à clarividência, que me vejo apresentado a pelo menos um neologismo a cada duas apresentação e debate no CLE. Por exemplo, já aprendi o que é hiperdialética, hiperexistência, hiperestático, hipersensível, entre outros hipers, de modo que no ambiente temático da auto-organização, sinto-me introduzido a uma hiper-realidade e a uma hipervida acadêmica, como parte de minha hiperexistência, ou trransumanidade, na qual se haverá de construir um dicionário inteiramente novo, Quem sabe, uma existência superlativa, superlativa que ela de fato o seria, não fossem as bases lineares sobre as quais se constroem as abstrações dos hipers, É no contexto dos hipers que me cai bem a ideia de hipermercado, a me deixar na dúvida se será preciso encompridar ainda mais as prateleiras dos neologismos ou se devo recorrer ao mesmo talento logográfico, que faz a grandeza do yang e yin, modelo e paradigma da reflexão. . Em rejeição visceral a esse modo hiper de se apreender a realidade, que consiste em fazer da abstração um espelho da realidade, estão os filósofos que mais me atraem a atenção – digo, os que se valem do menor número possível de instrumentos heurísticos para desenhar o seu mundo do devir, o mundo como comportamento, um estado de mudança. Assim, por exemplo, Heráclito recorre a apenas duas metáforas, a do fogo e a da água, à semelhança da sabedoria chinesa, com o yang e ing, ou com a sua metáfora da água e do dragão, responsáveis pela forma e pela desforma de como enxergam a realidade como comportamento; Aristóteles produziu uma das mais suculentas filosofias com o ser e o se comportar, a sua filosofia teorética e a sua filosofia pragmática. A Espinosa, bastaram o igual e o diferente, para não incorrer no risco de alçar voo rumo à abstração, de nela se prender e não poder mais baixar à realidade, na qual transcorre a existência. Hegel deteve-se nas interações do eu com o tu, do igual e diferente de Heráclito, de Aristóteles e de Espinosa. Marx procede do mesmo modo, no que diz respeito à economia de recursos heurísticos, ao embeber o eu e tu nas suas interações sociais, reais e concretas, ou seja, no seu contexto (tempo, local, circunstâncias e referência), à diferença de Hegel, que enfatiza a interface social do contexto, porém limitado à interface de sua idealidade. Disso não se depreende que esses pensadores estejam propondo uma simplificação na apreensão da realidade, pois a realidade não se simplifica. Pode-se, isto sim, facilitar o acesso à realidade, que é complexa. Chega-se à ideia de complexidade, deixando-se de lado o todo linear da análise/síntese, da estrutura e função, ou sistema, para se adentrar o todo complexo, de partes indivisíveis, de que é a sua expressão a singularidade, única e irrepetível, o interlocutor (nó) na rede social. Na visão de Espinosa, de Hegel e de Marx, cujo pensamento se opõem ao dualismo, complexo é o todo constituído de todos os todos. Ou seja, na filosofia geométrica de Espinosa o ponto é ponto de todos os pontos. Se se trata de existência, e não de abstrações, nenhum sujeito, nenhuma pessoa, nenhuma história, nenhuma situação, nenhum contexto é parte funcional de um todo linear. Voltarei a isso. Dentre os paradigmas de vasto emprego com vistas a simplificar a realidade – digo, com vistas a remover a complexidade da realidade, dela retirando o seu caráter intrinsecamente conflitivo -, é o da estrutura e função, ou sistema, conhecido como funcionalista. Assim como procede Zenão, o paradigma funcionalista fragmenta o continuum da realidade, ao convertê-lo numa estrutura, por definição descontínua, e lhe entrega a operação a uma função. Isso é o que me leva a discorrer sobre a diferença entre função e papel. E o farei em breves termos, pois somente a noção de papel poderia consumir um livro inteiro. O papel não é uma substância, não se encaixa em modelos ou paradigmas, o papel não funciona tanto quanto não se possa afirmar que o comportamento funcione, pois, o comportamento não é uma máquina. É o modo como se comporta uma pessoa (contexto) na interação com seus papeis, de pai, motorista ou médica. Como diria Espinosa, é o advérbio de modo que comanda a existência, não o substantivo, o sujeito gramatical dos predicados unívocos, das causas e dos efeitos e o que disso segue. Ao me enxergar à janela de seu quarto como comportamento, Espinosa diria: Lá vai o Nivaldando, como a dizer: “Esse é o modo (advérbio de modo) como vejo passar sob minha janela Nivaldo, neste meio dia de inverno, de luz solar evanescente” e acrescentaria as demais circunstâncias que caracterizariam o contexto de Espinosa, ao me integrar no seu contexto, e Nivaldando integrado ao contexto de Espinosa, na condição de que ambos se vejam integrados num mesmo contexto. Refiro-me à ideia corrente de que mediante a operação da análise, que decompõe um todo, um objeto, um fenômeno, em suas partes, em seus componentes, seja possível recompor o seu todo. A decomposição pela análise levaria à reconstrução do todo, que seria a síntese. O lugar comum consiste em considerar que essa é a única maneira de se conceber o todo e as suas partes. Esse é o pressuposto, de caráter reducionista, ou linear. O que se vai considerar aqui é que existe um outro modo de se enxergar o todo e as suas partes, que não é reducionista, não é linear, mas complexo. É o todo e as partes comportamentais da complexidade, ou seja, um todo não constituído de partes lineares, como funções. O todo, que se assume aqui é o todo da qualidade, o todo de todos os todos, ou o ponto de todos os pontos da filosofia adverbial, ou geométrica, de Espinosa, o todo da singularidade única e irrepetível, em contraposição, ao todo da quantidade. O todo comportamental da qualidade não se reparte; constitui-se, não de funções, mas de papeis, que se distinguem uns dos outros no contexto de seu titular, o sujeito, mas não se separam. O todo a que me refiro é o interlocutor em seu diálogo, o nó da rede social, que é o nó de todos os nós em diálogo na rede. A rede social é o ponto geométrico de todos os pontos, singularidades interagindo no diálogo com singularidades, e a rede, como singularidade, um ponto integrando todos os pontos; no limite de sua extensão, um diálogo universal entre singularidades. Os papeis são modos de comportamento institucionalizado pelos estereótipos, de caráter social, que permitem à pessoa, na mudança contextual dos estereótipos, de enxergar a si mesma e os outros a ela, diferentemente, na diversidade de seus comportamentos estereotípicos, como professora, operário, dentista ou faxineiro, permanecendo ao mesmo tempo ela mesma e enquanto muda. No contexto da rede, os papeis são interfaces de um mesmo sujeito, uma mesma singularidade, na variação dos modos como interage com outras interfaces. Aqui, há um aspecto relevante a observar. O papel não é uma cópia, um duplo de seu estereótipo. Assim, o comportamento do sujeito em seu papel de funcionário público, pode desempenhar esse papel de modos diferentes, correspondentes, no entanto, ao mesmo estereótipo. Atrás do guichê de atendimento, está o funcionário solícito, ou desatento, prestativo ou ríspido, formal ou informal, o funcionário nas suas várias modalidades de comportamento de seu papel. Como o papel pressupõe um sujeito que os desempenhe, é a referência de seu contexto que impede que se confundam um com outro, na sua diversidade comportamental, ao mesmo tempo em que se integrem todos no sujeito, que é a expressão da unidade que ele é, o sujeito na diversidade do modo como se comporta. Atenção aqui para o caráter diverso e uno do comportamento do sujeito. O sujeito do comportamento não é lógico, assim como o passo no andar do comportamento não é idêntico a outro passo. O sujeito é o nó complexo da rede a dialogar como interface de outro nó, na variação do repertório de seus respectivos papéis, que mudam em atenção à sincronia com a outra interface, de modo que no diálogo cada interlocutor possa acolher a referência do contexto do outro na sua própria referência contextual. Criam-se assim três contextos: o contexto de um nó, o contexto de outro e o contexto de ambos os nós. E aqui se chega à noção de complexidade. Cada papel é dotado de três eixos ortogonais, que se combinam livremente cada um com os demais. Os eixos são (1) axiomática, que diz respeito às regras de seu comportamento, que variam de papel para papel; (2) os recursos (infraestrutura material e o sujeito que a manipula); e (3) a atividade (função), ou a ação do sujeito no desempenho de seu papel. Tome-se o exemplo da construção de uma casa. Do eixo da axiomática, constarão a planta da casa e a descrição normativa dos equipamentos e materiais com os quais a casa será construída; as normas de edificação edilícia, exaradas por prefeitura ou estado etc); recursos (material e equipamentos de construção, e habilidade e experiência das pessoas envolvidas no projeto da construção da casa); na atividade: os profissionais que irão levantar a casa. Agora, o exemplo da mobilidade de cada eixo, na sua integração com os demais eixos. A axiomática, que consta no primeiro caso, da construção da casa, pode deslocar-se para o eixo da atividade (função), no contexto em que o eixo da atividade vai consistir da elaboração da planta da casa por um engenheiro, ou arquiteto. Nesse caso, que é o novo contexto da elaboração da planta da casa, o eixo da axiomática será ocupado pelas normas que regulam a profissão do engenheiro e do arquiteto e outras normas às quais obedecem a sua atividade) e do eixo dos recursos constarão a infraestrutura material requerida para a elaboração da planta e a habilidade do engenheiro e do arquiteto e de seus colaboradores. E assim por diante. A seguir, se poderia fazer um exercício semelhante do contexto do consumidor, que vai integrar-se ao contexto anterior; e assim à integração de todos os contextos que terão como referência o comportamento do ser humano no habitat terrestre. Isso é a complexidade, ou processo, ou contexto. k. Dei o exemplo de como se integram os três eixos, na variação de sua mudança de contexto para contexto. Pode imaginar-se a complexidade do contexto da construção civil, que integra desde o contexto da extração da matéria-prima, o contexto de sua transformação industrial, o contexto das máquinas que se destinam à transformação industrial, o contexto do transporte, de sua distribuição no atacado, o contexto de sua distribuição no varejo, o contexto do consumidor. Cada contexto integrando cada eixo diferentemente A noção de papel implica que o sujeito possa distanciar-se mentalmente de um papel para poder assumir um outro, assim como faz a pessoa do ator, ao mudar de papel no teatro. A propósito, na etimologia da pessoa, “persona” em latim, vai encontrar-se a máscara. A mudança de um papel para outro, sem que para isso se tenha de mudar necessariamente de pessoa, dá-se graças à noção de pessoa como comportamento ao qual ou à qual se associam as noções de interação (transformação mútua), mediação e autorrecorrência, ou autopoiese, que consiste em se fazer e refazer a si mesmo, mediante o comportamento, ou seja, de modo recorrente, à diferença de um realejo que já não pudesse renovar o seu repertório com música nova. Diferentemente do papel, as partes do todo funcional – a estrutura, o sistema - prescindem do sujeito do comportamento e, por decorrência, prescindem da autorrecorrência, das interações e da mediação. As partes funcionais se ligam, se conectam, se relacionam, se acoplam, mas não interagem (mudança qualitativa recíproca de ambos os papeis, mediante o sujeito). Não haveria razão, por implicação, da autorrecorrência, que consiste na volta da consciência do sujeito sobre si mesmo. As funções se tocam por contato; os papeis interagem uns com os outros, mediante contágio, e isso é o que caracteriza o comportamento do sujeito, na mediação com seus papeis. Ou seja, no desempenho de seus papeis, o sujeito se transforma a si mesmo, transformação que resulta das interações de uns papeis com os outros, mantendo-se como um outro de si mesmo, o mesmo sujeito enquanto muda. Já as funções não mudam. As funções se movimentam por trajetórias paralelas, previamente estabelecidas na sua estrutura, ou no seu sistema, ainda que sejam maquiadas pela estatística, ainda que estocásticas. Nada disso haverá de reproduzir o comportamento, que é o agir in acto, no ato da ação, assim como é o Nivaldando. Nenhum paradigma, nenhum modelo, nenhuma estrutura, nenhum sistema vai prender o Nivaldando numa gaiola conceitual, pois quem constrói a teoria dos conjuntos é o sujeito, que, não sendo um “objeto” complexo, não está autorizado a se juntar aos objetos lineares que compõem o conjunto. As funções são, por definição, unívocas, paralelas, contíguas, justapostas, sequenciais. O todo das partes funcionais é o todo da máquina, que tem na literatura infantil a metáfora do boneco Pinóquio, feito de pedaços de madeira, que somente se converte em sujeito após o sopro de vida, o sopro do comportamento, que se infunde no boneco por intervenção da Fada Azul. Assim também ocorre com a res extensa de Descartes. Mas seria preciso acentuar com igual ênfase que o próprio Descartes, em suas Meditações, corrige a sua metáfora da res extensa, ao dizer que a máquina produz máquinas, mas não cria máquinas. Quem as cria é a res cogitans. Mas disso se esqueceram gerações de cientistas e filósofos, presos ao modelo mecanicista, que caracteriza em sua grande parte a história da epistemologia nos séculos XIX e XX, na teoria da evolução de Charles Darwin, no positivismo de Augusto Comte, na sociologia do francês Émile Durkheim, dentre os chefes de escola e, adentra o século XX com o seu sucessor estadunidense Talcott Parsons, assim como todo o pensamento funcionalista e suas variantes, como em Richard Merton (1903 – 19l0) conhecido como renovador da sociologia, com a sua teoria das funções latentes; no behaviorismo, de Ivan Pavlov (1849-1936) e suas variantes, com as atenuações da escola do estímulo e resposta, assim como ocorre em Konrad Lorenz (1903 – 1989), Prêmio Nobel 1973, de fisiologia e medicina, por seus estudos sobre o comportamento animal (etologia); na retomada do behaviorismo, com a sociobiologia e o socioambientalismo de Edward O. Wilson; todos alinhados, com maior ou menor ênfase, aos da teoria maquinal do cérebro, como as vejo, que induzem a supor que o algoritmo estaria inscrito na massa encefálica. Não importa de qual modalidade de mecanicismo se fale, o que os caracteriza no conjunto é assumir a função no lugar do papel, a estrutura no lugar do sujeito, que os desempenha, o sistema no lugar do processo. A esse modo mecanicista de conceber a realidade, de partes contíguas a separar a natureza de seu meio, que não interagem, ou seja, que não mudam reciprocamente, qualitativamente, do modo como se teria como resultado um novo meio e uma nova natureza, por assim dizer, como resultado de sua transformação recíproca Nas antípodas do modo funcional de se conceber meio e natureza, têm-se nas suas antípodas Jacob von Uexzküll, na etologia, com o seu “!umwelt”, mundo próprio; na antropologia e na etologia, com Edward Hall; na epistemologia, na filosofia e na medicina, com Georges Canguilhem, em especial no contexto da terapia, a cujo propósito ele enfatiza que “para o ser humano a norma é a capacidade de mudar de norma”. Está aí numa sentença lapidar a expressão do que espero poder explicitar ao longo desta fala. Em linguagem não acadêmica, é dizer que nada é definitivo, tudo é revogável. De modo que o pessimismo obsessivo seria uma patologia da mente, provocado por alguma contrariedade, ou por uma unha encravada. Do mesmo modo como Cangjuilhem teorizam os estadunidenses Richard Levins e Richard Lewontin, na biologia do desenvolvimento. Tanto me parecem mais aderentes à realidade do comportamento as ideias da dupla estadunidense, que me apresso em adiantá-las, na expectativa de que facilitem a compreensão do que virá pela frente. O eixo do debate é o mesmo: função versus papel, sistema versus processo ou comportamento, conceito versus sujeito, estrutura versus contexto. A essas duplas de oposições acrescento, sobrepondo às primeiras, em correspondência equivalente, o conflito (comportamento) na geopolítica entre o Norte-Sul e o Sul Global, que consiste na oposição entre o eurocentrismo, associado à soberania razão, e o que resta da ancestralidade do Sul-Global, que se caracteriza por não dissociar da razão os demais valores axiológicos, quais sejam, a intuição, a ética, a estética e os sentimentos, valores distintos, porém, não separáveis. Faço uma pequena introdução sobre o contexto em que ocorrem as reflexões de Levins e Lewontin. Em nome da função, rejeita-se a interação, isso porque com a interação se comprometeria a objetividade. Ou seja, se se admitisse a possibilidade de ocorrência de interações entre as partes, estas mudariam qualitativamente como resultado de suas interações, comprometendo-se a expectativa normativa da correspondência especular, que deveriam manter com os respectivos estereótipos. Com vistas a preservar a sua suposta objetividade, os estereótipos já não poderiam manter-se fora do alcance da mudança cultural, que induz à sua mudança e à mudança no desempenho de seus respectivos papeis, de acordo com a variação do contexto. Assim, por exemplo, Pedro, sujeito, não poderia sentir-se mudado no seu comportamento no papel de pai, como resultado da interação desse papel com o papel de tenista e como resultado do conjunto das interações na sociedade, em novo contexto, deixando de adicionar os valores resultantes da exponenciação qualitativa do comportamento de uns sobre outros. Cada papel, ao modo de uma função, teria de entender-se consigo mesmo, um solipsista, um indivíduo liberal e a sua meritocracia, um homem à imagem desenhada por Margareth Thatcher (“There is no such thing as socieety), um ser humano que cresceria puxando para cima os próprios cabelos, ou como o realejo (conceito) que tivesse de rodar a manivela por conta própria, sem poder inserir no seu repertório música nova (o sujeito, compositor), o que aborreceria e afugentaria os passantes na praça. Na hipótese de que se pudesse fazê-lo, poderiam ocorrer interações do realejo com música nova e, assim, não se teriam asseguradas a regularidade, a ordem, a repetição, a possibilidade de fragmentação funcional dos papéis e a sua manipulação com vistas ao seu controle. Os papéis, na condição de funções, perderiam a sua identidade lógica e gramatical. Mais: do resultado da interação entre os papéis-funções surgiriam efeitos colaterais imprevisíveis, que comprometeriam o ideal da certeza, da remoção do risco e do controle sobre a realidade. Como admitir que o mundo possa acolher novidades, se a obra da Criação e do Capital está concluída? Eis, então, que surge Charles Darwin com a sua teoria da evolução e seleção das espécies, a perturbar, supostamente, a versão bíblica da Criação. Parecia uma revolução; na verdade, não o era na expectativa do próprio Darwin, ainda preso ao mecanismo do relógio, na evolução dos saltos descontínuos do ponteiro. A teoria sugere que a seleção, atuante sobre os organismos no meio, dá origem a novas espécies. Sempre mecanicamente, porém, sem interação entre o organismo e os seus meios interno e externo. Em Darwin, que parece espelhar a sua ciência numa ontologia providencial, o organismo é o objeto, e não o sujeito das forças evolucionárias. A variação individual entre os organismos emerge como consequência mecânica das forças internas, que seriam autossuficientes ou independentes do organismo, e das forças externas. Em Darwin, se o meio muda, não é em razão de sua interação com os organismos, e sim como consequência de eventos cosmológicos, geológicos, climáticos etc. O darwinismo clássico faz do organismo a emergência mágica resultante da justaposição mecânica entre forças internas e forças externas. Da contiguidade entre dois determinismos, emergiria magicamente o acaso. Consegue-se, assim, afastar o autêntico caráter das interações, identificando-as com relações entre funções, em contraste com o que advoga Jacob von Uexküll, que assume organismo e meio como partes integrantes e indissociáveis de um mesmo contexto. Com efeito, o meio não preexiste ao organismo: não é uma caixa de correio que estivesse à espera de que nela seja depositada uma nova carta; não é um galho inacessível da árvore à espera de que a girafa encompride o seu pescoço, ou vice-versa. O organismo não é um mero medium pelo qual as forças externas do meio, ao se confrontarem com as suas forças internas, produziriam a mudança. O meio faz-se meio na sua interação com o organismo; e este faz-se organismo na sua interação com o meio. O organismo influencia a sua própria evolução, ao agir ao mesmo tempo como objeto da seleção e como sujeito criador das condições dessa seleção. O organismo participa da criação de seu próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento é precondição para a transição ao estado seguinte. Isso não quer dizer que o estado anterior é determinante do estado seguinte, pois o estado seguinte depende do modo como o organismo intervém criativamente no presente em resposta ao seu estado anterior. É dizer, num outro campo do argumento, que o objeto a ser posto à prova pelo experimento de que participa -, de modo autônomo, não, porém, autossuficiente — na construção do aparato que vai testá-lo, “danificando” o padrão de objetividade do aparato, requerido pelo modelo da física, da ciência das partes extra partes. Ao não reconhecer a interação, suprime-se a singularidade, razão inicial da curiosidade do evolucionista, que, no entanto, deixa de enxergá-la. No darwinismo clássico, a galinha seria a transição, metodologicamente inexistente, entre a evolução de um ovo e a seleção de outro ovo. Pedro seria o palco, metodologicamente ausente, no qual se desenrola o drama existencial entre seus papéis, em disputa pela conquista de sua preferência. A função separa o palco da plateia. O papel, mediado pelo sujeito, rompe o cordão funcional entre o palco e a plateia e convoca todos a se integrarem na festa. A propósito, o professor de filosofia na USP, Roberto Salinas Fortes, meu contemporâneo, defendeu no doutorado tese sobre Rousseau, na qual enfatiza a diferença metafórica entre o espetáculo e a festa na obra do filósofo de Genebra. A rejeição metodológica (e ética) da interação apresenta-se nos modelos funcionalistas como ausente. Admiti-la implicaria reconhecer o caráter contextual da singularidade, a sua dimensão de qualidade, a sua diversidade na unidade, a impossibilidade de se controlar a realidade. Com efeito, se cada singularidade, ou contexto, operar de acordo com a sua própria referência e com o seu próprio sistema de regras, e com a sua própria infraestrutura (nesta incluídos não apenas as máquinas, mas também o sujeito que as manipula) não será possível acioná-la pelo lado de fora, mediante aplicação de uma regra universal, abstrata, tal como a lei do equilíbrio, válida, por definição, somente em situações não contextuais (comportamentais), ou seja, nunca. Na história das ciências são constantes dois escolhos, ambos perigosos pelo seu reducionismo: (1) a ilusão dos modelo de ciência autossuficientes, que se crêm capazes de avançar somente mediante critérios e razões de ordem interna, já que os fatores de ordem externa teriam um papel subordinado; e (2) a ilusão simétrica de uma produção científica desprovida de autonomia, cuja evolução seria explicável mecanicamente por fatores sociais e econômicos, já que os fatores internos teriam um papel subordinado. Como exemplo do primeiro caso, tem-se a obra de Thomas Kuhn; como exemplo do segundo, a de J. D. Bernal. Os objetos da pesquisa científica estariam proibidos de interagir (transformação recíproca, de caráter qualitativo), para evitar que se confundam com provérbios populares. Em que pese, porém, o empenho dos modelos da pesquisa científica em se dissociar da opinião, é verdade para todos que as abóboras se acomodam no balanço do transporte. Com frequência, as interações são destituídas como força explicativa pela noção de causalidade, ou padrões de probabilidades. Surgem os determinismos e suas versões camufladas no seu viés experimentalista. Assim, têm-se o determinismo geográfico, psíquico, racial, social, energético, econômico etc., e os padrões de probabilidades da teoria das propensões, de Karl Popper — todos igualmente crentes na hierarquização dos papéis, dos padrões e das funções. Creio que nada terá compreendido de Hegel e de Marx quem divisar no seu pensamento alguma hierarquia funcional, ou padrões, pois ambos enxergam o contexto de seu objeto de estudo como comportamento, do sujeito, como o todo espinosiano, o ponto de todos os pontos, o contexto equivalente ao do interlocutor na rede social, em que pese a sua linguagem imergir, eventualmente, no cientificismo mecanicista de sua época. Em Arnold Toynbee, historiador inglês, reconhecido por sua alentada erudição, as civilizações minerais subordinam-se, na hierarquia dos valores, às civilizações espirituais, que seriam o seu acabamento. Uma história da humanidade contada na versão funcionalista, das etapas, das sequências sucessivas, assim como teria pensado o Criador, se tivesse sido investido das propriedades da lógica e da matemática. Todos os determinismos são finalistas. Há sempre neles um caminho reto aberto pela racionalidade endógena, uma trajetória, que conduz a um paraíso, terrestre ou celeste. Eles retiram a nulidade de sua força explicativa de uma ontologia providencialista, ou de uma petição de princípio, que recorre ao que ocorreu antes para explicar o que vem depois e ao que vem depois para explicar o que veio antes. Como explicar que a árvore pudesse encontrar-se dividida em estratos, antes que os animais dela se aproximassem para ocupar como nichos os seus respectivos lugares? Probabilidades de que seriam esses padrões, se se desconhece o resultado das interações entre os bichos, no exercício recorrente do redesenho dos lugares que ocupam? Qual é a garantia de que vão manter-se em seus respectivos estratos? A vida parou? Criar padrões de probabilidades não seria um exercício tão inútil como profetizar sobre o passado? Como prever o próximo estado de equilíbrio do ciclista, se esse estado depende de sua resposta, em termos de correção do desequilíbrio, ao efeito desestabilizador