quarta-feira, 2 de maio de 2018

Thatcherismo abriu as portas da barbárie, que não fecharam até hoje

Quatro décadas atrás, Margaret Thatcher iniciava a campanha que não somente a conduziria ao posto de primeira-ministra do Reino Unido, mas também lançaria um modelo que acabou por conquistar o mundo. Os princípios do thatcherismo viraram as certezas globais de ponta-cabeça. E, bem no centro do projeto, havia uma mentira enorme.
Havia uma frase que, lá em 1978, ela repetia e repetia: "Não podemos continuar gastando mais do que estamos ganhando". Mas ela criou uma economia baseada em quase todo mundo fazendo exatamente isso.
Quando ela assumiu o poder, em 1979, o nível de dívida privada (de pessoas e empresas) estava por volta de 60% do PIB britânico. Essa medida começou a ser calculada em 1880. Durante um século, nunca ultrapassou 72%, e ficava na média em 57%.
A partir da chegada de Thatcher, esse índice explodiu, e continuou explodindo posteriormente, no governo de Tony Blair, que em vários sentidos foi o seu herdeiro intelectual. Em 2010, beirou um alucinante 200%.
Esse desenvolvimento representa o triunfo do capital financeiro. Foi uma revolução dos bancos. Thatcher iniciou o processo de desregulamentação do setor. Os bancos passaram a poder fazer tudo que quisessem. E o que fizeram, é claro, foi semear dívida. O sonho do setor financeiro é transformar todos em escravos da dívida. A dívida do cidadão é o patrimônio do banco. E o maior potencial para isso estava no mercado imobiliário.
Margaret Thatcher e Tony Blair, em foto de arquivoDireito de imagemPA
Image captionMargaret Thatcher e Tony Blair, em foto de arquivo; para colunista, modelo iniciado pela ex-premiê tinha uma 'mentira enorme' em sua estrutura
Thatcher promoveu como nunca antes o sonho da casa própria. E enquanto os preços subiam que nem balões, parecia - pelo menos no curto prazo - uma boa ideia. Mas o que estava por trás do aumento incrível do preço dos imóveis?
A resposta clássica seria que uma casa vale o que o comprador está disposto a pagar. Mas, nesse caso, não vale. Porque ninguém estava comprando, era tudo financiado. Nesse caso, a casa valia o que o banco estava disposto a emprestar - um montante crescente, daí o aumento dos preços. Então, uma casa que antigamente valia um salário médio de três anos de repente passou a valer um de 40 anos.
Mas o aumento do mercado imobiliário consiste somente em parte da revolução de Thatcher. Houve também o enfrentamento à mão de obra organizada.
Depois da Segunda Guerra Mundial, governos no Ocidente promoveram políticas econômicas de emprego pleno. Com sindicatos fortes, a mão de obra ganhava cada vez mais. Depois de três décadas, isso obviamente passou a produzir inflação: uma vez que os trabalhadores recebiam aumentos, a maneira mais fácil para as empresas manterem o lucro era elevando os preços, causando um círculo vicioso.
Thatcher e seus aliados chegaram à conclusão de que era impossível ter uma economia moderna com sindicatos fortes. Leis e tecnologias novas foram usadas para quebrar o poder dos sindicatos, e fábricas foram deslocadas para o terceiro mundo, onde dava para pagar muito menos.
No auge do boom, Alan Greenspan, durante muitos anos presidente do Banco Central dos Estados Unidos (Fed), comentou sobre um paradoxo aparente: a produtividade do empregado subia, mas os salários, não. Atribuiu isso ao "trabalhador apavorado", a essa altura, preocupado demais em perder o emprego (e consequentemente a casa) para reivindicar um aumento.
Crise de hipotecas nos EUA, em foto de 2007Direito de imagemAFP
Image captionImplosão do mercado imobiliário na crise de 2008 se deve à expansão do crédito iniciada na era Thatcher
Greenspan falou num tom de triunfo. Mas eis aí a bomba-relógio do projeto Thatcher, Reagan e etc.: como manter o consumo numa época assim? Com a expansão do crédito. Mas como conciliar isso com o aumento tão significativo do preço da moradia? Uma bolha no preço dos imóveis de um lado, salários estagnados e menos segurança de emprego do outro. Desequilíbrio total vira uma questão de tempo.
Chega um momento em que as pessoas não conseguem mais pagar as suas dívidas. Surge o perigo de um calote em massa. O sistema acaba balançando em cima de uma cabeça de pino. Desmoronou em 2008, e parece que até agora ninguém achou uma saída.
Existe um velho ditado no setor bancário: nunca empreste para quem precisa. Na revolução de Thatcher, os bancos deixaram isso de lado. Quando se empresta para quem precisa, o lucro é mais alto. Mas vem com riscos. E os bancos foram semeando dívidas, até quebrarem sobre o peso dos empréstimos tóxicos. Aí entra a velha história: enquanto deu certo, os lucros astronômicos foram distribuídos entre agentes privados. Quando o sistema quebrou, foi a sociedade que pagou o pato, sofrendo com o corte de gastos sociais, numa tentativa fútil de equilibrar as contas.
As consequências disso são terríveis no primeiro mundo - cada vez mais pessoas dormindo nas ruas, por exemplo. No Brasil atual, é simplesmente apavorante. O desequilíbrio entre o preço da moradia e a situação de emprego, a desigualdade histórica, o culto do consumo, a violência urbana…
As portas da barbárie estão abertas. Quatro décadas depois do crescimento do thatcherismo, precisamos com urgência de um novo modelo.
*Tim Vickery é colunista da BBC Brasil e formado em História e Política pela Universidade de Warwick.

