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sexta-feira, 14 de março de 2025
MEU MACHADO DE ASSIS
Há muitas portas de acesso ao pensamento e à obra de Machado de Assis. Atenho-me a uma delas, sem desconsideração para com as demais. Atenho-me ao filósofo do diálogo, ou da intersubjetividade. A questão do valor fundante do diálogo na epistemologia e na sociologia apresentava-se como inovadora no ambiente intelectual de sua época na Europa. Embora não deixe transparecer claramente em sua ficção, Machado frequentava com assiduidade também os filósofos, e o que afirmam os seus biógrafos é que, já nos últimos anos de vida ativa, dedicou-se ao aprendizado do idioma alemão, para ler Nietzsche no original.
O diálogo, ou a intersubjetividade, como forma de representação da realidade, ou como modelo de reflexão, que caracteriza a espécie humana, é defendido pelo sociólgo francês Gabriel Tarde, pioneiro no estudo das redes sociais, em seu livro “A opínião e as massas” ("L'opinion et la foule"), publilcado em 1900, oito ano antes de Machado de assis falecer. Tarde pelejava com Émile Durkheim, considerado como o pai da sociologia francesa. A diferença entre um e outro diz respeito ao estatuto conferido ao sujeito, ao papel da subjetividade na ação humana em sociedade. Para Gabriel Tarde, o sujeito é o protagonista, enquanto para Durkheim o sujeito é o objeto da ação social, do FATO SOCIAL, em seus termos, no sentido da física de Newton: um produto da força e da coesão social, assim como são os hábitos, por exemplo. Para Durkheim, seria o fato social que move o sujeito, como um êmbolo.
É dizer que, ao questionar a legitimidade da objetividade desacompanhada da subjetividade como único critério de cientificidade do fato social, Gabriel Tarde, sem dizê-lo, evoca no plano da ciência e da filosofia a noção de contextualidade. Na ausência do sujeito interessado, não é possível saber o significado do símbolo de igualdade (igual a), por exemplo, já que não é unívoco. Na aritmética significa identidade, na geometria proporcionalidade e na álgebra equivalência. É necessária a presença do sujeito para reconhecer-lhe o CONTEXTO, a partir de cuja referência o símbolo do igual será operado.
Assim ocorre na ficção de Machado de Assis, o filósofo da contextualidade. As palavras não exaurem todo o significado do que parecem indicar. O seu significado, quando não se trata de lógica ou de matemática, que são linguagens formais, é necessariamente ambíguo: depende, ao mesmo tempo, de quem as enuncia e de quem as ouve. Tem-se, assim, não uma monossemia mas uma polissemia, não importa o que digam o emissor e o receptor da mensagem. É como se as palavras, uma vez proferidas e ouvidas, ganhassem vida própria no ato de quem as acolhe como sentido da ação. A ambiguidade que disso resulta embebe não somente o diálogo, mas também o que configura a própria ação dramática, a trama da história. Dito de outro modo: as coisas, os fatos, o dito e o ouvido na obra de Machado de Assis não têm significado próprio, intrinseco, ao contrário do que professam as ontologias - o estudo do ser. O seu valor é o que elas significam - e é nesse sentido que as palavras, ou os gestos, trazem consigo, ao mesmo tempo, as dimensões ética, estética, afetiva, intuitiva e racional, distintas umas das outras, porém, inseparácveis. As palavras comprometem e engajam.
Uma metáfora emblemática de Machado de Assis sobre o caráter fundante do diálogo como expressão do todo da realidade, humana e cósmica, é a sua opereta sobre a Criação a quatro mãos, uma Criação que emerge do diálogo, e não do monólogo divino que inspira o autor do Gênesis. Na opereta, a criação do mundo não assenta sobre um fundamento ontológico, indissociável do monoteísmo. Não há Deus, isoladamente nem Diabo, isoladamente, mas sim Deus e Diabo juntos, uma solução que oferece a vantagem de eliminar a disputa recorrente e cansativa entre ambos pela primazia da Obra. Na opereta, Machado os vê entretidos num jogo algébrico, a quatro mãos, um jogo que consiste em criar regras de criação de regras de criação do mundo. Um põe e outro dispõe, alternando-se as posições sobre um tabuleiro que nunca é o mesmo. Livram-se, dessa maneira, do aborrecimento de uma eternidade sem surpresas: incerteza necessariamente, prazer e risco ao mesmo tempo. Nivaldo Manzano
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