quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Gilberto Freyre e a USP

Gilberto Freyre e a USP Lincoln Seco Os exemplos das violências em Casa Grande e Senzala não são desprezíveis e nem gratuitos. Devemos nos perguntar por que o autor se viu obrigado a multiplicá-los 30 de janeiro de 2024, 19:50 hwhatsapp sharing buttonfacebook sharing buttontwitter sharing buttonsharethis sharing button ... No final do século XX foi noticiado: “Hostilidade histórica da universidade com sociólogo pernambucano é suavizada em evento uspiano dedicado a ele”[i]. A escolha do verbo “suavizar” convinha bem ao estilo de Gilberto Freyre. De acordo com professores de várias universidades ouvidos naquele seminário, houve por decênios uma disputa em torno do legado freyriano entre acadêmicos de São Paulo e de Pernambuco. Carlos Guilherme Mota declarou naquele momento que as “arengas” entre a universidade e Gilberto Freyre teriam começado em 1943, “com uma crítica contundente do professor de literatura Antonio Candido ao conservadorismo do autor pernambucano”. A relação de Freyre com o salazarismo, sua defesa do “mundo que o português criou”, o apoio ao golpe militar de 1964 e a aproximação com o governo Médici sacramentaram a preferência uspiana[ii] pela sociologia de Florestan Fernandes e por sua escrita científica contra o ensaísmo serpenteante e literário de Freyre. Entre a imagem do catedrático da USP de avental e líder de grupos de pesquisa e a do mestre de Apipucos[iii] esparramado à rede, haveria um abismo. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO DANTE MOREIRA LEITE - Na Universidade de São Paulo foi Dante Moreira Leite quem lançou o questionamento sistemático a Freyre. Apesar de sua carreira posterior no Instituto de Psicologia, Leite graduou-se em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL – USP), em 1950. Em 1954 defendeu sua tese de doutorado O caráter nacional brasileiro: Descrição das Características Psicológicas do Brasileiro através de Ideologias e Estereótipos, publicada em livro posteriormente. Em 1975 o historiador Carlos Guilherme Mota defendeu sua tese de livre docência publicada sob o título de Ideologia da Cultura Brasileira, com inúmeras reedições. Na tese, Gilberto Freyre tem um lugar central entre os autores que Mota classificou como ideólogos. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO Fique por dentro do 247 Receba diariamente nossa newsletter em seu email Email Enviar Freyre havia adquirido importância em 1933, quando lançou casa Grande e Senzala, porque seu livro trazia ares de vanguarda e beleza narrativa. Numa página que marcaria época, escrita décadas depois, Antonio Candido o situou ao lado de Caio Prado Júnior e Sergio Buarque de Holanda como um dos três explicadores do Brasil surgidos depois da Revolução de 1930. Também se destacou a crítica do racismo que Freyre fazia no início da década de 1930, embora não fosse uma novidade. O médico sergipano Manoel Bonfim, que recebeu algumas farpas em Casa Grande e Senzala por sua simpatia “desmesurada” aos indígenas, já havia combatido em sua América Latina: males de origem, as teorias racistas. Porém, à medida em que o cientificismo da época constituía uma forma mentis que aprisionava os próprios críticos dentro de seus limites conceituais, ele não se desvencilhou da linguagem da biologia social como Roberto Ventura e Flora Sussekind notaram. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO Também Euclides da Cunha, apesar de fazer um livro favorável aos grupos subalternos, não escapou de estudá-los à luz de teorias racialistas da época. Sobressaiu-se, é verdade, pela revolução na forma, pela escrita adjetivada de dicionário, pelo vocabulário de bulas de remédio, tratados científicos, manuais militares e relatórios técnicos; e que, ao fim, concretizou-se numa grande obra literária tão inclassificável quanto o Facundo de Sarmiento. O que Freyre agregou de novo foi o vasto conhecimento do que de mais avançado se discutia na antropologia, incorporando do debate estrangeiro aquilo que lhe permitia justificar a mestiçagem que ele identificou como uma característica brasileira. