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terça-feira, 18 de julho de 2023
Indústria cultural massas
O conceito de indústria cultural é utilizado em diferentes contextos. Na maior parte das vezes, serve para adjetivar e desqualificar uma pretensa cultura de massas ou popular. O conceito foi acusado de ser elitista, ultrapassado e carregado de preconceitos. Contudo, se retomarmos os textos de Adorno e Horkheimer, autores que dedicaram uma vida para analisar o tema, podemos verificar que a indústria cultural não só é uma teoria dialética da cultura que conjuga política, economia, estética, psicanálise e marxismo como uma agenda de investigação aberta e cheia de atualidade para pensar o presente.
A pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio, Júlia Albergaria, se reuniu no dia 27 de janeiro com a pesquisadora Bruna Della Torre para debater criticamente o conceito de Indústria cultural. Afinal, trata-se de um sistema que cada vez mais ocupa a vida de todos nós.
Indústria cultural e Teoria Crítica
Instituto Norberto Bobbio – Um dos conceitos centrais da teoria crítica é o de indústria cultural. Qual é o contexto de seu surgimento e significado originário?
Bruna Della Torre – A teoria crítica não trabalha com definições, então, é preciso dizer primeiro que o conceito de indústria cultural em todas as suas dimensões (econômica, política, social, psicológica, publicitária, etc) só pode ser compreendido a partir das várias análises sobre o fenómeno que percorrem a obra de Adorno (e Horkheimer). Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer ressaltam que a indústria cultural é um sistema, composto pelo cinema, pela rádio, pela televisão, pelos best-sellers, pelos esportes, pela moda, etc. Esse sistema é o principal meio no qual somos socializados para além do trabalho (e está diretamente relacionado com ele), mas tem também aspetos políticos fundamentais.
É muito importante falar sobre as origens do conceito para entender que ele estava sendo desenvolvido antes mesmo de se chamar “indústria cultural” –- uma expressão que Adorno e Horkheimer utilizaram pela primeira vez em 1944 na Dialética do Esclarecimento. No ensaio “Résumé sobre indústria cultural”, Adorno explica que antes da década de 1940 eles se referiam ao fenômeno como “cultura de massas”, mas que abriram mão desse conceito para evitar que se sugerisse que a cultura emana espontaneamente das massas. A palavra indústria aqui é fundamental, já que a indústria da cultura é um setor monopolizado e se enquadra em investigações mais amplas do capitalismo monopolista que a Escola de Frankfurt estava fazendo. Mas essa questão da “massa” produziu muitos mal-entendidos, especialmente porque historicamente essa discussão esteve ligada à crítica cultural conservadora.
A palavra “massa” começou a aparecer no século XIX. Karl Marx, por exemplo, utilizou esse termo em dois sentidos distintos. O primeiro deles diz respeito às massas revolucionárias formadas a partir das revoltas proletárias de 1848. Essa também é a maneira como o conceito de massa vai aparecer em Rosa Luxemburgo. O segundo, por sua vez, possui uma conotação específica: a da falta de forma. Isso aparece em seu texto O 18 de brumário de Luís Bonaparte, quando Marx utiliza a metáfora do saco de batatas para se referir àquele conjunto social que não toma a forma de classe. É necessário observar que Marx enxergava o potencial revolucionário das massas, por um lado, mas, por outro também intui esse processo de “deformação” (no qual massa e classe aparecem como lados opostos), embora não o desenvolva.
