Um momento de reflexão: Viver é comprazer-se na existência
Nivaldo T. Manzano (02/11/2020)
A ideia da existência como um valor afirmativo vem-me de uma reflexão de Raul Pompeia, em seu livro “O Ateneu”, em que afirma que “até para morrer, o enfermo na cama busca uma posição mais confortável”. A evocação dessa reflexão associada ao seu destino trágico – suicidou-se aos 32 anos – impregnou ainda mais o íntimo de minha alma da sensação de que o móvel mais profundo do ser humano é o desejo — o desejo de se comprazer na existência. O desejo é uma espécie de catapulta que lança o ser humano para fora de si tão logo reconheça no outro e no mundo a oportunidade de assimilá-lo a si mesmo. O outro e o mundo estão, pois, implicados em mim como condição de meu autorreconhecimento como desejo, projeto de existência. Nessa medida, sujeito do desejo e objeto do desejo são indissociáveis, ainda que distintos. Jornalista de profissão, sou um aficionado pelos temas da filosofia. E nessa aventura deparei com dois pensadores que se me apresentam como bússola: Nietzsche e Espinosa, para não falar dos gregos antigos. Vou deter-me aqui em Espinosa, a propósito da reflexão de Pompeia.
Tenho um motivo para enfatizar a existência como fonte do valor – o desejo de permanecer na existência e dela fruir. Ao longo da história da reflexão, construíram-se teorias antropológicas e éticas segundo as quais a fonte do valor estaria fora do ser humano. Assim, por exemplo, Tomás de Aquino (1224-1274), teólogo dominicano afirma que o ser humano é naturalmente orientado para o Bem, objetivo e transcendente, e é a atração exercida por esse Bem que o põe em movimento na existência, balizando a sua conduta. Segundo essa visão de mundo, o amor, considerado como o valor por excelência, consistiria em se comprazer no que é bom, segundo o Bem. O amor seria a experiência de uma afinidade natural e de uma complementaridade entre o sujeito que deseja e o objeto desejado, o ser humano desejante e a comunhão com o Bem, ambos definidos previamente como portadores naturais de uma ordem imanente criada por Deus, que os precedeu na existência para abrir e indicar o caminho da felicidade. Esta seria, portanto, uma espécie de êxtase produzido pelo acoplamento entre a chave e a fechadura, ambas desenhadas com exclusividade pelo artífice divino, cioso de sua Obra.
Uma outra visão antropológica e ética, de interesse neste contexto, é a do filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679). De acordo com Hobbes, o móvel fundamental da ação humana é a afirmação e a expansão do eu individual: o amor-próprio e a vontade de poder. Em Hobbes, diferentemente de Tomás de Aquino, a prioridade do desejo não está orientada para um valor transcendental, nem para a realização da felicidade como um valor em si, e sim para a manutenção fisiológica do indivíduo na existência e para o aumento de seu poder sobre o mundo e sobre os outros. Tudo o que existe no indivíduo e fora dele não passa de meio para a realização desse egoísmo calculista. O próprio amor e o prazer são modalidades secundárias desse cálculo. Ou seja, o móvel fundamental do ser humano, em Hobbes, é manter o estado de saúde das tripas para poder eliminar os outros: um projeto inviável, porque suicida. Ciente disso, Hobbes propõe a sujeição do ser humano ao Terror como condição de sobrevivência: todos se submetem à vontade do Estado absolutista e, nessa condição de privação da liberdade, poderão vegetar até que a morte os remova.
Deixando de lado ambos os modos de pensar, em razão de seu caráter alienante, detenho-me em Espinosa (1632 – 1677). Aqui, o ser humano é senhor de seu destino: não deve sujeitar-se a nada e a ninguém, para ser manipulado, porque não é uma coisa. Para Espinosa, o bem somente é bom quando nós próprios o elegemos como bem. Deixa de ser bem quando nos é imposto de fora para dentro, seja na forma de purgante, para curar uma constipação inexistente, seja na forma de abstração, ou sedução ilusória, que ata pés e mãos, impedindo-nos de divisar o próprio caminho. Bebe-se água porque se tem sede e não por alguma outra razão que não seja a própria sede. Exaure-se no sacrifício, não porque ele leva ao Céus, mas porque é prazeroso perder-se naquilo que se deseja. A fonte do valor não está fora de nós, e sim jorra do interior da singularidade. Ou seja, não há valor algum transcendente, superior ao valor que brota de dentro do ser humano.
Esse valor é necessariamente afirmativo, pois existir é comprazer-se
na existência. Assim, com Espinosa está-se longe de qualquer cálculo egoísta baseado no instinto de conservação. Existir não se reduz a conservar a existência biológica bruta. Limitar-se a garantir a circulação do sangue nas veias não implica uma existência necessariamente prazerosa. Sujeitar-se ao terror do Estado é abdicar de si mesmo. Em vez de uma vida vegetativa e calculista, Espinosa propõe que se rejeite todo tipo de alienação — de subordinação a toda ordem externa que limite ou asfixie o desejo de se comprazer na existência. Como a tentação doentia de se auto aplicar emplastros ideológicos sufocantes é recorrente, a existência em liberdade deve converter-se num projeto vigilante de reconstrução permanente.
À primeira vista, esta parece ser a mais radical expressão do individualismo. Na verdade, é a mais libertária, generosa e inclusiva visão de si mesmo, de outrem e do mundo. Se em Hobbes o desejo de um exclui o desejo de outrem (“ou eu ou ele”), em Espinosa a condição de realização do desejo implica a inclusão de outrem no reconhecimento de si próprio.