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO Dante Moreira Leite é taxativo, entretanto: “E aqui aparece uma diferença fundamental entre Euclides da Cunha e Gilberto Freyre: enquanto o primeiro, embora aceitando uma teoria errada, nem por isso deforma os fatos que observa, Gilberto Freyre realiza uma tarefa quase oposta: dispõe de uma teoria correta, mas ignora os fatos, de maneira que deforma a realidade”[iv]. Euclides percebeu a inadequação de sua teoria e os limites de seus conhecimentos face à realidade que encontrou e, desajudado das leituras de sua época, recompôs o real pela observação e talento narrativo. Explorando as afirmações contraditórias de Freyre em suas diversas obras, Dante Moreira Leite condenou o seu método por não utilizar recursos quantitativos e se limitar à história anedótica e pitoresca, interpretada do ponto de vista da classe dominante. Isso levou Freyre a afirmações sem base documental, ou ancorada em análises distorcidas das fontes, como a de que o negro se alimentava tão bem ou até melhor que o senhor para aguentar as tarefas produtivas, sendo os homens pobres livres os esquálidos, mal alimentados e inúteis para o trabalho. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO Não passou pela mente de Freyre a ideia de verificar a vida média útil do escravo e os números do tráfico, para deduzir a mortandade e a constante substituição daqueles que os senhores tratavam como “peças”. Para ele, a vida do escravo “não era apenas de alegria”… O advérbio dispensa comentários. CARDOSO, MOTA E NOVAIS - As investigações sobre relações raciais em São Paulo dirigidas por Florestan Fernandes e por Roger Bastide na década de 1950, sob os auspícios da Unesco, em grande medida sepultaram a ideia de democracia racial, termo que Freyre não usou em Casa Grande e Senzala, mas que ficou colado à sua imagem. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO O historiador Carlos Guilherme Mota fez sua crítica num momento decisivo. No auge da Ditadura ele se dispôs a confrontar luminares da cultura brasileira como seu professor Sergio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Mota perscrutou antes a ideia de revolução, numa tese importante antes de tudo como exercício metodológico. Seu orientador Eduardo D’ Oliveira França havia escrito uma bela tese sobre Portugal na Época da Restauração, em estilo braudeliano, cuja importância era fundamentalmente a de apresentar um método para o estudo das mentalidades no século XVII. CONTINUA APÓS O ANÚNCIO Na esteira do seu orientador, mas recusando o conservantismo daquele, Mota procurou as “tomadas de consciência” do processo histórico, ou seja, a “conscientização da realidade vivenciada” no final do século XVIII. As manifestações mentais, para Mota, não podiam ser emancipadas da história social e econômica. Conceitos cristalizam transformações em curso e, ao mesmo tempo, são catalisadores de processos de tomada de consciência[v]. Na sua pesquisa, ele construiu uma classificação histórica móvel, fluida, em que emergiram formas revolucionárias de consciência, mas também as formas ajustadas ao sistema e as intermediárias. Tratava-se de um livro inspirado pelas revoluções africanas que estavam deitando por terra o “mundo que o português criou”. Mas, surpreendentemente, Mota se voltou a outra tarefa, decerto também pioneira, mas que conduziu a resultados menos objetivos. A crítica de Mota a Gilberto Freyre aparecerá em seu polêmico Ideologia da Cultura Brasileira. Mota preferiu a polêmica do presente e o engajamento na batalha de ideias. Independentemente do juízo que se possa fazer, o livro de Mota se tornou único, posto que foi uma tentativa de história crítica abrangente de uma ideologia. Desigual, oscilou de um questionamento preciso da ideologia do mandarinato da própria universidade ao questionamento ligeiro a um autor como Nelson Werneck Sodré[vi], acusado de stalinista, populista, esquemático e apressado, como se este fosse dotado apenas de uma “rígida e mecânica teoria das classes sociais”, como continuou afirmando depois[vii]. Não é preciso dizer que Nelson Werneck Sodré era um contumaz crítico da ideologia dominante. Seus erros e acertos não colocavam em julgamento aquela condição. A resposta de Sodré não se fez demorar, fez críticas objetivas à tese de Mota, mas também resvalou para a excessiva adjetivação e a acusação generalizada contra “a insuficiência da USP” no campo das ciências sociais.