da última pedalada do passado, e se a sua própria correção altera no presente o passado de sua expectativa em relação ao equilíbrio no futuro? Como oferecer uma solução linear para um problema autorrecorrente, se ela depende tanto do que o ciclista pretende do futuro quanto o seu futuro depende da resposta que dê ao passado no tempo presente de seu movimento? Quantos conjuntos de interações diferentes podem resultar das interações entre os papéis de uma mesma pessoa? Antes de se concluir a conta, o efeito colateral de uma nova interação entre os papéis sobre os conjuntos não terá alterado a composição, as propriedades e o número de conjuntos? Sim, reconhece-se utilidade nos padrões. Sabendo-se, com Pascal, que o nariz de Cleópatra, longo um quarto mais de polegada, poderia ter mudado o curso da história, é compreensível que se busquem nas ciências políticas padrões de narizes de comprimento supostamente estabilizador. Mas ocorre tanto na política quanto em outra parte que o problema somente é real e não abstrato quando surge um novo nariz que foge ao padrão. É o que se passa em todos os casos de interesse, ora em razão da mudança no comprimento do nariz, ora no modo de apreciá-lo. O padrão tem, pois, a sua serventia circunscrita à possibilidade de a partir dele enxergar-se a diferença entre a abstração que se construiu e a realidade que se tem à frente. Mas não se pode esquecer de que é a realidade comportamental, que se está buscando enxergar melhor, e não o padrão, que aqui comparece somente para confirmar a sua inadequação contextual. O que importa é a diferença in acto do comportamento, que o padrão desconhece. A ocorrência da singularidade contextual resulta de um efeito colateral, uma quebra de simetria; e o entrelaçamento de singularidades, por sua vez, não dá origem a sequências de causa e efeito. Pode saber-se que um prego se solte da ferradura, que a ferradura se solte da pata do cavalo, que se percam o cavalo e o cavaleiro... e nem assim será possível saber se as tropas de Napoleão na Rússia vão conseguir vencer o general inverno. Para se enxergar melhor o problema, é preciso reconhecer ao mesmo tempo qual é a referência do contexto do cavaleiro e qual é o contexto da guerra e da paz, no qual o contexto do cavaleiro se insere e com ele interage — um contexto que não se repete, diferentemente do padrão, que confunde a história, ou a realidade comportamental, com um realejo. O recurso à ciência experimental e à estatística, que estabelece os padrões, é de fato de grande valia para mostrar que essas ferramentas, isoladamente, não resolvem o problema. Claude Bernard (1813 - 1878), introdutor da ciência experimental na fisiologia e na medicina, começou por analisar no laboratório a estrutura e os órgãos, em seus fragmentos experimentais, e descrever as suas funções, decompondo-as em parâmetros, de modo a poder medi-las sempre que possível. Para isso, transferiu o organismo de seu contexto comportamental para a bancada do laboratório (sistema, estrutura). A partir de então, a diferença entre o estado normal da urina e o seu estado patológico (diabetes) passa a ser medido pelo critério da quantidade. O critério de normalidade passa a ser o organismo estatisticamente normal. Segundo esse critério, o que a medicina deve reconhecer no paciente são distribuições estatísticas de frequências e desvios de padrões, embora reconheça ao mesmo tempo que está diante de uma improbabilidade: um organismo singular, único como a evolução, a seleção, o amor e a reprodução sexual o quiseram. Por inferência estatística, extrai-se magicamente a qualidade (o estado de saúde) da quantidade, ao preço de fazer valer a média, descartando-se as pequenas variações em torno dela. Foi por consequência dessa via que se removeram do espaço da saúde e da doença, o sujeito, a pessoa do médico e a pessoa do paciente, duas improbabilidades, intratáveis pela ciência experimental. Em seu lugar, instalam-se o tratado de medicina e a abstração genérica da doença, na condição de face e contra face da normatividade quantitativa. E, assim, a pessoa do médico e a pessoa do paciente somente poderiam reconhecer-se no consultório como uma abstração frente à outra. É para isso que chama atenção o sociólogo polonês Zygmut Bauman, que adverte para o risco de se remover a contingência dos caminhos que o comportamento percorre, para em seu lugar construir trajetórias pré-definidas, em nome de uma certeza indiscutível, de se chegar ao destino na hora programada, sem imprevisto, na viagem funcionalista. Ora, aí é que está o risco de se entregar totalmente o diagnóstico aos cuidados da máquina, na sua versão determinista, ou probabilística, dispensando-se em ambos os casos, o ócio criativo do médico. Lembre-se que a terapia, como arte da cura, surgiu no Ocidente com Hipócrates. Desconfiado metodologicamente das certezas apodíticas de Platão, e orientado pela cosmologia do devir do cosmos, em estado de mudança (qualitativa), Hipócrates, à vista do estado do paciente, convida-o a ser seu parceiro na terapia, de modo que, assim, se pudessem associar na cura a subjetividade e a objetividade de ambos, paciente e médico, no comportamento interativo de um e outro. Isso é também o que pretende significar a sabedoria popular russa na forma de provérbio: “Duas cabeças valem mais do que uma, mesmo que uma seja de repolho”. Coincidentemente, Aristóteles era filho do médico do imperador Alexandre o Grande, e quem sabe se tenha inspirado na prática médica do pai, na elaboração de sua filosofia pragmática, a mesma que viria chamar-se posteriormente filosofia da rede social, a filosofia do todo de como se comporta cada interlocutor, que é inteiro no contexto de si mesmo (nó) na sua interação na rede com outro contexto (nó), portador, respectivamente, de suas próprias propriedades comportamentais, no que diz respeito à sua própria axiomática, à sus própria atividade e aos seus próprios recursos (infraestrutura material e o próprio sujeito). A epistemologia médica de Hipócrates perdurou por mais de um milênio, ao ser retomada por Averróes, judeu nascido em Córdoba, tradutor de Aristóteles e considerado como o mais erudito intelectual do Medievo. Às vezes, ao me recordar da terapia de Hipócrates e Averróes, me acomete a tentação descabida de escrever uma história do regresso, de tanto me enfarei das histórias do progresso, digo, da história linear, da escadaria determinista, ou funcionalista, dos valores axiológicos, das causas e dos efeitos, que das premissas conduzem à conclusão do silogismo. Uma história do regresso, que me simplificaria o trabalho, ao optar pela trajetória mais rápida, supostamente mais segura e sem risco, numa viagem lógica, conduzida por uma petição de princípio. Então, se iria redescobrir nesse equívoco metodológico, com o prazer da novidade, o valor da subjetividade, a contingência do sujeito de Hipócrates e Averróes, de se reconhecer na rede comportamental do ser humano, não como indivíduo lógico e aritmético, idêntico a si mesmo, funcional, das abstrações, assim como é a humanidade, a espécie humana, o progresso, a felicidade, além de todos os ismos, que se escondem, envergonhados do embuste, no vazio de seus universalismos. Pois o que interessa é saber do ser humano associado à sua circunstância, na sua singularidade única e irrepetível, em seu contexto, no dizer de Ortega y Gasset, singularidade existencial, em seu comportamento. Se assim é, por que não fazer do contexto a unidade da pesquisa científica? E aqui, nessa ausência metodológica, já se poderia antecipar aonde se pretende chegar com o epitáfio do eurocentrismo, ao corte das asas da Política do Conceito, em proveito da Política do Sujeito, a rede do ponto de todos os pontos, como protagonista de sua própria história, que não se confunde com o automatismo da máquina, como já o advertira Descartes, no limiar da modernidade. E o que dizer do automatismo unipolar da máquina imperial? O fato é que ambos os tipos de máquina carecem de credenciais que as legitimem. O propósito de se buscar a garantia absoluta do diagnóstico na máquina (conceito) corresponderia a se colonizar a existência mediante a luz ofuscante da objetividade, para dela remover o lusco fusco da ambiguidade, estado no qual se encontra embebida, para se instalar em seu lugar uma suposta transparência da existência, ninho onde choca o desencanto, cada vez mais prolífico no mundo funcional da mesmidade recorremnte. Não seria no instante, desprovido de densidade temporal, entre o que já não é e o que não é ainda, nesse estado de ambiguidade em que mais ocorrem a criatividade e o prazer de viver, como expressão da liberdade? Se disso não se pode estar certo, com certeza é menos incerto ainda que a liberdade e a criatividade possam ser encontradas à entrada ou à saída de um silogismo, sem demérito para com a lógica e a matemática. Ao que parece, faltaria erudição livresca na atualidade para se atribuir a uma nova moda do existencialismo descabelado o mesmo estado de desconforto doentio que vitimou a moda intelectual dos parisienses do pós-guerra. O peso acabrunhante e difuso que oprimiria a todos, já não os parisienses -, adviria, segundo reconhece o sociólogo Zygmunt Bauman, ao evocar a reflexão de muitos, do horror à indeterminação. Em que lugar recôndito se teria refugiado a estranheza? Por que escavar ainda mais o sulco linear que separa uns dos outros? Por que a separação territorial e funcional cada vez mais acentuada? Por que a insistência repetitiva na busca de padrões? E depois de tudo padronizado, para aonde se irá refugiar, provavelmente proscrita, a novidade, a espontaneidade, o ócio, o imprevisto, a criatividade, o efeito colateral? Vai fechar-se a rede social das interações contextuais (comportamentais) reciprocamente exponenciais? Vão eliminar-se os efeitos colaterais da criatividade, que não se sabe previamente de que parte do diálogo despontarão, como estímulo à ocorrência de uma nova ideia? Então, por que se terá colocado à entrada, no imput da máquina cibernética, o filtro que seleciona, da eventualidade do ambiente de onde brota a nova ideia, somente o que é mensurável, como discreto, pela racionalidade estatística? Quem teria autoridade para subordinar os demais valores axiológicos a uma razão soberana, como estabelece Emmanuel Kant? Ainda reluto em reconhecer Kant em trajes de um Prometeu, que do Olimpo tivesse roubado seletivamente somente a racionalidade desacompanhada, para com ela refazer o mundo funcional à sua imagem e semelhança. A se conferir legitimidade à exclusividade de um único valor axiológico, a razão, em detrimento dos demais valores, em princípio, equivalentes, como pensaram os filósofos gregos, o que se fará, então, da intuição, da ética, da estética, dos sentimentos? Desapontado ante o desterro e a solidão luterana da razão pura, Goethe, de veia estética, reage em sua obra a tamanho desperdício dos valores axiológicos na sua inteireza, lançando mão da intuição; e levado pela imaginação que a intuição suscita, elabora a lenda do aprendiz de feiticeiro, que, na ausência do mestre, entrega as máquinas aos cuidados do próprio automatismo da lógica das inferências, desencadeando o caos na realidade da oficina funcionalista. Insisto: Por que a máquina cibernética de processar problemas fecha à sua entrada, no seu imput, às ocorrências fortuitas, provenientes do ambiente, ainda não filtradas pela estatística dos valores discretos? Isso corresponde à pretensão de se controlar a realidade mediante o isolamento da contingência, o que me parece assemelhar-se à arrematada ilusão e arrogância de Ícaro, na tentativa de arrebatar os céus com as suas asas de cera. Ilusão equivalente à da pretensão cibernética, que se julgaria capaz de descartar antecipadamente todos os bilhetes da loteria que não serão premiados, antes que se realize o sorteio? Quer dar-se por destituído, como sem valor, o valor da espontaneidade no processo de criação? Nesse caso, removam-se as páginas de história da filosofia que falam de Demócrito, filósofo que advogava a inseparabilidade da necessidade e do acaso, seguro que estava ele de que a realidade, em seu contexto comportamental, não é lógica, embora não seja ilógica. A narrativa sobre a criação de seu mundo sob a soberania da razão, Kant a sintetiza em seu ensaio “O que é o iluminismo”. De sua leitura pode depreender-se que a espécie humana, transcorridos trinta mil anos do avento do homo sapiens, desperta de seu sonho dogmático para a razão soberana na cabeça de Kant, em sua sala de estudo, na sua casa de Koenisberg, na Prússia da segunda metade do século XVIII, para nela fincar raízes. E por que Kant não empresta contingência à ocorrência contextual da razão soberana, que, assim como a contingência da cabeça de Kant, da sala de estudo de Kant, no endereço da casa e da rua de Kant, por ocasião de um de seus passeios peripatéticos, todo dia à mesma hora, pelas ruas da cidade, localizada numa Prússia contingente, todos resultados de ocorrências contingentes? Por que remover a sua razão soberana da contingência (pragmática, diriam John Dewey e William James e demais pragmáticos) que diz atribuir ao mundo de seus a priori? E de lá vai a sua soberania proclamar-se como universal, no projeto de Kant de estender o modelo de ciência de Newton a todas as ciências, incluídas as ciências humanas, criando-se, assim, a ciência universal descontingenciada, de acordo com a necessidade lógica que a teria conduzido até ali. Não seria eu primeiro, longe disso, que tenha flagrado aí, nessa viagem do progresso necessário, uma volta ao redor do mundo do sem sair de casa. Como explicar a transposição, logicamente inconsistente, do salto da linearidade para a complexidade, do salto contingente do despertar do sonho dogmático na cabeça de Kant para a necessidade imperativa da espécie humana de chegar ao paraíso científico da liberdade? Ou seria o ser humano uma identidade aritmética? Leio com frequência crescente uma paródia cínica do pensamento de Kant, cujo enredo diz que a sua filosofia é uma teologia; que ele instala a sua coisa em si nos céus da ranscendência eurocentrista, inacessível aos mortais comuns, porém acessível somente à soberania de sua razão e a todos os que orbitam no raio de seu alcance, na extensão neocolonial do Norte-Global, ao mesmo tempo que rejeitada pela ancestralidade benfazeja do Sul-Global. Por que benfazeja? Porque o Norte-Global insiste em jogar o jogo do mata-mata, por motivo imperativo da função unívoca, em contraste com o Sul-Global que ensaia jogar o jogo do ganha-ganha, no qual ainda jogam na sua rejeição e resistência, todos os valores axiológicos – sentimentos, intuição, ética, estética e razão -, um jogo, que por isso mesmo consiste numa interação de suas partes complexas, assim como ocorre no todo de cada um dos interlocutores na rede social, cujos ganhos se medem no caráter exponencial da parceria de uns países com outros países. Ouço no youtube com esperança e entusiasmo a quase totalidade dos estadistas da África negra, a reatualizarem o discurso independentista de Patrice Lumumba, Sékou Touré e Thomas Sankara, sem chauvinismo a dizer “A África para os africanos” Na narrativa de Kant, o que enxergo é a espécie humana desperta do sonho dogmático, orientada pelos postulados da física, que ele assume como comum à sua ciência universal, a rumar na sua trajetória lógica em direção à sua estação final na paz perpétua, sem errar o alvo, movida que é a espécie humana pela causalidade mecânica, um dos postulados criados por Newton em sua física para manipular abstrações, objetos inertes. Atenho-me à ideia do ponto de todos os pontos, de que ninguém é esboço de um projeto futuro, a realizar-se, em migalhas, ao longo do percurso da flecha do tempo. É-se tudo a um só tempo, numa temporalidade sem flecha. Existir é permanecer no que se é, diferentemente, como sugere Espinosa. O ponto é o ponto de todos os pontos. Nessa altura da narrativa, me detenho na questão do porquê do entusiasmo de Kant pela noção de progresso. A indagação diz respeito ao seguinte: Como explicar o progresso da razão, já desperta de seu sonho dogmático, se a razão kantiana se apresenta como universal, intemporal, inespacial, ou seja, uma razão desencarnada, alheia, por definição, à história, uma razão que se sobrepõe a todo contexto, por cima do tempo, do espaço, blindada contra as circunstâncias, os imprevistos, as contingências, os eventuais desvios de sua trajetória lógica e geométrica? Presumo que haverá objeções à minha leitura de Kant, e a faço por motivo da problemática do eurocentrismo, ideologia posta em causa aqui, que faz da razão soberana Kant o seu epicentro. Tive, de grata memória, Osvaldo Porchat como meu professor de história da filosofia antiga na USP, que levou os seus alunos a praticar o método estrutural na leitura de Aristóteles. Como é sabido, o método consiste em separar no conjunto da obra o que é retórica e o que são os pilares de seu edifício filosófico. Conheço as deficiências do método, apontadas posteriormente pelo próprio Porchat. Isso não me dispensa de ir em busca dos pilares da reflexão de Kant, deixando de lado os seus arabescos de “ilusionista” , no dizer do filósofo e professor Gérard Lebrun, especialista na leitura de Kant (....). Eu os encontrei na sua Analítica Transcendental, na qual Kant assume como postulados na sua gnosiologia a universalidade, a uniformidade, a homogeneidade, a regularidade e a causalidade mecânica, postulados emprestados à física que Newton aplica às coisas inertes, as abstrações, os mesmos que Kant pretende, com a sua razão soberana, emprestar ao ser humano na sua realidade contingente, ou contextual. Atento a esses postulados, observo que a razão kantiana opera como função a espécie humana, ao invés de ser o ser humano a conduzir a razão, na condição de ser o titular de suas faculdades. Seria a razão, como a lei, que ordena, e não é o sujeito, como ser humano, que faz a lei. Polêmica idêntica deu-se entre Platão e Aristóteles. Platão, o filósofo das ideias eternas, diz que a lei está acima dos homens, e Aristóteles retruca dizendo que é o ser humano quem faz a lei, o ser humano como governante, que, por não ser sempre o mesmo, será outro a cuidar de fazer a lei, de modo que a lei não seria de caráter eterno, mas contingente, ou contextual. Desautoriza-se desse modo, por implicação e consequência, que na moral, deixa de fazer sentido o imperativo categórico e o dever ser, outra função que se detecta na reflexão kantiana. E ouso, então, aventar a hipótese que a filosofia de Kant é funcional à ideologia do eurocentrismo. Segundo a hipótese, a razão do eurocentrismo, que tem o seu epicentro ideológico, epistemológico, cultural e político na reflexão de Kant, é a lei a ditar as regras ao sujeito, e não é o sujeito, como ser humano, senhor de sua iniciativa, quem faz lei. No eurocemtrismo e em Kant a função da razão, na condição de inventora contingente da superioridade necessária, é quem comanda e ordena ao sujeito. A história da espécie humana de Kant, que desperta de seu sonho dogmático em Koenisberg, onde o filósofo entroniza a superioridade excludente da razão, trinta mil anos depois da ocorrência antropológica do homo sapiens, sugere, na ideologia eurocentrista do trabalho, que o homo sapiens tenha sido apresentado como sinônimo do homo faber. E a indagação que se faria ao eurocentrismo é por que apresentar em sequência temporal e hierárquica, os valores axiológicos, da posição mais alta para a mais baixa? Estariam em posição inferior o homo ludens ou o homo ridens, por exemplo? E aqui me socorre a imaginação antropológica a provocar uma hipótese plausível, à luz da ideia do todo da complexidade, ou o todo do ponto como origem de todos os pontos. Nosso ancestral poderia ter saído de seu rancho, como de costume, para se divertir com uma briga de galos e, ao ver naquele dia uma galinha imprevidente a ciscar na arena da rinha, ter tido a ideia de prendê-la numa gaiola, para comer-lhe os ovos. O homo sapiens saiu para se entreter no seu papel de homo ludens e achou entretenimento no trabalho como homo faber. Quanto à ciência experimental de Claude Bernard: Não é a função da matemática, como instrumento adequado no estudo da doença, que se está questionando. É o modo como a quantidade, ao atribuir-se a si mesma o mais elevado coeficiente de valor, interage no contexto da saúde, como interface (papel) supostamente autossuficiente, para se impor às demais. A normatividade quantitativa dos modelos de ciência, que se apresentam como neutra em relação aos valores humanos, irá impor-se como valor axiológico soberano ao mundo biológico, à economia e à cultura humana em toda a sua extensão. Posteriormente a Claude Bernard, conquistará outros quinhões à existência, como a mente, mediante o teste de Q. I., instrumento de controle sobre as pessoas, agora finalmente desacreditado. Como explicar ao longo da história e da epistemologia das ciências a obsessão pela redundância? Por que remover a singularidade, ou a existência em contexto, do espaço em que a racionalidade insiste em se exercer sozinha, dissociada da intuição, da ética, da estética e dos sentimentos? Como explicar a obsessão pela montagem de um espetáculo de papéis que não interagem entre si, funcionais, permutáveis, que se repetem na sua monotonia, para o desprazer e desconforto da plateia, ou seja, a pessoa que os desempenha? Pascal ousou formular uma resposta: “Queremos viver na ideia dos outros, numa vida imaginária, e nos esforçamos para nos darmos essa impressão. Trabalhamos para embelezar e conservar esse ser imaginário, e nos esquecemos do verdadeiro”. Machado de Assis ridicularizou a racionalidade onisciente e a hierarquização dos papéis (ou processos), na figura caricata do médico cientista Simão Bacamarte, em seu conto “O alienista”. Contrapôs a Bacamarte um outro personagem, Santos, da novela “Esaú e Jacó”, que era ao mesmo tempo barão e banqueiro, dois papéis que se opunham entre si no período da transição do Império para a República. Enquanto Bacamarte, sujeito de seu papel-função, implanta o terror científico na vila de Itaguaí, acabando ele próprio no hospício que criara, Santos, que se deixa levar livremente pelas interações de seus papéis, entrega-se à sua realidade em mudança, de que é testemunha metafórica a transição do regime político. Na verdade, com a eleição dos determinismos, ou das probabilidades, da hierarquização dos papéis e da rejeição às interações, o que se busca ilusoriamente é fazer a realidade girar em torno de um centro humano de controle, a pessoa em torno do papel e o papel em torno de seu estereótipo, assim como a um cão preso à corrente. Carlitos escarneceu do ditador que sonha em jogar com o mundo a seus pés, como uma bola de futebol. “Será que o que estimula o ser humano a buscar o poder é a fraqueza a que o poder o reduz?” —, se pergunta Raoul Vaneigem. “O tirano irrita-se diante dos deveres a que a própria submissão de seu povo o submete. A consagração divina de sua autoridade sobre os homens ele o paga com uma humilhação permanente diante de Deus”. A trajetória do poder hierárquico tem início com a rejeição de si mesmo, na autoconfissão de impotência — a rendição do papel ao seu estereótipo, ao se converter em função. É dizer igualmente que, em vez de se confiar à unidade contextual da pessoa — origem de todos os valores, que nela convivem de forma indissociável — confia-se à racionalidade impessoal, isoladamente, a decisão de legitimar os caminhos que se devem percorrer e agenciar as opções de escolha que ela própria faz, na ausência dos demais valores. A partir de então, é o mundo que deve estar de acordo comigo, eu que já não sou ninguém, para que eu esteja de acordo com ele, que foi convertido em abstração alucinada. A “determinação em última instância”, que vejo à frente na condução da realidade, é a camisa-de-força que impus a ela. Sinto que o mundo cheira mal, sem me dar conta de que a sujeira está no meu bigode. Felizmente, dispomos da faculdade de estabelecer uma distância entre o papel e nós mesmos, faculdade inacessível à função. Distância que é ”uma zona lúdica, um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes à ordenação do espetáculo” (Vaneigem, R. 1967), promovido pelos estereótipos, ou espantalhos. Ninguém se perde num papel a ponto de se deixar absorver pelo estereótipo, ainda que nisso se empenhe. Existe sempre algo de humano na desumanidade. O vampiro não consegue chupar a última gota. Mesmo subjugada, a vontade de viver conserva consigo um potencial de rebeldia, sempre pronta a despertar para restabelecê-la. “O sabujo fiel que se identifica com o seu senhor pode também lhe cortar o pescoço na hora oportuna”, prossegue Vaneigem. Assim, a existência — a matéria-prima com que se constroem espantalhos — está também pronta para removê-los. O nome próprio, que no aristocrata incrustava-se no brasão, enferrujou no esquecimento; os sinapismos e cataplasmas, recursos da medicina moderna no século XIX, estiolaram-se no ridículo; a causalidade é tema de comédia; a previsibilidade retornou às bolas de cristal. Assim, o risco e a incerteza do modelo do sistema estão de volta à visão de processo, a lembrar o caráter contextual da existência, a espontaneidade, a criatividade, o desejo de viver. Renuncie-se ao controle da realidade, e se estará de posse do sentimento da incompletude, que é a experiência da existência no modo exponencial. O que é o controle sobre a realidade? Trata-se de uma alucinação, que faz da contrafação da liberdade escravidão. A pretexto de infundir o sentimento de poder, submete o papel à função, a realidade à abstração: já que não se pode fazer frente a um leão de verdade, exibe-se o domínio e o controle sobre um leão de papel. Interessado em melhor enxergá-la, o sujeito não controla a sua realidade; responde, com prazer e receio, aos estímulos vindos de seus papéis, livres no jogo de suas interações; não sabe da ordem em que chegariam estímulos, nem quais, embora os pressinta, uma vez que eles resultam como um efeito colateral da infinidade de interações com seus papéis, destes com seus respectivos estereótipos e destes com a fábrica de estereótipos, que é a sociedade, na sua dimensão cultural, e desta com as demais sociedades e culturas, enlaces de comprimento de raio crescente que abrangem o universo ao mesmo tempo que não se desprendem da singularidade