A noção de massa foi muito presente nos discursos reacionários do XIX. Gustave Lebon fala das multidões perigosas e, de certo modo, pode-se dizer que toda a crítica conservadora inglesa pensa a decadência da cultura a partir da massa. Esse é um tema extenso. Sigmund Freud é quem vai tratar do assunto de forma não conservadora pela primeira vez e modificar completamente esse conceito de massa. Em seu texto Psicologia das Massas e Análise do Eu, ele se afasta desse medo conservador das massas revolucionárias para pensar a massa como um dos elementos estabilizadores de uma série de instituições modernas, como o exército. Adorno e Horkheimer utilizam o conceito de Freud, mas mantêm o antagonismo (classe versus massa) que está presente em Marx e o desenvolvem, mas aí já não resta mais nada da ideia de “massa revolucionária” até porque Adorno e Horkheimer desenvolvem essa teoria num momento de estabilização do capitalismo (que visam explicar também por meio do conceito de indústria cultural). Mas o importante é que Indústria cultural nada tem a ver com uma cultura que emana das massas. A sociedade industrial nasce neste contexto de massas revolucionárias, mas se estabiliza como sociedade de massa no sentido freudiano.
Indústria Cultural nos meandros de 1920 e 1930
Como eu disse, esse conceito já estava sendo elaborado desde muito cedo. Na década de 1920 e 1930, Adorno tinha um plano de estudar o rádio, os romances de detetive e a decoração kitsch na Alemanha. Ele até enviou uma carta para Walter Benjamin expressando sua vontade de estudar esses assuntos. Ou seja, Adorno tinha o plano de realizar um panorama da cultura naquele momento. Contudo, sabemos que ele precisou fugir para os Estados Unidos com a ascensão do nazismo. Desse modo, seu projeto se expandiu. E Adorno conseguiu realizá-lo muito bem, pois lá era uma espécie de torre de observação privilegiada do que depois ficou conhecido como Indústria cultural. Nos Estados Unidos, esse fenômeno tinha se generalizado, o que era realmente impressionante.
Há uma questão interessante aqui. Na teoria da indústria cultural existe um elemento que poderia ter sido desenvolvido pelos autores, mas não foi: a indústria cultural é também uma teoria do imperialismo cultural (e a Escola de Frankfurt naquele momento lia Lênin e Hilferding). Embora Adorno nunca tenha utilizado esse conceito, a indústria cultural é um fenômeno que nasce nos Estados Unidos mas que se espalha para outros lugares do mundo. Bertolt Brecht, por exemplo, ao produzir peças na Alemanha na década de 1930, já criticava esse imaginário americano do “permita-se” do consumo capitalista – como podemos ver em Ascensão e queda da cidade de Mahagonny. O surgimento desse aparato nos Estados Unidos mudou a história da cultura no mundo todo.
Quando Adorno se mudou para os Estados Unidos em 1938, ele começou a trabalhar em um projeto de rádio chefiado por Paul Lazarsfeld, que inventou métodos de pesquisa de mercado contemporâneos. Isto é, os métodos de pesquisa sociológica de massa. Antes de ir para a América, Lazarsfeld realizava pesquisas eleitorais na Áustria e por isso transplantou métodos qualitativos e quantitativos sobre eleição para as redes radiofônicas americanas. E Adorno vai participar justamente desse projeto, chamado “Princeton Radio Research Project”.
É curioso que a gente pense a precarização do trabalho como fenômeno contemporâneo. Mas Adorno, já naquele momento, conseguiu seu emprego por um telegrama. Imagine que coisa mais maluca. Naquela ocasião, Horkheimer tentava arrumar empregos para várias pessoas próximas conseguirem fugir do nazismo já que o Instituto não poderia (ou não queria) empregar todo mundo em tempo integral. E o telegrama dizia que Adorno seria contratado apenas por meio período por Lazarsfeld e o resto do tempo ia trabalhar no Instituto. Então, como você pode ver, é uma coisa muito insólita, porque o projeto do rádio foi fundamental para Adorno desenvolver a teoria da indústria cultural e isso foi feito a partir de um “bico” que ele teve que aceitar como um intelectual exilado numa situação de insegurança financeira e perseguição política. Adorno foi trabalhar sem saber nada do projeto, mas a partir disso começou a pesquisar o rádio. As perguntas que guiavam o projeto eram: o que as pessoas escutam? Como os programas são organizados? Quais são os hábitos de consumo daqueles que se servem desse tipo de mercadoria cultural? Essa experiência permitiu a Adorno conhecer o fenômeno da cultura de massa por dentro, pois ele observa precisamente a sua produção. Do ponto de vista metodológico, essa é uma mudança muito importante.