[viii] Girando a mira para outro lado, Mota propôs a leitura de Casa Grande & Senzala como expressão de uma elite aristocrática e decadente[ix]. Teria sido a saga da oligarquia dissidente. Freyre representou, segundo Mota, “um projeto suavizador de contradições em contraposição a um projeto histórico sociológico que examina os conflitos na transição de uma sociedade estamental escravista para uma sociedade de classes, em condição periférica”[x]. Mota encontrou em Freyre um “método dialético negativo” através do qual as polarizações, antagonismos e conflitos são harmonizados[xi]. Fernando Henrique Cardoso também acentuou, alguns anos depois, o equilíbrio de antagonismos e viu em Freyre “a idéia mitificada de nós mesmos, do Brasil, que é necessária para dar a identidade nacional”.[xii] Outro professor da USP, Fernando Novais afirmou que Freyre “analisa sempre o Brasil a partir de seu passado, isto é, daquilo que deixou de ser; Caio Prado Jr., ao contrário, pensa sempre o país pelas suas potencialidades, isto é, pelo que ele pode vir a ser. Se esta visão talvez possa considerar-se utópica, a primeira é seguramente nostálgica”.[xiii] Freyre era um assumido saudosista, como comprovam as belas páginas iniciais de Casa Grande e Senzala e os comentários desenganados sobre os filhos dos engenhos abandonados, morando em chalés suíços e frequentando bordéis de Paris. Para ele, o escravo foi substituído “pelo pária de usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro capitalista ausente. As casas foram abandonadas por latifundiários rodando de automóveis pelas cidades”.[xiv] Mas tradicionalismo e conservadorismo são duas coisas diferentes, como ensinou Mannheim, ainda que haja também coincidências entre as duas atitudes. Em Freyre há um programa conservador que visa antes de mais nada direcionar a política para um dado rumo, ditar-lhe os ritmos e moderar os arroubos radicais. VIOLÊNCIA - Para os críticos Freyre não ocultava os conflitos sociais, mas eles eram secundários em sua obra, apareciam apaziguados e amolecidos. Ele teria sido, por exemplo, sagaz ao incorporar o negro numa ideologia nacional brasileira. Inúmeras páginas de Casa Grande e Senzala foram dedicadas a comprovar a igualdade de talentos entre negros e brancos. Mas em seguida, ele relativiza o rigor e a dureza das relações sociais entre a casa grande e a senzala através da “aliança da ama negra com o menino branco, da mucama com a sinhá-moça, do sinhozinho com o moleque”. À mesa patriarcal numerosos mulatinhos, segundo Freyre, sentavam-se como filhos e “moleques de estimação” e até acompanhavam os senhores em passeios de carro[xv]. Ele recorreu a vários viajantes para afirmar, como regra, o grande número de molequinhos negros e mulatos criados dentro da casa grande “com mimo extremoso” (a expressão é retirada de Vilhena). Há um deslizamento persistente do eito para as relações interiores à casa grande, da plantation para a cozinha, da documentação sobre o gerenciamento do engenho para a dos costumes, da história econômica para a história íntima. Se isso fez de Freyre, ao lado de Alcântara Machado[xvi], um pioneiro da história do cotidiano muito antes de chegar ao Brasil a moda historiográfica francesa, por outro lado embaçou o mundo da produção material onde não havia espaço para a conciliação dos opostos. Freyre foge das relações de produção e se refugia nas de reprodução sexual. Não que estas fossem menos violentas e veremos que ele não oculta esse fator; mas nelas abre-se uma brecha para a esfera humanizada, senão do amor, ao menos do eventual prazer mútuo e até de alianças estáveis, na visão freyriana. Já o trabalho no eito, sob o signo do desprazer máximo, passa ao largo da maioria das descrições freyrianas. O trato e o distrato, o acordo e o desacordo, mesmo gerando torturas e mortes, deslizam para o reino das individualidades. Caio Prado Junior escreveu depois que, no Brasil-colônia, o “amor da senzala não realizou e não podia realizar” a “esfera propriamente humana do amor” em que o “ato sexual” se envolve de um “todo complexo de emoções e sentimentos” que chegam a fazer passar para “o segundo plano aquele ato que afinal lhe deu origem”.