Xadrez do caos armado e dos pais da pátria, por Luis Nassif

Conforme previsto há tempos, encerrado o ciclo Lula-PT, ingressa-se em uma nova etapa da Lava Jato, superando o período no qual todos os abusos eram perdoados.  Cessada a blindagem, a Lava Jato começa a ser questionada pelos tribunais superiores, em alguns casos em defesa das prerrogativas desses tribunais, em outros, em defesa prévia sobre os avanços contra políticos aliados.
Tem-se um quadro complexo.
Aberta a caixa de pandora, os procuradores querem avançar além do fator PT. Ficou nítido nas manifestações da Lava Jato paulista sobre a perda do foro privilegiado do ex-governador Geraldo Alckmin. Agora, na mira, está também um dos principais operadores do PSDB, o banqueiro Ronaldo César Coelho, estreitamente ligado a José Serra, e com as contas bloqueadas na Suíça. Sua prisão, e uma investigação séria, promoveria uma verdadeira hecatombe no que restou do partido.
Esse episódio precipitou uma série de movimentos.

Peça 1 – o fator tribunais superiores

Nas últimas semanas, os tribunais superiores – STF (Supremo Tribunal Federal) e Superior Tribunal de Justiça (STJ) – resolveram enfrentar, finalmente, o juiz Sérgio Moro.
O STF, através dos votos de Gilmar Mendes, Dias Tofolli e Ricardo Lewandowski, retirou de Moro vários processos contra Lula, todos baseados na mesma “teoria do fato”, juntando medidas que beneficiaram as empreiteiras com os casos tríplex e sítio de Atibaia.
Ao mesmo tempo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou para um juiz do Distrito Federal a decisão sobre um habeas corpus para um português envolvido na Lava Jato.
Moro reagiu, em franca desobediência a ambos os tribunais, provocando reações vigorosas da parte dos desembargadores do STJ.
Ao mesmo tempo, o STF pediu providências para o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), contra manifestações do procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, o mais agressivo dos procuradores da Lava Jato. E avisou que, se não forem tomadas providências, o próprio STF agirá de ofício.
E há, no CNJ, uma representação contra Sérgio Moro pela divulgação ilegal das conversas de Lula com Dilma – que foi um dos principais fatores políticos para o golpe do impeachment. A divulgação foi autorizada pelo então PGR Rodrigo Janot.
Lewandowski está onde sempre esteve. A mudança de posição de Gilmar Mendes – que voltou a ser o garantista de antes do mensalão – se deve ao fator Ronaldo César Coelho. O algoritmo mágico do STF distribuiu para Gilmar as denúncias contra José Serra, Aloizio Nunes, Aécio Neves e Cunha Lima, os principais nomes do PSDB envolvidos com os escândalos.
Em todo caso, seja bem-vindo de volta ao mundo dos garantistas.
À medida em que vai sendo cercada, a Lava Jato tenderá a produzir mais foguetório. E, aí, entra em cena, o fator Raquel Dodge.