Adorno foi contratado como um especialista em música clássica. Um exemplo muito expressivo do impacto que a pesquisa no rádio teve na formulação do conceito pode ser encontrado num trabalho pouco debatido do autor que é a sua análise sobre o programa de rádio da NBC, que visava ensinar as pessoas a escutar música clássica. Esse é um ponto revelador: muitos pensam que o diagnóstico da indústria cultural nasceu de um estudo exclusivo da “música popular”, ou seja, da música pop. Adorno também estudou a música popular, mas não se restringiu a isso. Ele investigou a música clássica e o que acontece com ela no rádio.
Em sua pesquisa desse programa de música clássica da NBC, há uma série de considerações. Em primeiro lugar, tratava-se de um projeto financiado pela Fundação Rockefeller, ou seja, tinha um caráter filantrópico. Tratava-se de um programa bem-conceituado nos Estados Unidos e elogiado pela mídia, porque ensinava as pessoas a ouvir música clássica, e identificar quais partes compõem uma sinfonia, como um instrumento se diferencia do outro, etc. O que Adorno mostra neste estudo – publicado apenas 1994, porque Lazarsfeld o engavetou temendo perder o financiamento – é que esse programa produzia uma escuta atomizada. As pessoas de fato podem aprender a discernir os instrumentos e partes da sinfonia, mas não conseguem ter uma apreensão da totalidade da música. Adorno aponta que o modo de escutar a sinfonia é similar ao modo de distinguir vários modelos de carros da Ford. O ponto é como a lógica da forma mercadoria ou do próprio mercado servem de base para a experiência estética.
Indústria cultural e lógica da mercadoria
Também considero relevante o fato que Adorno realizou pesquisas empíricas, embora este aspecto não seja muito debatido. Muitas pessoas pensam que a Escola de Frankfurt não produzia pesquisas dessa natureza, o que é uma loucura. No caso da pesquisa do rádio, ele não só analisou os programas, como trabalhou com as cartas dos ouvintes para a rádio. Ele percebeu que as pessoas agradecem ao rádio por disponibilizar uma programação erudita, mas não fazem um só comentário musical. Com isso, Adorno concluiu que as pessoas consomem aquele tipo de música não como uma via de estabelecer uma relação com aquele objeto, com a música ela mesma, mas para dizer que consomem música erudita.
Portanto, o valor de uso daquela mercadoria não é a música em si mesma, isto é, um produto do trabalho. Seu valor está na ideia de diferenciação e na possibilidade do consumidor se apresentar como alguém que consome um “produto de qualidade”. Em seu projeto sobre o rádio, Adorno descobre algo que evidencia uma espécie de duplicação do valor na qual o valor de uso de uma mercadoria consiste no seu próprio consumo e não no produto consumido, um efeito complexo da indústria cultural.
Paul Lazarsfeld dizia que a mente do Adorno era como uma mina de ouro, porque para cada coisa que ele via, saia uma observação incrível. Tem um texto importante – acho que é Experiências científicas de um acadêmico europeu na América – no qual Adorno conta sobre o período que passou nos Estados Unidos. Em um dado momento ele diz que foi vivendo lá que perdeu sua crença ingênua na cultura. Desta forma, qualquer teoria da cultura que não seja reacionária deve passar pela experiência americana porque ela mudou a história cultural do ocidente. Para Adorno, não adianta fazer uma crítica cultural conservadora – ele diz isso nos textos sobre indústria cultural na década de 1950 e no Prismas, livro no qual diferencia essa crítica da crítica cultural dialética.