[xvii] Freyre sentiu o golpe e numa nota a uma edição posterior de seu livro Casa Grande e Senzala, ele mudou de assunto e reivindicou para si a caracterização da colônia a partir da tríade “grande propriedade, monocultura e trabalho compulsório”. Embora considerando extraordinário o trabalho de Caio Prado, este teria apenas confirmado a ideia esboçada por ele (Freyre) em 1933[xviii]. Não é o caso aqui de debater essa afirmação, bastando dizer que o livro de Caio Prado Júnior não se limitou a revelar aqueles fundamentos da colonização; ele os situou num sistema colonial que Gilberto Freyre ignorou, embora tenha feito alusões a um “sistema” indefinido e abstrato quando se tratava de explicar, às vezes justificar, de onde provinham os males sociais da colônia. Os vícios, para Freyre, são inseparáveis da economia escravocrata e os traços positivos de nossa formação adviriam de inclinações culturais. Para ele, o menino educando de tez branca foi vítima quase tanto quanto o escravo do sadismo patriarcal. Isso porque ambos eram partes dominadas num sistema. Nesse caso, a definição do sistema não envolve diretamente a economia, mas o poder masculino patriarcal. Assim, crianças brancas foram submetidas a palmatórias, vara de marmelo, às vezes com alfinete na ponta, puxão de orelha, beliscão, cascudo etc. Mulheres brancas eram estupradas, espancadas e assassinadas pelo marido. O “sistema” seria o responsável também pela antecipação da atividade sexual, pela ignorância das mães, pela transmissão de doenças, modos grosseiros, linguagem viciosa etc. Mas a explicação se detinha num nível macroestrutural ininteligível e não havia mediações que integrassem os fatos num processo histórico racional, perdendo-se tudo no pitoresco e na exceção. É verdade que ele explica a luxúria dos portugueses que, “soltos sem família, no meio da indiada nua, servia a razões de Estado, povoando a sociedade colonial num largo e profundo mestiçamento”[xix]. Mas em seguida, a escassez de mulheres brancas serve para justificar, sem provas, o surgimento de zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos: “Sem deixarem de ser relações – as dos brancos com as mulheres de cor – de “superiores” com “inferiores” e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro dessas circunstâncias e sobre essa base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido de aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação. A índia e a negra-mina a princípio, depois a mulata, a cabrocha, a quadrarona, a oitavona, tornando-se caseiras, concubinas e até esposas legítimasdos senhores brancos, agiram poderosamente no sentido da democratização social no Brasil”. De toda maneira, a simples menção às violências coloniais não é algo desimportante, como veremos a seguir, ainda que o autor as modere. O problema para o autor estaria novamente no “sistema”. As relações interpessoais corrigiram-no até onde foi possível. O sistema freyriano é situado na esfera da necessidade histórica. Citando Oliveira Martins, Freyre se indaga se teria sido um crime a escravidão e responde: “para alguns publicistas foi um erro enorme. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português do Brasil”[xxi]. REGISTROS - Os exemplos de violência nas relações interpessoais são fortes no livro Casa Grande e Senzala. Há o senhor que mandou matar dois escravos e enterrá-los nos alicerces da casa; há o Visconde de Suaçuna que mandava enterrar no jardim os negros supliciados por sua “justiça patriarcal”.