de sua pessoa. Eis o todo de todos os todos. Sim, os papéis são necessários e fascinantes. É preciso respeitar-lhes as regras e, mais ainda, entregar-se ao jogo de criar regras, construir novos papéis, lúdicos, porém. Cada papel descortina um mundo distinto a explorar, de acordo com as suas regra (a sua norma), os recursos (infraestrutura material e a sua pessoa) de que se dispõe, e a sua atividade. Três eixos ortogonais, que se combinam, interagindo livremente – isso é o que vem a ser contexto. Não se pode ser cozinheiro na marcenaria nem mergulhador no samba, ainda que a interação entre as suas respectivas regras contribua para o melhor desempenho de cada papel. Quanto mais papéis se desempenhar, mais mundos se fruirão, mundos de regras conflitivas entre si, porém solidárias na pessoa que os desempenha. Atente também para o seguinte: como todos os papéis têm sede na pessoa, com ela constituindo a sua unidade conflitiva e solidária, eles interagem entre si, influenciando-se mutuamente na ampliação da visão de mundo da pessoa, de modo exponencial. Ou seja, o marceneiro, mediante a sua interação com os demais papéis, influencia o urbanista, que influencia o pai, que influencia o poeta, que influencia o astronauta, que influencia o marceneiro, que influencia o astronauta, que influencia o mergulhador, que influencia o poeta, que influencia o desenhista... A cada vez que retorna a si do desempenho de um determinado papel, o sujeito encontra-se como que em estado novo, uma nova casa: mudou o seu modo de enxergar a si mesmo e aos demais papéis; e, ao sair de casa novamente para desempenhá-los, vai fazê-lo de modo novo, enriquecendo-se assim na ida e na volta e robustecendo a sua visão de mundo, a sua entrega ao sentimento de incompletude. Uma diferença que distingue a visão linear do princípio de identidade da visão da incompletude, ou de processo, está no destino que se dá ao conflito. Na visão linear, o conflito é removido, para assegurar a ilusão de controle, ou equilíbrio. Na visão da incompletude, o conflito é valorizado e estimulado, na condição de gatilho que dispara a mudança, para a fruição de novos de modos de se absorver o mundo na entrega a ele, sem outro controle que não o exercido pela realidade, uma fada pressurosa que nos conduz ao encantamento. A exigência artificial de remoção de um conflito inclusivo, entre um papel e outro traz consigo a rejeição à possibilidade de interações, pois são estas que desafiam a identidade petrificada dos papéis, tornando-os permeáveis, lúdicos, metamórficos, evolutivos. Para satisfazê-la é necessário um papel com as características de uma função, impermeável, sempre idêntica a si mesma na sua couraça e capaz de estabelecer somente relações funcionais, não sujeitas à interação. Em razão disso, para lidar com um “objeto” como Fernando, a ciência funcionalista e “equilibrada” precisa fragmentá-lo, isolando-o de seus papéis e estes um do outro, convertendo-os em espantalhos e a ele também. Já na visão de processo, ou contextual, o conflito entre os papéis, instalado no habitat da criatividade, é considerado fundamental. Enxergar a realidade é perceber nela uma diferença – um conflito. A diferença, que emerge como estímulo no contexto, resulta como um efeito colateral da interação entre os papéis. Se cada um dos papéis se mantiver na posição de equilíbrio, equidistante dos demais — como o advogam as leis do mercado —, a diferença não emergirá: não ocorrerá coisa alguma. É entregando-se intensamente ao papel de pai que Pedro se enxergará mais enriquecido no papel de trabalhador, agora em estado de desequilíbrio, em relação ao estado desequilibrado anterior. Quanto mais se adere a um papel, desequilibrando o sujeito, melhor se enxerga o outro — e esse resultado é fruto da explicitação que o conflito entre um e outro propicia. Quanto mais se promove o conflito, mais Pedro é solidário na integração de seus papeis consigo mesmo, mais está em condições de tirar melhor proveito da oposição que os caracteriza por se ter exercitado nos extremos de cada um dos polos dessa oposição. (Esse é o princípio da dualidade). Entenda-se: a experiência de se aderir intensamente a um papel é enriquecedora sob a condição de que aquele que o desempenha seja capaz de tomar distância dele com igual intensidade. O ator desempenha tanto melhor o seu papel quanto mais distante e quanto mais próximo dele se coloca. Aprecia-se tanto mais a comida quanto mais se estimula o apetite. Ama-se tanto mais quanto mais o amante é capaz de se distanciar de si mesmo e do objeto de seu amor. Indaga-se: se o que se busca é enxergar melhor a realidade, não seria conveniente convocar para um mutirão Carlitos, Machado de Assis, o cozinheiro e todos os poetas, os artistas e os cientistas, para se poder enxergar melhor a diferença na igualdade, o acaso na necessidade? Ou, em se tratando de valores axiológicos, por que hierarquiza-los, como procede Kant com a sua razão soberana, ao invés de se convocar a todos eles, a intuição, os sentimentos, a ética, a estética, além da razão, ´para que se possam reconnhcer a todos como seres humanos, ao invés de espantalhos, coisas, abstrações? ,, CAPÍTULO 5 A larva e a borboleta A comunicação entre os papéis, mediante a pessoa que os desempenha, atesta que há uma continuidade entre eles, por mais que se diferenciem entre si nos seus respectivos estereótipos e em razão disso. A continuidade expressa-se na realidade unitária da pessoa titular dos papéis; em Fernando, que é sempre o mesmo enquanto muda; na comunidade, que é sempre a mesma enquanto muda em razão da mudança de seus membros, e assim por diante. Com isso quer dizer-se que não se pode estabelecer um biombo entre os processos (papéis) que se reconhecem na natureza, na sociedade e na cultura, tais como o econômico, o tecnológico, o científico, o jurídico, o biológico, o geológico, o artístico, o psicológico, etc. São distintos — o que significa dizer que operam de acordo com as suas próprias regras —; são indissociáveis porém, o que significa dizer que operam de acordo com o conjunto das regras do contexto no qual interagem e se legitimam uns aos outros. A larva mantém-se como larva em razão das regras que a definem; e a borboleta procede do mesmo modo. Conjuntos de regras conflitantes entre si, que se submetem a um terceiro conjunto de regras – o seu ciclo de vida, ou metamorfose –, que se opõe a ambos e não se opõe ao mesmo tempo. Uma unidade conflitiva e solidária, ao mesmo tempo. Entre esses processos não há relação de causalidade ou de hierarquia. Como saber, no caráter unitário de uma determinada pessoa, ou contexto, se é o seu papel de médico que mais influencia o seu papel de tenista, que o seu papel de pai, que o seu papel de sogro? Todos carregam consigo um coeficiente de valor variável que não se pode desprezar, ou deixá-los de fora do contexto que interessa observar — e, nessa medida, são igualmente titulares de seu lugar no contexto, uma vez que não se pode predizer o efeito de um processo sobre outro, já que o seu poder de interferir não se exerce diretamente sobre o outro, e sim indiretamente como efeito de sua interação com os demais. O efeito colateral que daí resulta é fruto dessa interação. Esta não encontra expressão adequada na construção de cadeias causais lineares, não-lineares, matriciais ou outras. Não é possível saber se é o expoente ou se é a base de uma determinada interface do contexto que interage com as demais interfaces. É o jeito de o papel de , que vou fazer um entre parênteses nesta narrativa, para me deter na dupla da biologia do desenvolvimento. Isso me leva por impaciência de Os papeis que o sujeito desempenha no seu comportamento correspondem, cada um e diversamente, ao seu estereótipo. Os papeis consistem de partes que, mediante o sujeito, que, como afirmei, interagem umas com as outras. O estereótipo é um conceito, uma ideia, ou modelo de imagem atribuída às pessoas ou grupos, com frequência de modo preconceituoso. O estereótipo muda, sim, mas como efeito colateral das mudanças que ocorrem na sociedade, como um todo cultural. Mas, descolado do sujeito e da cultura, que os criam, como pessoa e ser de cultura, e não como se indivíduo e sociedade, o sujeito, reduzido à noção de indivíduo, uma unidade indiferenciada, um estereótipo, esvaziado de seu conteúdo diferencial, é alçado à constelação das abstrações, como cidadão, uma função na sua referência ao Estado, uma abstração de que lhe são correlatas as noções de função, de estrutura e de sociedade (em contraposição à noção de cultura). A identificação de papel com função caracteriza a confusão de quem assume como idênticas a noção de processo e a noção de sistema. Na sintaxe gramatical, o conceito é o sentido que lhe é atribuído pelo sujeito, atribuição que é de sua vocação diferencial, e não é o conceito, que se assumiria no lugar do sujeito, como uma função a operar a mente humana. Assim procede o filósofo Emmanuel Kant, que confia à razão, no lugar da mente, do sujeito, a responsabilidade de operar como função a realidade, mas não é somente Kant. Essa é uma questão antiga, que na cultura da filosofia ocidental, vem dos tempos da Grécia Antiga. Inverte-se desse modo, identificando, o plano da abstração com a realidade, no sentido que a realidade implica tanto as abstrações, como o sujeito que as cria. A abstração não é naturalmente real; é um construto mental; ou seja, a abstração não se identifica com a realidade, o objeto com o sujeito, como como um seu duplo. A capacidade diferencial do sujeito, de construir abstrações, não é transferível a nenhum objeto, pois é o sujeito, na sua vocação diferencial, quem atribui sentido aos objetos, às abstrações, aos conceitos, às coisas. Como sujeito que cria conceitos, atribuindo sentido às coisas, às abstrações, é ele quem dispõe da liberdade de assumir os seus papeis, na variação, ou na diversidade, que se integram no sujeito que os cria, assim, como procede o sujeito ator, no desempenho dos papeis que assume no teatro. Na hipótese de que o papel possa ser assumido como função, se teria um teatro de marionetes, bonecos que se movimento no palco, acionados na sombra por quem as manipula. Todos os modelos, ou sistemas, construídos artificialmente para representar a realidade, correm o risco de assumirem a abstração no lugar da realidade, assim como ocorreria na identificação do leão de papel como leão de verdade, na metáfora à qual recorre o sociólogo francês Roland Barthes, na última página de um livro que escreveu sobre metáforas. Os papeis consistem de partes que se interagem umas às outras. Assim, os estereótipos, descolados do sujeito, que os cria, como indivíduo e ser social ao mesmo tempo, como um animal político, como o pensou, um ser naturalmente social (na sua cultura, teria dito Aristóteles, que não se dissocia da cidade (pólis), (egon politikon,. , muitas vezes de maneira preconceituosa uma noção da constelação das abstrações, e é nelas que se encontram as funções e a estrutura, dentro da qual cada função difere de outra função, como unidade operacional da estrutura, que se mantêm idênticas a si mesmas, a estrutura e as funções; ou seja, as funções movimentam-se, como o êmbolo num pistão (função) dentro da máquina (estrutura), e, assim, não mudam, pistão e máquina, a cada movimento do pistão, de movimento pré-definido na sua trajetória, acionado pelo impulso mecânico da máquina, trajetória definida pelo engenheiro, responsável pelo projeto da máquina. Os papeis consistem de partes que interagem umas com as outras, mediante o sujeito. Esse é o modo como se comporta a sociedade na sua dimensão cultural, ao se mudar a si mesma como um todo. O estereótipo é um conceito, ideia ou modelo de imagem atribuída às pessoas ou grupos sociais, muitas vezes de maneira preconceituosa. O sujeito, que se enxerga a si mesmo, no desempenho de seus papeis, não é abstrato, na condição de que é ele mesmo quem constrói as abstrações, como comportamento que é de caráter social. Aqui interessa saber que pressuposto é esse. O que vem a ser parte e o que vem o todo? A resposta vai consistir em se explicitar as modalidades de significados nos quais o seu emprego ocorre e qual seriam as implicações que adviriam de se assumir uma ou outra; sim, duas, pois duas é o que me basta; e já é muito, ou tudo, para chegar aonde me proponho chegar nesta apresentação. O sociólogo francês Alain Touraine discorre sobre ambas em seu opúsculo “Igualdade e diversidade – O sujeito democrático” (1998). A uma Touraine chama de Política do Conceito, em contraposição à outra, que chama de Política do Sujeito. No conteúdo de ambas está implicada a questão do “Epitácio do eurocentrismo”. Em uma acepção das noções de análise e síntese (ou todo) tem-se uma conotação de caráter genérico, abstrato, universalista; e na outra, uma conotação de caráter contextual, singular e único. Trata-se de uma questão que, além de ideológica e política, com sugere o título desta apresentação, incide no âmago da reflexão humana, assim como ela se apresenta em suas origens, como reflexão autônoma, desgarrada do mito, como ocorre na Grécia Antiga e mais antiga ainda na sabedoria chinesa. Vou circunscrever aqui o tema à interface que responde pela epistemologia, interface compreendida no conjunto das interfaces da realidade, que se assume como de número infinito, ou seja, de acordo com a capacidade cultural de enxergá-las, na sua diversidade. Análise e síntese são termos correlatos que se inscrevem na constelação semântica da lógica, que, juntamente com a matemática, na condição de operadora, presidem a modelos ou paradigmas científicos, como o da estrutura e função, que parece ser o mais conhecido. De acordo com esse modelo, ou sistema, em sua versão atualizada, as partes, fragmentárias, se assumem como funções, e as funções, por definição, são unívocas, paralelas, contíguas, justapostas, sequenciais, partes extra partes, a exemplo como são assumidas na Física, modelo da ciência de Newton, que empolgou Emmanuel Kant, em virtude do caráter irrefutável das demonstrações matemáticas, que fundariam a necessidade e a universalidade das leis da natureza baseadas na experiência e no cálculo. Assim, o caráter irrefutável da certeza, assim obtida, associado aos universalismos dos postulados seria o critério que Kant fez migrar foi com essa ideia na mente que Kant proOu seja, a experiência e a física indicado o caminho seguro da ciência universal, escreve Kant. O projeto nasce da constatação do caráter irrefutável das demonstrações matemáticas, que fundariam a necessidade e a universalidade das leis da natureza baseadas na experiência e no cálculo. Ou seja, a experiência e a física indicado o caminho seguro da ciência universal, escreve Kant. propôs se estendesse às ciências humanas, conformando-se, assim, o modelo universal da ciência, com base nos mesmos postulados. São eles universalidade, homogeneidade, uniformidade, regularidade e causalidade mecânica. Esses postulados inscrevem-se no plano da abstração, que a caracteriza, Newton os utilizou como adequados para lidar com objetos de sua ciência e Assim é que as partes são assumidas, como consentâneas com esses postulados. contempladas no plano da abstração, como logicamente correlativas e, nessa condição, mutuamente excludentes (eu ou ele/a). O que se vai propor aqui é que não é desse modo como se comportam as partes, ao se assumir o todo como comportamento na realidade, na existência. Atenção, estou me referindo a comportamento, ao que sentimos e percebemos como realidade no ato de senti-la e percebê-la, no tempo presente em que o comportamento transcorre, como percebido por mim e por outrem. Não me refiro ao que é a realidade, como objeto especulativo, e em nenhum momento desta apresentação estarei me referindo à realidade, ou a existência, senão como comportamento. À luz da noção de comportamento, o risco é se confundir abstração com realidade, linearidade com complexidade. A abstração é linear; a realidade, assumida como comportamento na existência, é complexa. Paciência, que me deterei nessas noções mais à frente. Em razão de seu caráter unívoco, as funções não se somam umas às outras, mas se opõem umas às outras, na sua contiguidade, como bolas de marfim numa mesa de bilhar, ação e reação, na física, de acordo com o princípio de identidade e não contradição. Um todo constituído de partes funcionais inscreve-se no caráter linear das funções. Mas o que pretende o paradigma da estrutura e função, que abriga na mesma constelação semântica as noções de análise e síntese, é fazer que a análise conduza à uma síntese que se caracterizaria, não pela soma aditiva das funções (paralelas, contíguas, unívocas e sequencias, por definição), mas pela complexidade, que se caracteriza, criticamente aqui, como um salto da quantidade à qualidade, sem que se abandone, ao mesmo tempo, a linearidade, que caracteriza as operações das funções no paradigma da estrutura e função. Trata-se de um salto lógico e semântico indevidos, e é para isso que chamo a atenção. Ou seja, salta-se da linearidade das operações abstratas da lógica, que obedecem ao princípio de identidade e não contradição de Aristóteles, à complexidade, que diz respeito à realidade, aqui entendida como comportamento, modo da existência, que não obedecem ao princípio de identidade, segundo reconhece o próprio Aristóteles, em sua filosofia da práxis, ou pragmática; e também Espinosa, com a sua filosofia adverbial dos modos, que se constituem como cerne de sua proposta filosófica. O princípio, segundo o próprio Aristóteles, presta-se à sua aplicação unicamente a uma condição abstrata, que consiste em se ter de optar de modo dicotômico, excludente, entre o sim e o não (eu ou ele/a), abstratos. Esse não é o caso da realidade do comportamento, ou modo de existência, que aqui se assume como complexo, mas não como assumem a noção de complexidade Norbert Wiener e Ross Ashby, figuras centrais na criação da cibernética. Ambos os cientistas definem o todo da complexidade como constituído de funções, restritas, por definição, ao plano abstrato da linearidade. Wiener escreve que a complexidade se reconhece pelo número de seus componentes. ( mmm). Análise e síntese são conceitos correlativos, que retiram o seu significado no plano da abstração, que é o plano no qual operam a lógica e a matemática. Esse é o plano da linearidade, das oposições dicotômicas, binárias (eu ou ele/a). No plano da abstração rege o princípio da identidade e contradição, que caracteriza oposições excludentes (eu ou ele/a). Mas a realidade não é lógica, embora não seja ilógica. A realidade, como a existência, ou comportamento, é não lógica, assim como mostra Aristóteles em sua filosofia pragmática. No âmbito da pragmática, adverte o filósofo, o princípio de identidade e não contradição não se aplica, e o princípio não tem aplicação universal, diferentemente do modo como é habitual entendê-lo. Aristóteles limita o âmbito de sua aplicação às operações da lógica e da matemática, motivo por que ele o deixa de fora de sua pragmática. Ao longo desta exposição se vai entender o porquê. O equívoco está em se tratar como de caráter linear um problema de caráter complexo (vou definir mais à frente o que entendo por complexo). O salto generalizante da análise para a síntese é mecânico, ou abstrato; corresponde à sucessão descontínua dos degraus numa escada, noção da qual se inferiria logicamente a sua continuidade. Está aí o equívoco, uma operação de inferência indevida, de caráter lógico e semântico, ao se identificar a continuidade da escada com a descontinuidade dos degraus. A escada é, sim, contínua e descontínua, mas não à luz do paradigma da estrutura e funções -, funções que se definem formalmente, como contíguas, sequenciais, paralelas – funções de cuja constelação semântica participam as noções de análise e síntese. Análise e síntese se denunciam logicamente como uma circularidade tautológica, uma repetição de princípio, que consiste em pressupor no fim o que se coloca no começo e vice-versa; ou seja, pressupõe que as partes sejam logica e semanticamente integráveis, mas elas não o são, como funções, que, repito, por definição são unívocas, lineares, paralelas sequenciais, portanto não integráveis. Isso, no plano das abstrações. Mas, como comportamento, como percebida e sentida por quem está em ato, no tempo presente, subindo ou descendo a escada, nas suas dimensões da continuidade e descontinuidade, a um só tempo, os seus degraus descontínuos integram-se na continuidade da escada na realidade do comportamento. Do que se conclui, com Aristóteles, que a realidade de subir e descer a escada, no tempo presente, no comportamento de quem sobe e desde a escada no ato de fazê-lo, ele o faz associando nesse gesto as suas dimensões da continuidade e da continuidade, como integradas nesse gesto, em seu contexto. Isso é o que vem a ser contexto, noção que se opõe ao paradigma da estrutura e função, assim como processo se opõe à noção de sistema. O sistema pode descrever o movimento, uma noção de caráter linear, não a mudança, que é uma noção de caráter complexo, que a ela se opõe. A noção do todo, ao qual se chegaria mediante análise das funções, não subsiste por se tratar de um argumento tautológico, um argumento circular semelhante ao do acoplamento da chave com a fechadura, um acoplamento que se supõe linear, mas que na realidade é complexo. Atribui-se esse acoplamento a uma operação abstrata, que consiste da pressuposição de que uma é feita para a outra. Mas essa atribuição de significado não está contemplada previamente na consideração da chave, isoladamente, nem na fechadura, considerada isoladamente. Tal implicação é de caráter linear e dela não se pode inferir, logicamente, o acoplamento da chave com a fechadura, que é de caráter complexo. É somente no plano da realidade, ou da existência assumida como comportamento, que se intui - se intui, retenha-se a intuição - o acoplamento da chave com a fechadura, não mediante a racionalidade, quando assumida isoladamente, como valor axiológico. Como comportamento, a dimensão da continuidade e a dimensão da descontinuidade se entendem no contexto da escada e seus degraus, e no da fechadura e da chave. Nesses contextos, ambas as dimensões se dão as mãos, no desentendimento de seu entendimento vice-versa, num conflito inclusivo (eu e ele/a). Na ausência do contexto, ambas se opõem uma à outra, num conflito excludente (eu ou ele/a), que implica eliminar uma dimensão em proveito da outra, no comportamento, ou da realidade da existência humana. Evoco aqui uns versos do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, que dizem: “... E embora negro e branco sempre nos opostos se vejam, a instabilidade dos dois é de igual natureza: ambos têm a limitação (se polos na aparência) glandular, de só conseguirem viver na intransigência”. (Educação pela pedra, João Cabral de Melo Neto) Se João Cabral tem razão, é preciso admitir que Aristóteles, além de filósofo, foi também poeta – e o que se defende aqui é que impossível não ser um e outro ao mesmo tempo. Vou retomar o argumento de outro modo. A água é analisada como H²0 e separada analiticamente pela eletrólise; a água, que depois de aquecida eleva-se ao estado de vapor e inversamente, resfriada, retorna ao estado líquido. O resultado é esse, mas a explicação, mediante o paradigma da análise e síntese, é equivocada. Equivocada porque se está a supor que a transformação obedece a uma sequência, que obedecer a um paralelismo lógico, assim como ocorre na geometria, ao versar sobre as implicações de duas retas que atravessam um mesmo plano; ou a um paralelismo semântico, que na sintaxe gramatical consiste em um encadeamento linear, sequencial, de ideias, assim como das premissas se chega à conclusão do silogismo na lógica formal. Ora, o fenômeno da transformação da água de seu estado líquido para o seu estado gasoso não é de caráter lógico. A mudança de estado para estado de mudança não corresponde ao avançar logicamente das premissas à conclusão de um silogismo. É certo que no plano da experiência física o estado da água converte-se no estado de vapor quando aquecida. Mas a explicação desse fenômeno pelo paradigma da análise e da síntese não corresponde ao que ocorre efetivamente na transformação, que não é linear. A mudança que se dá no caso da água é de caráter complexo. Refiro-me a uma complexidade, de fato complexa, ou seja, a uma noção de complexidade que consistiria não de partes funcionais, ou sequenciais, que se adicionem aditivamente, segundo a noção de complexidade de Norbert Wiener e Ross Ashby, como afirmei. Mas refiro-me a uma mudança qualitativa, que não se apreende mediante operações de análise e síntese. Trata-se de uma noção de mudança que consiste, por definição, em contraposição à noção de movimento, de uma mudança de contexto. E, de acordo com a noção de mudança, as propriedades dos componentes de um contexto variam de acordo com a sua referência, e é a referência que torna possível distinguir-se um contexto de outro. Assim é que é sentida, ou da percebida a escada no comportamento de quem a utiliza. Ninguém me enxerga como o Nivaldo que é, mas o Nivaldo se comportando diante de quem enxerga a mim como Nivaldo. Eu sou para mim mesmo e para outrem o Nivaldando, um comportamento em mudança para Nivaldando sentando, Nivaldando bebendo, Nivaldando dormindo. Eu sou o comportamento como advérbio de modo, sem o eu sou, que em lugar de estar na gramática, eu estando na prática. Isso é o que vem a ser a história de Pinóquio, a partir do momento em que, graças à Fada Azul, o ajuntamento de pedaços de madeira, feito pelo carpinteiro Gepeto, ganha o sopro de vida. Em que consistiu a transformação? O Pinoquiando é o que resulta dessa a transformação, que consistiu em que o sopro infundilhr-lhe vida, ao dotá-lo agora das propriedades da interação, da mediação e da autorrecorrência. Na banca da marcenaria de Gepeto, Pinóquio, ainda não o Pinoquiando, corresponde a uma metáfora da Política do conceito, em contraste com o momento em que lhe insuflado o sopro de vida, mediante as propriedades da interação e da mediação, quando o boneco Pinóquio é assumido na imaginação infantil como Pinoquiando, como metáfora da Política do Sujeito. Paciência, que vou esclarecer logo mais. Essas, as características do Pinóquio, na bancada da carpintaria de Gepeto, uma metáfora da Política do