Peça 2 – o fator Raquel Dodge

Sem controle sobre a base, a Procuradora Geral Raquel Dodge tratou de se blindar perante a mídia – especialmente a Globo – através de um movimento desmoralizante, que a equipara ao antecessor Rodrigo Janot e às manipulações dos jovens procuradores da Lava Jato – que, pelo menos, têm o álibi da juventude.
Dodge seguiu o mesmíssimo figurino de ilações manipuladas da Lava Jato, a chamada “teoria do fato”, segundo o MPF (leia aqui sobre o tema) – que é uma versão particularíssima da metodologia adotada.
Trata-se de uma metodologia adotada por qualquer bom repórter investigativo e que foi introduzida no MPF pelo procurador Douglas Fischer. Consiste em criar uma narrativa inicial sobre o tema que está sendo investigado, para ajudar a organizar as informações.
Os bons investigadores e os bons jornalistas criam uma narrativa experimental no início das investigações e vão alterando, à medida em que vão aparecendo novos fatos. O fato é soberano. Maus repórteres e maus investigadores se aferram à narrativa inicial, ignorando todos os fatos que possam comprometê-la.
Esperava-se que, com mais experiência na área, a PGR Raquel Dodge não comprometesse o MPF com esse estilo, adotado por seu antecessor. Esperança vã!
Vamos entender seu jogo, por partes.

A falsa isenção

Raquel Dodge tem o desafio de não se comprometer com o PSDB e, ao mesmo tempo, aparentar alguma isenção nas suas investigações.
Para atender às duas necessidades, no caso do PT, atira em quem está no jogo; no caso do PSDB, mira nos patos mancos – Aécio Neves e Eduardo Azeredo – e preserva quem está no jogo, José Serra e, especialmente, Geraldo Alckmin.
Tome-se a denúncia recente contra Lula, Gleise Hofman e Paulo Bernardo. E compare-se com o caso Geraldo Alckmin. A diferença é escandalosa.

A propina

A Lava Jato identificou um financiamento de campanha da Odebrecht para Gleise; e outro para Alckmin. Ambos nas eleições de 2014, parte dos pagamentos pelo caixa 2. Para Gleise, o intermediário foi o marido Paulo Bernardo, ex-Ministro do Planejamento; para Alckmin, seu cunhado Adhemar Ribeiro. Não poderia criminalizar Gleise apenas pelo Caixa 2, pois teria que aplicar a mesma medida contra Alckmin. Qual a saída encontrada pela “teoria do jogo” de Dodge?

