O duplo Robinson: as fantásticas aventuras do trabalho e do dinheiro nos primórdios do capitalismo
Cláudio R. Duarte
Se em Odisseu temos apenas uma “protótipo do indivíduo burguês” segundo afirmam Adorno e Horkheimer em sua Dialética do Esclarecimento, este floresce pela primeira vez em Robinson Crusoé. A transição para o universo da forma mercantil aqui é fundamental:
“Do ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indivíduos que as compõem, as aventuras de Odisseu nada mais são do que a descrição dos riscos que constituem o caminho para o sucesso. Odisseu vive segundo o princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha era entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua particularidade. Por isso, a socialização universal, esboçada na história de Odisseu, o navegante do mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já implica desde a origem a solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim da era burguesa. Socialização radical significa alienação radical. Odisseu e Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz. Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas.”1
Há diferença entre percorrer e realizar: apenas Robinson produz a totalidade do novo mundo enfeitiçado. Algo desse caráter de totalidade alienada subjaz no próprio título da obra: A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, marujo de York (1719). Temos assim o primeiro Robinson, o jovem que abandona a casa paterna e as perspectivas seguras da classe média em troca da adventure lucrativa casual pelos mares2, mas onde aprende a obedecer ordens nos navios e a trabalhar metodicamente, tal como se exercitará em sua ilha; mas também – e aqui começa o segundo Robinson, bem menos comentado e glamouroso – o que transforma esta presumida paixão de correr mundo em compulsão pelo lucro através do trabalho próprio e da espoliação do trabalho de outros percorrendo América, África e Ásia. Uma obra que revela já da maneira mais complexa (mas ainda hoje subestimada) os primórdios da subjetivação autocrática do indivíduo isolado como um sujeito burguês duplamente determinado pelo novo espírito do protestantismo e pelas relações mercantilizadas e colonialistas. Isso que se reverterá na forma do relato realista, que agora cabe analisar com algum nível de detalhe.
Esta forma é determinada pela experiência desse duplo Robinson. Desdobrando-se através dos moldes românticos e realistas, o modelo do romance burguês centra-se na formação do indivíduo experiente, de personalidade talentosa e bem integrada como em Goethe, às vezes napoleônica e arrivista como em Stendhal e Balzac – apenas desajustada na medida para afirmar-se e conquistar um lugar ao sol da competição selvagem, a qual, como Defoe torna claro em Robinson, Moll Flanders e o Coronel Jack foram os primeiros a vencer, todos guiados pela Providência Divina, não por acaso no solo do novo mundo americano, sem jamais conseguir formar uma personalidade bem integrada3. A ilusão de poder e autonomia desse sujeito é aqui sempre abalada durante sua provação espiritual. Pois sempre também ele pode cair na condição de proletário “livre”: “em sentido duplo, livre, em primeiro lugar, das relações de clientela ou de dependência e das relações de serviço e, em segundo lugar, livre de toda propriedade; destinada à venda de sua capacidade de trabalho ou à mendicância, vagabundagem e roubo como única fonte de renda”, como analisa Marx4. Esse movimento de queda e dissolução do indivíduo numa das classes e subclasses fundamentais tornou-se de certa maneira a especialidade da prosa naturalista e pós-realista, mas já está bem estabelecido nos romances de Defoe. Aqui emerge a verdade rebarbativa do percurso calamitoso de Robinson e demais personagens do autor inglês. Como já observou a melhor crítica5, todos eles são orientados por um espírito mercantil pragmático e instrumental, às vezes levado ao extremo da solidão, do cálculo e da frieza, revirando-se em busca do sucesso ou da mera sobrevivência, mediados tanto pelo trabalho como pelo favor, a trapaça e o crime, tanto pela boa consciência cristã como pela indiferença ultraindividualista e inimiga potencial de todo outro – embora sempre sejam salvos afinal pela graça da Providência, que faz as vezes da mão invisível do mercado ou da metafísica da Razão astuciosa hegeliana, pois entre paixões cegas e o interesse econômico mal ou bem conduzido o resultado é sempre o êxito comercial legítimo e o progresso geral da civilização capitalista.
