segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Longe das mãos peludas, a história da filosofia é uma outra história (II).

 

Longe das mãos peludas, a história da filosofia é uma outra história (II).

  Nivaldo T. Manzano

Em postagem anterior (I), encimada pelo mesmo título, intentei apresentar um painel da contribuição do olhar feminino, inovador e refrescante, na releitura dos grandes filósofos, graças à sua incomparável acuidade para as diferenças, as sutilezas, as dobras, as reentrâncias, os desvãos registrados nas suas obras; para a desatenção a um pelo dos cílios preso na lapela dos grandes sistemas, sem que seus formuladores se tenham dado conta do escorregão na etiqueta. Na esteira de Hipatia, Simone Weil, Hanna Arendt. Andrea Nye e Bárbara Cassin, entre outras, tem-se também Isabelle Stengers, filósofa belga, especialista na história dos modelos de ciência, ou epistemologia.  

Stengers retoma a temática geral do igual e do diferente, da coexistência conflitante e solidária da continuidade e da descontinuidade numa mesma unidade contextual. Ou seja, Stengers mostra os escolhos implicados na escamoteação masculina nos fenômenos de transformação (processo, mudança, metamorfose, desenvolvimento, gravidez), que é o mata-burro filosófico e científico em que tropeçam os modelos funcionalistas, prevalecentes na Academia, por força de sua devoção religiosa, de caráter excludente, à lógica e à matemática. O olhar feminino traz como contribuição à epistemologia a evidência de que a realidade, além de lógica e racional, é também intuitiva, como o sabem os matemáticos, embora disso se esqueçam quando se põem a construir modelos. É a proposta doo retorno ao esprit de coeur, de Pascal, em contraposição complementar ao seu espírito geométrico.  

 Trata-se aqui de divisar a passagem — e somente a dimensão feminina da existência disso tem sido capaz — entre dois escolhos igualmente ruinosos pelo seu reducionismo, ambos masculinos: (1) a ilusão da ciência autossuficiente, que se crê capaz de avançar somente mediante critérios e razões de ordem interna, como alguém que julgasse poder crescer puxando para cima os próprios cabelos, já que os fatores externos teriam um papel subordinado; e (2) a ilusão simétrica de uma produção científica desprovida de autonomia, cuja evolução seria explicável mecanicamente por fatores sociais e econômicos, já que os fatores internos teriam um papel subordinado. Observe-se em ambos os escolhos o modelo de Platão, das hierarquias fixas, denunciadas pela crítica de Aristóteles à sua República, obra na qual, a pretexto de organizar a cidade, Platão dela remove o seu caráter democrático, ao eleger para a sua condução os filósofos, aos quais confia a prerrogativa exclusiva de mando. 

No primeiro caso, da história “interna” das ciências, à qual está associado o nome de Alexandre Koyré, tem-se como referência mais conhecida a obra “A estrutura das revoluções científicas”, do historiador Thomas Kuhn. Segundo Kuhn, o cientista já não é a encarnação da gloriosa representação do espírito crítico nem da racionalidade, nas quais alguns filósofos identificaram a natureza da atividade científica, e sim um sujeito que faz o que aprendeu a fazer, diz Stengers. Ocupa-se dos fenômenos que encontra na sua disciplina, com a mesma desenvoltura com que uma dona-de-casa se movimenta em meio às peças de seu mobiliário. Nada aí lhe é totalmente estranho: eis o seu paradigma, um modelo ao mesmo tempo prático e teórico, que se lhe impõe com a espontaneidade de uma evidência. É a essa submissão do cientista ao paradigma de sua comunidade que se deveria atribuir o progresso científico, ou seja, o processo cumulativo graças ao qual um número sempre maior de fenômenos se torna inteligível. Chegará um momento, no entanto, em que a dona-de-casa, de tanto mover os móveis de um lado para outro, no seu empenho em abrir espaço para acomodar as novas peças, se dará conta de que já não é capaz de contê-los na mesma ordem em que se espelhava a ordem familiar que via neles. Mudará de casa ou de móveis — tem-se, então, uma mudança de paradigma. 

Há, porém, uma grande diferença entre um e outra no modo de proceder. Na dona-de-casa, a ideia da mudança advém-lhe como resultado da interação entre o registro das observações que colhe na rua quando pensa nos móveis e o registro das observações que colhe nos móveis quando pensa em retornar à rua. Já no cientista de Kuhn a ideia de mudança somente pode advir-lhe da contemplação do umbigo comunitário de sua confraria, que não sai à rua pelo receio de se deixar contaminar pela opinião ou pela crença. A comunidade científica de Kuhn é uma colônia de minhocas que se autofecundam.