Ainda nos Estados Unidos, Adorno realiza, durante a década de 1940, duas outras pesquisas empíricas que serão fundamentais para a concepção de indústria cultural: uma sobre a personalidade autoritária e a outra sobre a agitação antidemocrática nos Estados Unidos. Um parênteses que eu gostaria de fazer é que a Escola de Frankfurt é muito criticada dentro do marxismo porque parte dos seus membros foram para a América. Sendo marxistas, o mais lógico era que fugissem para o leste europeu e não para o centro do capitalismo. Contudo, ao invés de se entusiasmarem com a democracia norte americana – enquanto a Alemanha vivia o nazismo – eles começam a investigar as tendências fascistas no interior da democracia seguindo a tese de que o fascismo nasceu das contradições capitalistas. Assim, eles não elogiam a sociedade democrática dos Estados Unidos, nem a indústria cultural como democratização, muito pelo contrário. Evidentemente, tais sociólogos também tinham medo de que o fascismo se espalhasse pelo mundo. Por isso, buscavam entender as raízes sociais desse fenômeno, sobretudo a partir da investigação da personalidade autoritária e dos agitadores de extrema-direita nos Estados Unidos que, naquele período, viviam uma grande polarização. Existem dois romances interessantes que discutem o medo do fascismo chegar na América. O primeiro é do Sinclair Lewis, escrito na década de 1930 e que se chama Isso não pode acontecer aqui. O segundo é mais recente, de Philip Roth, o Complô contra América.
A dialética do esclarecimento como ponto de partida
Vale lembrar também que o excerto da Indústria cultural presente na Dialética do Esclarecimento é um elemento central nesse livro que quer compreender as raízes do fascismo. Na Dialética do Esclarecimento, há uma indicação da indústria cultural como ponto central para a compreensão do fenômeno. Mas essa já era uma agenda de pesquisa para Adorno desde o começo, como já disse antes, desde seus debates com Walter Benjamin na década de 1930 sobre o deslumbramento de Benjamin com o cinema e o desenvolvimento da imprensa soviética. As inovações tecnológicas e sua aplicação na arte eram vistas com muito interesse por Adorno, na medida em que tinham também um aspecto político. Benjamin notou as possíveis consequências à esquerda, por assim dizer, dos novos métodos de reprodutibilidade técnica, embora tenha ressaltado também os aspectos problemáticos (como o declínio da narrativa) dessa nova fase do capitalismo. Adorno, partindo das reflexões de Benjamin, refletia sobre os elementos contraditórios do desenvolvimento tecnológico e seu impacto na arte e na cultura. Tudo isso ganhou uma dimensão central na obra de Adorno a partir da experiência norte-americana. Às vezes, eu até me pergunto se a Escola de Frankfurt seria o que ela é hoje se não tivesse sido em parte desenvolvida nos Estados Unidos.
No texto que eu citei – o “Résumé sobre a indústria cultural” –, Adorno assume que ele e Horkheimer utilizavam a expressão “cultura de massa” para caracterizar o fenômeno de forma equivocada. Adorno faz um mea culpa porque, desde o princípio, “cultura de massa” parece ser uma expressão elitista. E isso é verdade – ela vem de um conservadorismo cultural. Quando pensamos em “cultura de massas”, parece que a cultura emana das massas. Por outro lado, ao utilizar a categoria da indústria cultural, demonstra-se que a relação é de cima para baixo e não de baixo para cima. É ela que vai determinar o consumo e a produção da cultura. Então, assim como existe a indústria do petróleo e da farmacêutica, existe a indústria cultural, um elemento importante na produção e reprodução da sociedade capitalista. Tem uma frase de Gabriel Cohn em seu livro Weber, Frankfurt muito impactante e que nos ajuda a pensar nesse processo: do ponto de vista marxista, o que produz um modo de produção? A partir da Escola de Frankfurt, Cohn responde que o modo de produção produz a sociedade. A indústria cultural é um aspecto central nesse modo de produção, por assim dizer.