É o que põe em dúvida se lidamos com “homens” ou com puros suportes do dinheiro, que por isso mesmo se duplicam em si e fora de si mesmos. Nos primórdios do romance europeu, o capital já aparece como um modo de produção e de representação do dinheiro autônomo e suas viravoltas imprevisíveis: uma espécie de religião fetichista difusa dotada de todos os seus poderes de inversão contínua de sujeito e objeto.
De fato, é isso que se revela na longa experiência de Robinson Crusoé: o abandono do lar e da pátria aos dezenove anos, segundo o despertar da “invencível paixão de correr mundo”, converte-o primeiramente numa espécie de aprendiz de marinheiro semi-proletarizado, em seguida num pária que se perde no Atlântico em meio ao tráfico negreiro, sofrendo tempestades e naufrágios sucessivos até tornar-se ele mesmo um escravo de um corsário mouro no Marrocos. Escravizado, ele dará o troco ao fugir desse corsário, vendendo o bote roubado e o próprio companheiro fiel, o negro Xury que o havia ajudado a escapar do cativeiro, a um “bondoso” capitão dum navio português, que o salva em alto-mar. Ao se livrar do cativeiro, assim, sua posição se inverte e ele já se torna novamente o branco mercador e senhor de escravos. A ética protestante e a paixão pela adventure são, assim, a fachada moral do turbilhão capitalista desatado no século XVI e XVII. É o que se mostra melhor ainda então em sua passagem pela colônia brasileira, ocasião em que logo se livra de toda moral de trabalho regular ao atingir um primeiro degrau da aristocracia local através da exploração duma plantation escravista de cana e tabaco. Aqui ele fica dois anos para se arremessar novamente ao mar – em busca do comércio de escravos (aliás, clandestino) na costa da Guiné – até o naufrágio que o leva até sua famosa ilha caribenha6. Não há qualquer aventura individualista sem luta, troca vantajosa, logro, saque, contabilidade, objetificação e exploração de trabalho alheio e uma ponta de vingança – recobertos pelo estilo religioso que se humilha e se arrepende, invocando a Providência a três por dois.
Instalado em sua “Ilha do Desespero”, o trabalho torna-se metódico e ininterrupto: o estilo da prosa torna-se aqui mais sóbrio, neutro e contínuo, quase plano e descritivo (sobretudo nos capítulos sob forma de diário)7, em contraste com o início meio errático e descontínuo em que a unidade e a coerência de propósitos do narrador-protagonista se desfazem praticamente a cada parágrafo sob o ritmo de seus caprichos e fantasias ou eventos naturais desastrosos. Isolado na ilha, o homo oeconomicus tem de provar que, além de desejar, também sabe trabalhar concretamente para si e que merece a propriedade e a salvação por seu próprio esforço, poupança e previdência – realizando com perfeição o mito do individualismo econômico –, embora essa independência e conservação na ilha por décadas, aliás implausível, só foi possível, como ele mesmo infere, por se apoiar no trabalho social acumulado nos instrumentos retirados do porão do navio naufragado (machados, tesouras, armas de fogo etc.)8.
Aqui chega a desprezar o ouro e o dinheiro, afinal sem serventia numa ilha desabitada – embora guarde-os muito bem para futuras aventuras. No limite dessa consciência social, a economia e o trabalho excedente saem negados por uma ética do ócio com timbres cristãos e patriarcais do antigo regime:
“Eu não tinha nem a cobiça da carne, nem a cobiça dos olhos, ou a soberba da vida [1 João, 2: 16]. Não tinha nada a cobiçar. Pois eu tinha tudo o que era agora capaz de gozar: eu era o Senhor de todo o lugar; ou se quisesse, poderia me arvorar em Rei ou Imperador sobre todo o território que possuía. Não havia rivais ou concorrentes, ninguém para disputar a soberania ou o comando comigo”.
