segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Descolonial 1 esquerda

Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial1 Ramón Grosfoguel2 https://www.blogger.com/blog/post/edit/1071205293540024254/1764045883414503228 Resumo: Este artigo discute o significado da esquerda eurocêntrica e a necessidade de formular um projeto de “outra” esquerda descolonial ou de como ir além da oposição binária ocidentalista entre “direita versus esquerda”. No fundo, a esquerda eurocêntrica compartilha muitas das premissas epistêmicas da direita. O artigo discute o significado do conceito de colonialidade, a cartografia do poder que esta implica em escala global e o significado dos projetos das esquerdas descoloniais no mundo contemporâneo. Palavras-chave: colonialidade do poder, eurocentrismo, descolonização, fundamentalismo, geopolítica do conhecimento. Decolonizing the Westernized Left: beyond the Eurocentric Left towards a transmodern decolonial Left Abstract: This article provides a decolonial vision of the existing power relations in the world-system today. It discusses subaltern thinking in relation to the production of decolonial thought and a decolonial left in the contemporary world. 1 Tradução de Larissa Pelúcio. 2 Departamento de Estudos Étnicos, Estudos Chicacos/Latinos – Universidade da Califórnia (UC) – Berkeley – Estados Unidos da América – grosfogu@berkeley.edu 338 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... Keywords: Coloniality of Power, Eurocentrism, Decolonization, Fundamentalism, Geopolitics of Knowledge Em minha experiência pessoal, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e na América Latina, os intelectuais do Sul dialogam com trabalhos dos intelectuais do Norte, mas não vice-versa. Existem poucos intelectuais do Norte que, verdadeiramente, se colocam seriamente frente à descolonização do conhecimento, a fim de superar o eurocentrismo e se abrir a um diálogo interepistêmico global. A maioria dos intelectuais de esquerda europeus continua falando entre eles mesmos e são surdos frente a propostas e projetos políticos descoloniais que assumem perspectivas epistemológicas a partir do Sul Global. Uma das poucas exceções entre os pensadores do Norte (mais precisamente do Sul da Europa) é a perspectiva descolonizadora que anuncia Boaventura de Sousa Santos e sua escola de pensamento, na Universidade de Coimbra (Portugal) por meio do Centro de Estudos Sociais. Sua proposta de diálogo interespistêmico por meio do conceito de “ecologia de saberes” e sua asserçăo de uma “sociologia das ausências” e uma “sociologia das emergências” (Sousa Santos 2009), constituem o projeto teórico descolonial mais ambicioso e comprometido com o Sul Global produzido por um intelectual do Norte. Desde Sartre não houve um intelectual comprometido com o Sul Global como Boaventura de Sousa Santos. Mas o projeto de Sousa Santos supera o de Sartre. Sartre nunca se “contaminou” com perspectivas epistêmicas do sul. Sua filosofia surgiu encerrada, ensimesmada, sem sair do círculo eurocêntrico e sem dialogar seriamente com o pensamento crítico do sul. Nisso Sousa Santos está à sua frente. Não somente de Sartre, mas da maioria dos intelectuais críticos do Norte Global. Lamentavelmente, ainda, a maioria dos intelectuais do Norte (incluindo aqueles que se autoidentificaram com a esquerda tal como Slavoj Zizek, Antonio Negri ou Alain Badiou) não se propuseram a uma virada pós-colonial em seus pensamentos. Isso faz com que o uso da palavra “diálogo” seja quase nulo. Talvez seja mais adequado utilizarmos a palavra “monólogo” para descrever as relações epistemológicas dos intelectuais do Norte Global com o conhecimento produzido a partir do sul Global. Os intelectuais eurocêntricos do Norte Global seguem se relacionando com o Sul como os missionários católicos do século XVI. Seguem pregando suas teorias para serem aplicadas sem mediação com realidades muito distintas daquelas onde ditas teorias foram produzidas. O universalismo (a concepção eurocêntrica que estabelece que somente a partir de uma epistemologia se realizam as perguntas e se encontram as soluções para todos no planeta) que se depreende dessas teorias eurocêntricas reproduz os v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 339 desenhos globais imperiais e coloniais, mas vindos da esquerda. Contrário a este universalismo o pensamento crítico produzido no Sul Global pensa a partir de pluriversalismo como projeto universal3 . Esta depreciação eurocêntrica ao pensamento produzido a partir de epistemologias do sul tem uma longa duração no “sistema-mundo ocidentalizado/cristianocêntrico moderno/colonial capitalista/patriarcal”4 . Desde 1492 até hoje, uma das hierarquias do sistema-mundo mais invisibilizada é a hierarquia epistêmica global, da qual os conhecimentos produzidos no “ocidente” são considerados superiores e os conhecimentos produzidos no mundo caracterizado como “não ocidental” são considerados inferiores. Desde o século XVI, o racismo/sexismo epistemológico e o fundamentalismo eurocêntrico que produz esta hierarquia epistêmica global se reproduz pelo mundo por meio da globalização da Universidade ocidentalizada. É por meio do cânon de pensamento hegemônico (cânon de homens “ocidentais”, nunca homens “não ocidentais” e nunca mulheres “ocidentais” e “não ocidentais e das divisões disciplinares da Universidade ocidentalizada, que encontramos o mesmo que nas universidades de Paris ou Nova Iorque, nas universidade de Alger, Cotonou, Dakar, Buenos Aires, Calcutá, Rio de Janeiro, Bogotá e Beijing, onde se produzem as elites e os intelectuais ocidentalizados do sistema-mundo. Sem a globalização de Universidade ocidentalizada, seria muito difícil para o sistema-mundo reproduzir suas múltiplas hierarquias de dominação e exploração global. Neste sentido, a descolonização do conhecimento e da Universidade constituem pontos estratégicos fundamentais na luta pela descolonização radical do mundo. O pós-modernismo e o marxismo eurocentrado não escapam a estas dinâmicas coloniais. Ambos constituem críticas eurocêntricas ao eurocentrismo. De maneira que antes de entrar em um diálogo Norte-Sul entre a esquerda global, primeiro teríamos que esclarecer alguns conceitos e experiências silenciadas globalmente por haverem sido produzidas no sul. Qualquer discussão acerca de um diálogo intercultural ou de um diálogo Norte-Sul tem que começar por identificar as coordenadas do poder mundial. Não se pode esperar uma comunicação livre e transparente, sem as distorções 3 Ramón Grosfoguel (2008) “Hacia un pluriversalismo transmoderno decolonial”. In: Tabula Rasa n. 9 (julio-diciembre): 199-215. Ver em: http://www.revistatabularasa.org/numero_nueve/10grosfoguel.pdf 4 Ramón Grosfoguel (2008) “Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global” Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 80 (março): 115-147. A versão em português se encontra em: http://www.eurozine.com/ pdf/2008-07-04-grosfoguel-pt.pdf. Enquanto a versão inglesa pode ser lida em: http://www.eurozine. com/pdf/2008-07-04-grosfoguel-en.pdf 340 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... produzidas pelas relações de poder ou aspirar a uma comunidade ideal de comunicação à la Habermas, sem identificarmos as relações de poder mundial e os “outros” excluídos, silenciados, ignorados ou exterminados pela colonialidade do poder global (Quijano 2000). Qualquer diálogo intercultural tem que assumir que não vivemos em um mundo horizontal de relações culturais. A horizontalidade assume uma falsa igualdade que não contribui em nada para um diálogo produtivo entre norte e o sul do planeta. Devemos começar reconhecendo que vivemos em um mundo onde as relações entre culturas se realizam verticalmente, isto é, entre dominados e dominadores, entre colonizados e colonizadores. Esta verticalidade coloca desafios importantes. Um destes desafios é pensar como os privilégios do Norte, a partir da exploração e dominação da colonialidade