Então, a teoria da indústria cultural será uma atualização da teoria marxista da produção da sociedade, pois explora como ela se produz e reproduz. Esse é um aspecto importante porque muitas pessoas pensam que Indústria cultural é um adjetivo e, por isso, se referem a ela para determinar se um produto cultural, um filme, por exemplo, “é ou não é indústria cultural”. Trata-se de uma questão falsa e que não tem nada a ver com o conceito originário. A indústria cultural se relaciona, justamente, com essa reprodução da sociedade e envolve uma série de elementos que podem ser visualizados desde os projetos de Adorno na década de 1930. Ela está presente na decoração, no cinema, nas revistas, nos romances best sellers, etc. Isso significa, como aponta Adorno, que a indústria cultural é um sistema formado por todos esses componentes. Em razão disso, seu efeito só pode ser medido de maneira sistêmica, nós estamos imersos nela o tempo inteiro. Não adianta pensarmos no impacto de um filme, novela ou programa de televisão específico na sociedade, pois não é disso que se trata.
Em uma entrevista com Helmut Becker, publicada no Brasil em Educação e Emancipação, Adorno diz que os efeitos da indústria cultural não podem ser medidos individualmente, eles se dão no todo do sistema e no tempo. Ainda é mais complicado, porque muitas vezes os efeitos de mudanças tecnológicas só podem ser observados de uma geração para outra. Hoje isso pode ser muito evidente para nós que estamos acostumados com mudanças tecnológicas radicais e muito rápidas, mas na época isso não era tão manifesto assim.
Também há uma contribuição notável de Fredric Jameson em seu livro Marxismo e a Forma: teorias dialéticas da literatura no século XX para entender um outro elemento da indústria cultural. No capítulo dedicado a Adorno, ele se pergunta a quem se dirige uma obra cujo diagnóstico central é o desaparecimento do público. Isso significa que o conceito de indústria cultural visa explicar o desaparecimento de um público orgânico que se relacione mais diretamente com as obras de arte – a indústria cultural é uma espécie de instância mediadora que passa a determinar, ela própria, a forma e a recepção das obras de arte – aniquilando o momento de contemplação que se constrói justamente a partir da tensão entre sujeito e objeto. Esse é um traço interessante e que impacta enormemente a história da arte e a maneira como nos relacionamos com as obras de arte. O tempo todo a arte autônoma (ou aquela que protesta contra essa autonomia a partir dela) e a indústria cultural são tensionadas na obra do Adorno.
Indústria Cultura e a Escola de Frankfurt
INB – A Dialética do Esclarecimento é uma obra escrita a quatro mãos. Na sua opinião, qual é a contribuição específica de Horkheimer para a formulação do conceito de indústria cultural?
BDT – Existe uma importante discussão sobre a colaboração de Adorno e Horkheimer. Inicialmente, quem tinha sido cotado para escrever a Dialética do Esclarecimento era Herbert Marcuse. Só que houve uma intriga e Adorno assumiu seu lugar no projeto de Horkheimer, que ambicionava escrever um livro sobre dialética. Eu penso que embora Horkheimer fosse diretor do Instituto de Pesquisa Social, foi Adorno quem trouxe o elemento da pesquisa empírica da indústria cultural para o livro, pois ele teve uma inserção que Horkheimer não teve nesse âmbito.
No entanto, há um texto de Horkheimer chamado Arte e Cultura de Massa, que eu traduzi recentemente para uma coleção sobre o autor, que demonstra como ele também tratava dessas questões. Um dos aspectos mais significativos que ambos indicam da indústria cultural é que ela serve como um quadro de referência para tudo. Marcel Mauss tem um exemplo que eu considero didático. Mauss lutou na Primeira Guerra e ele contou uma história num dos textos deles que esqueci qual é, de quando estava no hospital e começou a notar a maneira de andar das enfermeiras francesas. Ele olhava as enfermeiras e pensava já ter visto esse andar em algum lugar, quando se deu conta que tinha visto no cinema. Isso exemplifica como a indústria cultural vira um quadro de referência até para o modo como nós dispomos do nosso corpo.
É por esses motivos que ela também é uma instância de socialização, a principal em nossa sociedade. Portanto, o modo como a gente se veste, se exercita e se relaciona, muitas vezes, é produto de sua linguagem e mediado por suas imagens.
