POR EUGÊNIO ARAGÃO
As aparências enganam. Quem vê a crise venezuelana como resultado de supostos desmandos autoritários de Nicolás Maduro erra tanto quanto aquele que aponta para a corrupção como causa do desastre político brasileiro. Não que Maduro não tenha cometido erros de avaliação e, quanto à corrupção no Brasil, também não é negável que é endêmica nas relações entre o público e o privado, desde tempos idos. Mas nem os eventuais equívocos do presidente venezuelano e nem desvios de conduta de agentes governamentais foram causas suficientes para o descalabro que ora se presencia em ambos os países.
Há algo em comum nos acontecimentos aqui e acolá, uma dinâmica social de polarização e radicalização que carrega a mesma caligrafia. Os padrões são muito parecidos nas manifestações proto-coxinhas de 2013-2016 e nas ruas de Caracas nestes dias. A indisfarçada e descarada imiscuição direta norte-americana na crise venezuelana talvez compõe o único diferencial. Aqui, Tio Sam foi mais discreto, mas nem por isso menos efetivo. Como explicar isso?
Crises políticas podem ser fabricadas para produzirem determinados resultados estratégicos. Desde a crise dos Sudetos, na Checoslováquia de 1938, passando pela crise do corredor polonês de 1939; pelos levantes de Gdansk de 1982, que redundaram na ditadura do general Wojciech Jaruzelski; pelo levante da praça do Maidan, em Kiev,
Ucrânia, em 2013; até a chamada “Primavera Árabe” de 2011, só para citar aleatoriamente alguns exemplos, percebe-se a interesseira mão invisível de alguma potência estrangeira em dinâmicas sociais domésticas.
Mas fiquemos só no primeiro exemplo, pois todos os cenários mencionados têm um Konrad Henlein que a eles melhor se adequa. Para os que não sabem, Henlein, na crise dos Sudetos, foi o homem de Adolf Hitler, uma liderança alemã na Checoslováquia. A mando deste, promoveu a radicalização política local de um modo tal, que fez parecer que o governo de Praga, liderado por Edvard Beneš, estaria a perseguir os alemães no país, mesmo com todo o esforço oficial de incluí-los, na sociedade checoslovaca, como grupo autônomo e com direitos culturais e políticos próprios. Ao final, a Alemanha nazista invadiu a Checoslováquia como beneplácito da França e da Inglaterra, para incorporar os Sudetos ao território do Reich.
Voltando a nuestra América, o Brasil não teve um só Henlein para desestruturar sua jovem e incipiente democracia. Teve logo vários, agindo em diversos campos. A mão invisível por detrás tinha interesses claros nas reservas petrolíferas do pré-sal, no desmonte da Petrobrás e da construção civil brasileira, bem como no papel de liderança subcontinental que o país exerce, para o bem ou para o mal. Tudo lhe foi dado de mãos beijadas, a partir do momento em que se instalou o governo golpista de Michel Temer, um de nossos Henlein. Mas a localização geográfica dessa mão é incontroversa, pois foi de lá que se subsidiou o vaidoso e corporativo ministério público federal, sob o comando de outro Henlein brasileiro, Rodrigo Janot, com informações de inteligência sobre práticas pouco kosher na petrolífera brasileira: a terra de Tio Sam.
Não eram, porém, as práticas ilícitas de diretores da estatal e de empresários dirigentes de fornecedoras de serviços que preocupavam os norte-americanos. A Petrobrás era conhecida como galinha de ovos de ouro de muita gente desonesta desde sempre, sem causar comichão a ninguém. O que chamava a atenção dos ianques era, muito mais, a eficiência da empresa e sua capacidade tecnológica para prospectar em grandes profundidades marítimas, aliada ao fato de que era privilegiada na distribuição do petróleo achado.
As más práticas da Petrobrás logo viraram o estopim de um escândalo armado em pleno ano de campanha eleitoral para a sucessão presidencial, com inestimável ajuda de um judiciário muito acostumado a práticas cinematográficas. A aliança entre a mídia e o estamento burocrático da judicatura foi o combustível necessário para alavancar a candidatura de mais um Henlein tupiniquim, Aécio Neves. Manifestações sem pauta específica logo conseguiram se transmudar num movimento de massa reacionário e moralista, exigindo a remoção do governo da vez. A campanha eleitoral de 2014 foi extremamente polarizada, com o discurso de ódio tomando conta da propaganda antipetista.