Assim, chega a considerar as determinações sociais de sua condição: “poderia juntar grandes provisões de cereais para encher navios, mas não tinha utilidade para isso; então semeava só necessário para meu sustento”9. Uma série de reflexões que esse primeiro Robinson, de espírito pragmático e utilitarista, arremata da seguinte maneira:
“(…) só era valioso para mim aquilo que eu poderia usar. Eu possuía o suficiente para comer e satisfazer minhas necessidades. De que me serviria mais do que isso? (…) Em uma palavra, a natureza e a experiência das coisas convenceram-me de que todas as coisas boas deste mundo deixam de ser boas para nós quando não nos são mais úteis; e que tudo o que podemos acumular e legar aos outros, só desfrutamos na medida em que podemos usar, e não mais do que isso”.10
Assim, quanto à forma, o estilo sóbrio e incolor tende a imitar esse espírito puritano e austero do trabalho utilitário face às necessidades artificialmente reduzidas na ilha, que ganha certo aspecto diferente da pura lógica do trabalho assalariado capitalista. Mas aqui também seu espírito está tomado pela lógica da contabilidade e da repressão sexual11. Já o estilo mais colorido da aventura e da fantasia, cheio de encontros, desencontros e peripécias, imprime certo ritmo compulsivo e descontínuo à narrativa, moldado pela busca do enriquecimento ilimitado (e no limite ilícito) disfarçado pela ideia fixa inocente de um “desejo insaciável de correr mundo” ou “mania ingênita de ver terras”12. Mas “Robinson Crusoé não é, como Autólico, um comerciante que tem raízes numa localidade conhecida; também não é, como Ulisses, um viajante forçado que tenta voltar para a família e a pátria: o lucro é toda a sua vocação e o mundo inteiro, seu território”13. No fundo, uma ideologia esquisita, que contém uma espécie de “double-think”, como diz Eagleton, que gira em torno do claro conflito entre “práticas amorais de uma cultura em que o que realmente importa é o dinheiro e o interesse privado e os ideais morais altissonantes reivindicados”. Como no mundo machadiano posterior, poderíamos dizer que “estas narrativas sem remorsos e sem enfeites não tanto retiram o véu do decoro ideológico” do que “simplesmente olham através dele”. Elas tornam-se “explosivas” pela exibição de assuntos coloniais por meio de um cru realismo não sentimental, num tom “colonialista de cabeça fria”: “não são polêmicas, mas simplesmente cândidas”14.
O ritmo da sobriedade se reverte continuamente assim nesse outro, desviante e caprichoso, muito afeito às fantasias de cunho absolutista, conforme o tempo passa e ele entra em novas relações sociais. No encontro com o nativo Sexta-Feira o sonho e a realidade se encontram – vale dizer, o sonho de obter um “escravo” (“um, não, dois ou três selvagens” pelo menos15), a fim de administrar seu trabalho e conseguir escapar da ilha. Sexta-Feira funciona como seu duplo exato, como uma sorte de “formação de compromisso” freudiana: um canibal domesticado, servilizado e feminilizado que termina por se tornar um escravo perfeito, o “mais fiel, amoroso e sincero”, “obrigado e comprometido”, capaz de “sacrificar a vida” por seu amo16. De fato, Robinson comandará três homens em seu reino agora concretizado (Sexta-Feira, seu pai, um ex-prisioneiro espanhol) e em breve mais uma dezena que, em sua imaginação desvairada, ele passa a considerar, tal como anteriormente seus animais, como seus “súditos”:
“Minha ilha agora estava habitada, e me considerei muito rico em súditos; e esta era uma reflexão bastante agradável, que eu fazia com frequência: como eu parecia um Rei. Em primeiro lugar, eu era o proprietário de toda a ilha, já que tinha sobre ela o direito inquestionável de domínio. Segundo, meu povo era totalmente submisso a mim: eu era Senhor e Legislador absoluto [absolute Lord and Law-giver], todos me deviam a própria vida, e estavam prontos, caso fosse necessário, a abrir mão dela por mim. Era interessante também o fato de que, entre meus três únicos súditos, haver três religiões diferentes: meu homem Sexta-feira era um protestante; seu pai era pagão e canibal; e o espanhol era católico. Entretanto, eu permitia liberdade de consciência em todo o meu território”.17