Arte e cultura de massa
Nesse texto de Horkheimer que citei, Arte e Cultura de Massa, ele diz como a indústria cultural suplanta as instâncias primárias de socialização, como a família. Vou utilizar um exemplo contemporâneo para mostrar a atualidade do conceito, embora ache que eles observaram o fenômeno ainda de maneira incipiente e também ache problemático a desconsideração da família como instituição capitalista (o que os feminismos da teoria da reprodução social têm mostrado). Vamos supor que um menino vai se barbear e que era o seu pai que o ensinava a fazer isso. Porém, na medida em que a indústria cultural se generalizou, enquanto sistema e instância de socialização, quem vai ensinar o menino é o YouTube. Ou seja, há uma relação disso com uma teoria mais geral de perda da experiência de uma geração para a outra. A indústria cultural corta esse vínculo.
Embora esse argumento de Horkheimer seja válido, eu o considero complicado e problemático. Ele concluiu que a decadência da autoridade paterna, que aconteceu durante esse período, é um fator contribuinte para a constituição do autoritarismo. Essa é uma teoria complicada do ponto de vista do gênero e, portanto, também do ponto de vista sociológico. E é problemática politicamente. A Dialética do Esclarecimento também é marcada por essas oscilações, por uma concepção específica do que era família e da dificuldade de compreender – sobretudo de Horkheimer – que a família é uma construção capitalista. Eu acho que isso não aparece tanto no Adorno. De qualquer forma, o problema não é a substituição da família como instância socializadora, mas principalmente o fato de que cada vez esse sistema da indústria cultural se impõe como uma das principais formas mediadoras (e deformadoras) entre indivíduo e sociedade.
Mas voltando para a pergunta, por vezes não dá para distinguir o que é Adorno e o que é Horkheimer, embora as pessoas digam que esse excerto da Dialética do Esclarecimento foi elaborado principalmente por Adorno. Mas Horkheimer também tem reflexões e textos sobre o tema que não são levados em conta. No Brasil, nós lemos menos Horkheimer. Mas Adorno e Horkheimer pensaram juntos todas essas coisas. Aliás, a teoria crítica não seria nada sem o seu caráter de reflexão coletiva e colaborativa. A indústria cultural é o resultado de tudo, inclusive de debates que eles fizeram, especialmente sobre o capitalismo monopolista.
Eu tenho um colega, o Ricardo Pagliuso, que é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e estudou esse tema em seu livro Capitalismo sem Peias. Adorno e Horkheimer tentaram classificar o que era os Estados Unidos, o que era União Soviética, se o fascismo era capitalismo de estado, etc. Como eu disse antes, é importante destacar que o conceito de indústria cultural se encaixa em uma teoria do capitalismo monopolista, uma vez que diz respeito também a um processo de monopolização da cultura.
Para entender o presente, isso é fundamental. Se pensarmos no capitalismo de plataforma, totalmente monopolizado, há quem diga que vivemos em um tecnofeudalismo. Mas na verdade, isso é um desdobramento do processo de monopolização.
A Indústria cultural na contemporaneidade
INB – O desenvolvimento cada vez mais célere das novas tecnologias de comunicação de massa impõe novos desafios para a sociedade. É necessário atualizar o conceito de indústria cultural diante desse cenário? Esse conceito ainda é válido?
BDT – A validade do conceito de indústria cultural é total e completa. Trata-se de algo por vezes mal trabalhado, porque muitas pessoas confundem a indústria cultural com um conjunto de bens de consumo. Mas esse conceito é mais complexo, diz respeito a um sistema de socialização que tem impactos políticos profundos. É impressionante como eles observaram todas essas tendências. Adorno trabalhou muito com a noção marxista de tendência, por isso ele fala que a ciência social tem de ser capaz de entender os desdobramentos de um processo social. Mais ainda, compreender as tendências que não estão manifestas na realidade empírica. Ele teve que saber ler aquilo que ainda não aparecia imediatamente.
