terça-feira, 13 de maio de 2025

OPERETA A QUATRO MÃOS

Não há o que se imponha ao ser humano que não possa ser removido por ele mesmo. Ou: Machado de Assis, o filósofo do diálogo, ou da intersubjetividade. Um dia, quem sabe, vou argumentar que a ficção de Machado de Assis assenta na “epistemologia” do DIÁLOGO, uma ideia em consonància com o que se apresentava como revolucionária no ambiente intelectual de sua época na Europa. Embora não deixe transparecer claramente em sua ficção, Machado frequentava com assiduidade também os filósofos, e o que afirmam os seus biógrafos é que, já nos últimos anos de vida ativa, dedicou-se ao estudo do idioma alemão, para ler Nietzsche no original. O diálogo, como forma de representação da realidade, ou como modelo de reflexão, que acompanha a espécie humana desde que se levantou do chão para se tornar bípede, dizia eu, o diálogo, ou a intersubjetividade, é defendido de modo pioneiro, com a sua ideia de rede social, por Gabriel Tarde, em seu livro “A opínião e as massas”, em 1900. oito ano antes de Machado falecer. É dizer que, ao questionar a legitimidade da objetividade desacompanhada da subjetividade como único critério de cientificidade do fato social, Gabriel Tarde, sem dizê-lo, evoca no plano da ciência e da filosofia a noção de contextualidade. Na ausência do sujeito interessado, não é possível saber o sentido do símbolo de igualdade (igual a), por exemplo, já que não é unívoco. Na aritmética significa identidade, na geometria proporcionalidade e na álgebra equivalência. É precisa a presença do sujeito para reconhecer-lhe o contexto, a partir de cuja referência o símbolo do igual será operado. Assim ocorre na ficção de Machado de Assis, o filósofo da contextualidade, insuperado em língua portuguesa. Na metáfora de Capitu e Bentinho, por exemplo, não há inscrições supostamente predeterminadas na natureza das “coisas”, ou seja, não há justificativa e apelos ideológicos que cuidem de cimentar a confiança numa ontologia do operari sequitur esse (o fazer ou agir segue o ser) que se expressaria numa “evolução histórica linear, natural e necessária”, por exemplo. Uma metáfora emblemátia e genial de Machado de Assis sobre o caráter fundante do diálogo como expressão de toda a realidade, humana e cósmica, é a sua opereta sobre a Criação a quatro mãos, um universo que emerge do diálogo, e não do monólogo divino, que inspira o autor do Gênesis. Na opereta, a criação do mundo não assenta sobre um fundamento ontológico, indissociável do monoteísmo. Não há Deus, isoladamente nem Diabo, isoladamente, mas sim Deus e Diabo juntos, solução que oferece a vantagem de eliminar a disputa entre ambos pela primazia da Obra. Machado os vê entretidos num jogo algébrico, a quatro mãos, um jogo que consiste em criar regras de criação de regras de criação do mundo. Um põe e outro dispõe, alternando-se as posições sobre um tabuleiro que nunca é o mesmo. Livram-se, dessa maneira, do aborrecimento de uma eternidade sem surpresas: incerteza necessariamente, prazer e risco ao mesmo tempo. Assim. na opereta-metáfora de Machado de Assis, a criação do mundo não assenta sobre um fundamento ontológico, indissociável do monoteísmo. Não há hierarquias monologais a ditar o suposto modo único de ser das coisas, mas sim Deus e Diabo juntos no dálogo. Taí a mais forte e radical rejeição do Poder hierárquico, ou seja, o Poder tout court. Parece-me que este é o sentido da metáfora machadiana: A realidade é mudança. O caminho se faz ao caminhar. Não há o que se imponha ao ser humano que não possa ser removido por ele mesmo. A baliza é o ser humano autorreferente, em contexto, que nele reconhece o que lhe convém e rejeita o que não lhe convém. Não reconhece como legítima qualquer norma abstrata que não seja o desejo de se comprazer na existência (Espinosa). Não em termos hedonistas, pois o reconhecimento de si mesmo dá-se no reconhecimento do outro, como parte constitutiva da própria individualidade. Nessa perspectiva, é possível enxergar-se na “epistemologia” da ficção machadiana a pertinência de uma proposta de vida em sociedade centrada, não mais no cidadão abstrato dos direitos individuais apenas, mas no sujeito indissociável de sua comunidade, na intersubjetividade, como expressão interativa entre indivíduo e sociedade. Aí está o meu Machado de Assis.