Conceito, em contraste com o Pinoquiando, que diverte as crianças, com as suas estripulias, como metáfora da Política do Sujeito. Creia-me, você, o Pinoquiando, é o que entende Espinosa com a sua filosofia dos modos adverbiais, que não difere, ou se inspira, na sabedoria chinesa, do . Assim o havia entendido Homero, na Ilíada e na Odisseia. Voltarei a isso, se houver tempo. Recorro a uma analogia para ilustrar como é possível, sem se incorrer em petição de princípio, integrar-se num mesmo contexto, que é o todo – e o seu caráter contextual é aqui decisivo – as dimensões da continuidade e as dimensões da descontinuidade. Como já ressaltei, a operação não é lógica, não importa. A realidade não é lógica, o que não quer dizer que seja ilógica; ela é não lógica. Creio que é nisso em que se constitui a sabedoria chinesa do Tao, que vejo expressa escandida nos versos do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace caminho al andar”. Ou seja, o caminho é o caminhando. Observo, de passagem, que a moral do caminhando da moral na sabedoria chinesa conflita frontalmente com a racionalidade da moral kantiana do dever ser e do imperativo categórico. Assim também é a ética na pragmática de Aristóteles, como também a política e a estética. Na analogia do realejo e música nova, tem-se uma oposição entre repetição e inovação. Uma oposição excludente, no plano da lógica, ou da abstração; uma oposição inclusiva, na realidade, ou comportamemto, não lógica. Ambas compõem a sua complexidade, que é a sua unidade feita de oposição e solidariedade. Como conceito, o realejo repete-se a si mesmo, em consonância com o princípio de identidade e não contradição; diferentemente, a noção de inovação não se repete, em virtude de não atender ao princípio de identidade e não contradição, de Aristóteles. O filósofo deixa de lado o princípio na sua teoria pragmática (práxis), que compreende a política, a ética e a estética, por entender que as atividades nelas compreendidas não se propõem e não poderiam chegar a conclusões apodíticas, perfeitas, conclusivas, pois a realidade é contínua e descontinua, a um só tempo, diferentemente da lógica e da ontologia do ser, que lida com conceitos e, assim, se assumem como descontínuas (abstrações). A filosofia pragmática caracteriza-se por enfeixar política, ética e estética como atividades que se aprendem fazendo e se fazem aprendendo. Para ilustrar a ideia, Aristóteles lança mão da analogia da prática náutica. Para a entrada do porto, o piloto de um navio de grande porte precisa apoiar-se na experiência de um prático, a pessoa responsável por adentrar o navio no porto com segurança. Nessa operação, o piloto do navio não poderia socorrer-se unicamente do mapa do porto (abstração), para saber dos estratos abaixo e na superfície da água. Além das rochas de formato irregular, o extrato não visível abaixo da superfície guarda obstáculos de todo tipo, que podem mover-se, aleatoriamente, por força do movimento do mar. Para evitar um acidente, que adviria de uma colisão contra eventuais obstáculos, recorre-se ao prático com o seu rebocador, cujo perfil profissional se caracteriza por deter um conhecimento prático, notório, circunstanciado, atualizado das águas à entrada do porto. Essa é a analogia a que Aristóteles recorre para diferenciar a sua filosofia pragmática da filosofia teorética. Na mitologia grega, a deusa Atena é quem cuida da tecné, das artes práticas. É Atena quem se coloca ao lado do piloto, de leme preso às mãos, para orientá-lo, sem interferir, na entrada da embarcação rumo ao atracadouro. Na etimologia do vocábulo leme está o termo governador. De acordo com a lógica, realejo (repetição) e música nova (inovação) são assumidas como separados em sua operação. Separados um da outra, como abstrações, o realejo já não poderia alegrar a praça, ao rodar da manivela, a executar o repertório de músicas, que o caracteriza. Assim também, não teria como prosseguir na parceria com a inovação (música nova). O mesmo ocorreria com a música nova. Isso porque o compositor musical, para criar, se inspira no repertório contido no realejo, e sem o realejo não haveria música nova, à falta de inspiração que recolhe do repertório contido no realejo. Assim, ´para o desapontamento dos passantes na praça, sem a parceria entre ambas, não haveria música nova nem realejo. Observo de passagem que a interação que caracteriza essa parceria separa o pensamento de Emmanuel Kant do pensamento de Georg Hegel. Kant é o realejo, repetitivo em seus universalismos abstratos, Hegel é música novo em interação prática com o realejo. Vou falar da questão da interação mais à frente. E agora passo a discorrer sobre o objeto desta apresentação – “Epitáfio ao eurocentrismo” Na história crítica da epistemologia, enfrenta-se o desafio de acolher, sob um mesmo teto semântico, a interação do igual com o diferente, da necessidade com o acaso, ou ainda, a interação da dimensão da continuidade com a dimensão da descontinuidade. A interação diz respeito à mediação entre dois termos que, ao se influenciarem mutuamente, mudam a si mesmos, mantendo ao mesmo tempo a sua identidade. Esse é um desafio que se circunscreve tão somente à cultura do mundo ocidental e, dentro dele, o Norte-Global, no seu contraste com o Sul-Global. É dizer que, por mais evidente que pareça, o conflito entre o igual e diferente, entre a necessidade e o acaso e entre a continuidade e a descontinuidade não é necessariamente intrínseco a essa oposição, ou, melhor, a toda oposição entre dois termos quaisquer, pois há conflito inclusivo (eu e ele/a) e há conflito excludente (eu ou ele/a). Assim como se diferencia adversário de inimigo. O conflito inclusivo é real; o conflito excludente é abstrato. O conflito excludente não se faz presente como universal no modo de pensar do Oriente, assim como não caracteriza o modo de pensar dos povos da periferia, em geral, o chamado Sul-Global, os ameríndios, os povos africanos, os da Ásia Ocidental e os da Ásia Central, entre outros. Trata-se, pois, de um particularismo, que se faz passar por universal, e é a esse particularismo, uma ideologia, ao qual se dá o nome de eurocentrismo, na sua conotação negativa do Iluminismo, da vertente racionalista. Há uma outra vertente do Iluminismo, a de Espinosa, conhecida como Iluminismo radical. Aqui me limito a falar do Iluminismo chapa branca, pois a vertente radical de Espinosa foi sufocada durante mais de três séculos, um fato incomparável ao que de pior tenha ocorrido na história do pensamento no Ocidente, em termos de censura e perseguição à pessoa do filósofo (Israel, J. 2009). Ao encimar esta apresentação sob o título “Epitáfio ao eurocentrismo”, refiro-me a essa visão de mundo datada, em que é confrontada no contexto da atualidade por uma outra visão de mundo, e que a desafia, e que não é nova, mas é de presença e visibilidade crescentes na geopolítica, o que me instiga a buscar, em ambas as visões, para além dos aspectos geopolíticos comuns aí implicados, os seus fundamentos epistemológicos. Não que se deva optar por uma interface em detrimento de outra, mas é que a epistemologia está implicada como interface no embate entre uma visão de mundo e outra, assim como cada uma das demais interfaces, que se poderiam contar ao infinito. O sociólogo francês Alain Touraine descreve o embate entre as duas visões de mundo como um conflito entre a Política do Conceito e a Política do Sujeito (1988). Ao mesmo tempo, o filósofo Michel Foucault desloca, a partir dos anos 1980, o eixo de suas reflexões, das questões associadas às ideias de poder, controle e repressão, graças às quais se notabilizou, para a questão do sujeito, da subjetividade, que enfeixa sob o nome de “ontologia do pressente”. Para os historiadores, o termo eurocentrismo abriga vários significados. Tomo a noção de eurocentrismo que integra a hipótese de Sistema-Mundo, de Immanuel Wallenstein, a mais conhecida. Nessa acepção, o eurocentrismo atribui à Europa a invenção da hierarquia dos valores axiológicos, com a prevalência da racionalidade como faculdade soberana sobre as demais faculdades humanas, tendo-se tornado assim, o centro gerador da nova ideologia – um novo universalismo – proclamada como superior. Essa ideologia, que foi precedida, como um seu esboço, da visão de mundo colonial, veio dobrar o peso do poderio europeu de convencimento pelas armas -, como terá observado, a propósito do poderio colonial, o padre Bartolomeu de Las Casas, testemunha ocular dos fatos: escravidão dos negros da África e cristianização dos ameríndios, como pretexto para legitimar a empreitada colonial. Na atualidade, o eurocentrismo se apresenta como democracia liberal, que criou, e que faz migrar de sua matriz para o Sul-Global, tendo provocado nele uma aderência apenas epidérmica, circunscrita aos aspectos institucionais do interesse do novo colonizador, ao mesmo tempo que encontra resistência e rejeição por parte das culturas periféricas remanescentes do Sul-Global. É um equívoco, portanto, emprestar ares de universalidade à hegemonia ideológica e política do eurocentrismo. Por definição formal, sabe-se, a ideologia consiste em se assumir uma parte em lugar do todo: A pretensão desse universalismo vem de se associá-lo, como justificativa, à faculdade humana da razão, que, na verdade, se constitui como um dentre os valores axiológicos. No âmbito do eurocentrismo, a racionalidade se assume como superior aos demais valores, quais sejam, a ética, a estética, a intuição, a ética e os sentimentos. A faculdade da razão é a ferramenta de se que valem, em sua especificidade, a lógica formal e a matemática. A história das ciências registra que é dessa junção que se serve o trabalho intelectual de Galileu, passando a se constituir como o marco da modernidade científica. Não é casual que o pensamento de Kant se tenha considerado como o epicentro da difusão do novo padrão, que caracteriza o eurocentrismo. Lembra-se que o seu projeto da ciência universal consiste em estender a ciência de Newton às demais ciências, aí incluídas as ciências humanas. O projeto nasce da constatação do caráter irrefutável das demonstrações matemáticas, que fundariam a necessidade e a universalidade das leis da natureza baseadas na experiência e no cálculo. Ou seja, a experiência e a física indicado o caminho seguro da ciência universal, escreve Kant. É com esse propósito que Kant faz constar, em sua Analítica Transcendental, que assume os mesmos postulados da física, a saber, universalidade, homogeneidade, uniformidade, regularidade e causalidade mecânica. A causalidade mecânica entra também como postulado, para imprimir o caráter de necessidade e de universalidade às leis da natureza. Esse mesmo modelo é responsável pelo mecanicismo que embebeu, de modo geral, o trabalho de cientistas, em todos os ramos, da fisiologia à mecânica, ao longo do século XIX e do século XX, como, por exemplo, no behaviorismo, na sociobiologia e na fisiologia maquinal do cérebro, entre outros de seus remanescentes, aficionados da res extensa, de Descartes. Considere-se que para Kant o ser humano é um ser da natureza, mas ele o reduz a isso, ao conferir-lhe como atributo secundário o ser humano como capaz de cultura. Tanto assim, que, em seu projeto de ciência universal, Kant considera a linguagem como natural, algo que não se discute no sentido de atributo diferencial do ser humano, mas ele não lhe reconhece a sua dimensão cultural, ao não admitir a sua diversidade. Do mesmo modo, Kant concebe a ideia de progresso como inelutável, assim como implicada, indiferentemente, na necessidade da natureza, no percurso do êmbolo da caldeira a vapor, e na natureza da espécie humana; a necessidade como uma espécie de locomotiva nos trilhos, a resfolegar, conduzindo-a necessariamente, em sua antropologia, à estação final da Paz Perpetua. A quem objetar a essa leitura de Kant, poderia responder-lhe que a liberdade que o filósofo exalta com vigor, a ponto de se fazer conhecido como o filosofo da liberdade, é de caráter abstrato, por dispensar o contexto em que ela se aplicaria, ou seja, uma liberdade universal, destituído de tempo, de lugar, de circunstâncias e de referência, que não ocorre em lugar algum e em tempo nenhum, senão na cabeça do filósofo. Sem o contexto, que repõe o lugar, o tempo, as circunstâncias e a referência, torna-se impossível de saber se se trata da liberdade de um anjo ou de um ser humano, e também incompreensível de se saber como da necessidade poderia emergir a liberdade. E, assim, se passa quanto a todas as manifestações atinentes à cultura, que ele reduz à condição natural, tão natural como as flores do jardim, antes que sobre elas se tenha pousado o olhar do jardineiro, olhar responsável de acolhê-las como valor no âmbito da cultura, felizmente um olhar não necessário, o que faz dele, do olhar, uma graça de olhar. E para quem não é kantiano a cultura significa a capacidade do ser humano de se inventar a si mesmo na diversidade dos modos de se enxergar, como um outro de si mesmo, na projeção especular das obras que realiza, a começar da construção de sua personalidade, de cuja imagem se inspira para desdobrá-la nas artes, nas ciências, na filosofia, enfim, na diversidade dos modos como o ser humano se reconhece como igual e diferente, no seu caleidoscópio cultural. E para que isso ocorra, o ser humano exercita a sua liberdade, o que significa não puxado nem empurrado pela locomotiva da razão, a resfolegar pela trajetória desenhada mediante o recurso à lógica e à matemática. É certo que há risco e incerteza na viagem. Mas o risco diz respeito ao mapa da viagem, e quem a fez poderia refazê-lo. Quanto à incerteza, ainda bem que não possa ser removida, pois é a incerteza, que, à diferença da máquina de produzir inferências e deduções, infunde prazer na viagem, ao mesmo tempo que a responsabilidade de se fazer dela uma viagem humana. Seriam insuportáveis a monotonia e o aborrecimento eternos de, ao fim da viagem, se encontrar instalado no paraíso da paz perpétua, sem dele poder sair para ao voltar sentir o prazer da diferença. Sem a incerteza, irremovível da existência – uma prova apodítica contra a o suposto caráter necessário e universalista da razão, da lógica e da matemática - não se saberia dizer qual é a diferença entre o viajante e a locomotiva. O Império da racionalidade – e é isso o que caracteriza a ideologia do eurocentrismo -. se impõe, ao custo de reduzir a diversidade à identidade, a complexidade à linearidade, a singularidade à universalidade, a realidade à abstração. Assim, o desafio consiste em assegurar à Política do Sujeito que contempla como inclusivas (eu ele/a) essas oposições (ou conflito), contra as investidas recorrentes da Política do Conceito, que as contempla como excludentes (eu ou ele/a), ao pretender transferir, num salto lógico indevido, para a realidade, o que lhe é adequada somente no plano da abstração. Diria o sociólogo francês Roland Barthes, na última página de um de seus livros sobre o equívoco fatal de se assumir a metáfora como um duplo da realidade: Não se pode confundir um leão de papel com um leão de verdade. Contra a escamoteação reducionista, embalada numa retórica ilusionista, que faz do particular um universal, é o que se defende aqui, sem prejuízo da racionalidade, já não mais na pretensão de sua soberania, mas na sua equivalência com os demais valores axiológicos. Embora mudem os contextos, em sincronia com a sua mudança, os valores axiológicos mantêm a mesma referência, a existência, que é o caráter diferencial do ser humano, como o seu portador, a saber, a intuição, os sentimentos, a razão, a intuição, a ética e a estética. É a isso a que chegou, na sua diversidade, a experiência cultural da humanidade. Explica-se: Como os valores axiológicos no comportamento se reconhecem a um só tempo, ou seja, não se separam, embora sejam distintos, surge a ambiguidade – o conflito que se instala entre um valor e outro, por exemplo, entre a intuição e a razão, conflito que não pode ser eliminado, a menos que se sacrifique um ou outro, o que é impossível, em se tratando de que é neles que se reconhece e se realiza o todo da existência; a existência em sua plenitude, na sua dimensão exponencial. De modo que a realização da existência consiste em ser o que se é, diferentemente, e para tanto faz-se acompanhar necessariamente do conflito. Já presente na mitologia grega, o conflito na sua modalidade inclusiva (eu ele/a) é retomado como central no pensamento de Espinosa, depois de assumido pela teoria pragmática de Aristóteles, que lida com o comportamento na ética, na estética e na moral. Para ambos os filósofos, o conflito é conatural à existência; e na esteira de seu pensamento vão encontrar-se expoentes, como Hegel e Marx, provavelmente os que mais respondem pela sua difusão e aceitação na filosofia ocidental. A noção corriqueira de conflito assusta à primeira vista, como a sugerir que é o conflito que instala a animosidade, a discórdia, a intranquilidade, que suscita a belicosidade, um estado de guerra não declarada entre uns e outros, e também declarada entre vizinhos de moradia e entre Estados, assim como mostram as manchetes da imprensa. Admita-se, porém, que possa haver mais de um modo como o conflito se faz presente na existência. O conflito é inerente ao sujeito e, ao mesmo tempo, à sociedade, e ambos, sujeito e sociedade, dão-se as mãos como o zoon politikon, de Aristóteles, como ser da cidade, indissociável da condição humana, que se caracteriza não somente pela sua individualidade, mas também pelo seu caráter constitutivo como ser social, uma oposição conflitiva e solidária, na unidade que as une. No âmbito da reflexão ocidental foi Aristóteles quem, primeiro, expressou na sua filosofia pragmática a oposição em seu caráter conflitivo e unitário, em sua divergência com Platão, no contexto do debate entre poder e direito, que se manifesta na pergunta: “É melhor o governo das leis ou o governo dos homens?”. À pergunta, Platão responde que o governo dos homens é a ruína da cidade (Estado) em {“Leis, 715d}. Isso é dizer que lei deve sobrepor-se em sua abstração a quem a faz. E Aristóteles responde que “os governantes fazem a lei, caso a caso, como uma obra de arte” { Político, 297a}. Em miúdos: a lei faz-se de baixo para cima, dos sujeitos para a lei, e não da lei para os sujeitos, pois a lei não é não é eterna, não é perfeita, ou acabada, mas se realiza como obra de arte, que se constrói em busca da excelência, e o mesmo argumento é por ele utilizado quanto à moral: atingir-se a excelência, ou seja, o possível, e não a perfeição, que é ilusória. Dou um exemplo de conflito inclusivo no plano do sujeito, que colho em Homero, em sua Odisseia. O protagonista Ulisses, em sua longa viagem de volta à casa, como herói da Guerra de Troia, faz-se atar com cordas no mastro da nau por seus marinheiros, para não ceder à sedução das sereias, dizendo a elas e a si mesmo não, o que se traduzia, no mesmo gesto, em sim a Penélope, a esposa à sua espera na Ilha de Ítaca. É de imaginar que o desejo de retornar a Penélope intensificava-se tanto mais quanto mais o premia a sedução das sereias, de modo que, se pudesse a remover o conflito, Ulisses não encontraria estímulo para resistir à sedução das sereias nem para ansiar pelo retorno à casa. Na mitologia grega, Ulisses é considerado como modelo de homem capaz de decisão, decisão à que se encontra doce e arriscadamente constrangida a existência humana. O conflito, o drama, a angústia indissociável da expectativa prazerosa vem de se ter de optar entre o bem e o bem, pois entre o bem e o mal não há escolha, como ensina Espinosa em sua Ética. Note-se, pois, que aqui não se assume a noção de conflito em sua conotação necessariamente negativa, como ocorre na Política do Conceito. Vejo no episódio de Ulisses uma parábola elegíaca da Política do Sujeito, que tanto encanta Nietzsche, na qual o conflito, como um gatilho a disparar a mudança, para que se possa fruir dos novos modos de se entregar à realidade, uma fada pressurosa, que conduz ao encantamento, onde nos aguarda o prazer de viver. Em contraste, na Política do Conceito o conflito é removido, com vistas a assegurar o controle funcional da realidade, a exemplo de um cão preso à coleira. A exigência artificial de remoção do conflito traz consigo a rejeição à possibilidade de interações, que é preciso bani-las pois são as interações que ameaçam de contaminar de ambiguidade os conceitos, expondo a existência ao risco e à incerteza. Para satisfazer a essa exigência, convoca-se no lugar do papel a função, que é unívoca (mecânica), como o êmbolo do pistão, e assim se garante o tiro certeiro. Garantias não faltam, desde que se assegure a vigência da lei do equilíbrio, blindando-se o modelo contra a emergência de efeitos colaterais, fazendo aflorar alguma inovação, que desequilibre a lei do equilíbrio, pondo todo o trabalho a perder. Reitero que esses comentários se circunscrevem à interface epistemológica do processo científico. Isso significa dizer que generalizá-lo é desfigurar essas observações. Já na visão de processo, ou contextual, o conflito entre os papéis, instalado no habitat da criatividade, é considerado fundamental. Enxergar a realidade é perceber nela uma diferença – um conflito. A diferença, que emerge como estímulo no contexto, resulta como um efeito colateral da interação entre os papéis. Se cada um dos papéis se mantiver na posição de quilíbrio, eqüidistante dos demais — como o advogam as leis da ciência sem cabeça e do mercado —, a diferença não emergirá: não ocorrerá coisa alguma. É entregando-se intensamente ao papel de pai que Fernando se enxergará mais enriquecido no papel de trabalhador, agora em estado de “desequilíbrio”, em relação ao estado “desequilibrado” anterior. Quanto mais se adere a um papel, “desequilibrando-se”, melhor se enxerga o outro — e esse resultado é fruto da explicitação que o conflito entre um e outro propicia. Quanto mais se promove o conflito, mais Fernando é solidário em seus papéis; mais está em condições de tirar melhor proveito da oposição que os caracteriza por se ter exercitado nos extremos de cada um dos pólos dessa oposição. (Esse é o princípio da dualidade, sobre o qual vai falar-se mais adiante) Entenda-se: a experiência de se aderir intensamente a um papel é enriquecedora sob a condição de que aquele que o desempenha seja capaz de tomar distância dele com igual intensidade. O ator desempenha tanto melhor o seu papel quanto mais distante e quanto mais próximo dele se coloca. Aprecia-se tanto mais a comida quanto mais se estimula o apetite. Ama-se tanto mais quanto mais o amante é capaz de se distanciar de si mesmo e do objeto de seu amor. Indaga-se: se o que se busca é enxergar melhor a realidade, não seria conveniente convocar Carlitos, Machado de Assis, o cozinheiro e todos os poetas e artistas, para ajudar os cientistas a enxergarem a diferença: livrar-se do espantalho e reconstruir a sua ciência, devolvendo-lhe a contextualidade, de modo a que todos possam nela se reconhecer como seres humanos? que efruir a realidade, que se abre à fruição de absorver dana condição de gatilho que dispara a mudança, para fruição de novos modos de se entregar à realidade O conflito de Ulisses é assumido como um conflito inclusivo, de significado positivo; mas há também outra noção de conflito, em seu significado negativo, que é o conflito excludente. Um e outro se diferenciam assim como adversário e inimigo. Como analogia elucidativa da diferença entre conflito inclusivo e conflito excludente, evoco a crônica de Luís Fernando Veríssimo sobre o drama, ao mesmo tempo prazeroso e arriscado, que dilacera o turista. Enquanto o seu paladar, aventureiro, quer viajar em busca de novos sabores, os seus intestinos, sedentários, querem permanecer em casa, provando a mesma dieta. Eis o conflito que, se resolvido em proveito excludente de um lado ou de outro, elimina-se o outro, – a parte que teria perdido a contenda –, elimina-se ipso facto a unidade da pessoa do turista: Não há como viajar desacompanhado de ambos, paladar e intestinos. Assim é que a pessoa do turista, para se exercitar no desafio, ao mesmo tempo prazeroso e arriscado, de ser turista, não pode prescindir de seu conflito. Pois, um turista, que preze a si mesmo, não quer desapontar as razões convincentes de seu paladar nem as razões implacáveis de seus intestinos. Ele os acolhe em si, paladar e intestinos, como outros modos de ser si mesmo, da complexidade da pessoa que ele é. Partes conflitantes, é verdade, mas é graças ao conflito entre elas que ele se reconhece como turista, em meio a eventuais cólicas nos intestinos como resultado de mudança na dieta, ou a protestos do paladar por não suportarem mais comer o mesmo prato. Nessas ocasiões, tem-se a impressão de que o turista será partido ao meio, paladar de um lado e intestinos de outro, e a sua unidade esfacelada, tamanha é a tensão do drama em seu clímax, ponto de ruptura, proclamação da independência, como teria ocorrido a D. Pedro I, segundo conta a lenda, ou revolução, em casos extremos. Se ainda assim o turista se decide pela viagem, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita equivocadamente a propósito dos pactos políticos ou das desavenças entre casais, pois as partes conflitantes seguem junto, ainda mais teimosas na sua oposição: os intestinos ainda mais receosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se ele embarca, enfim, é justamente por motivo inverso e complementar: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir. E se ele embarca inteiro, paladar e intestinos, é porque consegue enlaçá-los na solidariedade que os une – ele próprio, o sujeito, que não é intestino, isoladamente, nem paladar, isoladamente, mas ele mesmo, que é também um outro de si mesmo, um estado de mudança, nos papeis que desempenha. Um outro exemplo de opostos inclusivos: Pedro é pai, médico e tenista, papeis que desempenha, ao lado de outros. Tais papeis não se confundem um com o outro, mas interagem um com o outro na unidade do sujeito de que são papeis. Como exemplo de conflito entre seus papeis, Pedro no papel de pai já não pode prolongar a brincadeira com o filho, como seria o desejo de ambos, porque precisa sair, no seu papel de médico, para anteder um paciente, que o espera no consultório. Como exemplo de interação entre os papeis, tem-se que Pedro, no papel de tenista