global, afetam a comunicação, a interculturalidade e o diálogo com o Sul. Antes de um diálogo é preciso começar reconhecendo as desigualdades de poder e as cumplicidades do Norte em relação à exploração do Sul. O assunto da geopolítica do conhecimento torna-se inescapável nestas discussões. Ninguém está pensando a partir de um espaço etéreo ou desde o olho de Deus. Todos pensamos a partir de um lugar especial e corporal particular nas relações de poder global no mundo. O “de que lugar” se está pensando vai condicionar as experiências que se visibilizam e as que se invisibilizam. Dito de outro modo, o visível e o invisível de uma teoria está fortemente condicionado pela geopolítica e corpo-política do conhecimento a partir do lugar de onde pensamos. Quero começar esta discussão pelo invisível, quer dizer, por este traço ausente que nos constitui em sua perene invisibilidade. Refiro-me ao padrão de poder colonial global que, de acordo com o sociólogo peruano Aníbal Quijano, chamarei de “colonialidade do poder”. Parece anacrônico falar em relações coloniais em um mundo aparentemente descolonizado. Mas como veremos em seguida, a “colonialidade do poder” é central em qualquer discussão sobre o sentido de um signo, sobre o ato de comunicação ou sobre um diálogo intercultural, interepistêmico Norte-Sul, mesmo no dentro da esquerda. Por exemplo, a “colonialidade do poder” aponta para uma grande diferença em como entendemos os processos interculturais Norte-Sul, tanto em relação ao Sul como em relação ao Sul dentro do Norte. Refiro-me ao que se chamou recentemente de mestiçagem, hibridização ou mistura de culturas no encontro de europeus e não europeus, dentro e fora dos centros metropolitanos. Visto desde um olhar eurocêntrico, isto é, a partir do lado dominante, hegemônico da diferença/relação do poder colonial, estes processos culturais são v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 341 concebidos como “sincréticos”, pois se assume que há uma horizontalidade nas relações culturais ali estabelecidas. No entanto, como veremos em seguida, quando olhamos a partir da perspectiva subalterna da diferença/relação de poder colonial, o híbrido e mestiço representam estratégias políticas, culturais e sociais dos sujeitos subalternos que, desde posições de poder subordinadas, quer dizer, a partir de uma verticalidade nas relações interculturais, inserem epistemologias, cosmologias e estratégias políticas alternativas ao eurocentrismo como resistência às relações de poder existentes. Chamar estas estratégias de “sincretismo” é um ato de violência simbólica que reduz estes processos ao mito de uma integração horizontal e, portanto, igualitária, dos elementos culturais em questão. As regiões marcadas historicamente pelas estruturas das plantações escravistas têm processos culturais e etnorraciais que são importantes que os entendamos em sua especificidade histórico- -social. Se não queremos cair no ridículo dos colonizadores espanhóis dos séculos XVII, XVIII e XIX, que acreditaram que haviam colonizado os escravos africanos quando os viam adorando aos santos católicos, é fundamental que entendamos os processos de hibridização e mestiçagem como estratégias “das brechas” (“cimarronas”5 ) de subversão político-cultural desenvolvidas do lado subalterno da diferença colonial em contexto como os das plantation. Ali onde a desigualdade nas relações de poder produzidas pelas hierarquias etnorraciais não permitiam a prática aberta e livre da cultura dos escravos. Neste trabalho, me refiro a outras maneiras de articular as relações interculturais a partir de uma perspectiva das subalternidades produzidas no sul. Porém, antes, é preciso esclarecer o que se entende por colonialidade global. A colonialidade do poder global Foi com a expansão colonial europeia, no século XVI, que teve origem a geocultura, ou ideologias globais, que ainda constituem os imaginários contemporâneos no “sistema-mundo ocidentalizado cristianocêntrico capitalista patriarcal moderno colonial”6 . Diferentemente de como tem proposto a economia burguesa 5 Diz-se de animais e plantas que foram domesticados, mas que podem voltar a se tornar selvagens, ou quando fogem, no caso dos animais, ou quando não cultivadas disciplinarmente, no caso das plantas. Daí ser usado também para se referir a escravos que fugiam e se refugiavam nas matas e montanhas. Na literatura acadêmica brasileira autores como o historiador João José Reis, trabalham com o conceito de “brecha” em sentido semelhante no que se refere à forma dos subalternos lidarem com as amarras do poder, daí a escolha da tradutora por esse termo. (NT) 6 Quijano, Aníbal and Wallerstein, Immanuel (1992). “Americanity as a Concept, or the Americas in the Modern World-System.” International Journal of Social Sciences 134: 583-591. 342 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... ou marxistas ortodoxa, o capitalismo histórico desde seu começo, no século XVI, tem sido um sistema mundial7 . Pensar o capitalismo histórico como um sistema puramente econômico e circunscrito a um estado-nacional constitui uma conceituação reducionista. A expansão colonial europeia constituiu simultaneamente varias hierarquias globais. A simultaneidade temporal da emergência dessas hierarquias globais elimina qualquer concepção de infraestrutura e superestrutura que informa muitas das teorizações marxistas e elimina qualquer concepção ocidentalista que nega a coetaneidade no tempo De todas as regiões incorporadas ao sistema sob a retórica de países avançados e países primitivos, desenvolvidos ou subdesenvolvidos. A expansão colonial europeia institucionalizou e normatizou simultaneamente, a nível global, a supremacia de uma classe, de um grupo etnorracial, de um gênero, de uma sexualidade, de um tipo particular de organização estatal, de uma espiritualidade, de uma epistemologia, de um tipo particular de institucionalização da produção de conhecimento, de algumas línguas, de uma pedagogia, e de uma economia orientada para a acumulação de capital em escala global. Não é possível entender estes processos separadamente. De fato, a palavra “capitalismo” é enganosa porque nos leva a pensar em um sistema econômico, quando, na realidade, se trata de um sistema hegemônico que transcende as relações econômicas e inclui relações raciais, sexuais, de gênero, espirituais, linguísticas, pedagógicas, epistemológicas, todas articuladas em uma matriz de poder colonial que estabelece a superioridade biológica e/ ou cultural das populações de origem europeia construídas como “ocidentais”, sobre as populações não europeias construídas como “não ocidentais”. O capitalismo histórico opera sobre as seguintes hierarquias: primeiro, uma divisão internacional do trabalho composta por centros metropolitanos, periferias subordinadas a estes ditos centros, e algumas semiperiferias que compartilham relações de centro com regiões periféricas e relações de periferia com certos centros; segundo, um sistema interestatal político-militar de estados dominantes e subordinados, de estados metropolitanos e periféricos, correspondentes na maioria dos casos à hierarquia da divisão internacional do trabalho e em sua maioria organizados ao redor da ficção do Estado-nação; terceiro, uma hierarquia de classe dividida entre o capital e as diversas formas de trabalho explorado; quarto, uma hierarquia etnorracial, na qual os grupos construídos/ identificados como ocidentais dominam em termos de poder, status e prestígio os grupos etnorraciais construídos e constituídos como não ocidentais, isto é, como “o outro” cultural e/ou biologicamente “inferior”; quinto, uma hierarquia de gênero, na qual os homens gozam de maiores poderes e impregnam as relações sociais de uma construção viril, patriarcal e machista e das discursividades nacionais, políticas e/ou culturais8 ; sexto, uma hierarquia onde se privilegia a heterossexualidade; sétimo, uma hierarquia espiritual, na qual se privilegiam os conhecimentos europeus em detrimento