Retomando o argumento de outra forma, observa-se que o sentimento da existência não é senão a percepção do que se passa em nós mesmos como resultado de nossa interação com o mundo. A percepção de si mesmo, a cada momento, é a experiência de uma mudança, induzida por um estímulo que vem do meio. Os outros e o mundo são para nós partes constitutivas da experiência de sentirmos o que estamos sentindo. Por isso, somos também os outros e o mundo. Na ausência do outro, ou do que supomos esteja fora de nós, não saberíamos o que é o desejo nem o objeto que lhe corresponde, nem como realizá-lo. Essa constatação leva-nos a assumir que eu e os outros constituímos os nós de uma rede. Nenhum homem é uma ilha. Ou seja:
(1) Sentir o que se passa conosco na interação com o mundo é experimentar uma diferença. Quanto mais diferenças reconhecemos no mundo, mais aderentes nos sentimos a ele, mais se intensifica a sensação de estarmos nele, mais se amplia o espaço interior em que nos movemos, mais portas de acesso se abrem a nós mesmos e ao mundo. Em síntese: estar aberto para o mundo e para outrem é sentir mais intensamente a si mesmo — essa é uma condição indispensável para se comprazer na existência. Essa complacência é necessariamente interdependente e recíproca, assim como ocorre no amor. Está-se vinculado a uma rede, é-se feito dela, como um de seus nós. Nela, o que se busca é desfrutar do prazer de viver. Não à custa dos outros, mas graças aos outros. Quanto mais aberto cada nó da rede, no processo de interação com os outros nós, mais intenso é o prazer de se estar nela.
(2) Ninguém se apaixona por um triângulo retângulo. O que põe em movimento o desejo na rede não é uma abstração, uma teoria ou um modelo; é um gesto, um aceno, um muxoxo, um encantamento, uma dor, o trinado de um pássaro, o volteio do girassol, o equilíbrio de um surfista, o passeio de uma nuvem, enfim, um comportamento singular e diferencial. Ideia, abstração, paradigma ou teoria, embora sejam meios de se chegar à singularidade de cada um dos nós, não nos permitem apreendê-la, porque a singularidade é comportamento, enquanto os entes de razão, como essência, estrutura, função, identidade, oposições binárias etc., são construções artificiais imobilistas que nos afastam dela. Somente a percepção que mobiliza todos os recursos de que é dotado o ser humano para interagir com o mundo tem acesso à singularidade: racionalidade, intuição, sentimentos, ética e estética, tudo a um só tempo, indissociáveis. Mas esta lhe escapa na sua inteireza tão logo se converta na mente na imagem que se faz dela. A imagem é uma borboleta pregada na parede, em contraste com a realidade à qual se refere, que apresenta o caráter movente, esvoaçante, da borboleta. Fixar-se na imagem equivale a remover o caráter interativo da rede (social), que é constituída da reciprocidade. Na ausência da reciprocidade, seria uma mesma e única representação da realidade a fluir no caminho de ida e no caminho de volta. A rede deixaria de funcionar, pois o que a move é o reconhecimento das diferenças. Sem a possibilidade de reconhecer e explicitar as diferenças, tem-se o terror funcionalista, a coisa, ou o bloqueio da criatividade. Eis aí o berço do preconceito e da intolerância: a recusa em reconhecer o outro como um outro de si mesmo.
A imagem é sempre mais pobre do que a realidade. Enquanto a imagem é imóvel, a realidade à qual ela se refere está mudando constantemente. O dicionário pode conter a palavra, não um comportamento. A ideia que faço do comportamento de uma pessoa num determinado momento não corresponde à realidade de seu comportamento no momento seguinte, pois entre um momento e outro ela mudou e eu também. Longe de ser uma desvantagem, porém, a abstração que nos fixa no passado é também uma oportunidade de se perceber a diferença entre a ideia que se tinha da realidade e o que se está enxergando nela neste momento. Sem esse desencontro entre a abstração e a realidade, não haveria como se dar conta da mudança. É de diferença em diferença que nos aproximamos infinitamente da realidade. É o pressentimento dessa aproximação que nos leva a suspirar antecipadamente pelo êxtase. Quem é para nós essa pessoa? É o conjunto das versões comportamentais que temos dela, além daquelas que desconhecemos. Por isso, julgar é proibido. O juízo — arbitrário, por definição — ao reduzir o diálogo a monólogo bloqueia a possibilidade de interações na rede.
(3) Pode descrever-se a rede como um meio delimitado pelo conjunto das interações entre seus nós (interfaces, papéis); e cada nó, como um meio delimitado pelo conjunto de suas interações com os nós na rede. O meio é constituído das interações entre suas interfaces, e cada interface, considerada em si mesma, é constituída das interações que ocorrem entre ela e o meio. Considerando que cada singularidade não é senão a expressão das interações entre as suas interfaces, tem-se que cada nó, além de ser interface na rede, é também um meio para si mesmo, no qual elas interagem. O comportamento da pessoa é o meio no qual ocorrem as interações entre seus papéis. Ou seja, cada nó da rede é também uma rede de nós. Eu sou eu e outrem, ou eu e o mundo.
Para o interessado nesse tema, sugiro a leitura do livro de autoria do filósofo lituano Emmanuel Lévinas, "Totalidade e infinito", Lisboa, Edições 70, 2009.