depare com o caso de um parceiro no jogo de tênis, que se tenha ferido, a quem Pedro, no seu papel de médico, vai socorrê-lo. Pedro é o sujeito de suas interações, na condição de mediador, sem o qual as interações não poderiam ocorrer. Na ausência do mediador como sujeito, o papel converte-se em função, o que significa assumir a descontinuidade, isoladamente, dissociada da descontinuidade, a igualdade dissociada da diferença, a necessidade dissociada do acaso. Salta-se da realidade para o plano da abstração, quando o papel, que interage, é substituído pela função, que não interage. Entrega-se dessa forma, a condução da realidade à lógica e à matemática, que assumem o comando, de modo soberano e excludente, expresso na racionalidade, igualmente isolada dos demais valores. Coloque-se a função no lugar do papel, e já não seria possível a interação, porque a função é unívoca, susceptível de operar somente mediante conexões e ligações mecânicas, que se caracterizam pelo seu paralelismo, por contato e não por contágio. A função é utilizada para operar somente objetos, de caráter discreto, contíguos, objetos, coisas, não seres humanos, que, estes, caminham e não se deslocam ao longo de trajetórias pré-definidas. O conflito é inerente ao sujeito e, ao mesmo tempo, inerente à sociedade, e ambos, sujeito e sociedade, dão-se as mãos como o zoon politikon, de Aristóteles, como ser da cidade (Estado), indissociável de sua condição humana, que se caracteriza não somente pela sua individualidade, mas também pelo seu caráter constitutivo como ser social, uma oposição conflitiva e solidária, indivíduo e sociedade, ser natural e ser de cultura, na unidade que as une. São conflitos inclusivos no sentido de que, sendo diferentes, os papeis interagem um com outro, mediante o sujeito Pedro, titular das interações, que os acomoda. Pedro é o sujeito de suas interações, na condição de mediador, sem o qual as interações não poderiam ocorrer. Na ausência do mediador como sujeito, o papel converte-se em função, o que significa assumir a descontinuidade, isoladamente, dissociada continuidade, a igualdade dissociada da diferença, a necessidade dissociada do acaso. Salta-se da realidade para o plano da abstração, quando o papel, que interage, é substituído pela função, que não interage. Entrega-se dessa forma, a condução da realidade à lógica e à matemática, que a assumem de modo soberano, expresso na racionalidade, igualmente isolada dos demais valores. A função é unívoca, susceptível de operar somente mediante conexões e ligações, que se caracterizam pelo seu paralelismo, por contato e não por contágio. A função é adequada para operar somente objetos, de caráter discreto, contíguos, objetos, coisas, não seres humanos, que, estes, caminham e não se deslocam ao longo de trajetórias pré-definidas. Aqui preciso tomar um atalho no curso da narrativa para explicitar algumas ideias que ajudem a esclarecer tanto o que já passou como o que virá à frente. A ideia de unidade conflitiva entre termos opostos e complementares conforma a cosmogonia da Grécia Antiga sob a égide da noção de totalidade, que significa a unidade da realidade como um todo (monismo), uma noção de origem mitológica, em que se encontra embebida toda a sua filosofia e visão de mundo. Por monismo, se entende que no cosmos há uma continuidade, ao mesmo tempo que uma descontinuidade; cosmos, uma acepção que compreende tudo – a natureza, os seres vivos e o firmamento: a totalidade. O cosmos encontra-se em transformação recorrente, no seu devir, em estado de mudança. O tempo presente, em que nos encontramos, é uma ponte entre o que já não é e o que não é ainda, entre o que já foi e o que está por vir. Isso é o devir, ou processo (transformação, metamorfose), no sentido próprio do termo. Assim é que para o grego o termo logos (palavra, ou discurso articulado), compreende na elocução a totalidade do cosmos. É graças aos logos, ou seja, o que é dito de boa fé e com virtude, como faz Sócrates, reinsere quem o diz na sua comunhão com o cosmos, restabelecendo-se a sua harmonia. É como se a harmonia do cosmos estivesse na dependência de sua atualização mediante a evocação da palavra, como um oráculo. O dizer subordina o devir do cosmos à condição humana de dizê-lo, fazendo-o presente mediante a elocução. Isso é o mesmo que . dizer, como o filósofo Ludwig Wittgenstein, que a extensão do mundo se limita ao que se encontra compreendido na linguagem e vice-versa. O logos grego, como disse, reúne em si, num único vocábulo, todas as faculdades humanas – razão, intuição, ética, estética, sentimentos -, faculdades distintas, que, porém, não se separam. Mas ocorreu historicamente um incidente linguístico que as separou, incidente responsável por ter removido a noção de logos da cultura ocidental, removendo-lhe o sisgnificado da totalidade, uma ideia intuitiva. Ao buscar traduzir logos para o latim, Cícero não encontrou no idioma latino termo correspondente. Daí “ratio”, como se lê em sua obra “De legibus”. Ratio (razão), que na linguagem primitiva e popular de Roma significa cálculo, vocábulo que evoluiu para designar o conceito mais abstrato, de contabilizar. Ao chegar à Idade Média, ratio estendeu-se para rationale, rationes, avançando para o idioma português como razão, racionalidade, argumento. Não se trata, porém, de termos de significados equivalentes. Com a mudança de um idioma para outro, perdeu-se o contexto cultural ao qual estava associado o significado original de logos, como unidade conflitiva entre opostos, que não se excluem um ao outro, como ocorre entre os contrários (conflito excludente), tendo o logos sofrido uma operação de redução, que separou a racionalidade das demais faculdade humanas, passando-se a estatuir, já não mais a não-razão como oposto à razão, mas o racional como contrário do irracional. É dizer que, em lugar da dimensão da continuidade, não dissociada no logos, herdou-se na ratio apenas a dimensão da descontinuidade. A razão passou a ser assumida como contrária às emoções, por exemplo, ou à ética, valores axiológicos em igual medida, mas que se encontram agora postados de costas um para o outro. E, juntamente com a totalidade do logos, deixou-se para trás nas Academias a noção de processo, noção complexa (interações, papeis), para assumir em seu lugar a noção de sistema, linear (funções). Assim, por efeito dessa alquimia linguística racionalizante, cada faculdade humana em seu isolamento ousaria, em princípio, conferir-se a si mesma uma suposta autossuficiência, sobranceira e arrogante, passando a mandar em quem nela mandava, de direito, que era o sujeito da elocução que as reunia sob o mesmo teto semântico, sujeito como responsável pelo reconhecimento da unidade na solidariedade dos opostos inclusivos, na sua totalidade. Mais exemplos de opostos inclusivos: Pedro é médico e tenista, dois papeis que desempenha, ao lado de outros. Tais papeis não se confundem um com o outro, mas interagem um com o outro na unidade do sujeito de que são papeis. Pode ocorrer que alguém se fira enquanto Pedro joga tênis e Pedro decida como médico socorrer o colega tenista na quadra de tênis. Ou seja, ocorre uma interação entre os papéis. São conflitos inclusivos no sentido de que, sendo os papeis diferentes, interagem um com outro mediante o sujeito Pedro, titular das interações, que os acomoda. Pedro é o sujeito de suas interações, na condição de mediador, sem o qual as interações não poderiam ocorrer. Coloque-se a função no lugar do papel, e já não seria possível a interação, porque a função é unívoca, susceptível de operar somente mediante conexões e ligações, que se caracterizam pelo seu paralelismo, por contato e não por contágio. A função é utilizada para operar somente objetos, de caráter discreto, contíguos, objetos, coisas, não seres humanos, que, estes, caminham e não se deslocam ao longo de trajetórias pré-definidas. Como veio a ocorrer historicamente a fragmentação no logos, ou seja, das faculdades humanas, ou valores axiológicos, que deixam de interagir por efeito dessa fragmentação? Não parece plausível explicar-se simplesmente por um incidente linguístico, ainda que não se possa dispensá-lo de participar da explicação. A resposta está para além de minha competência. Imagino que poderia ter sido possível mediante a extensão da aplicação da lógica e da matemática ao todo da existência, dela pondo para fora do logos as demais faculdades. Mas esse é assunto a confiar a um novo Michel Foucault, que, orientado pela visão de processo, venha a proceder à arqueologia dessa escamoteação, que caracteriza a quase totalidade dos paradigmas científicos do século XIX até à sua culminância, com a álgebra de Boole, com a simplificação dos circuitos lógicos, da linguagem do bit e do algoritmo. Nesse modo de pensar não se incluem alguns pensadores da complexidade, como Espinosa, complexidade qualitativa, bem entendido. E a um linguista eu confiaria a resposta à indagação de saber se seria correto admitir-se que a escritura alfabética se apresente como fábrica de abstrações no Ocidente, base do pensamento analítico, do qual se teria derivado o pensamento único, em contraste com o léxico e a grafia ideogramática, que tem como centro de difusão no Oriente o idioma mandarim. Ao que parece, o mandarim é mais aderente ao concreto, em virtude de sua imersão na continuidade da imanência, com o emprego de metáforas imagéticas e pictóricas, que mobilizam mais a imaginação estética, a intuição, as emoções, os sentimentos do que a razão. O missionário e cientista jesuíta Matteo Ricci, em sua estada de décadas na China, versado no idioma mandarim, registrou que os chineses desconheciam, até então, as operações de inferência e dedução, presos que estavam à lógica das analogias, metáforas e equivalências. Os chineses saberiam da álgebra, não, porém, na extensão como a tinham desenvolvido os persas, ou teriam sido os persas que teriam aprendido a álgebra dos chineses. Não encontrei resposta para essa dúvida. Com a palavra os estudiosos da história da matemática e da lógica. A escritura e a fonética alfabéticas constituem-se de unidades descontínuas, as letras e os fonemas, em contraposição à escritura ideogramática, que ressalta a continuidade, o intenso e não o extenso, a qualidade e não a quantidade. E não há dúvida de que a linguagem se constrói como modelada pela realidade que a apreende assim como a realidade se constrói como modelada pela linguagem, que a enuncia. De modo que ambas, linguagem e realidade, não se acoplam como chave e fechadura. De entremeio estão os ícones, as imagens, as metáforas, que as materializam. E aí residiria a ambiguidade que advém do diálogo, o que já não ocorre no caso da troca de mensagens entre máquinas. As máquinas operam por códigos, dotados de funções unívocas, com base numa linguagem formal abstrata, previamente definida, isenta artificialmente de ambiguidade. A escritura alfabética é adequada à construção de conceitos, fragmentos descontínuos da linha contínua da realidade, assim como os fotogramas de um filme são descontínuos na continuidade do filme em que se inserem, enquanto a escritura ideogramática é adequada à continuidade. Corrijam-me os linguistas. A se conformar a pertinência dessa metáfora, tem-se que na cosmologia chinesa o universo não tem começo nem fim; e a água, assim como o dragão, símbolos da forma e da desforma, expressam a continuidade e a descontinuidade na unidade conflitiva e solidária da existência, no plano individual e social (cultural). Eis aí o cerne da Política de Aristóteles e de toda a sua filosofia pragmática, que inclui também a ética e a estética. Daí a dificuldade inicial do padre Matteo Ricci de adentrar a lógica chinesa, como ele o confessa. A mesma dificuldade advém de se querer compreender na ótica eurocentrista, racionalista, dicotômica, linear, o modo como a China combina na atualidade, na sua complexidade, socialismo e capitalismo, na continuidade e na descontinuidade de seu processo de mudança, em curso sob a gestão do Partido Comunista, sob a liderança de Xi Jinping. (Sobre o que vem a ser o eurocentrismo, vou expor mais à frente). Certa vez, o jornalista americano Edgar Snow, amigo pessoal de Mao Zedong, perguntou-lhe por que na China se mantinha o costume de premiar militares na base da pirâmide hierárquica com medalhas de honra ao mérito, se o princípio do comunismo era a igualdade, que conflita com os graus hierárquicos. Ao que Mao teria respondido: O princípio é o seguinte: A cada vez que se põe uma medalha no peito de um soldado, retira-se outra do peito de um general. Expressão da descontinuidade é o binarismo, a dicotomia do sim x não, do certo x errado, do amigo x inimigo, do Bem x Mal, considerados como contrários, e não como opostos, contrários que se inscrevem no princípio de identidade e não contradição. Já o sábio chinês orienta-se pelo princípio da equivalência entre termos não redutíveis um ao outro (duas qualidades frente a uma terceira). Os opostos se confrontam como conflitos inclusivos, como os adversários no jogo, em que se faz necessário manterem-se como adversários (um jogo não linear), não importa o resultado da partida, para que o jogo possa prosseguir; portanto, um jogo de ganha-ganha. Já os contrários se confrontam como inimigos a eliminar; um jogo de mata-mata. O jogo de ganha-ganha é de qualidade exponencial: disputam os adversários no jogo, para se medirem a si mesmos e se fortalecerem para a próxima partida. O conceito, na sua linearidade, é de caráter dicotômico, de conflito excludente; e, portanto, dá-se o jogo por encerrado à eliminação do inimigo, sem que nada se tenha aprendido da experiência de jogar. Goethe erigiu a intuição como faculdade soberana, assim como fizera Kant, meio século antes, com a sua razão soberana, cada um a seu modo, elegendo como superior a abstração de sua preferência. Eis o caráter distintivo do eurocentrismo: a hierarquização de suas metáforas, em geral, universalismos, que induzem a se assumir o todo da realidade com a parte que nela enxergam como caolhos, que são. Não há metáfora capaz de apreender a totalidade, uma noção intuitiva, que o eucentrismo rejeita. Assim procede François Quesnay, com a economia; Jeremy Bentham, com a utilidade; Auguste Comte, com a racionalidade, como último degrau da escadaria de sua História; Oswald Spengler, com a História como sucessão das estações climáticas; Cesare Lombroso, com a hereditariedade; Vilfrido Pareto, com os resíduos da alma humana; Émile Durkheim com a física social; Carl Jung, com os arquétipos sociais; o conde de Gobineau, com a raça ariana; Carlyle com os grandes homens.; Konrad Lorenz, com o instinto de agressão; Quincas Borba, protagonista de “Quincas Borba”, personagem de Machado de Assis, com a sua filosofia Humanitas; Simão Bacamarte, protagonista de “O alienista” de Machado de Assis, com o binarismo da razão ... A lista vai longe. Tais construções abstratas têm a sua expressão correspondente no folclore brasileiro na figura do Saci-Pererê, de uma perna só, o que é patético: a pretexto de conferir equilíbrio à engenhoca mental, assume-se a parte como representante do todo da realidade. A título de admoestação quanto à tentação da razão de fugir ao controle do sujeito, de quem é serva, escreve Machado de Assis nesta analogia: “Não há mal que não se possa defender racionalmente. A razão, como o burro atrelado aos varais, puxa todo tipo de carga que se lhe ponha em cima. Com a mesma eficiência e pelo caminho mais curto, ela nos leva tanto para o céu quanto para o inferno. Quem decide não é ela e sim o carroceiro”. A predominância absoluta da racionalidade sobre as demais faculdades humanas, ou valores axiológicos, que caracteriza o eurocentrrismo, é uma jabuticaba do europeia. Nos 30 mil anos, ou24 mil anos, do momento antropológico em que teria surgido o homo faber, não se registra em nenhuma das grandes culturas, como a da China e da Índia, em nenhuma parte, em tempo algum, quem tenha ousado assumir a Criação do lugar do Altíssimo, para hierarquizar os valores humanos, refazendo, assim, a própria existência, como a conhecemos como estável quanto à sua equivalência desde então. Quem ousaria apor um coeficiente de valor diferencial à intuição, maior ou menor do que atribuiria aos sentimentos, por exemplo, ou a ética em relação à estética. Com que autoridade? Certa vez, ao ler o livro “Entre o cristal e a fumaça”, do biólogo e filósofo francês (1933-2011), dei-me conta de como a pesquisa científica realiza grandes feitos, ao custo de fragmentar a realidade, ao assumir apenas a descontinuidade, destacando-a da continuidade da realidade, produzindo, assim, uma abstração. Não haveria mal nisso, se o cientista não tivesse se encantado de tal modo com sua descoberta, a ponto de confundir um leão de papel com um leão de verdade. Foi o Iluminismo, na versão kantiana (há o Iluminismo chamado Radical, de Espinosa, que se lhe opõe, antecipadamente), cuja conotação negativa é o eurocentrismo, que consolidou um modo de pensar que dissocia a igualdade da diferença, a necessidade do acaso, a dimensão da continuidade, da dimensão da descontinuidade, divórcio já presente em Galileu, como marco inaugural da ciência moderna, que elegeu a matemática e a lógica como instrumentos operatórios e paradigmáticos, em virtude de assegurarem certezas indiscutíveis. Metáfora da dimensão da continuidade do tempo são, entre outras, a clepsidra e a ampulheta, que registram a passagem do tempo como fluxo contínuo. Metáfora da descontinuidade do tempo é o ponteiro do relógio mecânico, que se desloca aos saltos, na marcação dos segundos. O ponteiro do relógio mecânico caracteriza o ponto de inflexão na cultura tecnológica do Ocidente, como uma de suas interfaces, ao introduzir no fluir do tempo o salto descontínuo, ainda no período medieval, por iniciativa dos monges beneditinos, sob os auspícios do papa Silvestre II, ao redor do ano 996, uma evolução do mecanismo já conhecido anteriormente na China, aos quais se atribui a racionalização da rotina do claustro, mediante a sua distribuição em horas de trabalho alternadas com horas de oração, de acordo com as regras de São Bento, criador da ordem monástica. É plausível imaginar-se a universalização do impacto metafórico do ponteiro de saltos descontínuos sobre toda a cultura medieval. O epicentro de sua difusão foi a Abadia de Cluny , da ordem monástica cluniense, que levou aos confins do território cristão de então as regras da rotina claustral de São Bento. Cluny foi o maior empreendimento religioso, social, cultural e político da história do Ocidente, até os adventos nos séculos recentes das empresas multinacionais, que contratam milhares de trabalhadores, e os submete à rotina repetitiva do trabalho. Erigida nos arredores da Borgonha, na França, com data de início de sua construção em setembro do ano 910, Cluny reunia o inteiro saber da época medieval, aí incluídos todo o saber persa e árabe e do que mais lhes adveio do Oriente, e que vieram a compor a cientificidade e toda a cultura intelectual da Europa, das artes e das ciências, da filosofia à matemática, da medicina à arquitetura e engenharia, da astronomia à agroecologia e com a agroecologia todas as ciências da natureza. De extensão de muitos hectares, Cluny abrigava em seus domínios dez mil monges, espalhados em 1.450 casas clericais, para viverem como simples monges, às quais acorriam muitos homens, clérigos e leigos, incluídos os de elevada condição, que deixavam as suas dioceses para viver em Cluny. Cluny desenvolveu, na esteira do que acabara de fazer o imperador Carlos Magno, ao lançar a educação escolar para adultos, estendendo-a à escolarização das crianças. As reformas nela originadas exerceram grande influência na época a ponto de muitos príncipes e Papas pedirem aos abades de Cluny para difundirem a sua reforma, de modo que em pouco tempo se propagou uma densa rede de mosteiros ligados a Cluny. Tal era sua relevância na homogeneização da cultura religiosa do Medievo, associada a ela a cultura em geral, que eram os papas que faziam peregrinação a Cluny, e não Cluny ao papado. A abadia foi considerada uma das maravilhas da França Medieval e diz-se ter sido o maior complexo arquitetônico da cristandade ocidental. Em decorrência da revolução francesa a abadia foi completamente destruída, tendo sido posteriormente reconstruíd Tal foi impacto de Cluny sobre a formação religiosa na Idade Média, ao estimular a criação de Aqui, assume-se, de modo não lógico, o que não quer dizer ilógico, que não se cria música nova (criação) sem realejo (repetição), assim como não se faz realejo sem criar música nova. A criação é indissociável da repetição, assim como a repetição é indissociável da criação. Essa aparente incoerência semântica desfaz-se, ao evocar o princípio da exponenciação, um dos princípios do senso comum que conformam a visão em processo. É mediante o recurso da exponenciação que uma obra de arte se faz base para a criação de uma nova obra de arte. As obras de arte exponenciam-se umas às outras, mediante a criação. De um solfejo pode brotar a inspiração de uma ária; da ária, uma sonata e da sonata, uma sinfonia e vice-versa. Vai-se a um concerto musical, e da peça ouvida cada ouvinte, ao final do espetáculo, deixa a sala de concertos como uma inspiração diferente na cabeça. Dentre os mais inclinados à composição musical, por exemplo, um reteve do que apreciou na harmonia; outro, a melodia; outro, o ritmo; outro, o desempenho do maestro; outro o desempenho dos músicos no seu conjunto; outro, o desempenho de um músico, em especial. Isso, para ficar no exemplo dos ouvintes mais inclinados à composição musical. Haveria outros e outros tipos de apreciadores, que teriam retido para si este ou aquele estímulo como inspiração para as suas atividades, para além da sala de concerto. A esse conjunto de inspirações contrastantes, sem que se possa reduzi-las a um todo homogêneo, o filósofo Espinosa daria o nome de realidade, a condição da existência humana, que se experimenta na dimensão da intensidade, ou da qualidade. Daí o fato de se considerar a filosofia de Espinosa como uma filosofia adverbial. Segundo Espinosa, nada é – tudo se comporta: “esse sequitur operari” (o ser segue o fazer) e não “operari sequitur esse” (o fazer segue o ser). Essa é também a visão de Homero, autor da Ilíada e da Odisseia, a cuja obra se atribui o marco inaugural da cultura no Ocidente. Dentre os ouvintes, alguém de pendor reflexivo diria que ali se deu conta do que é feita a inteligência – da capacidade natural, sem dispêndio algum de energia, de exponenciar algum valor existencial. Como valor existencial, Espinosa entende converter-se no que já se é, um modo de se comportar visando ao prazer de fruir a existência, assim como projetada no seu reflexo especular, um outro de si mesmo. A experiência da exponenciação é tão corriqueira que dela a gente não se dá conta – uma obviedade. Mas há exceções programáticas. Assim, no inventário da epistemologia, que lida com a diversidade dos modos de se apreender a realidade, destaca-se a que a representa a realidade como conceitos (abstrações), que é o modo como transcorrem as operações da lógica e a matemática, e, dentre esses, o paradigma da estrutura/função, que define a função como operadora da estrutura, de caráter unívoco, no entender da sintaxe gramatical. Esse paradigma goza de prestígio quase unânime nas lides acadêmicas, um prestígio merecido, dado o fato de ser de grande utilidade no trato com abstrações, ou objetos inanimados, que se caracterizam por serem destituídos de contexto, ou seja, destituídos de sua singularidade, de tempo, de lugar, do conjunto das circunstâncias que o fazem único e irrepetível, destituídos de sua singularidade, como condição para serem alçados à sua generalização, à sua universalização, e assim serem utilizados em um infindável número de finalidades. Na linguagem de moradores ribeiros se diria tratar-se de um pau de enchente. Em contrapartida, o paradigma oferece muitas dificuldades de se apreender a realidade em estado de mudança, que é o modo como a existência se comporta. Lembra-se, a propósito, que o marco inaugural da ciência moderna está associado ao nome de Galileu. Ao herdar do Medievo o problema da mudança, Galileu fez dele um novo problema, convertendo a mudança em movimento, conferindo-lhe uma nova referência e novas propriedades. Ou seja, Galileu deixou para trás, irresolvido, o problema da mudança, de caráter complexo. Como grande matemático, Galileu sabia que a matemática não dispunha de instrumentos para tratar de problemas complexos, uma dificuldade até hoje não superada pela matemática convencional. Assim, Galileu teria procedido como procederia um sufista que, receoso do movimento das ondas, sonhasse em converter o mar em geleia, para poder assim exibir um ilusório controle sobre a realidade. Ignora o tamanho do mar. Nesse caso, já não haveria prazer nem risco na prática do surfe: o surfista estaria sujeitando as ondas amortecidas à sincronia de sua imperícia, incapacitando-se para o exercício de sua destreza. Assim, pode dizer-se que visão de mundo de Galileu, de sua ciência e de sua filosofia, à exceção de alguns pensadores, constrói sistemas de pensamento dos quais está ausente a noção de contexto, conatural à existência, que eles abandonam por medo, para se refugiarem dentro dos limites da lógica e da matemática, disciplinas que oferecem certezas absolutas e verdades apodíticas. Em resposta ao mundo das bruxas, das feiticeiras e dos adivinhos que os precedera, parecia não haver reação mais acertada. E, ao proceder dessa maneira, criaram uma nova visão de mundo, essa da modernidade ocidental, que enxerga através de nossos olhos. À falta de referência, ou de contexto, vivemos desde então mergulhados no caos da racionalidade, de que são evidências os milhares de guerras em que nos metemos, em contraste com o mundo da sabedoria oriental, que, imerso no risco e na incerteza, exercita a sua destreza, de que é evidente o contraste com o número relativamente pequeno de suas guerras. “El sueño de la razón produce monstruos” diz o pintor Goya. Com isso, não se quer dizer que se deva deixar de lado a racionalidade, longe disso. Não se está propondo o irracionalismo. O problema é que ela pretende presidir aos demais valores axiológicos como soberana, assimetria que induz, em seus efeitos, a uma patologia social e