daqueles não europeus por meio de uma rede global de universidades; nono: uma hierarquia pedagógica global, na qual as pedagogias ocidentais se privilegiam como superiores às não ocidentais; décimo: uma hierarquia linguística, na qual as línguas europeias são privilegiadas frente às não europeias; décimo primeiro: uma hierarquia estética na qual se privilegia os gostos e conceitos de beleza e de sublime ocidentais em detrimento aos não ocidentais. Existem outras hierarquias da colonialidade do poder global que não cabe mencionar aqui. O importante é que estas onze hierarquias estão historicamente entrelaçadas. As separei nesta exposição por razões puramente analíticas. As onze têm sido construtivas não dos capitalismos ideais dos livros-texto do marxismo ortodoxo ou das ideologias desenvolvimentistas, mas do capitalismo historicamente existente. O homem branco, capitalista, heterossexual, militar, cristão, europeu foi o que se expandiu pelo mundo levando consigo, e impondo simultaneamente, os privilégios de sua posição racial, militar, de classe, sexual, epistêmica, espiritual e de gênero. Estas diversas e entrelaçadas colonialidades, foram cruciais nas hierarquias e ideologias globais que, ainda no início do século XXI, experienciamos em escala planetária. A homofobia, o racismo, o sexismo, o heterossexismo, o classismo, o militarismo, o cristianocentrismo, o eurocentrismo são todas ideologias que nascem dos privilégios do novo poder colonial capitalista, masculinizado, branqueado e heterossexualizado. Não se pode pensar estas ideologias separadas umas das outras. Todas integram a matriz de poder colonial que em nível global ainda existe. Por exemplo, não se pode entender a racialização dos indígenas nas Américas sem que se entenda a homofobia. Para a maior parte dos indígenas das Américas 8 Immanuel Wallerstein, The Capitalist World-Economy, Cambridge: Cambridge University Press and Editions de la Maison des Sciences de l’Homme; Edward Said, Orientalism, New York: Vintage Books; Cynthia Enloe, Bananas, Beaches and Bases: Making Feminist Sense of International Politics, Berkeley: University of California Press. 344 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... as relações homossexuais constituíam parte normal das suas práticas sexuais cotidianas. Foi a colonização europeia que patologizou essas relações como parte de uma estratégia de racialização para mostrar a inferioridade racial das populações indígenas e da necessidade de convertê-los ao cristianismo9 para torná-los sujeitos dóceis à sua incorporação nas formas capitalistas de trabalho forçado. Não podemos entender também o militarismo e a repressão policialesca como ideologia dominante para resolver os conflitos sociais sem entender sua articulação com a supremacia branca, masculinista e heterossexista. A globalização entendida como mobilidade de pessoas, capitais, mercadorias, ideologias, culturas e ideias sobre as fronteiras nacionais tem 510 anos de história. A novidade dos últimos 30 anos do “sistema-mundo capitalista/patriarcal moderno/colonial” é a autonomia adquirida pelas corporações multinacionais dos Estados-nacionais10. As multinacionais mobilizam seus investimentos sobre as fronteiras nacionais sem que os Estados possam regular os fluxos de capitais. Nem mesmo os Estados do centro têm poder de regulação sobre estes fluxos transnacionais. Neste contexto, acaba por ser uma fantasia finissecular conceber o desenvolvimento econômico em pequenos bolsões do capitalismo nacional ou do socialismo nacional em países periféricos cuja herança histórica tem sido a subordinação aos países capitalistas centrais. Este fenômeno coloca sob rasura, como nunca antes na história do sistema-mundo capitalista, o mito da ideologia liberal burguesa conhecida como a “soberania dos estados nacionais” e as ideologias “desenvolvimentistas”. Essas ideologias têm sido historicamente um dos pilares da modernidade. Os estados nacionais são estruturas que têm cada dia menos controle sobre os processos socioeconômicos dentro de suas fronteiras. A economia sem fronteira do capitalismo global altera os dualismos dentro/fora, interior/ 9 Não quer dizer que o patriarcado nasceu com a Europa, quer dizer que em muitos lugares do mundo colonizado não existía patriarcado antes da expansão europeia, isto é, as relações de gênero eram matriarcais ou igualitárias. Onde existia patriarcado antes da chegada dos europeus, o que se tinha era um sistema que operava com lógicas sociais muito diferentes daquelas do patriarcado europeu. Por tanto, teríamos que observar atentamente a maneira específica como se articulou o patriarcado europeu com as formas de organização das relações de gênero em cada região colonizada pela Europa. No entanto, tudo isso foi destruído pela colonização europeia e hoje em dia vemos em comunidades indígenas, como no resto das sociedades ocidentais, as reproduções de relações sexistas e homofóbicas. 10 Giovanni Arrighi, The Long Twentieth Century, London: Verso, 1994; Octavio Ianni, Teorías de Globalización, México: Siglo Veintiuno, 1996. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 345 exterior e nacional/estrangeiro do pensamento “anti-imperialista”, assim como a noção “burguesa” de adquirir soberania para regular a economia nacional até o desenvolvimento autossustentável e autossuficiente. Por conseguinte, não só está em crise a noção de uma ruptura radical que nos permita localizar-nos a partir de um local externo (afuera) do sistema-mundo capitalista para construir uma nova sociedade (o “socialismo”), mas como está ainda mais em crise a imagem metafísica de uma ruptura moderada com os Estados Unidos e Europa que nos permita nos localizarmos como estando em um exterior (un afuera) absoluto e ‘livre’ e ‘soberano’ das suas estruturas de poder político e econômico globais para incluir a periferia de outra maneira na divisão internacional do trabalho. Não existe um exterior (un afuera), isto é, em nível da economia política, todos estamos no interior do sistema. Ainda pior, qualquer esforço de se localizar fora é sufocado imediatamente pelos bloqueios comerciais, agressões militares, interrupções de créditos e empréstimos do banco mundial, ou imposições de condições onerosas para o pagamento da dívida externa. Isso nos leva à questão do que tem sido mal denominado como “independência” na América Latina e no Caribe e às perguntas do que entendemos por descolonização. Descolonização ou recolonização? A chamada “independência” dos países periféricos na América Latina e, sobretudo, no Caribe, desde o século XIX até hoje, tem sido um dos mitos mais efetivos na reprodução de ideologias “desenvolvimentistas” e de “soberania nacional”. Os problemas da região são construídos como problemas internos do estado-nacional sem nenhuma conexão com a exploração e dominação do sistema-mundo capitalista/colonial. As direitas e as esquerdas nacionalistas reduzem o colonialismo a uma relação jurídica-política, concebendo-o, assim, como finalizado, uma vez que os territórios se independentizaram juridicamente e se constituíram em Estados independentes. No entanto, o colonialismo não é meramente uma relação jurídica. Se concebermos o colonialismo como uma relação política, econômica, sexual, espiritual, epistemológica, pedagógica, linguística de dominação metropolitana no sistema-mundo e uma relação cultural/estrutural de dominação etnorracial, as mal denominadas repúblicas independentes da América Latina e do Caribe estão ainda por se 346 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... descolonizar11. Seria melhor caracterizá-las, seguindo a Aníbal Quijano, como “independências coloniais”12. Primeiro, os Estados-nacionais periféricos na América Latina e, sobretudo, no Caribe, são colônias disfarçadas, isto é, neocolônias. As independências no terceiro mundo, nos últimos 100 anos, nunca mexeram nas hierarquias globais criadas por 400 anos de colonização europeia no mundo. Os países periféricos seguem subordinados