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domingo, 20 de abril de 2025
como os países ricos ficaram ricos
Como os países ricos ficaram ricos
... e por que os países pobres
continuam pobres
REINERT, Erik S. Como os países ricos ficaram ricos ...e por que os países pobres
continuam pobres. Rio de Janeiro: Contraponto; Centro Internacional Celso Furtado
de Políticas para o Desenvolvimento, 2016.
Jorgemar Soares Felix*
Depois de quase uma década de crise mundial, o Fundo Monetário Interna-
cional (FMI) tem feito um esforço para posicionar a questão da desigualdade
social no centro dos objetivos das políticas macroeconômicas dos países.
Essa atitude veio a público a partir de um artigo, muito comentado no debate acadê-
mico, publicado em junho de 2016, na revista do próprio FMI, e assinado pelos eco-
nomistas Jonathan D. Ostry, Prakash Loungani e Davide Fuceri (2016), sob o título
“Neoliberalism: oversold?” (Neoliberalismo: exagerado?). Esse texto foi percebido
como uma espécie mea culpa do FMI sobre seu receituário econômico a partir dos
anos 1980 direcionado, principalmente, para a América Latina – o chamado “Con-
senso de Washington”1
.
Esse rol de medidas, como se sabe, incriminou certas práticas de gestão da macroe-
conomia e recomendou um elenco de outras para garantir o desenvolvimento eco-
nômico, com a promessa de que esse seria o caminho para o desenvolvimento (e o
enriquecimento) desses países. Se adotassem aquele conjunto de reformas – defen-
dia então o FMI – ocorreria o catching up (ou alcançamento) em relação aos países
ricos. Quase 30 anos depois, segundo os autores do texto, o que se verificou foi que
o crescimento econômico desse período, de forma alguma, significou aumento do
bem-estar da população. Pelo contrário, ampliou a desigualdade social e colocou
em risco a expansão econômica estável. Em outras palavras, o crescimento não se
constituiu em desenvolvimento. O caso citado pelos autores é o do Chile, seguidor
mais fiel e apaixonado desse receituário durante a ditadura de Pinochet, entre os
anos 1973 e 1990 (ver Felix, 2016).
Outras publicações do FMI têm dado, atualmente, mais destaque para críticas às
políticas neoliberais e seu completo desprezo pelo objetivo da igualdade social. No
entanto, um fato ocorrido em janeiro de 2017, no famoso Fórum de Davos, foi mais
* Jorgemar Soares
Felix é professor
convidado
do mestrado
(stricto sensu)
em gerontologia
na Universidade
de São Paulo
(EACH), professor
de economia da
Fundação Escola
de Sociologia e
Política de São
Paulo, doutorando
em ciências sociais
pela Pontifícia
Universidade Católica
de São Paulo (PUC-
SP), mestre em
economia política
(PUC-SP), São Paulo,
São Paulo, Brasil.
.
1. Assim foi
denominado
o documento
formulado por
economistas
de instituições
financeiras sediadas
na capital federal
estadunidense,
como o FMI, o Banco
Mundial e próprio
Departamento do
Tesouro dos Estados
Unidos. Foi redigido
e resumido pelo
economista John
Williamson com as
regras que deveriam
orientar a economia
Recebido: 27.07.17
Aprovado: 06.03.18
608 Revista Sociedade e Estado – Volume 33, Número 2, Maio/Agosto 2018
significante para ilustrar essa tentativa de mudança de paradigma do FMI, assim
como sua absoluta falta de sucesso em empreendê-la. Naquele fórum, a diretora-
-geral do FMI, Christine Lagarde (2017)2
, rebateu o discurso do ministro brasileiro
da Fazenda, Henrique Meirelles, sobre a necessidade de reformas seguindo o recei-
tuário do Consenso de Washington, com a cobrança por maior preocupação com a
desigualdade social. Foi solenemente ignorada. Segundo Meirelles, no estágio eco-
nômico atual, o que vale para os países ricos não vale para o Brasil. Nossa economia,
na visão dele, precisa de mais abertura, mais reformas e menos Estado, ou seja,
mais do que pregava o Consenso de Washington. O debate é apenas um pequeno
exemplo do quão difícil é mudar os termos e argumentos das narrativas cristalizadas
a partir de interesses sejam econômicos, históricos, pessoais em todos os tipos de
relações socioeconômicas ou internacionais.