A leitura da evolução da ciência proposta por Kuhn, diz-nos Stengers, busca justificar, pois, uma radical separação entre comunidade científica, gerada pela própria história da disciplina, e o contexto no qual ela se insere e a envolve, na condição de uma de suas interfaces. Por força dessa separação artificial, o cientista, no âmbito de seu trabalho, não estaria sujeito a nenhuma interação com influências de outra natureza que lhe retirem, mediante a imposição de outras questões, as “boas” questões de sua comunidade. Toda possibilidade de interação entre a comunidade científica e o seu entorno, que Kuhn enxerga como ameaça, poderia comprometer a sua autonomia, matando a galinha dos ovos de ouro, o seu paradigma, ou a condição de possibilidade do progresso científico. Assim, mediante o seu suposto auto isolamento, o cientista nega a quem quer que seja o direito de pedir contas de suas escolhas e de suas prioridades. Reconheça-se que Kuhn, adverte Stengers, não foi o criador dessa torre de marfim; apenas buscou explicar, sem consegui-lo, como a torre continua de pé, em que pese a remoção e a reconstrução recorrentes de seus fundamentos, a cada mudança de paradigma.

No oposto simétrico desse escolho, tem-se a ausência de autonomia no espaço da produção científica, ou seja, a sua descaracterização na absorção pelas explicações causais e mecânicas dos fatores sociais e econômicos. Agarradas nesse escolho encontram-se as obras de J. D. Bernal, entre outros, aí compreendidos os adeptos do marxismo vulgar. Assim, Bernal anunciava em 1939, no seu “The Social Function of Science”, que produção científica e interesses sociais e econômicos apresentavam-se no socialismo de Estado como solidários de fato e de direito e concluía pela necessidade de uma reorganização da ciência que a tornasse capaz de responder às autênticas necessidades sociais, um fato que já estaria ocorrendo na União Soviética, segundo lhe assegurava Bucarin. Assim fazendo, Bernal espevita a sanha dos liberais que, depois da guerra, entrincheiraram-se mais ainda no polo oposto, o da autossuficiência da ciência sem contexto.

Registre-se que a visão feminina da evolução das ciências mantém-se atenta à ocorrência de continuidade, enquanto a visão masculina atém‑se à descontinuidade, na passagem da crença para a ciência, da opinião para a certeza, do velho para o novo, da ignorância para a sabedoria. Se se elimina masculinamente uma das dimensões, como o faz Gaston Bachelard, ou a sua concomitância logicamente insustentável, suprime-se a singularidade do fenômeno que a investigação se propõe elucidar, a saber, a passagem, o drama, o lugar sofístico, no qual se exercita a tagarelice dos falantes, cientistas e não-cientistas, cada um ancorado na sua perspectiva, sem que seja possível reduzi-las a uma só, à objetividade científica, de curso linear, sem surpresas e sem riscos, à moda da cidade na República de Platão, que pretendeu escamotear a sua dimensão humana — leia-se: política —, ao conferir-lhe foros normativos transcendentais de Verdade ou de Bem, valores que colocou sob a guarda exclusiva dos filósofos.

A supressão do momento da passagem — ou metamorfose — encontra sua justificação ideológica na separação clássica entre sujeito e objeto, um sujeito que não se deixa contaminar pelo objeto e um objeto que não se deixa contaminar pelo sujeito. A separação radical entre sujeito e objeto, como relembra Stengers, pressupõe a naturalização ideológica do poder hierárquico, o do sujeito sobre o objeto, ou o do sujeito capaz de convocar o objeto ao tribunal onde se discutirá a sua causa, sem que lhe seja concedido o direito à palavra a partir de sua perspectiva singular e irredutível. Nesse tribunal - ou no laboratório onde se definem as condições do testemunho do objeto e em que este é posto à prova -, afirma Stengers, o convocado é ouvido, não segundo as suas próprias categorias, mas segundo as categorias dos jurados, aos quais compete emitir o juízo. Assim, o “tribunal experimental” seria o lugar onde a distinção clássica entre o sujeito e o objeto se cristalizou na estabilidade paradigmática de Kuhn. Na ótica feminina da epistemologia, o laboratório experimental apresenta-se, pois, como o lugar ideológico da remoção do caráter necessariamente político e ético da ação humana, graças à qual torna-se possível reafirmar a ilusão da existência sem risco, o mundo binário do sim x não, sem passagem conflitante e solidária.

Do esforço feminino de sacudir os emplastros mentais resulta o reconhecimento do equívoco de se acreditar na autossuficiência dos papéis (interfaces, processos). Estes, isoladamente, não são a chave explicativa de sua própria evolução e, por isso, não dispõem do poder demiúrgico de se comportarem como um motor da história. Assim, por exemplo, ao advento do moinho d´água, como um meio tecnológico de produção, não se poderia atribuir a causa da servidão. Ao se proceder dessa maneira, passa-se por cima do fato de que a entrada do papel do moinho na história é uma ocorrência singular, entre outras, e que, portanto, na condição de estí­mulo do contexto no qual se insere - contribuindo para mudá-lo e sujeito a ser mudado —, somente pode ser explicado a partir de suas interações nesse contexto, como uma de suas interfaces. A unidade conceitual explicativa e valorativa é, portanto, o contexto (= integração entre visão feminina e masculina).

Bachelard, G., A formação do espírito científico, Rio, Contraponto, 1996.

Bernal, J., D., The social function of Science, Routlege, 1939.

Khun, T., A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 209.

Koyré, A., Estudios de história del pensamiemento científico, Tres Cantos, 1978.

Stengers, I., As políticas da razão, Lisboa, Edições 70, 1993

 

 

 

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