no que se refere à divisão do trabalho e no sistema interestatal ao domínio econômico, político e militar dos estados e corporações metropolitanas13. A ilusão de que cada Estado é “soberano” porque decide sobre seu destino histórico, livre e independentemente das relações de força política e econômica do sistema-mundo capitalista, é um dos mitos mais importantes da modernidade capitalista14. Não é preciso dizer que a “soberania” sempre foi limitada e sempre operou para os Estados mais poderosos militar e economicamente do sistema-mundo. As periferias nunca contaram com a soberania dos centros, sendo sempre submetidas ou subordinadas às metrópoles por diversos mecanismos de coerção colonial ou neocolonial que incluem desde invasões militares diretas até bloqueios comerciais. No caso dos Estados-nacionais do Caribe, a soberania nunca foi real. O controle geopolítico militar e econômico do estado norte-americano e as corporações transnacionais na região fazem desta noção uma piada de mal gosto. O golpe de Estado da CIA sobre o governo de Arbenz, na Guatemala, em 1954; a invasão de tropas francesas na Martinica, em 1959; a invasão financiada pela CIA a Cuba, na Baía dos Porcos, em 1961; a desestabilização do governo de 11 Miguel Rojas Mix, Los Cien Nombres de América, Barcelona: Editorial Lumen, 1991; Aníbal Quijano, “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad” Perú Indígena (1991) 29: 11-21; Aníbal Quijano, “‘Raza’, ‘Etnia’ y ‘Nación’ en Mariátegui: Cuestiones Abiertas” en José Carlos Mariátgui y Europa: El Otro Aspecto del Descubrimiento, editado por Roland Forgues. Lima, Perú: Empresa Editora Amauta S.A., 167-187; Frantz Fanon, Black Skin, White Masks, New York: Grove Press, 1967; Lander Edgardo (1998). “Eurocentrismo y colonialismo en el pensamiento social latinoamericano,” in Roberto Briceño-León and Heinz R. Sonntag, eds., Pueblo, época y desarrollo: la sociología de América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 87-96. 12 Aníbal Quijano (2000) “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina” en Edgardo Lander (ed.) Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales (CLACSO: Buenos Aires); Quijano, Aníbal (1998). “La colonialidad del poder y la experiencia cultural latinoamericana,” in Roberto Briceño-León and Heinz R. Sonntag, eds., Pueblo, época y desarrollo: la sociología de América Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 139-155. 13 Consultar a literatura da dependência dos seguintes autores: André Gunder Frank, Capitalismo y subdesarrollo en América Latina, México: Siglo Veintiuno Editores, 1970; Fernando H. Cardoso y Enzo Faletto, Dependencia y Desarrollo en América Latina, México: Siglo Veintiuno, 1969; Vania Bambirra, El Capitalismo Dependiente Latinoamericano, México: Siglo Veintiuno, 1974; Anne Macklintock, Imperial Leather: Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest, New York: Routledge, 1995; Unthinking Eurocentrism: Multiculturalism and the Media, London: Routledge, 1994. 14 Immanuel Wallerstein, After Liberalism, New York: The New Press, 1995, pág. 93-107. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 347 Cheddi Jagan, na Guiana, em 1963; a invasão norte-americana da República Dominicana para derrubar o governo constitucionalista, em 1965, a invasão das tropas holandesas em Curaçao, em 1969; a desestabilização do governo socialista de Manley, na Jamaica nos anos setenta; a guerra na Nicarágua sandinista nos anos oitenta; a invasão norte-americana a Granada, em 1984; ao Panamá, em 1990 e ao Haiti, em 1995 são alguns dos exemplos de nossa história recente que falam por si só da falsa soberania existente nas repúblicas neocoloniais (autônomas ou independentes). Ao final do século XX, a ilusão de soberania, isto é, o mito da independência dos Estados periféricos está substancialmente debilitado. Isso se dá não só pela hegemonia militar imperialista na região caribenha, que impede uma independência política real, como pela ausência de controle sobre a mobilidade dos capitais que atravessam sem limites as fronteiras nacionais. Por tanto, a tese que sustento neste trabalho é que passamos do colonialismo global à colonialidade global. O primeiro é um período de expansão colonial europeia no mundo entre 1492 a 1945. Após 1945, assistimos a uma queda das administrações coloniais as guerras anticoloniais do terceiro mundo. Este período, entre 1945 até nossos dias, chamo de colonialidade global, pois as hierarquias coloniais globais entre ocidentais e não ocidentais que temos denominado de colonialidade do poder, construídas por 450 anos de colonialismo, continuam intactas apesar das administrações coloniais terem sido erradicadas. O colonialismo global seria um período de colonialidade do poder ou de relações sociais coloniais sem administradores coloniais. As condições histórico-sociais de possibilidade dos últimos 50 anos (1945-2002) de colonialidade global são os 450 anos de colonialismo global (1492-1945). Sem o colonialismo global não haveria hoje em dia a colonialidade global. Segundo, os mal denominados “países independentes” dos territórios das Américas, e agora, inclusive de América do Norte, são territórios ainda por descolonizar, uma vez que as novas repúblicas experimentam o que Aníbal Quijano chama de “colonialidade do poder”15. Juridicamente, a América Latina, o Caribe e a América do Norte se separam da França, Grã Bretanha, Espanha e Portugal, mas as hierarquias etnorraciais construídas por anos de 15 Para Quijano a colonialidade se constrói a partir da expansão europeia e implica em um eixo duplo hierárquico: 1) entre trabalho e capital; y 2) europeus e não europeus. Ver Aníbal Quijano, “Colonialidad y Modernidad/Racionalidad” Perú Indígena (1991) 29: 11-21; Aníbal Quijano, “’Raza’, ‘Etnia’ y ‘Nación’ en Mariátegui: Cuestiones Abiertas” en José Carlos Mariátgui y Europa: El Otro Aspecto del Descubrimiento, editado por Roland Forgues. Lima, Perú: Empresa Editora Amauta S.A., 167-187 subordinação colonial ficaram intactas. Os brancos “criollos”, no caso da América espanhola, e os “brown color”, no caso caribenho continuaram hegemonizando o poder social, político e econômico do novo Estado neocolonial sobre os negros, índios, mestiços, mulatos, asiáticos e os diversos grupos racializados. A nova forma do Estado-nação se constrói sobre a ideologia da nação, isto é, a ficção de uma unidade de indivíduos soberanos que se unem como “comunidade imaginária” a partir de uma cultura comum e/ou laços sanguíneos comuns16. Em geral, são as etnias ou raças dominantes, à qual pertencem as classes e elites que controlam o poder do Estado, as que definem que cultura ou que “laço sanguíneo” será inventado como critério de pertencimento à nação, generalizável aos indivíduos submetidos ao poder do Estado. Aqueles grupos étnicos ou racializados que não nessa definição de nação são excluídos, submetidos, assimilados ou exterminados, dependendo da história particular de cada Estado-nação. Os projetos de nação da forma como historicamente têm se constituído levam em sua semente uma exclusão racista, etnocêntrica, sexista e homofóbica de um outro subordinado. Não se trata de dizer que a nação esteja na margem17, mas que a nação é sempre uma margem, isto é, uma borda que constitui alguns como incluídos e outros como excluídos. Em um mundo colonial a nação tem um caráter ambíguo. Por um lado serve para construir uma ficção de identidade homogênea na luta anticolonial, enquanto, por outro, instaura a ideologia moderna e eurocêntria do Estado- -nação. Para poder construir um espaço de identidade homogênea e comum, os discursos fundacionistas da “nação” inventam margens, bordas que definem quem pertence e quem não pertence à “nação”. O projeto de nação é o esforço permanente de apagar constantemente sua margem com o propósito de reificar o espaço homogêneo que se constrói com a exclusão de outros. Estes “outros” sempre são os grupos raciais e sexuais patologizados. Em oposição a eles se constrói o projeto de nação cujos discursos se constituem com imagens patriarcais e machistas do homem heterossexual. A nação é o esforço de colocar na fronteira outros grupos para que o mito de homogeneidade se reproduza. Como hoje em dia já não se pode ocultar estas margens, a pretensão de homogeneidade nacional está em crise. Por isso, o discurso de que a “nação está em uma margem” é a retórica daqueles que querem restabelecer a homogeneidade excludente da nação. No fundo este é um discurso autoritário e colonialista que 16 Bennedict Anderson, Imagine Communities, London: Verso, 1983; Immanuel Wallerstein, After Liberalism, pág. 72-92, 232-251. 