Mas os Henlein perderam nesse primeiro momento. A bronca disseminada pela campanha midiática-judicial-rueira- oposicionista não foi suficiente para quebrar a hegemonia das forças progressistas na política brasileira. É verdade que a vitória situacionista foi por pequena margem e que emergiria das eleições um governo
enfraquecido, sem maioria parlamentar capaz de enfrentar o desafio do clientelismo corrupto do novo presidente da Câmara, Eduardo Henlein Cunha, que passou a impor sistemáticas derrotas à Presidenta legítima, Dilma Rousseff.
No meio do vendaval, os inimigos da democracia e traidores do interesse nacional se juntaram a boa parte de políticos corruptos para depor a chefe de estado honesta, tudo sob os olhares impávidos do chefe do ministério público e da cúpula do judiciário. Aliás, os atores judiciais estimulavam, com sua cúpida leniência, a atuação
destrambelhada de um juizinho narcisista de província que tornava públicas conversas ilegalmente interceptadas entre a Presidenta e seu antecessor. Essas conversas não continham nada de mais, mas tiveram seu significado midiaticamente deturpado para atribuir ao governo conspiração contra as escandalosas investigações em curso contra a Petrobrás.
Veio o que era esperado: a destituição da presidenta por fato fútil é irrelevante, as supostas “pedaladas” na execução orçamentária. O ministério público e o judiciário mantiveram-se inertes e coonestaram o golpe parlamentar, para passar o poder ao grupelho de políticos ímprobos que se aproveitaram da desmedida ganância e ambição de Eduardo Henlein Cunha. As medidas governamentais agora anunciadas agradavam aos verdadeiros patronos da crise: a abertura do pré-sal e o desmanche do parque tecnológico nacional. Nada veio por acaso.
O governo golpista foi um pesadelo para a sociedade brasileira, com retrocessos em políticas públicas e a ascensão do discurso fascista e fundamentalista como algo aceitável nos salões do poder, desde que servisse para destruir a hegemonia política das forças progressistas. Nada se fez para frear quem atacasse mulheres como “não
merecedoras de serem estupradas”, ativistas LGBT, indígenas ou sem-terra. O ódio passou a fazer parte do discurso corrente, com um risinho no canto da boca dos protagonistas do golpe.
E veio 2018 com nova campanha presidencial. O importante, para as forças da reação, era manter o PT afastado do poder a qualquer custo. A candidatura de Lula, a toda evidência para ser vitoriosa, tinha que ser barrada. A condenação pífia por conta de um apartamento que nunca lhe pertenceu foi, mesmo sem qualquer prova que
corroborasse a extravagante suposição do juiz de piso, confirmada por uma trinca de desembargadores combinados entre si, numa velocidade que faria morrer de inveja o judiciário finlandês, talvez o mais eficiente do mundo.
Quis-se, com isso, impor a Lula as restrições da lei da ficha limpa. Mas, mesmo que coubessem recursos com boa chance de serem providos se julgados com isenção, não se lhe reconheceu o direito de manter-se em campanha até o trânsito em julgado do processo de registro da candidatura. O TSE fulminou a participação, no processo
eleitoral, daquele que tinha mais chance de vencer, frustrando parte significativa do eleitorado.
Ocorre que os principais protagonistas do golpe contra a democracia não tinham fôlego para ganhar e se dividiram em vários grupelhos ambiciosos. Sobrou, para disputar seriamente o pleito, somente a extrema direita em torno do capitão da reserva Jair Bolsonaro, aproveitando-se da onda de ódio disseminada contra o PT – e Fernando
Haddad, o candidato que veio a suceder Lula, apoiado por forças progressistas.