[xxii]Em muitas casas grandes foram desenterrados ossos de escravos. Freyre registra senhores mandando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas grávidas. O rancor sexual levava sinhás moças a mandar arrancar os olhos de mucamas bonitas e os serviam ao marido, na sobremesa, dentro de compotas de doce, boiando em sangue[xxiii]. Nas brincadeiras brutas, os filhos de senhores de engenho montavam os moleques como cavalo de montaria ou carros de cavalo em que os meninos negros e até meninas serviam de parelhas, sob um barbante como rédea e um galho de goiabeira por chicote. Não há brasileiro das classes elevadas que “não se sinta aparentado do menino Brás Cubas na malvadeza e no gosto de judiar com negro”. Os dominados não são sempre apagados enquanto sujeitos, embora Freyre acentue quase sempre a resistência adaptativa, abrindo espaço para a negociação. Ele registra a violência e artimanhas dos dominados como o rapto de índias feitos por quilombolas; as sinhás que se podiam roçar nos negros da casa para aplacar o fogo do meio de suas saias e saiotes e de seu isolamento social; embora Freyre, uma vez mais criticando Manoel Bonfim, achasse isso muito raro. As histórias de filhas e esposas assassinadas por senhores de engenho se deviam a estes serem enredados por padres ou “negras enredeiras”. Mas não só a vingança relacionava sinhás e escravas e estas podiam ser também alcoviteiras. As relações sexuais, cuja descrição é quase idílica no que tange ao encontro entre os portugueses e indígenas, é também ressaltada em seu aspecto violento como “práticas sadistas e bestiais”, como vimos anteriormente: “As primeiras vítimas eram os moleques e animas domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro de carne: a negra ou a mulata”. A melancia e a fruta do mandacaru “com seu visgo e sua adstringência quase de carne” também serviam de iniciação. Animais, mulheres, meninos e frutos se igualavam[xxvi]. Para Freyre, o missionário europeu trouxe extermínio e degradação, as doenças e a repressão à homossexualidade de indígenas. Ao mesmo tempo, citava os meninos brancos sonsos, criados na barra da saia da ama de leite, da mucama e da sinhá que se perdiam e se degradavam como efeminados[xxvii]. Cheio de contradições, Freyre não escreveu um tratado em que predominava o caráter científico. Antes, nos legou um ensaio ideológico, sem dúvida, porém brilhante e calcado em muitas informações. Em que autor encontraríamos o registro de que o brasileiro historicamente veste a cor vermelha e não o verde e amarelo, seja no interior de São Paulo ou no norte e nordeste? As origens da valorização do vermelho estão, para Freyre, simultaneamente na cultura portuguesa, africana e, particularmente, indígena.[xxviii] A casa grande, expressão do comando do sistema de produção e das relações sociais, seria, apesar de tudo, a melhor expressão de nossa “continuidade social”[xxix], e nela encontramos a única possibilidade de uma história social totalizante do Brasil. CONCLUSÃO - Passados vários decênios do movimento crítico à obra de Freyre, podemos hoje recalibrar os instrumentos analíticos e aquilatar o autor à luz do país a que chegamos. Cada momento histórico nos permite ler um autor relevando aspectos diferentes de sua obra. No caso em tela, lembramos do registro da violência em Casa Grande e Senzala. É preciso também rever um dos pontos equivocados na crítica a Gilberto Freyre e que o historiador Nelson Werneck Sodré lembrou: Freyre foi um autor que passou por muitas fases. Pode ter defendido posturas racistas antes[xxx], mas não depois de 1930; assim como foi progressista em 1945 e reacionário em 1964. Basta lembrar sua simpatia pela Esquerda Democrática no fim do Estado Novo e seu papel na Constituinte, apesar de ser deputado da União Democrática Nacional (UDN). De liberal a apoiador do governo Médici e da perseguição a intelectuais como Florestan Fernandes, passaram-se algumas décadas. Outro elemento a se reconsiderar é o papel de sua origem regional e de classe. Embora possa ter fornecido uma moldura importante, ela não determinou de maneira inescapável o seu pensamento. Não seria inusual encontrar uma posição crítica no conservantismo aristocrático, como no monarquista reacionário Eduardo Prado com seu libelo antirrepublicano e contrário ao imperialismo estadunidense: A Ilusão Americana. Quando Fernando Henrique Cardoso intitulou um artigo sobre Freyre com a expressão “grande indústria & favela”, pretendeu falar a partir de São Paulo para um intelectual conservador de Pernambuco. Mas