17 Devo a Chloe S. Georas a obsevação deconstrutivista de que as nações são sempre uma espécie de margem a Chloe S. Georas. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 349 termina restabelecendo algumas hierarquias raciais construídas por séculos de colonialismo. Isso transparece ao se privilegiar os elementos hispânicos da nação em toda a América espanhola e, o supostamente, branco, na América Portuguesa. Definir a nação a partir do hispânico ou do lusitano em países de negros e mulatos ou de indígenas e mestiços é uma definição colonialista da nação, uma vez que reproduz as hierarquias etnorraciais instauradas por séculos de colonialismo ocidental18. Este é um mal augúrio do que será a colonialidade do poder na futura república neocolonial. Neste sentido, tantos os Estados Unidos como as repúblicas latino-americanas e caribenhas requerem uma descolonização não só da economia-política, como também do imaginário social e cultural. Descolonizar, neste sentido, adquire um novo sentido que transcende a noção que o reduz a um mero problema jurídico-político. Trata-se de superar a colonialidade não meramente como problema jurídico, mas como relação social de poder que inclui a descolonização das epistemologias, da sexualidade, das relações de gênero, da política, da economia e das hierarquias etnorraciais, todas articuladas com a matriz de poder colonial, constituintes de um mundo que privilegia as populações europeias/euro-americanas em detrimento das não europeias. Em resumo, estas falsas repúblicas periféricas das Américas sofrem dessa dupla colonialidade: 1) o domínio das elites etnorraciais dominantes e 2) o controle político, econômico e militar dos centros metropolitanos. Estaria a Europa eximida da necessidade de uma descolonização? Um dos grandes mitos eurocêntricos é pensar que a descolonização é um processo terceiro-mundista, o qual o primeiro mundo não tem porque participar. Os países europeus e norte-americanos – como poderes coloniais já há vários séculos e como centros metropolitanos que hoje em dia se beneficiam da exploração e dominação dos países periféricos que produz a colonialidade global e a divisão internacional do trabalho – ainda mantêm, dentro de suas fronteiras, ideologias racistas coloniais em relação ao terceiro mundo, assim como as mantêm para além destes limites. O terceiro mundo, dentro daquelas fronteiras, são as populações de migrantes africanos, árabes, caribenhos, latino-americanos, asiáticos, provenientes das ex-colônias. Estas populações são a periferia no interior dos centros, isto é, são a mão de obra colonial explorada e dominada para que a Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália etc. possam continuar mantendo um 18 Nisso caem alguns textos nacionalistas, ver por exemplo Luis Fernando Coss, La Nación en la Orilla, Río Piedras: Editorial Punto de Encuentro, 1996; Juan Manuel Carrión, La Voluntad de Nación, Río Piedras: Editorial Nueva Aurora, 1996. 350 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... estilo de vida privilegiado em relação ao resto do mundo. Lamentavelmente, parte da herança colonial europeia se reflete na força do racismo e do neofascismo como tendências que ainda articulam debates políticos. Por outro lado, o terceiro mundo, fora das fronteiras nacionais do Norte, são os países periféricos que provêm matérias-primas, mercadorias e mão de obra barata para os investidores metropolitanos. A descolonização implica em uma intervenção, dentro e fora da Europa e Estados Unidos, nas hierarquias raciais, políticas, econômicas e de gênero construídas sob séculos de colonialismo europeu no mundo. No Caribe temos o legado de descolonização de Aimé Cesaire que, entendendo a falsa independências das ilhas caribenhas eram formas de colonização neocolonial, impulsionou a anexação das Antilhas francesas pela França, procurando estender à periferia os direitos e os recursos do estado do bem-estar social que gozavam os cidadãos metropolitanos. Porém, seu projeto descolonizador não parou por aí. No plano cultural, Cesaire desenvolveu uma luta descolonizadora pelo reconhecimento das raízes africanas martiniquenses, como também pelo reconhecimento da igualdade de cidadania dos negros caribenhos no interior do Estado francês. Ao invés de permitir a subordinação neocolonial em uma falsa República onde os europeus e euro-americanos continuam controlando e explorando as economias locais sem custos de administradores coloniais, Cesaire lutou pela descolonização via transferência para das populações coloniais racializadas dos mesmos direitos civis, sociais e democráticos concedidos aos franceses metropolitanos19. O paradoxo é que aqueles países caribenhos que não conseguiram sua independência têm, hoje em dia, um melhor nível de vida e maior acesso à riqueza social que aqueles que com muito suor e sangue alcançaram sua independência. No entanto, o esquema de Cesaire, na Martinica, é impossível de ser reproduzido no resto do terceiro mundo. De fato, nenhum país do Norte aceitaria incorporar, atualmente, nenhuma de suas ex-coloniais, estendendo a elas igualdade de direitos cidadãos. E duvido muito que as populações do terceiro mundo tenham desejo de voltarem a se integrar aos países metropolitanos, mesmo com a oferta de igualdade de cidadania. No entanto, o modelo de Cesaire dramatiza uma grande diferença entre o Caribe não independente e o Caribe independente que é crucial em qualquer discussão sobre descolonização da colonialidade global do poder no mundo. Se bem que em ambos Caribes exista exploração ou extração de riquezas do Sul para o Norte, no Caribe francês, holandês, norte-americano 19 Ernest Moutoussany (1999), Aimé Césaire: Député `a l’Assemblée Nationale 1945-1993, Paris: L’Harmattan. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 351 e algumas ilhas britânicas, todos territórios não independentes, os governos recebem grandes somas de transferências metropolitanas via a existência de cidadanias metropolitanas. Estas são colônias modernas de novo tipo, onde existe um mecanismo de distribuição de riqueza do Norte para o Sul, o que não ocorre no Caribe independente. Porém, a conclusão não é que temos que mover para trás a roda da história e voltar a nos tornar colônias. A conclusão é a seguinte: qualquer processo de descolonização global tem que, necessariamente, contemplar a criação de mecanismos globais de distribuição de riqueza do Norte para o Sul. Mecanismos que sejam capazes de romper de uma vez por todas com a colonialidade global, o que implica estancar a transferência contínua e incessante de riqueza produzida pelo e a partir do Sul para as populações do Norte. A criação de mecanismos de redistribuição de riquezas do Norte para o Sul é a única maneira de poder enfrentar o problema da desigualdade de riquezas global e a polarização mundial que dela deriva. Qualquer coisa fora disso não passará de projetos/estratégias imperiais de recolonização neocolonial. Nem Fundamentalismos Ocidentalistas, nem fundamentalismos terceiro-mundistas Com os argumentos esgrimidos até aqui, não quero estabelecer um essencialismo antiocidental que produz uma inversão binária da lógica eurocêntrica e termina reproduzindo alguma das variantes dos “fundamentalismos terceiro-mundistas” (religiosos e/ou nacionalistas). Dada a história da expansão colonial europeia e seu monopólio desde o século XIX, não existe um lugar que seja uma externalidade (un afuera) absoluta do ocidente. Mas isto não significa que não existam alternativas ao eurocentrismo e ao ocidentalismo. Existem cosmologias fronteiriças e estratégias alternativas de deslocamento frente ao fundamentalismo eurocentrista (cristão, sionista etc.) e frente ao fundamentalismo terceiro-mundista (sejam islamistas ou de outro tipo). Isto é o que se tem chamado, de acordo com a produção teórica dos chicanos20 nos Estados Unidos, de “epistemologias fronteiriças, ou o que Enrique Dussel chamou de “transmodernidade”21. O tema fundamental é que o reconhecimento de que não há um “exterior absoluto” (afuera absoluto) ao ocidente não significa que, então, temos que legitimar o ocidentalismo ou o fundamentalismo eurocêntrico, concluindo 20 Chicanos são mexicano-americanos. (NT) 21 Enrique Dussel (1994) 1492: El Encubrimiento del Otro (La Paz, Bolivia: Plural Editores); Enrique Dussel (2008) Política de Liberación Volumen 1 (Madrid: Trotta). 