A contrapartida

Na denúncia de cada propina, há a necessidade de se identificar a contrapartida oferecida
Gleise Hoffman
A denúncia se reporta a uma decisão de 2010 (quatro anos antes do financiamento eleitoral da Odebrecht!), da Câmara de Comércio Exterior, ampliando o financiamento às exportações de serviços para Angola, medida fiel à estratégia de expansão brasileira na África.
A decisão passou pela Camex, constituída pelos seguintes órgãos:
•          Conselho de Ministros da CAMEX, órgão de deliberação superior e final;
•          Comitê Executivo de Gestão – Gecex;
•          Secretaria-Executiva;
•          Conselho Consultivo do Setor Privado – Conex;
•          Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações – Cofig;
•          Comitê Nacional de Facilitação de Comércio – Confac;
•          Comitê Nacional de Investimentos – Coninv; e
•          Comitê Nacional de Promoção Comercial – Copcom (tema em discussão).
O Comitê de Ministros é composto dos seguintes Ministros:
•          Ministro de Estado Chefe da Casa Civil da Presidência da República;
•          Ministro de Estado da Indústria, Comércio Exterior e Serviços;
•          Ministro de Estado das Relações Exteriores;
•          Ministro de Estado da Fazenda;
•          Ministro de Estado dos Transportes, Portos e Aviação Civil;
•          Ministro de Estado da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;
•          Ministro de Estado do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; e
•          Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República.
Paulo Bernardo era um dos oito Ministros do Conselho, com status inferior aos Ministros da Casa Civil, da Fazenda, das Relações Exteriores, e da Secretaria-Geral da Presidência. Pouco importou à PGR. Foi o responsável pelo aumento das linhas de financiamento, e não se fala mais isso. A partir daí, repetiu a teoria do fato apud MPF – que consiste em enfiar provas a martelada na narrativa escolhida. E denunciou a “organização criminosa” comandada por Lula. O que demonstra que a parcialidade e falta de senso não são prerrogativas da 1ª instância do Ministério Público Federal.
Geraldo Alckmin
De acordo com delação premiada de ex-executivos das empreiteiras Odebrecht e Camargo Corrêa, Geraldo Alckmin recebeu R$ 10,3 milhões em caixa 2, através de seu cunhado, Adhemar Ribeiro. Todas foram beneficiadas por obras do governo paulista, autorizadas diretamente por Alckmin, do Rodoanel ao Metrô. Mas o caso foi tratado meramente como financiamento de campanha, sem sequer criminalizar o caixa 2, e remetido para o Tribunal Regional Eleitoral, integrado, em sua maioria, por juízes e procuradores estaduais aliados de Alckmin.

Peça 3 – o terror e o aparato policial

Há um conjunto de evidências mostrando que o crime organizado e a violência política estão cada vez mais entronizada entre integrantes de corporações armadas.
O deputado Antônio Francisquini foi Secretário da Segurança no Paraná, em 2015, no governo tucano de Beto Richa. Antes disso, ocupou cargo de relevância no Espírito Santo. Pertence a ala mais barra-pesada da Polícia Federal e, por seus cargos anteriores, têm relações estreitas com o aparelho policial do Paraná. No seu Twitter trata-se os membros do acampamento como “bandidos órfãos de Lula”
Por aí se entende a quase impossibilidade de apuração, pela polícia do Paraná, dos atentados cometidos contra a caravana de Lula e contra o acampamento do MST em Curitiba.
Esses atentados, mais os que resultaram na morte da vereadora carioca Marielle Franco, mais a identificação de munição das forças de repressão encontradas nos locais dos atentados, são um indicativo preocupante. Indicam que há uma força armada, provavelmente com integrantes dos aparelhos policiais, enveredando cada vez mais pelas sendas dos atentados políticos. Falta pouco para saírem totalmente de controle.
Mas não apenas político.
A mesclagem entre forças de repressão e crime organizado ficaram nítidas em dois episódios. O primeiro, no poder crescente das milícias no Rio, e na influência do PCC em São Paulo. No âmbito federal, o tratamento dado pela Polícia Federal ao caso da helicoca – o helicóptero do senador Perrela, com 500 quilos de cocaína. Qualquer adolescente, detido com quantidades irrisórias de droga, é inapelavelmente preso e condenado. No caso do helicoca, o piloto foi solto em questão de dias, para voltar a delinquir, sendo apanhado em outra operação, a serviço do PCC.