cultural, mediante o rebaixamento artificial dos demais valores, quais sejam, a ética, a estética, a moral, os sentimentos e a intuição, além da razão. A resposta a isso é reduzir o coeficiente de valor que se atribui à sua pretensa soberania, de modo a que o seu coeficiente de valor seja equivalente ao dos demais, considerando-se, assim, que nenhum valor deva sobrepor-se aos outros, nem que deva estar ausente do conjunto dos valores humanos, conjunto que caracteriza a existência no seu comportamento. Foi por meio do expediente de Galileu, de ter convertido a mudança em movimento, que ele chegou à sua fórmula da aceleração da velocidade, como relata a belga Isabelle Stengers, historiadora da ciência, em sua tese de doutorado. O desafio corresponde ao problema histórico de se descrever num mesmo contexto a necessidade e o acaso, a mudança e a permanência, que havia despertado inicialmente a atenção de Demócrito, de cuja filosofia Marx fez tema de sua tese acadêmica. Assim, Galileu converte o problema concreto da medida da velocidade do movimento, colocado pelos medievais, no problema abstrato da velocidade instantânea, velocidade que não caracteriza nenhum movimento ¬efetivo, uma vez que não percorre nenhum espaço em tempo algum. A velocidade de Galileu já não é um atributo do movimento, como era para os medievais, mas a de um corpo num determinado instante ou num determinado ponto geométrico. (Observe-se que o instante, por definição, não tem densidade temporal alguma, da mesma forma que o ponto não tem dimensão espacial alguma). O caráter instantâneo atribuído à velocidade, em vez de resolver o problema concreto e intuitivo dos medievais, mudou a natureza do problema, tornando-o abstrato e racional. A velocidade instantânea já não diz respeito ao movimento uniformemente acelerado do corpo, mas à posição geométrica do corpo num determinado instante, posição que exclui o problema concreto do movimento, ao reduzi-lo a uma sucessão descontínua de instantes em posições geométricas abstratamente adjacentes. O instante, além de não corresponder à experiência do tempo real presente, não mantém vínculo real algum com o passado do movimento nem com o seu futuro (Stengers, I. 1989). O movimento de Galileu, a exemplo de um ¬salame, é fracionado em fatias descontínuas e, assim, não seria possível enxergar a continuidade do salame. Assim começa a idade moderna da ciência: o movimento, de caráter abstrato, antepõe-se, como um obstáculo, à percepção cultural da reali¬dade em mudança. Esse modo de conceber a mudança como movimento parece decisivo na construção da nova percepção que a cultura ocidental passa a ter desde então, da interação entre a sociedade e a natureza, influenciando o modo de se produzir ciência. A partir de então, frente a uma realidade filtrada pelas lentes axiomáticas da lógica e da matemática, já não seria possível à ciência e à cultura ocidental, em geral, reconhecer o contexto — o ser humano na sua interação com o meio, indissociáveis numa mesma realidade unitária, feita de continuidade e descontinuidade, contexto. Não havendo contexto, não há meio e não há interação no meio. Isso é o que vem a ser abstração, que emerge como soberana na visão de mundo iluminista, por sobre as demais faculdades, ou valores axiológicos – a intuição, a ética, a estética, a moral e os sentimentos. Assim, o modo mecânico, ou racional, de conceber a realidade na física clássica, pelos ideólogos da Revolução Industrial e pelo Capital, remove o contexto e passa a conceber somente relações de exterioridade (ação x reação), contiguidade, causalidade mecânica, equilíbrio, determinismos, universalidade, uniformidade, homogeneidade, regularidade etc. Na quase totalidade dos sistemas de pensamento entre os séculos XVIII e XIX, avançando para dentro do século XX, preside o mecanicismo. Tivesse um pesquisador de fisiologia dos séculos XVIII e XIX conhecido o boneco Pinóquio, feito de pedaços de madeira, ainda sem o sopro de vida que lhe insuflou em sonho a Fada Azul, ele teria eleito o boneco como o seu modelo anatômico do corpo animal. No contexto desta apresentação, pode dizer-se que desde Galileu se privilegiou a dimensão da descontinuidade, em prejuízo da dimensão da continuidade, a linearidade em prejuízo da complexidade (não reducionista) o boneco Pinóquio de partes mecânicas, antes do sopro de vida, em vez do Pinóquio feito gente, depois do sopro que lhe insuflou vida. Em outros termos, o biólogo francês François Jacob, Prêmio Nobel de fisiologia 1965, observa que não se avança na pesquisa biológica, com base no sistema da estrutura e função, que realiza operações de caráter unívoco, de partes extra partes, devendo-se avançar para o reconhecimento do contexto no comportamento do gene, para o que se faz necessário reconhecer a noção de interação, no lugar da ligação, ou conexão, que são noções funcionais adequadas somente para lidar com objetos inertes, mecânicos, abstrações, e não com o que diz respeito à existência; a vida é o termo utilizado por François Jacob. E a noção de vida, embora já presente nas ciências biológicas, ainda reluta em se universalizar nas ciências humanas, como atestam o prestígio de que gozam a estatística, os padrões e as classificação funcionais (digam-se estanques). E o motivo, creio eu, é de ordem cultural eurocêntrica, newton-kantiana, que não reconhece a intuição como valor axiológico equivalente à razão, supostamente superior. Equivalência para qual Pascal havia chamado atenção, ao assinalar a distinção – não a separação - entre l’esprit géometrique e l’esprit de corps, ou seja, entre o método geométrico, da descontinuidade, e o método do coração, da continuidade, dimensões que ocorrem ao mesmo tempo na realidade, ou seja, na mente. Por ser uma noção intuitiva e, como tal, ambígua, ela é barrada à entrada da teoria dos conjuntos. Assim procedeu Bertrand Russell, ao enunciar o seu paradoxo da biblioteca. Por rejeitar a intuição, Bertrand Russell não reconhece que quem muda a função não é a matemática, mas a cabeça do matemático. Assim, por exemplo, o matemático em suas operações avança do número 1 para o número 2, previamente orientado pela ordem dos números com que trabalha, ordem que não está inscrita na natureza, mas na mente de quem criou a ordem numérica. Ou seriam as matemáticas inscritas no cérebro, ou, ainda seriam a versão humana das leis divinas, com as quais o Altíssimo criou o universo, como pensa Galileu? É a não admissão da intuição como valor axiológico equivalente à razão, que inspira Bertrand Russell na criação de seu paradoxo da biblioteca. Operando apenas com funções, como o exige a teoria dos conjuntos, Bertrand Russell não consegue localizar, por meio da lógica matemática, a bibliotecária na biblioteca, porque ele retira a bibliotecária, como elemento do conjunto matemático das funções, no qual, obviamente não cabem bibliotecárias, pois a lógica dos conjuntos, que lida com objetos discretos, é de caráter funcional. A função é unívoca, e a cabeça da bibliotecária é ambígua, ou seja, é capaz de desempenhar vários papeis, como mãe e bibliotecária, sem ter de optar necessariamente entre um papel e outro, ou sem ter de trocar de cabeça por outra cabeça. Suprime-se, desse modo, a pos¬sibilidade de se enxergar na sua inteireza a história humana, aí compreendida a natureza, em termos de mudança, ou de interação, para em seu lugar valorizar, como instrumento adequado de conhecimento e de intervenção na realidade, a matemática, a física e a lógica, a nos falarem sobre como basta construir a ciência mediante a dimensão da descontinuidade, ou seja, mediante abstrações, inferências e deduções. Sim, obviamente, se pratica a ciência experimental, como a de Claude Bernard, na medicina. Mas também aí, no conhecimento da natureza, sob as condições de laboratório, se aplicam os valores discretos da estatística, ou seja, recorre-se à dimensão da descontinuidade, isolada da dimensão da continuidade, conferindo-se, assim, à ciência experimental, o caráter de certeza probabilística. Desse modo, sob a autoridade indiscutível da Termodinâmica de Maxwell, que estende a estatística ao estado da matéria, passa-se a dotar de legitimidade a universalização da estatística, ao estendê-la, indiferentemente, a todos os ramos das ciências, das exatas às humanas, incluído o universo. A descontinuidade, assumida isoladamente, como Política do Conceito, é enxergada por um número crescente de pensadores na atualidade, como a patologia filosófica e moral da modernidade. Como corolário dos postulados da Física de Newton, assumidos por Kant, confere-se a noção de progresso linear, necessário e inelutável, à espécie humana, que se estenderia do despertar do sonho dogmático, na sua minoridade, para a idade adulta da razão, até chegar, linearmente, à culminância de sua perfeição, como essência humana – esse é o termo que ele emprega - na Paz Perpetua. Seria como inferir, em linha reta, do burrico que puxava o carvão do fundo da mina para a Revolução Industrial e a máquina a vapor, o que parece coerente com a sua linearidade, à diferença fundamental de que a essência humana não é uma máquina. Nesse caso, sendo automático o progresso, não se saberia dizer se a espécie humana vai chegar ao estado da perfeição por mérito humano ou por mérito da máquina. Tais visões lineares embebem, igualmente, as escatologias, como o capitalismo ou o socialismo, nas suas respectivas versões deterministas, que seriam o destino compulsório, inscrito na natureza, ou na tal dialética binaria, equivocamente atribuída a Hegel, dialética que inscreve na flecha do tempo as premissas lineares que levarão, por necessidade lógica, a espécie humana à sua felicidade por ocasião da conclusão do silogismo. Dentre as críticas feitas por filósofos de primeira grandeza, como Hegel, a mais frequente é que, por se limitar na sua gnosiologia aos seus universalismos, Kant mistura em sua obra qualidade com quantidade, dimensão contínua com dimensão descontínua, sem prejuízo do reconhecimento de sua contribuição para a reflexão filosófica. Essa profissão de fé na máquina – está aí o algoritmo para confirmá-la -, converte-se na atualidade no eixo central dos debates sobre o papel das interações e do meio na pesquisa cientifica, noções recuperadas pelos seus expoentes, entre os quais, os sociólogos Geog Simmel, Gabriel Tarde, Zygmunt Bauman,; o antropólogo Edward Hall; os biólogos Jacob von Uexküll, Francis Jacob, Richard Levins e Richard Lewoonin; os filósofos Friedrich Niestzsche, George Santayana, Ortega y Gasset, Maurice Merleau-Ponty, Georges Bataille, Georges Canguilhem e Emmanuel Lévinas; a plêiade de historiadores da École des Annals, além de Norbert Elias e Eric Hobstawm, ; ainda Canguilhem na medicina e na epistemologia, além dos atuais pensadores de pendor epistemológico em todas essas áreas, entre outros, os seus predecessores Heráclito, Demócrito, Aristóteles, Hipócrates, Averróes, Pascal, Espinosa, Hegel e Marx. O critério de reuni-los são as noções de interação, mediação, autorrecorrência, referência e contexto, ainda que não se tenham servido explicitamente delas na sua obra. O risco de elaborar listas desse tipo é deixar gente de fora. Mencionei apenas os nomes do que presumo sejam chefes de escola. Outros, dentre os que me ouvem, poderão fazer outra lista, ao seu gosto. Tais questões perpassam discussões aparentemente tão distantes entre si como a da dimensão feminina e a dimensão masculina da existência, ou a de se saber em que medida é possível ao tempo presente livrar-se do passado, apoiando-se nele ao mesmo tempo, abrindo-se dessa forma um tempo presente por criar, pelo livre prazer de fazê-lo. Seria a noção da necessidade da razão euocentista, isoladamente, que presidiria, de forma soberana, ao destino do ser humano? Qual seria o papel que nele joga o acaso? Se o acaso não joga papel algum, como explicar a criatividade, que deu origem também à pesquisa científica, sob a égide do eurocentrismo, digo razão soberana? . Necessidade e acaso precisariam estar presentes, como dimensões constitutivas do contexto cultural da transgenia, uma vez que do reconhecimento da necessidade fazem-se inferências, enquanto do reconhecimento do acaso equaciona-se o risco, ao mesmo tempo em que se exploram novas possibilidades. Tais questões perpassam discussões aparentemente tão distantes entre si como a da dimensão feminina e a dimensão masculina da existência, ou a de se saber em que medida é possível ao tempo presente livrar-se do passado, abrindo-se dessa forma um futuro por criar pelo livre prazer de fazê-lo. Seria a noção da necessidade, isoladamente, que presidiria, de forma soberana, ao destino do ser humano? Qual seria o papel que nele joga o acaso? Se o acaso não joga papel algum, como explicar a criatividade, que deu origem também à transgenia? Retomando o princípio da exponenciação (de caráter qualitativo, neste caso) A exponenciação em contexto não ocorre mediante o agenciamento da matemática, dentro de cujos limites opera o funcionalismo, pois quem muda a função não é a matemática, mas a mente, que Bertrand Russell exclui do âmbito do problema, ao criar o seu paradoxo lógico da biblioteca. Operando apenas com funções, como o exige a teoria dos conjuntos, Bertrand Russell não consegue localizar, por meio da lógica, a bibliotecária na biblioteca, porque ele retira a bibliotecária do conjunto matemático das funções, no qual, obviamente não cabem bibliotecárias, pois a lógica dos conjuntos, que lida com objetos discretos, é de caráter funcional. A função é unívoca e a cabeça da bibliotecária é ambígua, ou seja, é capaz de desempenhar vários papeis, como mãe e bibliotecária, sem ter de optar necessariamente entre um papel e outro. O realejo e a música nova são a metáfora que escolhi para se poder entender melhor a compatibilidade não lógica (contextual), entre a dimensão da continuidade e a dimensão da descontinuidade. A dimensão da descontinuidade opõe-se como conflito excludente (eu ou ele/a), partes extra partes, corpos da física que se tocam por contiguidade, no plano da abstração. A dimensão da continuidade opõe-se num conflito inclusivo (eu e ele/a) na realidade. O sujeito apoia-se na interação com a sua diversidade de seu papeis. O conceito apoia-se em sua univocidade, na noção de função. A diferença entre papel e função vou apresentar mais à frente. A função é a unidade operadora de uma estrutura, de máquina, por exemplo, uma máquina metal mecânica, ou um programa de computação, que é uma máquina mental. Uma máquina multifuncional é a que permite realizar várias funções, à condição, porém, de que sejam paralelas. O que importa é que uma função não se confunda com a outra. As funções são, por definição, unívocas, o que significa que para o seu desempenho se determine que cada uma deva realizar o objetivo para a qual foi desenhada, e não outro. Não, dirá você, isso não ocorre nas aplicações da chave de fenda, feita para apertar e desapertar parafusos, pois a utilizo também para fazer um furo na lata de leite condensado quando não tenho à minha volta um abridor de lata. Sim, isso é possível quando a chave de fenda é utilizada em contextos diferentes, um no contexto da oficina e outro no contexto da cozinha. Mas a máquina em sua operação maquinal não opera em contexto, ainda que possa ser regulada para responder à variação da temperatura ambiente. A máquina responde, sim, ao estímulo da variação de temperatura numa escala predefinida de graus de temperatura, ou seja, de maneira automática. Mas não se poderá jamais esperar da máquina que responda de modo espontâneo. A espontaneidade cabe ao sujeito que cria máquinas, e esse propriedade não se transfere para as máquinas que construímos. René Descartes (1596 – 1650), o filósofo responsável por ter precitado a cultura ocidental no vórtice maquinal do eurocentrismo, com o dualismo entre a sua res extensa e a sua res cogitans, ele próprio admitiu, posteriormente, em suas Meditações, que criamos máquinas, mas as máquinas não criam máquinas. Vivesse na atualidade, ele diria que a inteligência artificial faz máquinas, mas não faz a inteligência que cria a inteligência artificial. Descartes estaria preocupado com o destino que se dá à inteligência artificial, ao mesmo tempo que despreocupado ante a ideia que o destino que se confere à inteligência artificial não é intrínseco à máquina, e nunca o será. Isso é o que vem a ser a liberdade do ser humano, de dar o destino que lhe convém aos objetos que manipula, sempre tendo como referência o próprio ser humano, ou seja, realizar-se como ser humano, na projeção especular de si mesmo em outrem, como um outro igual e diferente de si mesmo. Na hipótese absurda que se identificasse a si mesmo como identidade, propriedade que se atribui aos objetos, ou conceitos, abstratos por definição, seria incapaz de enxergar-se a si mesmo, que não é abstrato. Essa é a filosofia que me ensina o espelho: reconhecer-me a mim mesmo hoje na diferença como me enxergava ontem, em se tratando de mim mesmo, a mesma pessoa, igual e diferente. Está aí, precisamente, a diferença entre a Política do Contexto e a Política do Sujeito, diferença que caracteriza a oposição entre a visão de mundo eurocentrista, extensiva a todo o Norte-Global e o Sul-Global, diferença que o Norte-Global, EUA à frente, se pretende como de oposição excludente e o Sul-Global, que se enxerga como de oposição inclusiva. A oposição inclusiva está para a oposição excludente (eu ou ele/a) assim como o adversário está para o inimigo: (eu ou ele/a). Assim como o conflito inclusivo, que caracteriza a existência humana, realejo e música nova conciliam-se nele também; entendem-se no seu entendimento e no seu desentendimento, como sugere o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto: “... E embora negro e branco sempre nos opostos se vejam, a instabilidade dos dois é de igual natureza: ambos têm a limitação (se polos na aparência) glandular, de só conseguirem viver na intransigência”. (Educação pela pedra, João Cabral de Melo Neto) Guimarães Rosa, em seu livro “Grande Sertão: Veredas”, ao descrever a caatinga, de entrecruzamentos inextricáveis de moitas de espinho, fala em “entranços de vice-versa”. Como exemplo de exponenciação, um processo cujo emprego se tem limitado ao âmbito da matemática, permita-me recorrer a um caso pessoal, no qual busco explicitar um dos princípios da visão de processo, que orienta a minha exposição. Serve como ilustração da sua fecundidade na hermenêutica; assim, os pormenores, que são muitos, têm aqui um papel relevante, ao nos fazer enxergar melhor a realidade em algumas de suas dobras, que são infinitas, fazendo-as emergir do que trazem de modo implícito para se manifestar aos nossos olhos de modo explícito. A explicitude é um tesouro insuspeito da criatividade. O caso é o seguinte: Em torno de seus dezessete anos, meu filho Lucas pediu-me que o orientasse na seleção de alguns livros que nele exacerbassem ainda mais os seus comichões libertários. Em resposta, escrevi-lhe uma carta na qual lhe digo o seguinte: Meu filho, sinto-me gratificado pela confiança que deposita em mim, sabendo que uma diferença de geração de trinta e cinco anos nos separa um do outro. De fato, é muito tempo, e também pouco, ou talvez nenhum. Se sentimos a existência, não como um caminho já aberto a percorrer, mas como um modo de viajar, ou de se estar no mundo seduzido pelo desejo de se comprazer nela, então a distância que nos separa é também a que nos aproxima. Todos os que se deixam levar nessa aventura compartilham o sentimento comum de estar sendo conduzidos pelos encantos da paisagem e das sensações novas que experimentam, ao mesmo tempo que o realizam cada um a seu modo — de modo singular. Dentre os encantos da existência está o mistério de, sendo a experiência pessoal intransferível, nos compreendermos uns aos outros. Não é possível a você se colocar em meu lugar para senti-la do modo como eu a sinto — ainda assim, quando conversamos sobre o que experimentamos, estamos seguros de que não nos enganamos sobre o que estamos sentindo. Isso leva-me a evocar a ideia intuitiva de que a existência, em razão de estar embebida no diálogo, transcorre, não segundo o princípio da identidade (A = A), mas segundo o princípio da equivalência. Somos iguais e diferentes, a um só tempo. Iguais, porque nos reconhecemos um no outro; diferentes, porque sabemos que um não é o outro: é na presença, ou na evocação, de outrem que cada um se reconhece a si mesmo. Entre mim e outrem existe, pois, uma continuidade e uma descontinuidade, dimensões ao mesmo tempo conflitivas na sua inconsistência e solidárias na diversidade que as une, sem que se possa torná-las idênticas. Ambas as dimensões coexistem também em cada um de nós. O fato de eu ser pai e você filho tanto nos separa quanto nos aproxima. Além de filho, você é aluno, colega, amigo, vizinho, primo, neto, compositor, — papéis distintos que não se confundem entre si e que, no entanto, são desempenhados por uma pessoa que é a mesma enquanto muda, como resultado da influência de uns papéis sobre outros, mediada pela interação entre eles, e da variação no modo de desempenhá-los. Tivéssemos ambos os olhos bem abertos para a realidade, veríamos, a cada vez que nos encontramos, que você não é o mesmo filho nem eu o mesmo pai, tratando-se, no entanto, do mesmo filho e do mesmo pai. Cada vez que executa a mesma música na guitarra, você sente — e também quem o ouve — que o faz de modo diferente. Dois gestos não se repetem. Perceber a diferença é estar atento à mudança, e a mudança é o estado em que cada um de nós se encontra a cada momento na existência. Estamos em estado de mudança: você já não é o que era e ainda não é o que será. Essa sensação de unidade na diversidade dos modos de ser — ou, melhor, de se comportar, — desperta em nós o sentimento e fortalece a convicção de que tudo é revogável e de que nada é definitivo. Somos seres de mudança; no plano da sociedade, seres de mudança de caráter cultural. Algo semelhante ocorre também às plantas e aos animais, no contexto da cultura. Eles também praticam a equivalência, a diversidade na unidade. Por exemplo: na ausência do calor das cinzas do fogão a lenha, o nosso gato Gatozé converte a caixa de metal do modem da TV a cabo no seu borralho. À maneira do poeta com as suas analogias e metáforas, nosso gato Gatozé também escande a sua vida no modo da equivalência, assim como procedem as plantas, que retiram do solo os minerais de que precisam para o seu desenvolvimento; no caso de solos empobrecidos, reconhecem a equivalência mineral em derivados do petróleo, ou fertilizantes químicos, como o nitrogênio. É graças também ao pressentimento da equivalência que fruímos, com prazer no estranhamento, as diferenças culturais entre povos, etnias ou civilizações. No estudo da história, comprazemo-nos na ambiguidade entre o prazer de estar lá, para onde ela nos transporta, e o de estarmos cá, onde ela já não nos alcança. Gostamos de viajar desde que possamos retornar à casa. Gostamos de desempenhar um papel desde que nos sintamos livres para poder desempenhar um outro. Entregamo-nos, no cinema e na leitura, a viagens interplanetárias, seguros de poder retornar ao nosso mundo (Santayana, G., ....). De onde vem a ambiguidade desse prazer que é também receio? De provar novas experiências sem abrir mão das antigas. Desejo viver tudo a um só tempo e desejo viver sempre mais tudo. Assim, instalamos a existência no modo do gozo exponencial: um novo modo de enxergar a realidade leva-nos não somente a divisar novos mundos, mas também a sentir diversamente — de modo novo — o mundo que sentíamos, para dele fruir novamente. Queremos a um só tempo a permanência e a mudança — o que foi e o que será. Sem deixar de ser passado, o passado retorna para revelar-se em alguma de suas dobras, até então não reconhecidas, e testemunhar a autenticidade do novo sabor do presente. Para isso servem as pálpebras, ou a noite, escreve um poeta persa: protegidos por elas, fazemos descansar no recolhimento a nossa visão de mundo, para sermos despertados por uma outra, que instiga em nós outra vez o desejo de nos comprazermos na existência, diferentemente. (Santayana, G.,,,,) Você perguntará: “O que tem isso a ver com meus pruridos libertários?” “Tudo”, respondo-lhe. Estou me referindo ao que se passa na alma e no corpo, ou a tudo aquilo no qual se consiga enxergar um valor humano — na sociedade, nas instituições, nas artes, na tecnologia ou nas ciências. Certa vez, escrevi sobre o adormecer e despertar dos sentidos, como condição para se enxergar melhor a realidade — a diferença. Referia-me às mudanças advindas da variação nos modos de se sentir o mundo. O outro lado da inovação tecnológica sobre o qual menos se pensa é que a novidade, em geral, mais do que substituir uma peça por outra — o carro de boi pelo automóvel, ou a máquina de escrever pelo computador — substitui também um mundo, um jeito de viver e pensar, uma maneira de perceber e sentir, de lidar com pessoas e objetos, um mundo que transforma a paisagem do campo e da cidade, nossos sonhos e fantasias, nossos desejos e vontades. Enfim, com a troca de uma tecnologia por outra frequentemente também trocamos de mundo, na sua descontinuidade e na sua continuidade. O curioso é que, eventualmente, o criador da novidade é quem menos se dá conta de seu impacto sobre o mundo e sobre si mesmo. Assim, por exemplo, Guglielmo Marconi, ao inventar o rádio na Itália (pioneirismo disputado também por um russo), pensou ter inventado uma espécie de telégrafo sem fio, que permitiria a duas pessoas entrarem em contato entre si, como fazemos hoje ao celular. Não imaginava que estava inventando um veículo de comunicação aberto ao público, que poderia colocar um locutor localizado em qualquer parte, falando a multidões situadas em qualquer ponto do Globo. Por isso, não imaginou tampouco a sua importância como veículo transmissor de notícias, que nos chegam prontamente de todo lado. Da mesma forma, Thomas Edison, ao inventar o fonógrafo — precursor do toca disco — pensou ter inventado um instrumento que serviria principalmente para os moribundos gravarem as suas últimas vontades, ditarem os destinos de sua herança, por exemplo. E assim como eles não puderam imaginar as consequências de seus inventos, raramente nos damos conta do que se vai embora quando se vai a nossa visão de mundo e advém o novo