352 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... que não há alternativas ao sistema-mundo capitalista e ao Ocidente. Esta lógica termina romantizando o ocidente e a Europa sob o preço de não romantizar o terceiromundismo. Em outras palavras, procurando não cair na inversão binária dos termos, os pós-modernistas terminam reproduzindo a lógica eurocêntrica dominante, privilegiando o polo hegemônico de oposição (neste caso Europa e Estados Unidos), sem conseguir fazer um deslocamento de ambos polos da oposição binária. Os pós-modernistas reproduzem o que Enrique Dussel chamou de “uma crítica eurocêntrica do eurocentrismo”. Nem o eurocentrismo imperial nem o nacionalismo terceiro-mundista são alternativas adequadas aos tempos em que vivemos. Nem uma nem outra representam alternativas democráticas e estratégias de alteridade, de desestabilização das oposições binárias. Temos que buscar o “pensamento fronteiriço” (Alarcón/Anzaldua22), na “transmodernidade” (Dussel23), na “cumplicidade subversiva” (Grosfoguel24), nas “armas milagrosas” (Cesaire25), na “transculturação” (Ortiz26) das estratégias de deslocamento das relações do poder ocidentalistas. Estas estratégias políticas não ocidentalistas são praticadas por diferentes movimentos sociais e sujeitos subalternos mundo afora, como os movimentos sociais porto-riquenhos, martiniquenses, indígenas, afro-americanos, afro-caribenhos, afro-brasileiros, islamitas feministas, zapatistas, as mães da Praça de Maio, os ocupa-fábricas e os piqueteiros na Argentina, entre outros sujeitos localizados no lado subalterno da diferença colonial. No entanto, estas não são estratégias recentes da pós-modernidade. Estas estratégias existem desde as origens coloniais no século XVI. As mesmas são estratégias de resistência e subsistência dentro de uma relação de poder hierárquico e desigual. As orações dos escravos para os santos católicos são estratégias de hibridização e mestiçagem que não têm nada a ver com “sincretismo”. A hibridização e mestiçagem praticadas a partir do lado subalterno da diferença colonial, constituem estratégias de “cumplicidade subversiva”, de “pensamento descolonial”, de “transculturalização”, que procuram subsistir e resistir diante 22 Alarcón, Norma (1983). “Chicana Feminist Literature: A Re-Vision through Malintzín/or Malintzín: Putting Flesh Back on the Object” in Cherríe Moraga and Gloria Anzaldúa, eds., This Bridge Called my Back: Writing by Radical Women of Color. New York: Kitchen Table/Women of Color, 182-190 y Anzaldúa, Gloria (1987). Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters/Aunt Lute. 23 Dussel, Enrique (2002) Hacia una filosofía política crítica. Bilbao, España: Editorial Desclé de Brouwer. 24 Grosfoguel, Ramón. (2002) Colonial subjects. Puerto Ricans in a Global Perspective. Berkeley: The University of California Press. 25 Cesaire, Aimé (1983) The Collected Poetry. Berkeley: University of California Press. 26 Ortiz, Fernando (1995) Cuban Counterpoint: Tobacco and Sugar. Durham: Duke University Press. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 353 de uma relação de poder colonial. Os santos católicos foram “transculturados”, “transmodernizados”, “descolonizados” na cumplicidade estabelecida com eles para, justamente, subvertê-los e redefini-los dentro de uma visão de mundo, uma cosmologia africana e não europeia. Cada santo se converteu, assim, em um Deus africanizado. Portanto, existem alternativas aos fundamentalismos eurocêntricos ocidentais (imperialistas) e terceiro-mundistas (nacionalistas). Que não consigamos vê-los por causa da limitada e distorcida cobertura dos meios de comunicação de massa ou por estarmos fechados nas lentes escuras do eurocentrismo, não é equivalente a dizer que não existam alternativas a Europa, aos Estados Unidos e ao ocidente. O olhar restringido do pós-modernismo, que reduz a mestiçagem e a hibridização ao sincretismo, reproduz no século XXI a ingenuidade e o ridículo do imaginário colonial dos colonizadores espanhóis de outros séculos, quando tomavam como equivalente à “assimilação” e “cristianização”, as orações dos escravos para as imagens dos santos católicos. O que estava acontecendo, subterraneamente dentro da relação híbrida de apropriação por parte dos escravos das imagens das igrejas católicas, escapava às lentes eurocêntricas. Este olhar limitado é acima de tudo um indício das limitações epistemológicas do ocidente e de sua incapacidade de romper com o eurocentrismo vigente, mais do que uma inexistência de alternativas ao ocidente. Os escravos “transculturalizavam”, “fronteirizavam”, “transmodernizavam”, “quilombolizavam” (“cimarroneaban”) as imagens dos santos católicos dentro de uma cosmologia africana. Santa Bárbara se transformou em Iansã, e Iemanjá em tantas imagens de “Nossa Senhora”. Porém, estes processos não são coisas do passado. Estão presente ainda entre nós com muita vida e força nas estratégias dos sujeitos coloniais dentro e fora das metrópoles. Sobretudo, nas sociedades pós-escravistas, onde a colonialidade do poder continua articulando uma hierarquia etnorracial baseada em uma ideologia racista colonial. Por exemplo, a música provê uma das metáforas mais poderosas destas estratégias “cimarronas” do pensamento descolonial. Isto podemos ver na subversão que acarreta o ritmo africano ao transformar a partir de dentro a música hegemônica. O ritmo sincopado de origem africano, mais conhecida no Caribe como “clave”27, reestrutura toda a música africanizando os instrumentos e as melodias musicais de origem europeias. 27 Este ritmo comum a vários países do Caribe oferece a base para outros ritmos como rumba, conga, mambo e salsa, todos marcados pela sonoridade de origem africana. (NT) A “clave” é um traço constituinte do presente, a partir de uma ausência que nunca é presente. A “clave” é silenciosa, pois ninguém a marca, ainda que todos os músicos a sigam. A clave é o silêncio que constitui o som a partir de uma ausência que nunca é presente. O sonero28 colombiano, radicado em Paris, Yuri Buenaventura faz com a canção intitulada “Ne Me Quitte Pas”, de Jacques Brel, o mesmo que La India29, salsera porto-riquenha de Nova Iorque, faz com a música “Ese Hombre”, cantada pela espanhola Rocío Jurado: africanizam ambas, transculturalizando-as com o ritmo sincopado da “clave”. É, mais uma vez, como a reza aos santos católicos, onde ninguém necessita dizer que estão praticando uma religião/cosmologia africana, mas todos estão sabendo que é isso que fazem. É a diferença entre “fazer dizendo” e “dizer fazendo”. O primeiro atua emitindo um enunciado, enquanto o segundo atua em silêncio. Em resumo, estou de totalmente de acordo com as críticas de essencialização de identidades que terminam estabelecendo divisões monolíticas entre “ocidente” e “oriente”. O “pensamento descolonial” constitui uma alternativa que procura dar uma resposta a esta problemática. Como deslocar (ao invés de inverter) o