sua blague perdeu o sentido rápido com a desindustrialização do país que ele mesmo promoveu e, hoje, ele teria que escrever “o grande agronegócio e a favela”. O nosso dever é historicizar o pensamento, por isso aqui me detive exclusivamente em Casa Grande e Senzala, pois me faltaria a inclinação, o espaço e o tempo para tratar de toda a obra de Gilberto Freyre. Suas posições conservadoras posteriores foram mobilizadas apenas para explicar os seus críticos e não a ele mesmo, pois seria necessário avaliar seus muitos livros, intervenções públicas e sua carreira política, além de ser impossível qualificá-lo como ideólogo sem atentar para o fato de que todos, de algum modo, estamos envoltos numa ideologia. Os inúmeros exemplos das violências em Casa Grande e Senzala não são desprezíveis e nem gratuitos. Devemos nos perguntar por que o autor se viu obrigado a multiplicá-los. Ainda que não quisesse desenhar um quadro diverso do sistema que idealizou, os fatos que ele sentiu necessidade de descrever revelaram, pela força e atrocidade, algo dissonante de qualquer idealização de uma democracia racial. No entanto, no conjunto, Casa Grande e Senzala forneceu uma ideologia que ocultou a exploração racial e de classe no Brasil. A natureza barroca do seu estilo levou Freyre aos limites da crítica de um sistema que, ao fim e o cabo, ele preferiu amansar e contornar.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Aristoteles priimeiro livrfo da Política sobre

Aristoteles priimeiro livrfo da Política sobre https://www.academia.edu/37015532/Some_Remarks_on_the_First_Book_of_Aristotles_Politics?email_work_card=thumbnail

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Rússia e o Ocidente

PATRICK LAWRENCE: A saída da Rússia do Ocidente 22 de janeiro de 2024 Salvar Os comentários recentes de Sergei Lavrov são um caso em que o subtexto é muito maior do que o texto. Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, durante negociações Rússia-Emirados Árabes Unidos em dezembro de 2023. (Sergei Savostyanov, TASS) Por Patrick Lawrence Especial para Notícias do Consórcio S ergei Lavrov, o firme, capaz e intelectualmente rápido ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, realizou na semana passada uma daquelas amplas conferências de imprensa que ele e o seu chefe preferem. As observações de Lavrov são feitas de forma subtil, mas têm um significado que não devemos perder. A Tass publicou um resumo útil deles em 18 de janeiro. Aqui estão algumas das observações mais contundentes de Lavrov. O primeiro deles apareceu sob o subtítulo “Sobre os amigos da Rússia”. Tomo a liberdade de limpar um pouco a tradução em inglês: “As relações entre a Rússia e a China atravessam actualmente o melhor período da sua história secular. As suas relações são mais firmes, mais fiáveis ​​e mais avançadas do que uma união militar tal como as entendíamos na era anterior da Guerra Fria. Em todos os casos, os interesses da Rússia e da China alcançam um denominador comum após a negociação, e este é um exemplo para a resolução de quaisquer questões por quaisquer outros participantes na comunicação global. As relações de cooperação particularmente privilegiada com a Índia desenvolvem-se gradualmente. A Rússia também leva as relações com os Estados africanos a um nível verdadeiramente estratégico. Desenvolve relações com o continente latino-americano. O círculo próximo da Rússia também inclui o Irão, a Turquia, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Qatar.” Aqui está Lavrov sobre o grupo BRICS-Plus, que se expandiu no ano passado a partir dos seus membros originais, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul: “Cerca de 30 estados estão interessados ​​na aproximação com o BRICS. Esta associação tem um grande futuro. Sendo uma estrutura global super-regional, o BRICS simboliza a diversidade de um mundo multipolar.” A certa altura, Lavrov voltou-se, inevitavelmente, para o conflito na Ucrânia: “Não cabe à Ucrânia decidir quando parar e quando falar seriamente sobre condições prévias realistas para o fim deste conflito. É necessário conversar com o Ocidente sobre isso. O Ocidente não quer uma resolução