Peça 4 – a teoria do caos

Tem-se, então, os seguintes componentes do caos atual:
  1. O embate entre tribunais superiores e a Lava Jato.
  2. As principais instituições sendo comandas por Michel Temer (Executivo), Carmen Lúcia (STF), Raquel Dodge (MPF) e Rodrigo Maia (Legislativo). É mole?
  3. O racha do STF, anulando completamente seu papel anti-majoritário. Em pleno tiroteio, com atentados explodindo, com a violência política se espalhando, o inacreditável Luís Roberto Barroso se prestava a um trabalho de auditoria para conferir se os condenados da Lava Jato estavam pagando ou não suas multas. E, obviamente, tratando de espalhar o meritório trabalho pelas colunas de jornais.
  4. A economia sem nenhuma perspectiva de recuperação.
  5. O grupo do golpe sem nenhum candidato competitivo.
A partir desses dados, montem suas apostas.

O paradoxo da eleição premiada - Fernando Horta

O paradoxo da delação premiada, ou por que este instrumento não serve para o Brasil
A Delação Premiada virou a “menina dos olhos” de uma parte da população brasileira. Não se sabe, porém se por conhecerem do tema ou se por ideologia “anti”, já que a Lava a Jato prendeu apenas sete políticos desde 2009 e cinco deles são do PT.
Numa leva de inovações teóricas iniciadas com Joaquim Barbosa e seu “Domínio do Fato”, até o “probabilismo penal jurídico cristão” de Deltan Dallagnol, o rol de inovações é tão estranho quanto de duvidosa serventia. Aliás, o próprio criador da doutrina do “domínio do fato”, Klaus Roxin, desautorizou a forma com que Joaquim Barbosa usou no mensalão. Era muito domínio e pouco fato. Vozes qualificadas contra as inovações brasileiras não faltam. Vão desde constitucionalistas como José Gomes Canotilho até penalistas mundialmente reconhecidos como o italiano Luigi Ferrajoli e Raul Zaffaroni. Aliás, Canotilho foi autor, junto com Nuno Brandão, de um parecer pedido pelo governo português sobre a Lava a Jato. Canotilho é límpido e transparente sobre a ilegalidade dos acordos de delação. Na mesma esteira, o juiz espanhol que mandou prender Pinochet, Baltasar Garzón, e o juiz da “Operação Mãos Limpas” na Itália, Gherardo Colombo, são ambos abertamente críticos aos desmandos e novidades produzidas pela turma jurídica brasileira nestes últimos tempos.
A citação destes “gringos” em nada desmerece a luta feita pelos brilhantes juristas que temos. Desde Pedro Serrano, Fernando Hideo Lacerda bem como os juízes Marcelo Semer e Rubens Casara – para ficar apenas nos que tenho algum contato – denunciam e questionam as “novidades” jabuticabescas colocadas em prática contra o PT e os governos progressistas. Peço desculpas a todos os que não cito, desde já. Não vai aqui qualquer demérito que não o da minha falha memória e minha ignorância. Cito os “gringos” para fugir do argumento muito “terra brasilis” de que os juristas que denunciam a Lava a Jato e Moro são “de esquerda”. Como se a posição política definisse a correção epistemológica com que se trata o objeto que se estuda. É claro que vozes vão dizer que Canotilho, Zaffaroni, Ferrajoli, Colombo e Garzón são pagos pelo PT e participam de alguma internacional comunista. Vão surgir inúmeros artigos de duas páginas, em blogs “liberais” “provando” a tese de que eles fazem parte do Foro de São Paulo. O irracionalismo é marca indelével destes tempos fascistas que vivemos.
Irracionalismo e ignorância à parte, o instituto da Delação Premiada não pode ser aceito como parte do ordenamento jurídico brasileiro. Há uma contradição histórica e sociológica evidente que inutiliza tal teoria do ponto de vista da aplicação da justiça dentro do sistema brasileiro. Não tenho conhecimento formal sobre processos e nem pretendo fazer teses a este respeito. Mas o direito é mais um vetor constitutivo da sociedade e como tal não é alheio à compreensão e crítica de cientistas sociais e nem imune, como objeto de estudo, ao olhar de outros que não juristas.