O que se dava a montante, no Brasil escravista, agora segue a jusante até a desembocadura, sobretudo na segunda parte da obra. Aqui, o que se passa é descrito como uma “nova variedade de loucuras, agruras e aventuras selvagens” na África e Ásia18, desde o abandono do lar e dos filhos já sexagenário, após o falecimento da esposa na Europa, a organização do trabalho dos colonos e indígenas servilizados em sua ilha, que ele logo abandonará à própria sorte, o investimento no novo comércio colonial de arroz e especiarias no sudeste asiático, o confronto com mais piratas, traficantes e flibusteiros, mais tormentas, incêndios e naufrágios, a perseguição e a destruição de ídolos pagãos e um desfile repugnante de valores eurocêntricos, patriarcais e racistas (sobretudo contra os chineses19), passando por uma fieira de combates, crimes e assassinatos entre colonos espanhóis, índios e animais, todos a priori inferiores e extermináveis. Lado a lado com a exploração e a violência, o fino trato com padres, mulheres indefesas e trabalhadores ingleses domesticados para manter seu “reino” particular, que dela tornam-se verdadeiros prisioneiros, não podendo deixar o lugar “sem o seu consentimento” e aviso prévio, conforme regulamentos por ele firmados20.
O destino servil de Sexta-Feira aqui então se generaliza socialmente, embora não se complete de todo, já que Robinson jamais realiza o projeto de uma colônia útil que, munida de “canhões e munições, servos e agricultores”, poderia tornar-se rentável para a Inglaterra; de fato, ele mesmo se sente um provedor da ilha abandonada, dotado de um “modo altivo e majestático, como um velho monarca patriarcal”, um “pai de toda família e da plantation” – mas o velho “demônio das errâncias” (“wandering spirit”) o empurrará rumo à Ásia. Assim, esse sujeito autocrático descumpre a “promessa” de trazer seus colonos de volta para a Europa21.
Um trajeto coerente afinal com seus caprichos e sua incoerência fundamental, tal como anunciada em sua experiência brasileira: aqui, sua ética puritana não era páreo para o seu contraditório “ateísmo prático”22 e esse pendor irracional de viajar e traficar. Em toda linha, assim, uma convergência de razão empresarial e desejo recalcado por poder e dinheiro no interior de um Eu possuído por tal wandering spirit – mas como suportes do trabalho social abstrato em formação e suas tendências assassinas. É assim que esse andarilho rico e ocioso, tão errante como “um navio sem um piloto”, inútil e irresponsável, mas educado na dura escola do trabalho e acostumado à atividade, confessa às vezes sua profunda aversão à preguiça, aos ociosos e aos inúteis23.
Depois da fuga da ilha e o primeiro retorno milagroso à Inglaterra, ele mesmo descobre que ficou rico à custa do trabalho alheio de seus sócios, criados e escravos espalhados por Lisboa e Bahia. Aqui, como no final do segundo tomo, o risco e o autossacrifício justificam o milionário self made man asselvajado pelo sistema, que finaliza a vida na espera da “benção de terminar seus dias em paz”24. Ele mesmo percebeu contudo que não pode ser idêntico a si, mas é sempre um outro, passa em um outro, que retorna à árida identidade da acumulação capitalista: um rapaz que se torna escravo, um escravo que se torna proprietário de escravos, depois homem isolado e finalmente dono de uma ilha em que dispõe de trabalhadores servilizados, que ele abandona talvez porque representam o contraponto de classe ao ímpeto nômade da abstração monetária por ele encarnado25. Ele mesmo se projeta e renasce acrescido como trabalho e mais tarde como dinheiro investido pelo mundo, configurando o que viria a ser o puro sujeito automático no ciclo infinito da valorização do valor (D-M-D’ ou D-D’). Por isso sua narrativa não tem fim26. Cada desafio real (tempestades e mar revolto, feras e tribos canibais etc.) equivale simbolicamente a uma morte e uma ressurreição simbólica, que ele atribui à Providência, mas cuja substância oculta é o valor real e simbólico auferido por quem se sacrificou e se lançou cegamente na natureza selvagem do processo de acumulação colonial do Capital.