É neste ambiente que surge a tradução para o português do livro, já clássico, de
Erik S. Reinert, Como os países ricos ficaram ricos ...e por que os países pobres con-
tinuam pobres, publicado em parceria da Editora Contraponto com o Centro Inter-
nacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Aos 68 anos, Reinert
notabilizou-se pelos estudos do desenvolvimento e da história econômica e é pro-
fessor da Talling University of Technology, na Estônia, depois de inúmeros trabalhos
para o Banco Mundial, dentre diversas outras instituições. Sua abordagem histórica
do enriquecimento ou da pobreza crônica dos países oferece uma musculatura de
argumentos e dados empíricos para ajudar aqueles interessados em responder à
recorrente questão da economia mundial: Por que alguns países enriqueceram e
outros estão condenados à pobreza? E também por que a desigualdade entre países
e dentro dos países se tornou o “novo normal” do século XXI?
Antes de descrever as contribuições do autor e o livro, é importante destacar que
Reinert é um crítico do neoliberalismo sem se filiar a nenhum de seus opostos extre-
mos, como o marxismo ou o keynesianismo clássico. Seu posicionamento é eclético
e com grande inclinação ao schumpterianismo. É a partir daí que Reinert acusa a
“visão de mundo dos economistas”, justamente por terem estabelecido essa “nova
normalidade” da pobreza e da desigualdade entre os países. Diz ele que, tradicio-
nalmente, riqueza e pobreza eram explicadas reconhecendo-se que diferentes ati-
vidades econômicas eram qualitativamente distintas como portadoras de riqueza,
mas esta perspectiva se perdeu na teoria dominante nos nossos dias ou na econo-
mia do “manual-padrão”, como ele prefere.
Ele começa, então, explicando as diferenças entre as atividades econômicas que
predominam nos países ricos e as que predominam nos países pobres: concorrência
dos países a partir
de 1989. No ano
seguinte, tornou-se
documento oficial
do FMI. Essa “receita
única” para todos os
países da América
Latina alcançarem
o equilíbrio
macroeconômico
previa austeridade
fiscal, redução da
carga tributária,
câmbio flutuante,
“juros de mercado”,
abertura comercial,
eliminação de
restrições ao
investimento
estrangeiro direto,
desregulamentação
financeira, direito
à propriedade
intelectual (patentes)
e privatização
das estatais e
dos sistemas de
previdência social.
2. Diante de
Meirelles, a diretora
do FMI afirma que
a prioridade deve
ser o combate
à desigualdade
(Lagarde, 2017).
Revista Sociedade e Estado – Volume 33, Número 2, Maio/Agosto 2018 609
“imperfeita” e “perfeita”, de um lado, e rendimentos “crescentes” e “decrescentes”,
de outro. Nos países pobres, como se sabe, com economias baseadas em commo-
dities com dominância de concorrência perfeita, o produtor não poderá jamais in-
fluenciar o preço dos artigos que produz. O esforço da economia do “manual-pa-
drão”, portanto, é enclausurar os países pobres na utopia da “concorrência perfeita
e dos rendimentos decrescentes”. Em outras palavras, impedir que esses países se
industrializem num estágio de sofisticação que os tornem aptos a ingressar na “con-
corrência imperfeita” que prevalece, sempre segundo sua tese, no comércio mun-
dial entre os países com atividades de “rendimentos crescentes”.