eurocentrismo em um mundo onde não existe um afurea absoluto do Ocidente? Quais formas de pensamento, de cosmologia e de sociabilidade subalternas podem oferecer alternativas às formas hegemônicas de pensamento e sociabilidade ocidentalistas, sem cair em um fundamentalismo nacionalista terceiro-mundista? Este é o desafio que temos adiante. Se o essencialismo terceiro-mundista não é solução, tampouco constitui uma solução resignarmo-nos ao determinismo do “não há saída ao eurocentrismo e ao ocidente”. Ambas são, em minha opinião, respostas essencialistas e absolutistas que deixam intactas as oposições binárias das hierarquias de poder produzidas pela colonialidade do poder global. Parto do reconhecimento de que não há um “externo absoluto” (afuera absoluto) do ocidente e procuro uma saída no “pensamento descolonial”, o qual tenta resignificar os discursos hegemônicos ocidentalistas a partir de localizações epistêmicas subalternas, não ocidentalistas. Estes são espaços produzidos por sujeitos subalternos que pensam e criam estratégias do lado subordinado da diferença 28 Um sonero é um cantor/músico de son, um ritmo de origem cubana. Se chama assim também ao cantor que puxa a parte falada das salsas. (NT) 29 O autor se refere a Linda Viera Caballero, mais conhecida como La India, famosa cantora de salsa. Nascida em Porto Rico, ela é um dos nomes mais expressivos da música caribenha. (NT) v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 355 colonial, mas sem propor um exterior puro (afuera puro) e absoluto ao ocidente, como fazem os fundamentalistas terceiro-mundistas islâmicos, indigenistas ou de outro tipo. Martin Luther King é um exemplo de pensamento descolonial. Ele tomou o discurso hegemônico da “igualdade” e o resignificou estendendo-o a territórios inconcebíveis para o pensamento eurocêntrico (como estender a igualdade a sujeitos negros, latinos e indígenas nos Estados Unidos). Os zapatistas são outro exemplo descolonial, eles tomam o discurso da “democracia” e o resignificam a partir das tradições indígenas locais com a noção de “mandar obedecendo” ou “somos todos iguais porque somos todos diferentes”. Não se trata de deixar a cargo dos eurocentristas a definição das categorias da modernidade, mas de resignificá-las além dos limites que o ocidente as impôs ao mundo. Chamei a esta estratégia de “cumplicidade subversiva” (Grosfoguel 1996, 2002). É importante enfatizar que o “pensamento descolonial”, a “cumplicidade subversiva”, o “andar pelas brechas” (la cimarronaje) ou a “transmodernidade” não são equivalentes ao sincretismo nem à mestiçagem. Trata-se de outra coisa bem diferente, não redutível à linguagem colonial dos antropólogos. O pensamento descolonial não assume uma horizontalidade entre as culturas, assume, isso sim, uma relação vertical na qual o ocidente está do lado dominante. O pensamento descolonial seria uma subversão interna do lado subordinado da diferença colonial. A noção de “descolonial” não é acidental. Trata-se de romper com os discursos de pureza fundamentalistas terceiro-mundistas ou fundamentalistas eurocentristas para descolonizar o imaginário e poder pensar em alternativas possíveis mais justas ao sistema-mundo moderno/colonial. Mover-nos em direção a uma esquerda descolonial global implicaria abrir- -se à diversidade epistêmica do mundo, ao pluriversalismo. Já não poderíamos reproduzir o projeto do socialismo do século XX, no qual uma epistemologia, neste caso uma ideologia eurocêntrica como o marxismo-leninismo, se constituiu como o referente conceitual e global/imperial universal vindo da esquerda. Teríamos que nos abrir ao diálogo interepistêmico e conceber o projeto da esquerda como transmoderno, descolonial com sentidos pluriversos, no qual, a partir de diversas epistemologias e cosmologias formularíamos projetos diversos de esquerda. O que os uniria e serviria como muro de contestações contra o relativismo do “tudo vale” seria um universalismo negativo comum: anti-imperialista, anticapitalista, antipatriarcal, anticolonial. E isso está acontecendo em diversas partes do planeta. 356 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... A virada descolonial no Terceiro Mundo Estando presente na marcha decolonial do Movimento dos indígenas da República30 em maio de 2009, um amigo da esquerda branca francesa que estava presente, mais por curiosidade que por solidariedade, me perguntou: O que o retrato de Nasrallah está fazendo junto do retrato de Fanon? O que Fanon tem a ver com Nasrallah? Nasrallah não é um fundamentalista islâmico? Desde o fim do século XX, um dos fenômenos mais importantes tem sido como as insurgências anti-imperialistas no terceiro mundo se articulam com projetos políticos não mais anticoloniais, mas descoloniais, isto é, com um pensamento crítico produzido a partir de epistemologias e cosmologias não ocidentais. Acabaram os tempos em que os movimentos de resistência se articulam a partir do marxismo ou do marxismo-leninismo. Podemos observar que sem ser antimarxistas, existem movimentos de resistência não marxistas no Oriente Médio que se articulam por meio da cosmologia islâmica, movimentos indígenas na América Latina que se articulam baseados nas cosmologias indígenas (tojolabal no caso dos Zapatistas, aymara e quechua na Bolívia, quechua no Equador, a minga na Colômbia com forte componente Nasa)31, e movimentos na Ásia que pensam baseados no budismo e no islã. Ante este desafio, a esquerda branca e ocidentalizada não encontra categorias para conceitualizar estes processos e continua impondo categorias da esquerda ocidental a estes movimentos exercendo uma violência e distorção epistêmica colonial na caracterização destes processos. A esquerda ocidentalizada está perdida. Caracterizam esses processos reduzindo-os a suas categorias mais familiares como “revoltas camponesas”, “luta anti-imperialista”, “luta de classes”, “luta por democracia”, “luta de nações oprimidas” etc., sem assumir o novo conteúdo epistemológico que o pensamento crítico descolonial está produzindo e sem parar para escutar os novos pensadores no terceiro mundo que a partir de epistemologias não ocidentais estão produzindo um pensamento crítico descolonial muito distinto da visão eurocêntrica da 30 Para mais informações sobre este movimento descolonial na França ver a entrevista a Houria Bouteldja intitulada “La lucha descolonizadora en Francia” em http://venezuela.indymedia.org/es/2009/10/25273. shtml, la entrevista a Sadri Khadri titulada “La dominación racial en Francia” em http://venezuela.indymedia.org/es/2009/11/25392.shtml o el documento titulado “Somos los indígenas de la República Francesa” em http://venezuela.indymedia.org/es/2009/12/25952.shtml 31 Tratam-se de línguas indígenas faladas em diferentes países latino-americanos por uma número bastante grande de pessoas. (NT) v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 357 esquerda ocidentalizada, que oferece respostas inovadoras aos problemas da crise capitalista e ecológica mundial produzida pelo que eles chamam de projeto civilizatório ocidental. Novas categorias críticas emergem como resposta à crise da civilização ocidental. Na Bolívia e Equador se fala em “pachamma”32, “Suma Qamaña” (Bem Viver, que não é equivalente a viver bem) e da “ley del Ayllu”33, que mudou suas constituições como Estados-nacionais historicamente hegemonizados pelos euro-latino-americanos para sociedades e Estados “plurinacionais” e “interculturais” (que não é o mesmo que multiculturalismo). Na Palestina e no Líbano se articula a uma visão anti-imperialista crítica baseada no Islã, que se parece mais à teologia da libertação na América Latina, com noções como o Tawhid e a Sharia para pensar em democracias populares não consensuais, diferente de como nos vende a imprensa ocidental: um voto por cada cidadão, e não uma representação política a partir de identidades religiosas, com críticas dirigidas tanto ao consumismo capitalista ocidental como ao militarismo sionista/imperialista. Todos