construtiva que tenha em conta as preocupações legítimas da Rússia. Isto é indicado pelo incitamento e coerção de Kiev para o uso cada vez mais agressivo de armas de longo alcance para atacar a Crimeia, a fim de torná-la inadequada para a vida, bem como para o interior do território russo, e não apenas o incitamento, mas a entrega de armas correspondentes também." Três questões práticas interpretadas pelo principal diplomata da Rússia numa revisão do “trabalho diplomático da Rússia em 2023”, como disse a TASS. Isto já é bom, mas os comentários de Lavrov são um caso em que o subtexto é muito maior do que o texto. O objectivo da Rússia em 2024 – isto é novamente a TASS – é “eliminar qualquer dependência do Ocidente”. Tenho certeza de que você conhece o velho ditado, derivado de um hino cristão do século XVIII: “Deus se move de maneiras misteriosas”. A história também. Consideremos, então, brevemente esta história. A conferência de imprensa de Lavrov está repleta de referências implícitas a ele. Noções de Progresso Praça Vermelha, Moscou, 2015. (Misha Sokolnikov, Flickr, CC BY-ND 2.0) A Rússia é considerada entre os estudiosos o que é chamado de “um desenvolvedor tardio”. Tais nações são assim chamadas porque estavam um século ou mais atrás do Ocidente quando este entrou na era dos avanços científicos e industriais e depois - lamentavelmente, eu diria - na Era do Materialismo. Ferrovias, linhas telegráficas, navios a vapor, fotografia, aço Bessemer e todo o resto: os últimos desenvolvedores, atrasados ​​nessas tecnologias, olhavam para o Ocidente com inveja misturada com uma sentida inferioridade. O principal caso de desenvolvimento tardio é o Japão. Tanto entre os russos como entre os japoneses, a condição de estarem “atrasados” produziu profunda confusão quanto à identidade e ao seu lugar no mundo moderno. Essa confusão ainda é facilmente detectada. Na sua essência residem dois mal-entendidos muito importantes. Primeiro, existe a noção ocidental fraudulenta de “progresso”, que se tornou uma ortodoxia a partir de meados do século XIX. Digo “fraudulento” porque a história não avança em linha recta e o progresso é medido no Ocidente estritamente de acordo com os avanços materiais. Em questões de ethos, humanidade, igualdade, gestão ambiental, resolução de conflitos – do espírito humano em geral – o Ocidente continua a ser mais primitivo do que muitas sociedades “primitivas”. Dois, e o ponto mais importante aqui, a partir do século XIX, só havia uma maneira de modernizar. Todos os colonizados que escolheram a via capitalista compreenderam o imperativo desta forma: modernização = ocidentalização. De repente, avançar, fazer futuro no mundo moderno, significava repudiar quem se era e imitar ser outra pessoa. Quão difícil é imaginar as profundas perturbações e distorções – no fundo psicológicas, mas também políticas, sociais, económicas e culturais – que surgiram em consequência deste equívoco? Considero a equação entre modernização e ocidentalização, medida pelos danos extravagantes que causou, entre os erros mais graves do final do século XIX e de todo o século XX até aos nossos dias. A Rússia passou quase três séculos neste estado de turbulência e – talvez um termo não muito forte – desorientação. Períodos de conservadorismo ortodoxo foram seguidos por ciclos de liberalização virada para o Ocidente, seguidos por um regresso a tradições anteriormente abandonadas, que incluíram ao longo de muitos anos um regresso à reacção e uma nova valorização de um ou outro tipo de nativismo e nacionalismo. Um novo curso Cerimônia de boas-vindas dos Emirados Árabes Unidos ao presidente russo Vladimir Putin, Abu Dhabi, 6 de dezembro de 2023. (Presidente da Rússia) Há outro fator a considerar. Desde a década de 1830 até às expansões da OTAN pós-Guerra Fria, ao horrível programa liderado pelos EUA para transformar a Federação Russa num festival de ganância capitalista após o colapso da União Soviética, e agora ao conflito na Ucrânia, a luta da Rússia para se compreender tem sido acompanhada por mais ou esforços ocidentais menos incessantes para remodelar decisivamente a Rússia à imagem do Ocidente. Não podemos