Paradoxalmente, essa lógica determina, na visão de Reinert, que “a chave” para se
tornar rico é o país ser pobre em recursos naturais (p. 48). Neste ponto, a inter-
pretação do autor guarda uma intersecção com a teoria novo-desenvolvimentista
de Luiz Carlos Bresser-Pereira, José Luís Oreiro e Nelson Marconi (2016: 67), que
confere importância crucial à neutralização da doença holandesa. Se os recursos na-
turais são escassos, o país empreende na indústria e, como concordam marxistas e
liberais, “o que cria nações ricas são a industrialização e a mudança tecnológica” (p.
49). Segundo Reinert, a melhor política industrial surge quando marxistas e schum-
peterianos se unem ao longo do mesmo eixo político.
É a história, no entanto, no entender do autor, que revela como os países ricos tor-
naram-se ricos usando métodos que hoje estão proibidos pelas “condicionalidades”
do Consenso de Washington. Antes disso, porém, é obviamente necessário dar ên-
fase às heranças da escravidão “que bloqueiam o desenvolvimento econômico até
hoje”. Mas não é esse o ponto principal de Reinert. Ele contribui para o debate com
uma visão bastante singular a partir da criação de categorias explicativas. A primeira
delas é a “emulação” ou a imitação positiva que países, como os Estados Unidos,
adotaram como prática no século XIX para fazer o “alcançamento” do Reino Unido.
Emulação, lembra Reinert, é, segundo o Dicionário Oxford, o “esforço para se igua-
lar ou ultrapassar outros em qualquer feito ou qualidade; também o desejo ou a
ambição de igualar ou exceder”. Em termos modernos, emulação seria “empare-
lhamento” ou “salto à frente”. Essa emulação, prossegue Reinert, foi sustentada por
uma “caixa de ferramentas”. Os países que se tornaram ricos nos séculos passados
tinham essas ferramentas ao seu dispor ou conseguiram conquistá-las justamente
negando a premissa de que o “que é bom para eles, não é bom para você”. Pelo
contrário, o empenho foi por uma emulação profunda. Segundo Reinert, o governo
Eisenhower (1953-1961) rompeu com a teoria das vantagens comparativas ricardia-
na que determinava que os Estados Unidos deveriam ser produtores de alimentos
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e a Rússia de tecnologia e adotou as ferramentas necessárias para a emulação ao
criar a Nasa, em 1958.
“Rivalidade, guerra e emulação criaram na Europa um sistema dinâmico de con-
corrência imperfeita e rendimentos crescentes” ao longo dos séculos, diz Reinert.
“Mercados perfeitos são para os pobres” (p. 60). Quanto mais pobre o país, tanto
menos os ventos do laissez-faire sopram na direção certa. A crítica de Reinert é
que a economia do “manual-padrão” ignorou sempre o contexto – algo como o
que agora Lagarde tenta convencer Meirelles – e isso foi um “defeito fatal, que im-
pediu qualquer grau de compreensão qualitativa” (p. 61). Em seu entendimento,
a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo (1772-1823), que sustenta
o comércio mundial e o neoliberalismo, tornou possível que uma nação “se espe-
cializ[asse] em ser pobre”, pois, o Consenso de Washington proíbe a esses países
a utilização da mesma “caixa de ferramentas” usada no passado pelos países ricos.
A interpretação de Reinert, como se vê, é ressonante com o famoso livro de Ha-
-Joon Chang (2004), Chutando a escada. A estratégia do desenvolvimento em pers-
pectiva histórica, embora seu caminho teórico e sua construção histórica sejam
bem distintos. Essas ferramentas consistiram em subsídios, tarifas de exportação
de matérias primas e protecionismo. Os Estados Unidos, lembra Reinert, protege-
ram sua indústria manufatureira durante cerca de 150 anos. Essas ferramentas, diz
o autor, tornam o livre-comércio mundial uma quimera (p. 67).