Apenas alguns juízes – e sempre os mesmos – acham que os juízes são uma casta imune à corrupção. Apenas alguns juízes – e sempre os mesmos – defendem a infalibilidade do juiz e sua natureza humana diferenciada, muito parecida com as doutrinas religiosas medievais sobre o Papa ou a forma como a constituição brasileira tratava o imperador em 1824. Infalibilidade, inimputabilidade, inquestionabilidade e soberania total dos atos. Trocamos UM imperador por cerca 3000 imperadores-juízes que (quando muito) julgam a si próprios e seus pares. Regiamente pagos, definem o quanto querem ganhar. E a isto chamamos jocosamente de “república”.
Voltando ao instituto da Delação Premiada, ele surge no direito anglo saxônico e é implementado fortemente nos EUA. O “plea bargain” nos EUA tem uma série de restrições formais. São aceitos apenas um plea bargain por crime imputado, negando que o juiz possa usar várias “confissões” como forma de prova sobre outros réus, num processo de formação de culpa por cumulação de “confissões”. Lá, as informações usadas não valem sem provas (e não apenas evidências) que as consubstanciem, e o réu que faz o “plea bargain” que tem por obrigação oferecer, senão as provas, ao menos meios concretos para que as investigações as encontrem. Existem também diferenças sobre quem pode oferecer benesses ao suplicante do plea bargain, quanto suas penas podem ser minoradas e em nenhum momento é imposto ao suplicante que abra mão de seus direitos em todas as instâncias, como ocorre na Lava a Jato. Muitas pessoas citam o fato de “as instâncias superiores” terem mantido as condenações e não questionado os métodos de Moro, mas poucos sabem que ao fazer o acordo com o MP brasileiro, o suplicante abre mão de discutir este acordo em todas as instâncias acima do MP. Ou seja, não há questionamento porque é parte do acordo cercear o direito fundamental do cidadão de recorrer a tribunais e órgãos colegiados!
Assim que o MP abre o procedimento da “Delação Premiada” o procurador que está a frente do suplicante é Deus, Rei, seu confessor terreno e seu carrasco ao mesmo tempo. Não há nada que controle o MP, nada que possa questionar este processo de arrancar informações. Nada nem ninguém que esteja como testemunha de TODAS as informações oferecidas em comparação com as usadas pelo MP. Em resumo, o MP não tem obrigação alguma de usar as informações recebidas. Pode focar em seus interesses, decidir sozinho pela pertinência da delação, sua extensão, sua profundidade e tudo mais que a cerca.
Chama a atenção especialmente aqui o fato de que NÃO HÁ QUALQUER ESTÍMULO AO CONTRADITÓRIO NESTE PROCESSO. Há o interesse do MP de condenar X e para isto ele leva Y a delação premiada. X vai falar sobre Y por interesse em sua liberdade, diminuição de pena ou mesmo extinção do processo. Tudo, pois, beneficia Y. A quem a delação ataca, por exemplo X, não está nem tem seus advogados presentes! O MP por óbvio não pode fazer o duplo papel de incitar a colaboração e oferecer o contraditório ao mesmo tempo, e o juiz não poderia (embora Moro tenha inventado a figura do “juiz-assistente de acusação”) oferecer críticas a delação por violação total do princípio da equidistância. Em suma, o ato da delação se constitui numa arma mortal nas mãos do Estado que “prova” o que quiser, contra quem quiser, fulminando de uma só vez o princípio da paridade de armas entre defesa e ataque e reduz a relação entre indivíduo e Estado a uma mera formalidade entre escravo e feitor.
Agora imaginem uma delação “vazada” e tornada pública.
Seria mais justo oferecer o réu à execração pública e depois enforca-lo aos gritos histéricos dos “homens de bem”.