mundo trazido pela novidade, na sua continuidade e na sua descontinuidade. É assim que costumamos reagir a cada grande inovação tecnológica, que vem supostamente para facilitar a nossa vida. Sempre saudamos a novidade como algo de que estávamos precisando. E ela se incorpora tão intimamente ao nosso cotidiano que às vezes nos perguntamos como seria possível viver sem isso. O outro lado da inovação tecnológica sobre o qual menos se pensa é que a novidade, em geral, mais do que substituir uma peça por outra — o carro de boi pelo automóvel, ou a máquina de escrever pelo computador — substitui também um mundo, um jeito de viver e pensar, uma maneira de perceber e sentir, de lidar com pessoas e objetos, um mundo que transforma a paisagem do campo e da cidade, nossos sonhos e fantasias, nossos desejos e vontades. Enfim, com a troca de uma tecnologia por outra também trocamos de mundo. E, assim como eles não puderam imaginar as consequências de seus inventos, raramente nos damos conta do que se vai embora quando se vai a nossa visão de mundo e do que advém do novo mundo trazido pela novidade. Se reconstruirmos mentalmente tudo o que se foi, poderemos, quem sabe, concluir também: Pena que se acabou! Com o carro de boi, não se foi um meio de transporte, apenas. O carro de boi era mais que um veículo de carga. Era, entre outros modos de ser, para quem o ouvia passar ao longe, um “instrumento musical de transporte”, como o definiu o jornalista Décio Bar. Com seu canto — nhéeeemmm — produzido pelo atrito das rodas de madeira girando sobre o eixo de madeira, podia saber-se quem era o dono do carro, a que distância estava, se o carro estava vazio ou carregado, se era velho ou novo, quanto tempo levaria para chegar até a cidade e coisas mais. Para o carreiro, o canto servia para animar os bois que puxavam o carro e pôr cadência no seu passo; advertir algum carreiro que viesse em sentido contrário, para se desviar do caminho; avisar a esposa em casa de que era hora de botar a comida no fogo; saudar a vizinhança à sua passagem, alertar um doente de que estava próxima a hora de levá-lo ao médico e, principalmente, fazer o mundo saber que o canto de seu carro era o mais belo de todos. Muitas eram as variedades de canto do carro — e sua sonoridade dependia do tipo de madeira utilizada nas cantadeiras, pedaços de madeira afixados entre o eixo e a roda, e também da qualidade da madeira do eixo e do perfeito acoplamento das peças, ou do rodado, como se dizia. No Norte, a preferência era por madeiras que, além de resistentes, produzissem um som agradável — eram elas a sucupira, a moreira, o pau d’arco, o pau-de-viola, o paupombo; no Sul, o óleo vermelho, o bálsamo, ou cabreúva, o faveiro, a aroeira, o ipê e a sucupira. Longe a ideia de se querer confundir canto com ronco. Ronco era coisa de carro mal feito. Carro que se preza canta de verdade, canta de prima, estridente como as cigarras; canta de bordão, como um gemido; canta de meio, canta estradeiro, de assobio, gaitado, fino e baixão e de muitos outros jeitos imaginados já no momento de se escolher a madeira para a construção do eixo e das rodas e do dia certo de cortá-la, para evitar um canto aguado, de pau cortado em tempo de chuva. E lá se foi o canto do carro de boi e com ele o canto do carreiro, que alegrava a viagem e que quase sempre terminava com uma interpelação direta ao boi que retardava a marcha. “E o carro saía gemendo, esse gemido sem fim das coisa qui nada sente... das coisa qui num tem fala mas fala à alma da gente...” (José Martins, do livro Luzes da Canana, poemeto “Mestre João Carreiro”, in Bernardino José de Souza, Ciclo do carro de bois no Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958). E quem saberia hoje dar nome aos bois? Que boi de carro tem nome! Dentre toda a boiada, é o único que pega no pesado; em compensação tem nome, mesmo quando muda de dono, porque o nome é a sua personalidade. Nome inspirado na cor da pelagem — Araçá, Azeitão, Fubá, Dourado, Fumaça ou Laranjo; nome inspirado na disposição dos chifres — Cambuco, Corneta, Gaiolo ou Galheiro; nome inspirado nos sinais do corpo — Cara-suja, Estrela, Espadilha e Silveiro; nome inspirado na conformação e beleza — Bela-chita, Figurão, Galante, Seda-fina, Redondinho; nome inspirado nas manhas — Batedor, Genioso, Matreiro, Moroso, Sabido, Teimoso, Zunzum; nome inspirado em políticos — Moreira César, Carlos Teles; nome inspirado em batalhas — Riachuelo, Marengo, Tuiutí, Guararapes; nome inspirado na flora — Cravo, Cambaru, Figueira, Alecrim, Araçá; nome inspirado na fauna — Andorinha, Azulão, Bacurau, Sabiá, Surubim, Tigre, Tucano, Macuco; nome inspirado no reino mineral — Brilhante, Carbonato, Cristal, Diamante, Safira; e por aí vai. Com o fim do canto do carro e do nome dos bois, perderam-se também inspirações da fantasia, o olhar capaz de enxergar personalidades em bois, o carreiro e seu guia, uma profissão que não era para qualquer um. O candidato precisava começar o aprendizado cedo, aos 12 a 18 anos. Mas anos no trato com o carro e com os bois não era garantia de profissão de carreiro. Começava por chamar os bois pelo nome e, ao final, tinha de saber amansar um boi de carro e adivinhar a melhor posição para ele nas juntas, de acordo com seu temperamento e habilidades e os de seu vizinho de junta, dos bois que vinham antes e dos que vinham depois; formar a fiação de tração, atrelá-los e desatrelá-los na junta e no carro; tanger os animais sem violência, zelar pela conservação do carro e evitar acidentes na jornada com a carga, ou auxiliar e os bois de tração. Mais que isso, exigia-se a perfeição de um Mestre Banguela, um carreiro pernambucano que sabia curar bicheiras sem mercúrio ou tinhorão e converter boi bravio em cordeiro, a um simples aboio ou aceno de braços. Ou a habilidade de um outro que podia conduzir até doze parelhas (24 bois atrelados), ficando, nesse caso, no comando dos bois e de outros carreiros auxiliares. Desatolar o carro, transpor um rio que não dá vau, não bater em cancelas ou porteiras, fazer recuar o carro e contê-lo em descidas e ladeiras eram outras tantas competências requeridas a um aprendiz, para merecer o nome de carreiro. Diz-se que o ser humano, como ser inteligente, acumula experiência na forma de conhecimento. Mas a cada novo estado de mudança, a cada nova transição do suposto estado de ignorância para o novo estado de conhecimento, tem-se a impressão de que os sentidos — o tato, o paladar, o olfato, a visão e a audição — regridem à condição de “analfabetos”, incapazes de reler o mundo que passou e despreparados para ler o mundo que chega. Isso ocorre também no amor. Ser libertário, sentir-se livre ou amar, meu filho, é estar desperto para perceber que já não se é o que se era e não se é ainda o que se vai ser. Tudo depende do que quisermos fazer de nós mesmos. No meu tempo de criança, o desaprendizado começava na escola, fazendo-nos desaprender o que aprendíamos nas brincadeiras, uma condição pedagógica destinada a remover a criatividade infantil. Nela éramos apresentados aos objetos, para serem vistos do jeito como teriam sido desde sempre, em vez de sermos estimulados a enxergá-los de modos diferentes, como o fazíamos em nossas brincadeiras, fazendo de papel jornal molhado um soldado ou de retalhos de pano um bebê. A escola, mais hoje do que em minha infância, era um exercício pedagógico de desencantamento. Ao final do período de adestramento formal, dela saíamos convencidos de que os objetos têm, de fato, vida própria, propriedades intrínsecas, regras de operação e utilidades preexistentes, aos quais nos deveríamos submeter, para nos ajustarmos à ordem natural das coisas. Se um aluno afirmasse que a cor rosa é “o vermelho devagarinho”, correria o risco de ter cortadas as asas de sua fantasia. Assim é a escola funcional, que adestra os especialistas do futuro. De tanto se entregar ao estudo da refração da luz, o especialista esqueceu-se de que nele se iniciara deslumbrado pelo mundo das cores e pela diversidade dos modos de enxergar. Deixou-se levar pela crença na gramática visual de sua época, sem se dar conta de que poderia construir uma outra, pelo prazer de desfrutar a criatividade. Ao se deixar conduzir pela mediação do hábito, da posição social e da tradição, que enxergam pelos seus olhos, não se deu ao cuidado de remover-lhes as escamas. E, assim, acredita em estar criando, quando está apenas repetindo. Durante o adestramento escolar, não lhe foi oferecida a oportunidade de se exercitar na simulação e na construção de novas gramáticas visuais, em contraste com o que correu com o geômetra, que criou várias geometrias. Naturalizou a cultura, na ilusão de estar humanizando a natureza. Ainda assim, a confiança se mantém: “Se ele foi capaz de se conformar a uma gramática visual, poderia também não se conformar. Assim como a sua gramática, que foi herdada de outros que o precederam, poderia também ter sido elaborada por ele. A partir de então, a sua gramática deixará de ser historicamente inexplicável” (Veyne, P., 1974). Fará retornar ao mundo a sua dimensão humana, a capacidade de criar. Irá dar-se conta de que a sua mente não é um papel-carbono: o que enxerga são primícias de sua entrega a uma realidade sedutora; o fruto de uma percepção que recorta e organiza os seus dados mediante o uso não somente da razão impessoal, mas também da intuição, dos sentimentos e de uma memória seletiva e afetiva — dados, portanto, não dissociados de uma história e de seu contexto; por isso, valores, não dados, ou coisas. Perceberá que a ordem, as formas, as simetrias com que os objetos se apresentam a ele não o colocam diretamente em contato com o mundo por sua iniciativa, senão pelos efeitos de estar nele que se produzem na consciência e que se enunciam ilusoriamente como obra exclusiva de seu bestunto. É ilusão acreditar que da melhoria incremental da máquina se chegará a um dia a dar-lhe vida inteligente. Nisso acreditou o carpinteiro Gepeto, ao construir o seu boneco Pinóquio, de pedaços de madeira. Ao término do trabalho, deu-se conta, num lampejo, que faltava vida ao seu boneco. E, se Pinóquio diverte hoje as crianças, é graças à Fada Azul, que lhe fez insuflar a vida. A fantasia de Pinóquio é também a de filósofos, com a diferença que Gepeto construiu o seu boneco para divertir as crianças, sem compromisso com a realidade, ao passo que alguns filósofos o fazem a sério, na confiança com a qual reproduzem o seu mundo abstrato das ideias como espelho da existência. Assim procedeu, por exemplo, o filósofo alemão Emmanuel Kant, a cujas ideias voltarei com frequência neste ensaio, por ser a sua filosofia considerada como epicentro do eurocentrismo. Em seu ensaio “A paz perpétua”, uma espécie de arremate antropológico de sua filosofia, Kant prevê, mediante inferências e deduções, que a espécie humana chegará ao ápice de sua perfeição em algum momento no futuro. Na linha do argumento de Kant, suponho que isso ocorreria, quando os momentos tivessem cessado de serem sequenciais, quando então se poderia enviar para o museu das metáforas a flecha do tempo, que durante séculos no Ocidente se prestou a caracterizar a ideologia do progresso, que emergiu à história da epistemologia com os filósofos franceses da Enciclopédia e com Kant– a do século das Luzes, no qual transcorreu a sua existência. E aqui residiria a inconsistência antropológica e lógica da Paz perpétua, como assinalada por leitores críticos de sua obra (Terra, R. 1995). Sim, porque, se é o progresso, como inscrito na flecha linear do tempo, que nos faria chegar à perfeição da espécie humana, supõe-se que, juntamente com o progresso da tecnologia, que diz respeito às condições materiais como suporte da existência, progrediria também o ser humano, na integridade como assume a sua existência, a saber, ao mesmo tempo, na sua ética, além dos demais valores axiológicos – como a estética, a razão, a intuição e os sentimentos – que são as suas características diferenciais. Esses valores, como o entenderam os filósofos gregos, não se separam dicotomicamente, embora sejam distintos. Mas Kant pretendeu hierarquizar os valores axiológicos e fazer progredir a razão com o despertar do sonho dogmático, deixando para trás os demais valores axiológicos, ao alça-la como protagonista de seu enredo filosófico, o que sugere que teria destinado aos demais valores um papel secundário. Hierarquias, progresso nos valores axiológicos? Esses valores são da dimensão da qualidade, e a qualidade não progride. “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”, diz um verso de Gertrude Stein. E, assim como a rosa, o beija-flor também não progride. A moral do ser humano tampouco progride. O que nela progrediria, mas isto não é progresso, é a explicitação de novas interfaces da mesma moral, que lá se mantinham em estado latente desde sempre. Assim, por exemplo, aprendemos da cultura chinesa que o sentimento moral não brota da razão, como em Kant, mas advém, por exemplo, do sentimento de repulsa que se experimenta ao se deparar com cadáveres humanos insepultos, o que nos levaria a enterrá-los dignamente. E assim também quanto a outros sentimentos, como o de proteção, ao segurarmos com as mãos, num gesto imediato e impulsivo, uma criança na iminência de cair num poço. Do mesmo modo, não é o progresso da moral que nos leva ao sentimento de indignação, que nos tem acometido, ao constatarmos que se tem multiplicado exponencialmente as centenas de milhões de mortos em guerras e tragédias induzidas, como a pobreza, a fome e a miséria, jamais registradas em tal extensão, ainda que se considere como proporcionais à diferença populacional. Tragédia coletiva -, esta, sim, de modo linear -, que não cessa de progredir. Progridem a uma velocidade tanto mais acelerada quanto mais se acelera o progresso tecnológico, sob o controle e a condução da axiomática do Capital. Mas a indignação moral ante a morte sem propósito nos vem dos tempos bíblicos. O que mudou é a intensidade de seu impacto, mais intenso agora, em virtude da abrangência e profundidade que alcançam os meios de comunicação. Mas o sentimento de indignação moral é o mesmo. Não faz sentido admitir-se que a moral progrida por efeito do impacto do noticiário sobre os telespectadores. E, se é isso que se enxerga no transcurso do tempo, é porque o olhar que pousa sobre essa realidade a enxerga como diferente, em escala, do passado, ou seja, é porque o ser humano permanece o mesmo enquanto muda. O que muda é o seu olhar que enxerga e o mundo como enxergado pelo olhar, num processo interativo, o mesmo que caracteriza a interação entre o realejo e a música nova. E também o que se passa na interação com a mente e as mãos do artesão. As mãos do artesão se habilitam tanto mais no artesanato, quanto mais o artesão incorpora à sua atividade criativa as novas habilidades adquiridas pelas mãos. de assumir a autorrecorrência, noção da constelação da complexidade, assim como me parece incapaz, pelo mesmo motivo, de lidar com a noção associada de interação. Ambas as noções não constam das três Críticas, com as quais expôs a sua filosofia. Assim procede Kant, não por eventual descuido, mas ele o faz em consonância com os postulados de sua gnosiologia, na Analítica Transcendental, São os mesmos que Newton aplicou aos objetos (abstrações científicas), ao passo que Kant, no seu projeto de universalização da ciência de Newton, pretende aplica-los às ciências humanas. Desse modo, advertem os seus críticos, Kant estaria praticando um salto semântico indevido, da dimensão da quantidade para a dimensão da qualidade. Ocorre que o progresso da essência humana, como prefere dizer Kant, em lugar de existência, não se dá por adição, pois, o que muda no ser humano é a visão recorrente que tem de si mesmo, ao se mirar na sua imagem refletida no espelho: igual e diferente de si mesmo, ou seja, nunca idêntico a si mesmo, mas diferente, sim, mas não diferente em razão de alguma suposta diferença de caráter quantitativo. Essa seria uma visão linear do progresso, que misteriosamente, cessa de existir em Kant, sem que ele nos explique como a progressão da essência humana veio a realizar o seu salto semântico, da lógica da linearidade, para a lógica da qualidade, ou complexidade (no seu significado, que não é o de Norbert Wiener, criadores da cibernética, que concebem a complexidade como quantitativa). Na visão de processo, que não dispensa a qualidade, a cibernética, embora útil para lidar com objetos é infecunda para lidar com o ser humano. Ousou-se uma única vez na história da epistemologia e na história da reflexão humana, eleger como superior, ou primeira, numa pretensa escalada ascendente dos valores axiológicos, a racionalidade. Refiro-me ao eurocentrismo sobre o pano de fundo contrastante das grandes culturas, como as da China, Índia, Egípcia, Pérsia, Árabe, da África e da América Latina (culturas pré-colombianas), dentre as mais conhecidas, nem todas localizadas geograficamente no chamado Sul-Global. Seríamos, nesse caso, os caudatários, nós latinos, por exemplo, como portadores de uma cultura de idade ainda juvenil, de apenas meio milênio, transplantada artificialmente do eurocentrismo para o Sul-Global, uma ideologia que se teria feito mais inteligente, por auto aclamação, graças aos próprios méritos, por inoculação genética, ou por outros meios, quem sabe, do que culturas cujas idades se contam em milênios. Isso suscita várias indagações. Alguns exemplos: Na história da reflexão humana teria havido progressão hierárquica no avançar das idades, do pior para o melhor, do menor valor para o maior valor e na sua direção orientada do Norte-Global para o Sul-Global? Haveria uma flecha do tempo na sucessão das culturas? Por que não se proceder de modo inverso, a se utilizar como critério as idades, da mais antiga para a mais nova? Ou seria a juventude mais experiente nas lides intelectuais do que os mais idosos? Ou, quem sabe, teria razão o historiador inglês Arnold Toynbee, ao mirar o alvo de sua flecha do tempo, ao seu gosto, na espiritualização da humanidade? Assim, os ponteiros do relógio que marcariam a sucessão secular, ou milenar das culturas, pontuaria, no decorrer das sucessivas visões de mundo, uma escalada civilizatória rumo à espiritualização, diz ele, em sua filosofia da história. Para se fazer entendida na sua semântica, a flecha do tempo é linear, ou seja, implica o seu ponto de partida e o seu ponto de chegada; ponto de chegada, onde, de acordo com Toynbee, a espiritualização da humanidade, em sua caminhada no Norte-Global, nele se estabelece, assenta praça, sem mais prosseguir, ela, a espiritualização, que se teria feito reconhecer pelo mesmo Toynbee, graças às proezas de seu pendor viageiro. Isso me leva à suspeita, de caráter semântico, de que em Toynbee, assim como em todas filosofias de história que concebem o ponto de chegada como um resultado inscrito no seu ponto de partida, são redundantes, como é o caso dos messianismos, das certezas do futuro, das predições, das probabilidades, dos padrões, das escatologias, dos determinismos, das causações, das premissas e conclusões, das inferências e deduções, dentre outras modalidades do pensamento linear, que inscrevem o futuro de seu movimento nas premissas de seu passado, supostamente lógico. O equívoco comum a todas as filosofias da história está em confundir a abstração (linear) com a realidade (complexa), que a implica na sua totalidade. O que não é incomum nas filosofias da história realizar uma viagem ao redor do mundo sem sair de casa, uma viagem circular em torno de si mesmo, de suas abstrações. No linguajar da lógica, esse tipo de viagem chama-se petição de princípio. Isso é o que ocorre na Mecânica Celeste do Marquês de Laplace, por exemplo, que desenha as suas esferas celestes, girando em torno de si mesmas, em movimento circular, para frente ou para trás, indiferentemente, ao longo da eternidade. Ao observar o seu movimento pré-determinado, reversível por força das equações da matemática, o marquês submete o Universo ao seu controle, assim como, posteriormente, na termodinâmica, Maxwell submete o Universo ao controle da estatística. Desde a incorporação, como enxerto, da termodinâmica ao modelo da Física Clássica, a estatística apresenta-se como estado da matéria. Esferas, planetas e estrelas, girando em torno de si mesmos, da Mecânica de Laplace - isso lembra a piada do conviva retardatário de uma festa noturna, o último a tentar deixar o local. Em busca da porta de saída, já sozinho, embriagado e o ambiente de luzes apagadas, ele tateia ao redor de uma grossa coluna no centro da sala, imaginando que sejam as paredes, e conclui: “Meus Deus, estou preso de todos os lados”. E retornando ao marquês e a Maxwell. Se assim fosse, seríamos forçados a admitir, pela mesma lógica de Laplace, que a omelete voltará para dentro da casca do ovo precisamente pela mesma trajetória que percorreu até à omelete, e da omelete para dentro da casca do ovo, novamente, e assim indefinidamente. Já no caso da termodinâmica de Maxwell, a trajetória do ovo e da omelete, poderia ser prevista mediante o recurso das probabilidades. Assim como as crianças, que no parque de diversões se divertem na repetição da brincadeira, nós, adultos, já vincados nas modalidades diferenciais do ser adulto, sentados à mesa para o almoço, estaríamos sintonizados com as leis do cosmos, na repetição do mesmo prato, ao circuito fechado do paladar. Ocorre, porém, que o mesmo prato servido pela Mecânica de Laplace, tanto agrada à dimensão masculina da existência quanto aborrece a dimensão feminina, para quem a variedade é indispensável, um problema de difícil solução, se ela existe. Sim, pois o problema é crônico e se estende para muito além da Mecânica Celeste de Laplace. Por exemplo, ao se observar que, antes do advento do prêt-à-porter no vestuário, a dimensão masculina da existência dizia ao alfaiate que o vinco das calças deveria ser o mesmo, mas ainda mais vincado que o das calças do no anterior; enquanto a dimensão feminina da existência dizia à costureira o contrário, que deixaria de ser a sua cliente se lhe fizesse um vestido idêntico ao do ano anterior. A Política do Conceito é de pendor masculino, assim como o realejo, enquanto a Política do Sujeito é de pendor feminino, assim como a música nova. A Política do Conceito é a da identidade, ou seja, da repetição. A Política do Sujeito é a da equivalência (não redutível), que leva à criatividade. Uma alinha-se à dimensão da quantidade, e a outra, à dimensão da qualidade. Espero que ninguém tome essas metáforas como representação adequada dos fatos, pois, como metáforas que são, não correspondem precisamente aos predicados aos quais se aplicam, no intento de esclarecê-los. Creio que esse é um bom exemplo que ilustra a hipertrofia patológica que resulta da extensão universal da aplicação da matemática e da lógica fora do lugar, para a qual Aristóteles chamou atenção ao criar a sua teoria pragmática, em complemento à sua teoria teorética. Voltarei a isso mais adiante. Diferentemente, é na direção oposta que Kant propõe criar-se uma ciência universal, estendendo a lógica e a matemática também às ciências humanas. Uma hipertrofia patológica da razão, enfermidade de caráter dedutivo, que, em virtude da lei do equilíbrio geral, assegura à humanidade, quaisquer sejam as circunstâncias de tempo, de lugar, contexto, não faltará ao ser humano comida no prato. Observe que, por efeito da causalidade mecânica, que tanto Newton na sua ciência como Kant, na sua proposta de ciência universal, se apoiam em postulados comuns, dentre as quais, a causalidade mecânica. Assim, por definição, não se trata de uma previsão, mas de uma predição de caráter lógico e matemático. Não digo história, porque, ao que parece, a história do conceito é circular: começa onde termina e termina onde começa, ou seja, no momento em que a espécie humana, até então viageira, já em vias de se despedir de sua minoridade, transpõe o limiar da idade adulta, para se instalar com a sua razão soberana em Koenisberg, a sua cidade natal e daí seguiria o seu rumo antropológico, moral, e epistemológico, em viagem à paz perpétua. Uma coincidência, de caráter lógico, entre o ponto de partida e o ponto de chegada. Ocorre que, ao contrário dos postulados em que assentam ambos os modelos de ciência de Newton e de Kant – a universalidade, a homogeneidade, a regularidade, a uniformidade e a causalidade mecânica, segundo se lê na sua Analítica transcendental – nada na realidade do comportamento responde a esses postulados. Vou dar um exemplo. Jamais a Europa havia conhecido a fome, senão por escassez artificial, resultante da privação ao seu acesso à comida, por meio de violência institucional. A fome, como fenômeno artificial deliberado, tem origem no século XVI na Inglaterra, com o episódio conhecido como cercamentos (enclosures), quando os senhores feudais, secundando iniciativa da Corte, expulsam da terra os chamados servos da gleba, os camponeses, enviando-os para lugar nenhum, longe da vida urbana, em que, rarefeita e escassa, praticamente, não oferecia opção de trabalho, e afastados da terra que lhes provia o alimento, a roupa e a moradia, ao longo do milênio anterior de sua história. Até então, morria-se de morte natural, de pestes, intempéries e guerras, jamais por escassez artificial de alimento. É nisso em que consiste em Marx o processo da acumulação primitiva do Capital, que produzirá o braço operário para o Capitalismo. Não há registro na história da humanidade que tenha ocorrido algo similar, digo, por deliberação institucional. As hordas expulsas da terra, o seu único meio de subsistência, vagavam como ectoplasmas pelos caminhos, ou se apinhavam ao redor das paroquias, que as abrigava em galpões em condições ambientais precárias, em número sempre mais insuficiente. Foi quando o médico e vigário Joseph Townsend, em sua “Dissertação sobre a leis dos pobres” (1786), apela do púlpito e ao Parlamento para que se renunciasse a todo tipo de socorro, dentro e fora dos galpões paroquiais, sob o argumento de que a fome é um fenômeno natural, assim como a paisagem. Aos parlamentares ele descreve como funciona a nova sociedade com o seu teorema das cabras e dos cães. Essa história é evocada pelo economista, antropólogo e político austro-húngaro Karl Polnayi (1886 – 1964), em seu best seller “A grande transformação” (1980). Polanyi a retoma no contexto da