NOTAS
* Este texto é um excerto retrabalhado de meu artigo “Pequenas e grandes robinsonadas. Da pré-história da subjetividade ao declínio do sujeito autocrático”, publicado em Sinal de Menos, nº 15, vol. 1, 2022. Disponível em sinaldemenos.net
1 Adorno, Theodor W. e Horkheimer, Max. Dialética do esclarecimento. Fragmentos filosóficos [1947]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 66-7, grifos meus.
2 Defoe, Daniel. Robinson Crusoe. (Edited with an Introduction by Thomas Keymer and Notes by Thomas Keymer and James Kelly). Parte 1. New York: Oxford University Press/Oxford World’s Classics, [1719] 2007, p. 5-7; trad.: As aventuras de Robinson Crusoé. [Partes 1 e 2]. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2005, p. 9-11. Franco Moretti (O burguês: entre a literatura e a história. São Paulo: Três Estrelas, 2014, p. 35-6) nota que “adventure” era sinônimo de uma “forma de capital”, ou seja, de um comércio como “investimento de risco” em terras estrangeiras, geralmente de “caráter irracional e especulativo, ou dirigido para aquisição pela força”. O autor decifra um duplo Robinson (o aventureiro e o trabalhador), mas não percebe a sobreposição dos dois na mesma figura em todo a obra, tanto na ilha como nos mares: o utilitarismo quase irracional do trabalho na ilha é seguido na segunda parte pela empresa ao mesmo tempo racional e aventureira, seja na sua ilha-império, seja quando ele se lança novamente pelos mares com navio próprio. De fato, ele constata que “a ilha oferece o primeiro vislumbre do senhor industrioso dos tempos modernos. O mar, a África, o Brasil, Sexta-Feira e as demais aventuras dão voz às formas de dominação capitalistas mais antigas, mas nunca descartadas integralmente. De um ponto de vista formal, essa coexistência sem integração de registros opostos (…) é claramente um defeito do romance.” (ibid., p.42). Mas um defeito relativo, como ele sugere, pois “contrariamente a Weber”, “o burguês racional jamais vai largar verdadeiramente seus impulsos irracionais nem repudiar o predador que outrora costumava ser. Por ser não apenas o início de uma nova era, mas também um início em que se patenteia uma contradição estrutural que jamais será superada, a história disforme de Defoe continua sendo o grande clássico da literatura burguesa” (Ibidem, p. 43).
3 O final feliz de Moll Flanders como proprietária na Virgínia é precedido pela pobreza e o abandono, a absoluta solidão e o “terror” de ser “jogada pela porta no vasto mundo”, uma série de procuras de casamento vantajoso, fraudes, imposturas, atos criminosos e prisão, enfim, sua identificação à forma pura do dinheiro: “quando uma mulher está assim abandonada e sem conselho, é semelhante a um saco de dinheiro ou a uma joia abandonada no caminho, que se tornam presas do primeiro que passa”. Defoe, Daniel. Moll Flanders. (Venturas e desventuras de Moll Flanders). Trad. A. A. Cury. São Paulo: Abril Cultural, [1722] 1981, p. 25, 95, 140, 344-5).
4 Marx, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. (Esboços da crítica da economia política). São Paulo: Boitempo, 2011, p. 417.
5 Cf. a crítica de linha materialista: Watt, Ian. A ascensão do romance.(Estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding). São Paulo: Companhia de Bolso, [1957] 2010, p. 120-3; Hymer, Stephen. “Robinson Crusoe and the Secret of Primitive Accumulation”. Montly Review. Volume 63, Issue 04 (September) https://monthlyreview.org/2011/09/01/robinson-crusoe-and-the-secret-of-primitive-accumulation/ Trad. Carlos N. Coutinho: “Robinson” in: Canevacci, Massimo, introdução e organização. Dialética do indivíduo. São Paulo: Brasiliense. [1971] 1981; Eagleton, Terry. The English Novel: an introduction. Oxford: Blackwell, 2005; Moretti, op.cit., 2014.
