domingo, 13 de abril de 2025

A VOLTA DE SIMÃO BACAMARTE E A MORAL DO BEM E DO MAL

A VOLTA DE SIMÃO BACAMARTE E A MORAL DO BEM E DO MAL Em sonho apareceu-me Simão Bacamarte, o médico da novela O Alienista, de Machado de Assis, aquele que, julgando loucos, intentou prender a todos os habitantes da Vila de Itaguaí no manicômio da Casa Verde que criara, até se dar conta de que o louco era ele e se internar ele próprio. Bacamarte pediu-me para anunciar ao mundo que se restabelecera e se encontrava em pleno juízo. Aduziu como prova que o restabelecimento é possível mencionando o testemunho de Dom Quixote, que, já no leito de morte, dissera “Fui louco, e hoje estou no meu juízo”. De fato, vi-me diante de um Bacamarte senhor de sua mente, dotado de cristalina clarividência, um privilégio somente acessível aos memorialistas post mortem. Fez-me várias revelações. Hoje dou-lhe a primeira. Esclareceu-me, por exemplo, que ele havia sido escolhido por Machado de Assis, no amplo leque de seus protagonistas, para encarnar na forma de sátira burlesca a fé absoluta nas abstrações do cientificismo, cultuado por fanáticos seguidores do filósofo francês Augusto Comte. Não duvidei. No tempo de Machado, o Brasil havia se tornado o país com o maior número de discípulos de Comte, atrás apenas da própria França, sua terra natal. Ainda está lá no Rio de Janeiro o edifício da Igreja Positivista do Brasil, inscrito no seu frontispício imponente, erigido por Miguel Lemos, no bairro da Gloria, à rua Benjamin Constant, 74, "Templo da humanidade", inaugurado em 1881. "Não por acaso", disse-me Bacamarte, "ao publicar a novela, Machado fez saber de mim ao Brasil e ao mundo no ano seguinte, 1882". O positivismo era então o ismo mais discutido em meio às rodas de rapé, nos saraus antimonárquicos, ou nas livrarias da Rua do Ouvidor. Era a doutrina oficial dos conspiradores da República, civis e militares. Explicou-me a doutrina: "A ilusão do positivismo e de todos os ismos, conhecidos também como ideologias, que consistem em assumir a parte pelo todo, distorcendo-o, está em acreditar na carnalidade real das abstrações, que constroem. Por exemplo, o versejador observa o movimento das ondas do mar e lá despacha um verso sobre o mundo ondulante. Mas o pior é que essa ilusão não se restringe à fantasia poética. Impregna todos os interstícios da sociedade e vai instalar-se na Academia, passando a gerar a ciência da objetividade sem sujeito, como o algoritmo, com as suas sequências mecânicas. Como cientista positivista, eu estava imbuído de que cada pessoa, a exemplo de uma entidade cibernética, é movida por suas funções, e não seria a pessoa que as move. As funções seriam acionadas pela racionalidade, que opera como uma chave de comutação: A pessoa é ou não é racional, sem meias tintas. A isso dá-se o nome de binarismo: certo x errado, verdade x erro, bem x mal. Em caso negativo de alguém, por exemplo, que fosse portador de algum grão de sandice no bestunto, teria de ser removida do convívio humano, para não prejudicar os demais. E como você sabe, eu revelava uma confiança cega e missionária no método: ao sacrificar a pessoa, reiterava para mim mesmo e para o mundo que a verdade precisa prevalecer, preservando-se assim a racionalidade. Esse é o motivo por que, não conseguindo isolar de cada habitante da vila o grão de loucura de que supunha portador, trancafiei-me a mim mesmo na Casa Verde.Hoje estou convencido de que Machado tinha razão. Na sua ficção, sempre que encontrava oportunidade no enredo, metia-lhe dentro o binarismo, que é também um desvario da ontologia, dos finalismos e messianismos. Acredito que no Brasil de hoje o binarismo é o seu mal maior, fundamento da intolerância, do fanatismo, da violência, além de túmulo da criatividade. É sim x não, sem mais. Espanta-me que mais de 300 anos depois de Espinosa não se tenha aprendido a lição de sua Ética: Trata-se de escolher entre o bem e o bem, porque entre o Bem e o Mal, abstratos, com maiúsculas, não há escolha. Quem haveria de escolher o Mal? Essa fora a lição de Homero, na Odisseia. O protagonista Ulisses, consagrado na mitologia grega como o homem capaz de decisão, é instado a escolher entre Calipso, a mais linda das deusas, e Penélope, a esposa igualmente bela, que o aguardava em casa, ou escolher entre as sereias e Penélope, ou entre a também belíssima Nausícaa e Penélope. Sim, à parte o viés machista da epopeia, não teria ele razão? -concluiu Simão Bacamarte. Nivaldo Manzano