O que determinou, sempre segundo Reinert, a riqueza das nações desenvolvidas e
industrializadas foi a tradição teórica do que ele chama de “outro cânone” da eco-
nomia. Esse “outro cânone”, seguindo Alfred Marshall (1842-1924), exige que as
analogias ou as premissas baseadas na física, adotadas pela economia neoclássica,
sejam abandonadas e trocadas pela biologia, com muito mais complexidade. Ele
leva em conta a informação assimétrica, o tempo, a história, o espaço e o conheci-
mento a partir da realidade e nunca de modelos matemáticos abstratos.
A trajetória de exposição no livro se dá em oito capítulos, além de seis apêndices e
de um posfácio especial para a edição brasileira. No primeiro capítulo, o autor ex-
põe os diferentes tipos de teorias econômicas; no segundo, continua com a evolu-
ção das duas abordagens distintas; no terceiro, desenvolve o conceito da emulação
desde a Inglaterra de Henrique VII, no século XV, quando os países adotam essa
estratégia. No quarto capítulo, Reinert aborda a globalização e explora a “sinergia”
no campo da educação, a evasão de cérebros dos países pobres, a dificuldade para
os países pobres investirem em pesquisa e desenvolvimento. Ele também tenta
explicar o crescimento de China, Índia e Coréia do Sul, e sustenta que, esses países
Revista Sociedade e Estado – Volume 33, Número 2, Maio/Agosto 2018 611
fizeram exatamente o contrário do que determinava o Consenso de Washington
para a América Latina (p. 173).
Reinert ainda reflete sobre o atual estágio tecnológico que define como “mudança
de paradigma tecnoeconômico” e aponta os novos desafios para as nações pobres
e as oportunidades de estas mudarem as relações de poder no planeta. No quinto
capítulo , o autor mostra como se dá o processo de “primitivização”, ou seja, como
os países pobres ficam ainda mais pobres com a insistência em seguir o “manual-pa-
drão”. Fracassos e mitos do “fim da história” são analisados no sexto capítulo, além
de criticar dez argumentos do Consenso de Washington, que são um a um listados
e esmiuçados expondo suas contradições. No sétimo capítulo, Reinert mostra como
as soluções apontadas pelos organismos multilaterais se constituem, como ele de-
fine, de “economia paliativa” em relação à pobreza a partir de uma visão crítica dos
objetivos do milênio, da Organização das Nações Unidas. Em outras palavras, os
objetivos têm apenas a missão de atenuar a pobreza. Seu exemplo é tragicômico:
enquanto na Europa se erradicou a malária, na África a solução é distribuir mos-
quiteiros. Reinert encerra o livro com a análise da dificuldade de a economia con-
temporânea permitir a criação de países de renda média, tema do oitavo e último
capítulo.
O livro de Reinert merece atenção especial dos cientistas sociais, incluindo os eco-
nomistas. A grande riqueza de fatos históricos e dados estatísticos, assim como cate-
gorias analíticas, fortalece o argumento de que a pobreza perene, seja de indivíduos
ou de países no século XXI, é um fenômeno independente ou descolado do determi-
nismo econômico e muito mais uma consequência do jogo disputado, por séculos,
entre vários atores sociais no processo historicamente conhecido como globaliza-
ção. Os locutores da economia do “manual padrão” sempre preferem transmitir
esse jogo repleto de expressões tecnicistas e justificativas pseudocientíficas, mas
Reinert demonstra que esses argumentos são contaminados por um elevado grau
de ideologia e de interesses do capitalismo global.
Referências
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; OREIRO, José Luís; MARCONI, Nelson. Macroecono-
mia desenvolvimentista, teoria e política econômica do novo desenvolvimentismo.
São Paulo: Elsevier, 2016.
CHANG, Ha-Joon. Chutando a escada. A estratégia do desenvolvimento em perspec-
tiva histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2004.
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