origem do caráter soberano atribuído ao mercado neoliberal, para advertir que o mercado neoliberal não é conatural ao modo de ser das culturas, e sim uma instituição criada. A preocupação em explicá-la tinha sua razão de ser. A Revolução Industrial sob o capital começara a produzia riqueza de um lado expelindo miséria de outro, a exemplo da locomotiva a carvão, que gera vapor na caldeira acumulando cinzas no borralho. Townsend pinta, então, a imagem do equilíbrio da nova sociedade, recorrendo a uma fábula. O cenário é a ilha de Robinson Crusoe, no Oceano Pacífico, próxima à costa do Chile. O aventureiro Juan Fernandez deixara nessa ilha algumas cabras para que se pudesse comer a sua carne em caso de visitas futuras. As cabras se multiplicaram em proporção bíblica, convertendo-se em estoque de alimento facilmente acessível aos corsários, na maioria ingleses, que molestavam o comércio espanhol. Para destruí-los, as autoridades espanholas levaram para a ilha um cão e uma cadela, que também se multiplicaram no devido tempo, reduzindo o número de cabras e bodes dos quais se alimentavam. “Um novo tipo de equilíbrio foi estabelecido”, escreve Townsend. “Os mais fracos de ambas as espécies foram os primeiros a pagar seu débito para com a natureza; os mais ativos e vigorosos conservaram as suas vidas” (“A dissertation on the Poor Laws”, sec. 8. Na íntegra, no google). O equilíbrio no controle das populações de cabras e cães ocorria da seguinte maneira. Os cães, famintos, perseguiam as cabras que, para fugir, subiam nos altos penhascos inacessíveis aos perseguidores. Lá em cima, sentiam-se no desespero entre morrer de inanição e descer à planície para serem devoradas; enquanto na planície, para não morrerem de inanição, vociferavam os cães, à espera de abocanhá-las quando descessem vencidas pela fome e pela sede. Desse ponto em diante o texto é de minha responsabilidade. Sociedade e natureza, ambas estariam sujeitas à mesma lei do equilíbrio, assim como teoriza Kant, equilíbrio que regula também o controle das populações de leões e zebras, chacais e antílopes, gaviões e colibris, cascavéis e ratos — toda a natureza girando sanguinolentamente em torno de seu eixo cósmico, azeitado por Newton com a almotolia de Deus, a quem se atribui a autoria dessa sinfonia carniceira, porém equilibrada. Tem-se na naturalização da fábula a mais grotesca e macabra homenagem prestada por um ser humano à capitulação da ética e da inteligência da realidade. É preciso que se esteja tomado de um desespero infinito, de um ódio calvinista à Criação, ao mundo e a si mesmo para aspirar do mais profundo da alma a um mergulho tão abissal na imobilidade da coisa, ou do capital. Um retrato autêntico do mercado liberal, que se faz regular pelo automatismo do equilíbrio universal da Física de Newton. Por mais crua que seja a metáfora, isso é o que implica a Política do Conceito, dicotômica, por definição lógica (eu ou ele/a). A Política do Sujeito (eu e ele/a) vem-nos em socorro. Reconforta saber que a tentativa da Política do Conceito, de escamotear a realidade, é uma operação logicamente fadada ao insucesso, pois a abstração é um cobertor curto para cobri-la em toda a sua extensão. Há sempre mais realidade para aquém ou para além da abstração. Como, porém, a sua autosssuficiência não quer admiti-lo, desencadeia então uma estratégia defensiva, com o propósito de encobrir o autoengano. A estratégia consiste em promover uma consistência lógica tal entre os elementos do campo abstrativo, que este se sinta capaz de resistir tanto às suspeitas de precariedade, que emergem do reconhecimento de fraturas no seu próprio interior, quanto às investidas de fora, que denunciam o seu caráter postiço. É a estratégia do preconceito, convertido em delírio, que irá transmudar o drama benfazejo da existência em tragicomédia, ou tragédia. Esse é o sumário da história do cientista Simão Bacamarte, protagonista da novela “O alienista”, de Machado de Assis, da fábula de Townsend, ou do Capital. O delírio da razão— ou a abstração isolada do sentimento — não tolera a diversidade de percepções de uma mesma realidade. Ambiciona representar ¬todas as coisas, pessoas ou ocorrências mediante a utilização de um sistema explicativo único, a exemplo do lendário ladrão Procusto, que serrava ou espichava o corpo de suas vítimas, caso não coubessem no leito em que as amarrava. A seguir, jogava fora as rebarbas da estatística, os quebrados e dízimas periódicas depois da vírgula, para chegar a um resultado logicamente consistente. Esse é o ponto de discórdia no debate entre o matemático e o físico francês Henry Poincaré com o filósofo e matemático inglês Bertrand Russell. Em seu estudo da Mecânica, Poincaré dizia que não se pode jogar no lixo as rebarbas da estatística, ao passo que Russell dizia que sim. O registro desse episódio consta de troca de correspondência entre ambos os pensadores. Assim, com Poincaré nos livramos à mesa da monotonia do mesmo prato da trajetória do ovo e da omelete do Marquês de Laplace, para gáudio geral dos gourmets, em especial das gourmets. E retomando o leito do argumento, quanto à suposta autossuficiência da razão soberana, em seu delírio, ela aqui chamada Política do Conceito, que, ao não conseguir cobrir senão uma parte muito limitada da realidade, envidará, inutilmente, todos os esforços para trazer para dentro tudo o que a sua abstração pôs para fora. Ela não consegue, por insistir na dimensão discreta, ou digital, no emprego do caráter discreto da estatística, em vez de na dimensão analógica. É essa frustração que faz do delirante um narrador compulsivo; ou da racionalidade, um ventríloquo, que fala sem deixar falar, porque, de caráter autocrático, se julga soberana. Está aí o embrião do que viria a ser o pensamento único da visão neoliberal. Seria o fim da democracia comunitária, do diálogo instituinte (eu e ele/a), que em seu lugar se instala a democracia liberal da lei instituída, que consiste no monólogo (eu e não ele/a) (Sugiro a leitura das obras de Claude Lefort e a de Cornelius Castoriadis). Na verdade, a democracia instituída reveste-se de um simulacro do diálogo, ao protelar ao infinito os compromissos na lei assumidos, para o desconforto de todos, e que se devem lançar à ineficácia e à ineficiência do instituto político da representação, corrompido pelo poder econômico (Bobbio, N., ). Em outra parte deste trabalho discorro sobre o tema da diferença entre democracia liberal e democracia comunitária. Na perspectiva da democracia comunitária, com vistas à sua recuperação no Sul- Global, vem juntar-se numa frente comum, que integra o movimento descolonial, no âmbito das ex-colônias, o movimento conhecido como Comum (referência aos comunais, expulsos da erra no episódio dos cercamentos). Exemplos do Comum são o e-commerce, o software livre, a wikipedia, as cooperativas de todo tipo de organização não hierárquica, os movimentos comunitários, os movimentos sociais pelo direito de ter direito etc. Há uma publicação, que considero de nenhum reparo, dos autores franceses Pierre Dardot e Christian Laval; Dardot, professor de filosofia e pesquisador da Universidade de Paris, e Laval, professor de sociologia na mesma universidade. Chama-se “Comum, ensaio sobre a revolução no século XXI, 2007). Assim é que na agenda do Comum encontra-se o caso dos quilombolas, que no Brasil são em número de 5.972, reunindo 386.750 quilombolas, segundo pré-levantamento do IBGE. O escândalo do caráter democrático liberal no caso dos quilombolas é o seguinte: Passados vinte anos da aprovação da lei que reconhece o direito dos quilombolas sobre a posse da terra que ocupam, apenas 400 quilombos foram contemplados, o que permite prever, na hipótese de que não haja atraso no andamento atual, o que não é impossível, que daqui a vinte anos, serão 800, daqui a quarenta anos, serão 1.200, daqui a sessenta anos, serão 1.600, daqui a oitenta anos, serão 2000, daqui 100 anos, serão 2.400, daqui a 120 anos, serão 2.800, daqui a 140 anos, serão 3.200, daqui a 160 anos, serão 3600, daqui a 180 anos, serão 4000, daqui a 200 anos, serão 4400, daqui a 220 anos, serão 4800, daqui a 240 ano, serão 5200, daqui a 260 anos, serão 5600, daqui a 300 anos, serão 6000, quando a lei terá sido cumprida. Observe-se, no caso dos quilombolas e nos demais assemelhados, que não se trata de uma eventualidade da democracia representativa liberal, um desvio circunstancial de seu leito, pois ela é historicamente contumaz quanto a considerar os cidadãos iguais como iguais, abstratamente, assim como se lê em escritos dos Federalist papers, que reúnem o pensamento dos pais da democracia do EUA, de Alexis de Tocqueville e de Kant, o filósofo da igualdade, que reservou o reconhecimento como cidadãos apenas aos homens de bem, excluídos os artesãos e os menos iguais que os iguais, como os trabalhadores braçais e serviçais domésticos, ou seja, a criadagem (Terra, R., 1995). A diferença entre a democracia comunitária (Política do Sujeito) e a democracia liberal (Política do Conceito) pode ser avaliada também na diferença de como ambas as visões de mundo divergem quanto à noção do tempo. Na Política do Conceito, o tempo de sua flecha se prolonga, supostamente conduzida por uma operação lógica da razão, em direção à apoteose da felicidade da espécie humana, como prediz Kant em seu ensaio “A Paz Perpétua”. Já o tempo do Sul-Global, que se renova com a velocidade de um rastilho de pólvora no âmbito do Sul-Global, aí incluída a sabedoria oriental, é sem flecha. Aí vive-se o tempo pressente, sem escatologias, sem messianismos, sem premissas e conclusões, sem causalidades da ordem necessária e inelutável, sem destino prefigurado e assegurado, ao contrário de como consta nos bilhetes de viagem; em síntese, sem a expectativa de se chegar à perfeição da espécie humana, para o desapontamento dos crentes no progresso. Não se trata de utopia, longe disso. A utopia é dos frustrados por se terem deixado conduzir pela flecha do tempo, que não os leva a lugar algum. A cultura tradicional dos povos ameríndios e a dos povos orientais, e também a dos persas, árabes e africanos não têm utopias, que seria um lugar sem lugar, como diz a etimologia do termo. Isso, em termos gerais. Aí, no Sul-Global, região cultural na qual prevalece a Política do Sujeito, eles já se encontram nesse lugar sem lugar desde sempre, na sua cultura, como se aprende na Antropologia. Isso porque a ideia de tempo como flecha, associado à ideia do progresso, dela indissociável, não se enraizou na cultura do Sul-Global, em razão do caráter eventualmente epidérmico da Política do Conceito - o eurocentrismo -, que intentou infundi-la, numa mescla de consenso e porrete, mas sem sucesso como êxito total. E, assim, o tempo do Sul-Global, na ampla envergadura de sua diversidade cultural, conflitiva e solidária ao mesmo tempo, é vivenciado como a noção de tempo embebida em suas tradições milenares assim como é o tempo da Grécia Antiga, que é o tempo presente, um tempo entre o passado, que já não é e o futuro que não existe. Na filosofia, esse é o tempo do monismo, em contraste com o tempo do dualismo, ou binarismo. Na Grécia Antiga, do passado restava a evocação dos heróis, que se atualiza, de modo recorrente, na eternidade do presente. Eu gostaria de saber em que medida, ou como a noção do tempo das culturas que não se deixaram embeber no tempo eurocentrista se imbrica na velocidade com que países do Sul-Global apresentam desempenho econômico e social, na média, superior ao do Norte-Global, segundo revelam os dados estatísticos do FMI, ao mesmo tempo que revelam em grau, comparativamente superlativo, a sua coesão social e política (leia-se cultural). Com certeza, são os casos da China e da Bolívia. Uma explicação plausível, dentre outras, complementares, é que para essas culturas o seu tempo é o tempo presente, como presumo e, assim, muito dificilmente casos como o dos quilombolas teriam ocorrido. O motivo do porquê a sua consciência na atualidade, e não ao longo de todo o período da dominação cultural enrocentrista, explica-se, creio eu, pelas rachaduras na ideologia eurocentrista do progresso, associada, obviamente, à luta anticolonial. Uma ideologia que se instala como dominante já no período colonial, do qual o eurocentrismo é uma extensão, que se encontra em frangalhos, à luz da experiência negativa recorrente do Sul-Global, como já denunciava o poeta e político haitiano Aimé Cesaire. Cesaire foi o primeiro negro a lançar nos anos 1930 um periódico na Europa, em Paris, voltado para a denúncia do domínio colonial na África, e nesse periódico cunhou o neologismo “negritude” de afirmação e defesa das raízes africanas. Em 1950, juntamente com o presidente do Senegal, o intelectual Leopoldo Senghor, lançou o “Discurso sobre o colonialismo”, pelo qual ambos se fizeram conhecer na cultura ocidental. No “Discurso sobre o colonialismo” publicado em 1950, Cesaire e Senghor acusam a Europa como “indefensável” pela catástrofe colonial. O impacto dessa denúncia, que se insere marcadamente na geopolítica da atualidade, expressa no seu auge nos pronunciamentos de políticos e governantes de países da África. Sob o aspecto epistemológico, a colonização buscou a sua legitimidade no universalismo da razão, ideologia que, ao motivar e emergir da Revolução Francesa, contaminou a elite pensante da Europa, que, na defesa de seus interesses, passa a promover, a partir de então, a universalização de seus universalismos (abstrações, sem contexto) nos quatro cantos do mundo, como a própria razão de ser da faculdade humana do pensar e do agir. Isso é o que vem a ser a soberania da razão, uma autêntica jabuticaba europeia, não constante do inventário taxonômico de nenhuma outra ideologia, de nenhuma outra grande cultura, em tempo e em lugar algum, desde a ocorrência do homo sapiens, 30 mil anos, ou 24 mil anos atrás. Na sua versão para consumo das massas, a soberania da razão passa a ser representada como símbolo do caráter cívico da Revolução Francesa, em seu embate vitorioso contra o poder reacionário do estamento religioso, na figura da deusa Razão, cultivada nos “Templos da Razão”, que se espalham rapidamente pelo interior do país, nos quais se festejava o “Festival da Razão”. Oficialmente, o grande “Festival da Razão” foi organizado pelo revolucionário Jacques Hébert, na data de 20 de Brumário (10 de novembro de 1793). O seu momento culminante consistiu da aparição da deusa Razão, representada por uma jovem, que ascende ao altar erigido na frente das portas da Catedral de Notre Dame e proclama à multidão ali reunida que a partir de então haveria apenas um Deus, Le Peuple (o povo), uma noção abstrata, despida de qualquer referência contextual. Esse foi o marco inaugural dos universalismos eurocentristas, tão caros ao pensamento de Kant. O eurocentrismo, é bom que se retenha, é uma ideologia associada ao poder político em que nela se encarna e em que nela apoiado se auto confere a invenção da hierarquia dos valores axiológicos, com a prevalência da racionalidade como faculdade soberana sobre as demais faculdades humanas, tendo-se tornado, assim, de direito e de fato, o seu centro difusor por sobre toda a cultura ocidental, com peso de menor impacto histórico, na sua quase totalidade sobre as culturas periféricas. Aí a ideologia do eurocentrismo, em razão da resistência e rejeição que encontrou por arte de culturas mais antigas, de milênios, consolidando-se, na sua abrangência em todo o Sul-Global, como a outra visão de mundo. É o deslocamento na correlação de forças de envergadura tectônica, que se agudiza na atualidade no conflito entre as duas visões e mundo. Observe-se que no caso dos quilombolas não se trata de uma eventualidade da democracia representativa liberal, um desvio circunstancial de seu leito, pois ela é histórica e conceitualmente contumaz quanto a considerar os cidadãos iguais como iguais, abstratamente, assim como se lê em escritos dos Federalist papers, que reúnem o pensamento dos pais da democracia do EUA, de Alexis de Tocqueville e de Kant, o filósofo da igualdade, que reservou o reconhecimento como cidadãos apenas aos homens de bem, excluídos os artesãos e os menos iguais que os outros, como os trabalhadores braçais e serviçais domésticos, ou seja, a criadagem (Terra, R., 1995). Sobre o tema do igual e diferente, sugiro a leitura do opúsculo do sociólogo francês Alain Touraine, intitulado “Igualdade e diversidade – o sujeito democrático” (1988), tema central desta apresentação. Desprezando as evidências, que não quer enxergar, a razão soberana busca convencer a si mesma e aos outros de que a extensão de seu cobertor cobre adequadamente a realidade. Para tanto, recorre à lógica do princípio de identidade e não contradição, que lhe provê os argumentos. Com a lógica, a razão remove para baixo do tapete a parte sobrante da realidade, mediante a compensação estatística no caso da ciência experimental, afastando, mediante o caráter unívoco da função, as zonas de sombra que compromete¬riam a transparência do modelo, para ver espelhada nele a sua fantasia. Pormenor algum pode escapar-lhe à prestidigitação. Enquadra não ¬somente o universo conhecido, mas também o universo inteiro dos possíveis. A razão, ou a abstração autossuficiente, conhece por antecipação. Dispõe previamente de todas as respostas, antes que surjam as perguntas. Mobiliza e coloniza ¬todos os sistemas de explicação, que têm a função de corroborar a sua certeza delirante, perante um mundo agora ameaçador, tanto do lado de dentro quanto do lado de fora. Lembra o louco de G. K. Chesterton, que, por ter perdido tudo menos a razão, enxerga intenções conspiratórias no farfalhar das cortinas na janela. Assim, a realidade, que antes, na Política do Sujeito, se apresentava como uma paisagem a desfrutar, assume agora uma expressão sintomática, capaz de iluminá-lo em tempo de realizar o diagnóstico perturbador. Infelizmente, a Política do Conceito não se rende. Quanto mais o delirante se empenha em sujeitá-la ao espaço estreito de sua representação, digo o espaço da lógica e da matemática, mais ameaçadores se lhe parecem os sinais de resistência. A situação lembra as manchas do crime que se parecem mais intensas à medida que o criminoso não consegue apagá-las. Do encolhimento defensivo que daí resulta, o delirante, auto ameaçado de asfixia, passa a enxergar um número crescente de exceções a comprometer o seu modelo, que é então defendido com mais afinco ainda. Diante do insucesso recorrente, exacerbado no intento de remover a causa miste¬riosa do desconforto, o delirante acaba por votar ódio à realidade, ou a si mesmo, o que é a mesma coisa. Desconfio de que esse ódio tenha fincado as suas raízes no luteranismo, o credo praticado pela família de Kant, crédito segundo o qual o mundo terreno é do Diabo. O ódio pode expressar-se na modulação de várias árias sinistras. Se se tratar de um delirante afeito a ideias, irá engajar-se num ismo; se se tratar de regime político de partido único, irá implantar o terror; se se chamar Raslkólnikov, como o protagonista trágico de ¬“Crime e Castigo” que odeia a si mesmo, de Dostoieveski, irá confessar o crime antes que a polícia o reconheça. Se se tratar do casal de moral puritana, que teve a sua filha de nove anos beijada na face, na escola, por um menino da mesma idade, o casal intentará levar os pais do Don Juan-mirim às barras do tribunal, como ocorreu recentemente nos EUA. O postulado que funda a Política do Sujeito advoga que nenhum ser humano, nenhuma cultura, nenhuma civilização é esboço, ou projeto do que esteja por vir no futuro e de cujo proveito seriam beneficiários unicamente os que tiverem a sorte, ou o mérito neoliberal, de chegarem à estação final, cujas portas dão acesso à culminância da realização da espécie humana, como prediz Kant em sua “A paz perpétua”. Nas antípodas de Kant, o único desejo, diria Espinosa, é realizar-se, em busca da plenitude da existência, no presente, que, assim, se faz exponencial, na plenitude dos tempos. Foi para evitar a redundância que Aristóteles, em sua filosofia pragmática, dispensa a exclusividade no emprego de instrumentos de caráter racional, como a lógica e a matemática, sem, no entanto, desprezá-las, ao contrário. Refiro-me à exclusividade, tão somente. A Política do Sujeito, que consiste na pragmática de Aristóteles, constrói uma visão de comportamento moral que não se deixa conduzir por normas abstratas pré-estabelecidas, que indiquem o caminho certo a percorrer antes que se parta em viagem, pois o caminho se faz ao caminhar, como diz o poeta espanhol, Antônio Machado. Assim pensa também a sabedoria chinesa. Ou, como adverte Espinosa, bebe-se água porque se tem sede, e não porque se deve beber água. E diz ele ainda: Queremos o bem, com minúscula, não porque é o Bem, com maiúscula, mas porque o bem, com minúscula, é o bem, com minúscula, que queremos. Entre o Bem e o Mal, com maiúsculas, não há escolha: Quem haveria de escolher o Mal? Está aí, segundo Espinosa, a falácia de todo tipo de pensamento dualista, binário, dicotômico, racional, que nos sujeite às opções excludentes (sim ou não). O binarismo ocorre somente no plano da abstração e não no plano da realidade. Ao longo desta apresentação vou dar exemplos, retirados da literatura de ficção, de como a opção humana se inscreve na oposição conflitiva e solidária, na expectativa da realização do prazer, que se enxerga como a realização de outrem em si mesmo, como projetada no seu reflexo especular. Essas considerações são de capital importância no contexto desta apresentação: Política do Conceito (eu ou ele/a) versus Política do Sujeito (eu e ele/a). Nessa parte inicial da apresentação, tentei explicitar o que se entende, na visão de processo, por unidade conflitiva e solidária, entre continuidade e descontinuidade. Quando se intenta, como ocorre na construção das abstrações, de operar somente com a descontinuidade, que é a dimensão da realidade que caracteriza os conceitos, como elementos discretos, delimitados logicamente, tem-se um conflito excludente (eu ou ele/a) pois o princípio de identidade e não contradição, não aceita o sim e o não, ao mesmo tempo. Trata-se, então, de um jogo de mata-mata, o das guerras, da fome e do genocídio. Na política, nesse caso, assume-se o adversário como inimigo, que seria preciso eliminar, eliminando-se, assim também o jogo. Aí está a descontinuidade. Quando se comporta no plano da realidade, de acordo com a Política do Sujeito, que é o plano da continuidade, sem dissociá-la da descontinuidade, tem-se um conflito inclusivo (eu e ele/a). E é isso o que ocorreria na oposição conflitiva entre os adversários no jogo, o que configura um jogo de ganha-ganha. Nessa modalidade de jogo, não se prescinde do adversário, pois os adversários, perdendo ou ganhando a partida, exercitam-se no jogo, com vistas a um melhor desempenho nas partidas futuras. Aí está a continuidade. A isso se refere o princípio da exponenciação. Na metáfora do realejo e música nova, tem-se que um e outra deixariam de prosseguir na parceria, na ausência de sua unidade conflitiva e solidária em sua oposição inclusiva (eu e ele/a); o realejo, que deixaria de renovar o seu repertório, à falta de música nova; e a música nova, que deixaria de ser criada, na ausência do inventário cultural, no qual ela se inspira, contido no realejo. Realejo e música nova são contrafaces uma da outra, no contexto da criatividade na cultura musical, na sua totalidade, ou no seu processo. Está aí a visão unitária da realidade, ou monismo. Voltarei a essas questões, na explicitação de outras interfaces da Política do Sujeito, em contraposição à Política do Conceito. Ambas se contrapõem uma a outra, na epistemologia, como oposição entre a noção de processo e a noção de sistema (estrutura e função). Na visão de processo, o sujeito está presente e é a referência do contexto. Por operar na ausência de contexto, a noção de sistema exclui o contexto e, com ele, a noção de sujeito, associado à sua referência, que é o contexto, como responsável pelo comportamento, ou seja, pela ação. A ação do sujeito em contexto é de caráter complexo; a operação do sistema é de caráter linear, assim como é a máquina. O sistema é adequado a operar com objetos, ou abstrações, e não com o sujeito, ou a existência em contexto, que é real, e não uma abstração. Neste tópico, seguirei de perto as reflexões do filósofo e jornalista francês Régis Debray (1940 - ), em seu livro “O escriba, gênese do político” (1983), no qual ele enxerga a linguagem como a matriz do dualismo (ou binarismo) do conceito, aplicado ao poder de dominação e controle político e ideológico, e de sua contraface, a vassalagem. Sob esse aspecto, a ideia coincide com a de Hampty Dumpty, um ovo antropomórfico, dotado de rosto, braço e pernas, que aparece em diálogo com “Alice através do espelho”, de Lewis Caroll. A respeito de um debate com Alice sobre o significado de determinada palavra, Humpty Dumpty encerra a conversa, dizendo “Quem decide sou eu”. Régis Debray, dentro da mesma constelação semântica, escreve: “Seja vencida ou vitoriosa, o destino de uma língua se decide nos campos de batalha econômicos, militares ou diplomáticos. Não há uma língua inocente: cada língua cristaliza e reconduz uma relação histórica de forças...e, se uma língua não é colonizada é que por sua vez ela coloniza outras”. Esse dualismo caracteriza o uso da palavra a serviço do poder, ao aceno de um gesto antropológico de demarcação entre o interior e o exterior. A linha divisória vale como princípio de exclusão. Assim é que emerge no plano da abstração a separação artificial entre sujeito e objeto, assunto de que vou tratar em outra parte. “O primeiro que tendo cercado um terreno cuidou de dizer: este é meu”, escreve Rousseau (111111), naturalizando a propriedade privada, assim como o filósofo inglês John Locke havia feito dela um direito natural, que adviria da natureza, como as rosas no jardim. E assim também procedeu Kant, em sua teoria do Estado, ao atribuir ao Estado a garantia da propriedade. A respeito de Rousseau, Kant dizia que “Rousseau é o meu filósofo da Física” Essa delimitação é fundadora de mitologias. Assim, por exemplo, no mito da Fundação de Roma, o protagonista Rômulo, ao brigar com o seu irmão Remo, traça um risco no chão com a aiveca do arado, o “pomerium”, contorno sagrado da cidade, dentro do qual erigiria a cidade de Roma.