estes movimentos representam o regresso a defesa de formas de vida e existência que a modernidade colonial eurocentrada pretendia erradicar. Esta crítica à modernidade eurocentrada olha para o passado, não para voltar a ele, mas para repensar o futuro. Por que a emergência de movimentos anti-imperialistas que se articulam a partir de cosmologias não ocidentais acontecem justamente ao fim do século XX? Este processo em escala mundial merece uma explicação: • O eurocentrismo como perspectiva hegemônica de produção de conhecimentos perdeu toda legitimidade com a carnificina humana provocada pela Primeira Guerra Mundial. Daí em diante os filósofos e pensadores ocidentais dedicaram muita tinta na tentativa de entender a crise das ciências europeia e suas possíveis soluções. No entanto, foi o projeto comunista de esquerda, como projeto eurocêntrico que se globalizou a partir da revolução russa, que deu décadas a mais de vida ao moribundo pensamento eurocêntrico. A revolução russa de 1917 inaugurou um ciclo de esperança e difusão de um novo paradigma eurocêntrico conhecido 32 Pachamma é uma palavra em quéchua que nomeia a deusa ligada à força telúrica e reprodutiva da Terra, sendo de idade andina que remete à mãe criadora do universo. 33 Lei que orienta comunidades aymarás do altiplano boliviano, relativas ao uso comunitário das terras. Para mais informações ver OSCO, Marcelo Fernández. La ley del Ayllu: Práctica de jach’a justicia y jisk’a justicia (Justicia Mayor y Justicia Menor) en comunidades aymaras. Fundación PIEB. Bolívia, La Paz, 2000. 358 Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além... como marxismo-leninismo, que com o stalinismo adquiriu sua expressão dominante mais destacada. Durante e depois da Segunda Guerra Mundial se abriram diversas frentes de guerras de libertação nacional anticoloniais que destruíram a existência das administrações coloniais em quase todo o mundo. Abriu-se um ciclo de revoluções no terceiro mundo que mesmo sendo anti-imperialistas e anticoloniais, não eram descoloniais porque assumiram o pensamento eurocentrado por meio da forte influência do marxismo-leninismo. • Nos anos oitenta e noventa do século passado, com a crise, implosão e posterior desaparecimento do império soviético, os países com movimentos de libertação nacional em poder do Estado perderam sua base de apoio internacional terminando derrotados e absorvidos pela contrarrevolução imperialista neoliberal. Para o início dos anos noventa o paradigma marxista-leninista, que havia estendido a vida do eurocentrismo durante várias décadas, entra em crise terminal. Junto à crise, e posterior desaparecimento do paradigma marxista-leninista, se dá uma crise ecológica planetária e uma crise financeira mundial capitalista neoliberal que termina por tornar obsoleta a busca de soluções para os problemas prementes da humanidade na tradição de pensamento dos homens brancos ocidentais, melhor conhecida como eurocentrismo (de direta ou de esquerda). A civilização ocidental, longe de produzir progresso, produz morte. Destruiu a VIDA (humana e não humana) ao ponto de hoje nos perguntarmos se existirá VIDA daqui a 100 anos. Daí que se tenha chegado a um entendimento mundial em muitos espaços do terceiro mundo no qual o eurocentrismo de esquerda e de direita é parte do problema e não parte da solução. As soluções devem ser buscadas na diversidade epistêmica do planeta, no pluriversalismo como projeto universal, e não mais em uma só epistemologia (a eurocêntrica), que a partir de seu particularismo e provincialismo produz falsos universais. • Frente à crise terminal do eurocentrismo em suas manifestações de direita e esquerda ao final do século passado, os povos do terceiro mundo mudam seu olhar e procuram em suas próprias tradições não ocidentais de pensamento e existências as formas de vida e de pensar que tragam alternativas politico-ético-epistêmicas para repensarem uma política de libertação rumo a “outros mundos possíveis”, para além da modernidade capitalista eurocentrada. Daí a insurgência epistêmica global na chave islâmica, tojolabal, aymara, budista, iorubá etc. v.2, n.2 Ramón Grosfoguel 359 A esquerda branca34 continua sem levar a sério o pensamento crítico produzido por estes movimentos descoloniais. Ao não conseguir entender as propostas destes movimentos, impõe a eles de maneira colonial as categorias eurocêntricas da esquerda ocidentalizada distorcendo os processos descoloniais que estão ocorrendo em escala mundial. O curioso é ver como a esquerda europeia apoia sem entender (usando visões distorcidas) os movimentos indígenas nas Américas, mas não apoiam da mesma forma os movimentos islâmicos de resistência como Hamas e Hezbollah. Nestes casos, suas suspeitas eurocêntricas terminam, restando-lhe o apoio à resistência e aliando-se de fato ao colonialismo sionista e imperialista no Oriente Médio. Como Bush, Sarkozy e Natanyahu, a esquerda ocidentalizada usa o termo “fundamentalismo islâmico” para subsumir nessa categoria a Arábia Saudita, Bin Laden, os talibãs, Hezbollah, Hamas etc. sem distinguir o que são movimentos de resistência anti-imperialistas descoloniais, do que são movimentos e os Estados reacionários que trabalham a favor do colonialismo e do imperialismo. Minha resposta ao meu amigo, da esquerda branca europeia, a sua pergunta na marcha descolonial dos indígenas da república francesa em Paris foi: “Nasrallah e Hezbollah estão junto a Frantz Fanon, Quintín Lame (guerrilheiro indígena colombiano), o General Giap, Che Guevara, os zapatistas e todos os combates anti-imperialistas do mundo. Porém, além disso, Nasrallah e Hezbollah são mais que anticoloniais, são descoloniais em seu pensamento e ação. Pertencem à nova insurgência epistêmica descolonial do “terceiro mundo”. Qual foi a resposta do esquerdista branco francês? “Sinto muito, mas não posso estar numa marcha descolonial como esta.” Percebi, então, que para a esquerda branca francesa, a solidariedade tem limites. 34 É importante deixar claro que por esquerda branca ou esquerda ocidentalizada não me refiro ao lugar de origem geográfico ou à cor da pele destes movimentos, mas à epistemologia e ao pensamento que os articula. Por esquerda branca ou ocidentalizada me refiro à esquerda que, seguindo paradigmas ocidentais marxistas-leninistas, pós-estruturalistas, anarquistas ou social-democratas, reproduzem o racismo/sexismo epistemológico da filosofia ocidental e, por conseguinte, o fundamentalismo eurocêntrico privilegiando como superior o cânon do pensamento crítico dos homens ocidentais e descartando como inferior todas as epistemologias não ocidentais. Este racismo epistemológico tem colonizado o mundo desde 1492, e a esquerda ocidentalizada o reproduz por todas as partes. De maneira que é possível viver na Europa sem ser eurocêntrico. Assim como é possível ter origem na África, Ásia ou América Latina e ser um fundamentalista eurocêntrico. Não existe correspondência essencialista entre lugar de origem e epistemologia. Nisso estou me distanciando do essencialismo de Walter Mignolo que, em sua interpretação do conceito de Dussel de “geopolítica do conhecimento”, colapsa ou reduz a localização epistêmica com a localização geográfica. Referências ALARCÓN, Norma. “Chicana Feminist Literature: A Re-Vision through Malintzín/ or Malintzín: Putting Flesh Back on the Object” in Cherríe Moraga and Gloria Anzaldúa, eds., This Bridge Called my Back: Writing by Radical Women of Color. New York: Kitchen Table/Women of Color, 1983. ANDERSON, Bennedict. Imagine Communities, London: Verso, 1983. ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Spinsters/Aunt Lute, 1987. ARRIGHI, Giovanni. The Long Twentieth Century, London: Verso, 1994. BAMBIRRA, Vania. El Capitalismo Dependiente Latinoamericano, México: Siglo Veintiuno, 1974. CARDOSO, Fernando H. y Enzo Faletto. Dependencia y Desarrollo en América Latina, México: Siglo Veintiuno, 1969. CARRIÓN, Juan Manuel. 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