A noção de tendência é fundamental. Só com ela vamos compreender o potencial de algo ir para um lado ou para o outro. Desde a década de 1930, a partir do diálogo com Benjamin, Adorno apontava para a face distópica das tecnologias da então “cultura de massas”. Enquanto Benjamin, por sua vez, estava mais interessado no potencial emancipatório dessas tecnologias – como podemos observar em O Autor como Produtor – e como a classe trabalhadora poderia se apropriar delas. É impressionante que muito daquilo que Adorno teorizou na década de 1930, 1940, 1950 e 1960 só veio a se realizar plenamente na nossa época.
Eu acho que temos diante de nós um desafio grande de atualização da indústria cultural. Diante do desenvolvimento das forças produtivas e do momento tecnológico, o sistema da indústria cultural aumentou o seu alcance. Tanto em termos geográficos globais, quanto na vida social. Conforme apontou Jameson, a mídia, o meio, é aquilo mesmo que entendemos por cultura em nosso tempo.
Vou dar um exemplo de um dos desafios que temos que enfrentar a partir de uma experiência de Adorno. Ele tem um livro que é pouquíssimo discutido e não foi traduzido para o português sobre música e cinema que escreveu com Hanns Eisler, um aluno de Arnold Schönberg. Eisler era um expoente da nova música que foi trabalhar com Brecht. Era um verdadeiro comunista e Adorno gostava muito dele. Eles tinham uma relação boa, mas esse aspecto não aparece muito nas biografias sobre Adorno. Mas o fato é que Adorno e Eisler – expulso dos Estados Unidos por ser comunista – escreveram um livro que só foi publicado na década de 1960 na Alemanha. É interessante porque no livro também há um conhecimento empírico muito grande. Eisler trabalhou como compositor para Hollywood, de modo que ele conhecia o processo de composição das músicas e de sua introdução nos filmes. Ele conta que os clichês musicais apareciam nos filmes de maneiras diversas, por exemplo, em uma cena romântica noturna imediatamente iniciava a “Sonata ao Luar”, de Beethoven e em um filme irlandês a música folk era sempre a escolhida etc. De acordo com Eisler, a música é pensada para a cena específica e a ideia é que ela tenha uma lógica interna completamente vinculada à situação que pretende expor. Ou seja, a música é um acessório do filme, disposto apenas para criar um clima. Adorno também conhecia como esse processo se desenvolvia, ele visitou estúdios de cinema etc. E hoje esse também é o nosso desafio: conhecer como a cultura em que vivemos é produzida. Não é uma tarefa simples, ainda mais com o avanço dos algoritmos e da inteligência artificial. São situações complexas, mas fundamentais para entendermos o que está acontecendo.
Indústria cultural e o streaming da Netflix
A série Stranger Things é um exemplo disso. Ela foi feita com base num modelo matemático que indicava quais eram as séries mais assistidas e quais os componentes dessas séries (crianças, monstros, etc) e, a partir desses elementos, elaboraram o enredo da narrativa. Então, já é uma outra concepção de cultura de que estamos falando, totalmente digital, plataformizada e produzida no modelo especulativo (e financeirizado) das redes sociais. Adorno tem um texto muito provocativo e, provavelmente, hoje ele seria cancelado por isso, mas que eu acho muito interessante. Chama-se Pode o Público Querer? O ponto central é que a indústria cultural cria uma espécie de aniquilamento do público, como já destaquei aqui.
https://blogdaboitempo.com.br/2023/06/29/uma-conversa-sobre-a-industria-cultural/
Eu penso que existem dois desafios. Um o de conhecer a indústria cultural em seu funcionamento contemporâneo (o que envolve repensá-la a luz do neoliberalismo, do capitalismo de plataforma e da financeirização) e outro de atualizar a teoria adorniana. Mas para isso, é preciso conhecer como a cultura é produzida hoje. Existe algo muito importante na indústria cultural que é o fato dela fundir uma oposição complementar dada desde a concepção do conceito: o trabalho e o lazer. Algo pouco discutido quando abordamos o assunto é que a indústria cultural pressupõe uma sociedade fordista de trabalho.