compreender a conferência de imprensa de Lavrov, ou muitas, muitas das coisas que Vladimir Putin disse nestes últimos anos, sem este contexto histórico. Com tantas palavras, todas elas bem escolhidas, o Ministro dos Negócios Estrangeiros e o Presidente anunciaram que a Rússia deixará de olhar para o Ocidente à medida que avança para o século XXI. A modernização não significará mais ocidentalização. Seria totalmente impossível exagerar a magnitude histórica daquilo que a Rússia estabeleceu como o seu novo rumo. Vivemos nos tempos mais interessantes, dito de outra forma - mesmo que a maioria de nós, hipnotizados pela propaganda da eterna superioridade ocidental, não consiga ver um metro e meio à nossa frente enquanto os acontecimentos mais significativos do nosso tempo se desenrolam. Muitas coisas agora se encaixarão. Lavrov, ao enumerar os membros do “círculo próximo” da Rússia, descreve, alguns anos depois, a “nova ordem mundial” à qual os chineses frequentemente se referem. A carta de 5.000 palavras que Putin e o presidente chinês Xi Jinping tornaram pública há dois anos no próximo mês, “ Declaração Conjunta da Federação Russa e da República Popular da China sobre a Entrada nas Relações Internacionais numa Nova Era e o Desenvolvimento Global Sustentável ”, pode ser entendida agora como o seu colunista o chamou na altura: o documento político mais importante a ser publicado até agora no século XXI. Gordon Hahn, o talentoso estudioso da Rússia e da Eurásia, apresentou na semana passada uma soberba história das relações da Rússia com o Ocidente durante uma aparição na semana passada no The Duran, o programa diário na Internet produzido por Alexander Mercouris e (neste caso) Glenn Diesen. No decurso desta longa e rica entrevista, Hahn observa: “Putin, como afirmou repetidamente recentemente, as elites [russas] demonstram rotineiramente que já não confiam em ninguém no Ocidente”. Ele elabora: “Para a Rússia, parece agora, o Ocidente já não é o seu 'Outro'.… A Rússia sempre se identificou, motivou-se, impulsionou-se em relação à Europa. Agora Putin está se afastando disso. Disse que já não devemos definir-nos, olhar para nós próprios, através do prisma europeu. Por enquanto, colocaremos todos os nossos ovos na mesma cesta, e essa é a Eurásia…. Esta estreita relação bilateral, da Europa como o Outro da Rússia, está a terminar e, portanto, o ciclo [do conservadorismo à ocidentalização e vice-versa] está provavelmente a terminar.” Este momento já demorou muito para chegar. Uma leitura superficial do passado leva-nos de volta a 1990-91, quando Michail Gorbachev aceitou a garantia de Washington – sem um documento assinado, de forma imprudente – de que a OTAN não se expandiria para leste a partir da Alemanha reunificada. Como é bem sabido, seguiram-se 30 anos de traições e desonestidade diplomática enquanto Moscovo procurava uma nova arquitectura de segurança que proporcionasse à Federação Russa um lugar naquela “casa europeia comum” pela qual Gorbachev ansiava. “Estou extremamente pessimista”, diz Hahn sobre as perspectivas para as relações EUA-Rússia. “Não vejo que, mesmo com um acordo entre a Rússia e a Ucrânia, o Ocidente deixe de tentar expandir a NATO. Tentarão repetir o mesmo cenário, a menos que algo mude no próprio Ocidente, em Washington.” O mundo gira, mesmo quando o Ocidente declina ou é incapaz de girar com ele. O teaser do segmento do The Duran com Gordon Hahn diz: “A Rússia encerra 300 anos de política externa centrada no Ocidente”. Isso é grande. Raramente fica maior. Os caminhos misteriosos da história estão diante de nós. Patrick Lawrence, correspondente no exterior há muitos anos, principalmente do International Herald Tribune, é colunista, ensaísta, conferencista e autor, mais recentemente de Journalists and Their Shadows , disponível na Clarity Press ou via Amazon . Outros livros incluem Time No Longer: Americans After the American Century . Sua conta no Twitter, @thefoutist, foi permanentemente censurada.

terça-feira, 16 de janeiro de 2024

Jacques Baud guerra na ucrânia bbb

https://www.youtube.com/watch?v=-zXOYZa7X24 "Jacques Baud : Guerre hybride, propagande et art opératif russe"