domingo, 16 de setembro de 2018

Eliminação de inimigos políticos é constante no país desde Independência

"Sem que ninguém pressentisse, puxou a faca [...], aproximou-se rapidamente e cravou a arma." Segundo testemunha, o ferido gritou: "'apunhalaram-me', ao que eu repliquei: 'mas não vejo sangue'".
Preso em flagrante, o agressor declarou agir de moto próprio. Veio a imprensa. Aturdidos, presidente da República e líderes partidários condenaram o ato. Houve quem dissesse que o cidadão exaltado, antes preso por idear ataque político, colhia o que plantara. Já aliados do agredido juraram vingança, um deles de revólver em punho. Tudo isso está no Jornal do Brasil, de 9 de setembro... de 1915.
Outra semelhança: o nome sugestivo do esfaqueador, que não era Bispo, mas (Francisco) Manço. Ambas as vítimas careciam de papas na língua, de pejo para honrar seus interesses com as armas e ambicionavam a Presidência.
O ferido do século passado era também militar, embora honorário. Escalara até general de brigada, lutando por suas crenças à baioneta, na guerra civil sob o governo de Floriano Peixoto. Não era deputado, mas senador.
Tratava-se de José Gomes Pinheiro Machado, que, quando da agressão, tinha um ano a mais que Jair Bolsonaro e menos sorte: morreu antes da chegada do socorro.
A similitude ultrapassa a coincidência, aponta um padrão. Neste país, a violência tem sido meio recorrente de resolução de conflitos políticos.
A eliminação física de desafetos nas disputas por poder é constante desde a instauração da nação independente. Em 1830, Líbero Badarópereceu por disparo de pistola.
Tiros, facadas e linchamentos, como o de abolicionistas, pontuam o falsamente pacato reinado de Pedro 2º. O próprio imperador escapou de bala republicana, em 15 de junho de 1889. Cinco meses depois, veio o golpe civil-militar, sem massacre, mas com chumbo no ministro da Marinha.
Milhares sucumbiram nas revoltas convergentes, uma republicana, outra monarquista, no segundo governo da República. Na última, o líder restauracionista Saldanha da Gama foi degolado e desmembrado. Pinheiro Machado seria preso em 1897, por ter sido cérebro do atentado ao presidente Prudente de Moraes, no qual se imolou o ministro da Guerra.
Em 1905, foi a vez do governador da Bahia levar dois projéteis de um desafeto político. Nos anos 1920, sequência de revoltas militares causou numerosas baixas. Em 1930, outro governador, o da Paraíba, foi assassinado.
Adiante, em 1954, o célebre atentado ao opositor Carlos Lacerda desencadeou a crise culminada no suicídio de Vargas. Outro antivarguista, o deputado Tenório Cavalcanti, gabava-se das 40 cicatrizes de golpes adversários, vingados com sua memorável espingarda, a "Lurdinha".
A violência política não amainou com o tempo. Meses antes do golpe de 1964, Arnon de Mello (pai do presidente impichado Collor) matou um senador como ele, no plenário.
Já no regime militar, violento por definição, o presidente Artur da Costa e Silva escapou de bomba no Recife, que vitimou duas pessoas. Isso foi em 1966.
Daí até a abertura em 1985, a sequência de desaparecimentos, prisões, torturas e execuções políticas exponenciou, como mostra o relatório da Comissão da Verdade.
Nos estertores da ditadura, aconteceu o atentado do Riocentro, violência política das piores, porque planejada para jogar a culpa no inimigo.
Os esperançosos quiçá imaginassem que a redemocratização dissiparia o sangue, mas ele seguiu escorrendo.
A Amazônia sediou muitos assassinatos políticos, dos que calaram o sindicalista Chico Mendes, em 1988, e 19 membros do MST em Eldorado dos Carajás, em 1996, à morte da líder do Movimento dos Atingidos por Barragens, em 2016, lançada, com pés e mãos amarrados a pedras, na hidrelétrica de Jirau.
Essa lista é longe de exaustiva e ultrapassa os rincões. As execuções de Celso Daniel e Marielle Franco aconteceram em metrópoles. De 2008 a 2018, foram 569 crimes políticos (segundo o Estadão de 18/3), excluídos os não letais, como os disparos na caravana de Lula. A facada em Bolsonaro não é exceção.
O Brasil é violento, por mais que se goste de dizer o contrário. Não foi a polarização recente que gerou o desejo de eliminar o adversário. A prática é longeva, fincada no nosso funcionamento político.
Assim, é preciso mais que apelos à paz, como os de candidatos nos últimos dias, para interromper nossa linhagem de crimes políticos. Identificar perpetradores é um começo. Os esfaqueadores de Pinheiro Machado e Bolsonaro foram imediatamente presos. Já quem atirou em Marielle todavia não se sabe.
Angela Alonso
Professora de sociologia da USP, preside o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. É autora de “Flores, Votos e Balas”.