A campanha fascista soube se aproveitar de um suposto atentado a faca contra seu candidato, que, hospitalizado, ficou fora de circulação por todo o período de campanha e, além de tratado como vítima aos olhos da opinião pública, se poupou do confronto de ideias, em que fatalmente exibiria seu lado mais tosco. Para manter a chama do ódio contra o PT acesa, a candidatura de direita inundou as redes sociais com notícias mentirosas, numa escala de impulsionamento nunca dantes vista numa eleição no Brasil. A receita deu certo e Jair Bolsonaro, o insensato militar que se gaba de ser favorável à tortura como método de repressão de seus inimigos ideológicos, virou
presidente da República, sem qualquer projeto para o país e para a sociedade, além de demonstrar ostensivamente, claro, sua atitude subserviente para com o governo e os interesses norte-americanos. Definitivamente, Tio Sam fincou seus pés no Brasil, sem brandir um fuzil, sem gastar uma bala.
E a Venezuela? Não é surpresa que o governo fascista do Brasil, que logrou ser eleito e investido graças às maquinações ianques contra o legítimo governo de Dilma Rousseff, hoje se posiciona como braço interventivo dos Estados Unidos da América do Norte liderados pela ira desaforada de Trump.
Diferentemente do Brasil, as forças progressistas venezuelanas nunca se iludiram com qualquer tipo de tentativa de acordo com suas elites endinheiradas. Sob o governo de Hugo Chávez, desde muito cedo, se sabia da hostilidade latente, às vezes até escancarada, do establishment venezuelano face à orientação socialista do
bolivarianismo. Por isso mesmo, as instituições foram objeto de profunda reengenharia, em ampla refundação constitucional. Não se deixou pedra sobre pedra do estado plutocrático e as forças que tentaram desestabilizar a nova ordem foram enfrentadas de forma a serem neutralizadas de modo permanente.
É claro que, na Venezuela, a reação elitista se deu de forma proporcionalmente mais feroz que no Brasil, sem qualquer diálogo possível entre a situação e a oposição golpista. Esta se recusou a participar das últimas eleições que, talvez até por isso mesmo, deram a Nicolás Maduro um novo mandato e, sempre na tentativa de deslegitimar o governo eleito, não lhe deram “reconhecimento”, tendo o presidente do Parlamento desempoderado pela Assembleia Constituinte, se autoproclamado presidente interino do país, a atender sugestão de um celerado Donald Trump.
O seduzente presidente interino, um jovem de trinta e cinco anos com ódio no discurso e na prática, Juan Guaidó, o Henlein caribenho, se mostrou articulado com as forças da direita da região reunidas no “Grupo de Lima” e tendo à frente o uruguaio Luís Almagro, secretário-geral da OEA, que resolveram reconhecê-lo o “legítimo
representante” do povo venezuelano, a despeito de não contar com nenhum mandato constitucional para tanto. Prevaleceu a subserviência ao presidente norte-americano que voltou a dar as cartas no tabuleiro político do hemisfério. O presidente Maduro, face à desavergonhada intromissão americana nos assuntos internos do país, rompeu relações com os Estados Unidos da América do Norte e determinou a retirada de seus diplomatas no prazo de setenta e duas horas.
Mas, para agravar a crise bilateral, o secretário de estado norte-americano se recusou a retirar os diplomatas, dizendo que não reconhecia o ato do governo venezuelano por não reconhecer Maduro como seu chefe. A esta altura não restam mais dúvidas sobre o real intento ianque: provocar uma intervenção de larga escala para
destituir o governo constitucional da Venezuela e impor seus interesses sobre a economia do país. Na Venezuela, a elite não foi tão eficiente como a brasileira e deixou o serviço sujo para ser feito, sem intermediários, por seus patrões do Norte. As estratégias foram distintas, dadas as peculiaridades políticas de cada país, mas, ao final, Brasil e Venezuela estão no mesmo barco, com a destruição sistemática de seus projetos nacionais de desenvolvimento econômico e de justiça social. Prevalece o poder hegemônico norte-americano, mui bem servido por nossos Henleins da vida, que podem se chamar Temer, Janot, Moro, Cunha, Aécio ou Guaidó. E ainda há quem
acredite que o problema de nossos países é a corrupção da esquerda ou sua hostilidade autoritária à democracia.
Eugênio Aragão foi Ministro da Justiça em 2016, no governo Dilma Rousseff. É professor titular de direito internacional da Universidade de Brasília, pela qual é graduado em direito.
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