6 Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 31-36; Trad. 2005, p. 40-8.
7 Cf. Watt, Ascensão do romance, op.cit.; Moretti, O burguês, 2014; Eagleton, Terry. The English Novel: an introduction. Oxford: Blackwell, 2005, p. 28-31.
8Defoe, 2007 [1719, parte 1], p. 111; Trad. 2005, p. 134.
9Ibidem, p. 109; Trad. 2005, p. 132 (modif.).
10Ibidem, p. 110; trad., p. 133 (modif.). “Contrariamente aos modelos correntes da teoria econômica, Robinson Crusoé – produzindo apenas para o uso e não para a troca – descobre que não há escassez e que o trabalho não tem nenhum valor. A força motriz do capitalismo, o desejo de acumular, desaparecia no momento em que se achava só” (Hymer, “Robinson”, op. cit., 1981, p. 142).
11 “Em Crusoé, a contabilidade supera outros pensamentos e emoções (…) Não surpreende, pois, que o amor tenha um papel pequeno na vida de Crusoé (…) Quando retorna à civilização, o sexo continua subordinado aos negócios. (…) Outros relacionamentos pessoais de Crusoé revelam a mesma depreciação de fatores não econômicos. Ele os trata em termos de mercadoria. O caso mais óbvio é o de Xury (…)” (Watt, A ascensão do romance, op. cit., 2010, p. 67 e 72).
12Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 155; trad. 2005, p. 442.
13Watt, A ascensão do romance, op. cit., 2010, p. 71.
14Eagleton, The English Novel: an introduction, op. cit., 2005, p. 27-28.
15Defoe, [1719, parte 1] 2007, p. 169; trad. 2005, p. 185-6 (modif.).
16Ibidem, p. 176; trad., p. 189-90 (modif.).
17Ibidem, p. 203; trad., p. 219 (modif.).
18 Defoe, The Further Adventures of Robinson Crusoe. [Parte 2].Pennsylvania: The Penssylvania State University: A Penn State Electronic Classics Series, [1719] 2000, p. 136; Trad. 2005, p. 421 (modif.)
19 “(…) ouço contar coisas maravilhosas do poder, da glória, da magnificência e do comércio dos chineses, que, afinal, tanto quanto eu vi, não passam de um rebanho desprezível, escravos ignorantes e sórdidos, submissos a um governo qualificado para reger tal povo”, Ibidem, p. 181-2; trad., p. 474 (modif.).
20Ibidem, p. 87; trad., p. 364.
21Ibidem, p. 135-6; trad. 2005, p. 420-1 (modif.).
22Defoe, Serious Reflections during the Life and Surpising Adventures of Robinson Crusoe (with his Vision of the Angelick World written by Himself). [Parte 3] London: Aitiken, [1720, parte 3] 1902, p. 191; também citado por Watt, 2010, p. 85.
23Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 8; trad. 2005, p. 282.
24Defoe, [1719, parte 1], 2007, p. 255-7; trad. 2005, p. 272-3; Defoe, [1719, parte 2] 2000, p. 220; trad. p. 527 (modif.).
25 No início do segundo tomo, ele despreza os luxos e vícios da nobreza, tanto quanto o proletariado cuja vida se resume a “viver para trabalhar e trabalhar para viver, como se o pão diário fosse o único fim da vida fatigante e uma vida fatigante somente ocasião para o pão”. Defoe, [1719, parte 2] 2000, p.7-8; trad. 2005, p. 281 (modif.).
26“Não há um fim lógico para uma narrativa de Defoe, nenhum fecho natural. Simplesmente acumulam-se narrativas assim como não se pode parar de acumular capital. Um pedaço da história, tal como um investimento de capital, leva a outro. Nem bem Crusoé retorna para casa de sua ilha logo ele parte para suas novas viagens, empilhando porém mais aventuras que ele promete escrever no futuro. O desejo de narrar é insaciável” (Eagleton, The English Novel, op. cit., 2005, p. 30).