O principal problema da Delação, entretanto, não está na sua metodologia interna, que já vimos é totalmente contra os princípios de direito brasileiro. O principal problema é que no sistema anglo-saxônico os juízes não são nem perto das divindades olímpicas brasileiras. Nos EUA, por exemplo, as decisões da Suprema Corte não têm poder cogente. Não podem ser obrigadas imediatamente sobre os entes federativos. É preciso que a União aja para impor uma decisão e neste espaço existe a resistência política dos Estados, e até das municipalidades. Os EUA, ao contrário do que todos pensam, não tem na Justiça a última voz, mas na política. Até por isto a Suprema Corte exerce suas funções com um imenso cuidado para não romper as relações de poder entre os entes e entre o cidadão. Um exemplo que ocorre agora, Trump ordenou uma série de medidas duras para atacar imigração e imigrantes ilegais dentro dos EUA. O Estado da Califórnia se negou a cumprir e não há nada que Trump possa fazer para OBRIGAR o cumprimento de sua ordem. Trump pode aplicar penalizações econômicas e negociar politicamente uma solução. Pode apelar para a Suprema Corte e, de novo, o que a Suprema Corte decidir fica submetido à relação de poderes política.
Significa dizer que no Brasil um juiz manda e, por mais tresloucada que seja sua ordem, se sustentada por seus pares deve ser cumprida. Quem assim não o fizer vai preso. Isto só existe nos EUA no nível local. O efeito prático é que nos EUA toda decisão judicial é uma decisão socialmente construída e não fruto apenas da “consciência individualmente monitorada” do julgador. Se a Suprema Corte começar a se tornar draconiana, rapidamente os estados passam a se opor às decisões. Isto leva aos juízes a decisões realmente calcadas em pontos que sejam entendidos como socialmente sustentáveis para O CONJUNTO da sociedade. A decisão leva em conta a correlação de forças, os entendimentos, a historicidade e as repercussões sobre as comunidades e sobre o país, além da simples noção de “mérito”.
No Brasil os juízes têm tocado o “foda-se” e os desembargadores se tornam “bullies”, ameaçando prisão e defendendo seus pares contra tudo e contra todos.
Um último ponto a ser tocado, é que o “impeachment” nos EUA existe exatamente para conter os juízes. Nunca um presidente norte-americano foi retirado do cargo por impeachment, mas cerca de 15 juízes foram retirados por meio do impeachment. Se colocado este “detalhe” na balança, fica evidente que os juízes tendem muito mais a controlar suas ações, em vista da possibilidade de sofrerem sanção pelos seus abusos. É muito melhor a forma de controle entre os poderes lá do que o que ocorre no Brasil. Além do fato de que, em muitos estados, juízes, promotores e delegados de polícia são cargos eletivos.
Não há comparação entre o “plea bargain” americano e a “delação premiada” no Brasil, do ponto de vista da sociologia dos poderes. Lá é um incentivo controlado que pode ser usado pelo réu. Os seus resultados são contraditados em todas as instâncias, inclusive com controle social e político sobre os juízes e suas sentenças. No Brasil, a delação premiada é um instrumento ditatorial do Estado, que culpa quem quiser, quando quiser e da forma que quiser. Se você juntar isto com os vazamentos midiáticos seletivos, as proibições a perícias e provas da defesa e o conluio, via corporativismo, amizade ou laços familiares, do judiciário, temos a Lava a Jato.
Na verdade, temos a semente do fascismo, da lei em movimento e o fim de qualquer valor ou prática que se ligue minimamente à ideia de República. O termo república vem do latim “res” “publicum”, que quer dizer “coisa do povo”. E nenhuma República pode aceitar o poder de um juiz e um promotor armados com a delação premiada e amigos, familiares ou “seguidores” nos tribunais superiores. A delação premiada não faz justiça, mas justicia quem o juiz e o promotor bem quiserem.