A indústria cultural aparece como um conceito que está no ar, mas ela pressupõe uma sociedade fordista do trabalho. Adorno e Horkheimer eram marxistas e por isso vão argumentar na Dialética do Esclarecimento – e Adorno também vai falar disso em outros textos – que o tempo livre de lazer se torna o tempo de trabalho. O lazer precisa ter o ritmo repetitivo do trabalho, isto é, precisa ser alienante. Adorno também discute a ideia de tédio, um subproduto deste processo. A ideia de tédio que hoje, como propõe Mark Fisher em Realismo Capitalista, virou ansiedade.
Até hoje pensamos que a indústria cultural é um descanso do tempo de trabalho. Mas Adorno se opõe a essa visão. Ele mostra que, por um lado, trata-se de um descanso, por outro, a própria lógica de trabalho é estendida para a indústria cultural. Ela é tão repetitiva e alienante quanto o trabalho fordista e o capitalismo.
Portanto, o trabalho e o lazer são dois lados de uma mesma sociedade. Atualmente, com o capitalismo de plataforma, eles se fundiram completamente. Nós viramos apêndices dos smartphones, assim como os trabalhadores do século XIX eram apêndices das máquinas. Aliás, os smartphones são os verdadeiros vampiros da nossa era. Estamos com os smartphones o tempo todo e é difícil diferenciar o trabalho do lazer. Isso fica claro quando alguém utiliza seu perfil no Facebook ou Instagram para provar ser uma pessoa empregável. As redes tornaram todos especialistas em propaganda e marketing de si mesmos. Com o capitalismo de plataforma, cada vez mais as fronteiras entre trabalho e lazer são borradas. Isso para não entrar no assunto de que tipo de trabalho realizado nessas plataformas de interação social, se é ou não trabalho, etc.
A indústria cultural na Era da Informação
A indústria cultural digital (essa nova modalidade do fenômeno sob o capitalismo de plataforma e que compreende as redes sociais e a internet) abarca tanto o trabalho quanto o lazer. De certa maneira, pensar nesse modelo do capitalismo de plataforma revela como ele realiza o prognóstico de Fredric Jameson no pós-modernismo a respeito da lógica cultural do capitalismo tardio. Ou seja, a ideia de que a cultura vira a infraestrutura e assume o lugar da superestrutura. A cultura passa a ser central na reprodução do capitalismo.
O capitalismo de plataforma cumpre muito bem essa vocação reprodutiva da indústria cultural. Ele está na nossa vida até da hora de acordar até a de dormir – se antes, a gente ligava a televisão, ouvia o rádio quando chegava em casa, hoje estamos o tempo todo expostas a ela, temos relógios que medem tudo. Esses aparelhos coletam todos os seus dados e abarcam até mesmo o sono, como Jonathan Crary discorre em seu livro 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono. Para além disso, o capitalismo de plataforma também realiza o caráter de monopólio da indústria cultural: todas as principais plataformas de comunicação e interação social – como o Instagram, o TikTok, a Meta, o WhatsApp, etc – são monopólios, oligopólios ou semi monopólios. Cada autor dá um nome diferente para esse fenômeno, mas o que interessa é que a cultura se tornou um setor altamente monopolizado. O modo como interagimos é ditado pela plataforma, ainda que sejamos nós mesmos apareçamos como “produtores do conteúdo”. Mas isso é muito pouco. E quando você fala alguma coisa sobre isso, as pessoas insistem em ressaltar o conteúdo emancipatório das redes sociais, por exemplo. Ou o fato de que não podemos mais voltar para trás na história.
Mas ninguém quer debater como o setor cultural é extremamente monopolizado. Habermas disse há algumas décadas que o diagnóstico do Adorno e Horkheimer é claustrofóbico, mas não é disso que se trata. Adorno reconhece que desse processo sempre surgem coisas independentes. No fim da vida, ele começa a mudar um pouco de posição e, inclusive, elogia o Cinema Novo alemão e outras experiências cinematográficas independentes – mas isso não significa que ele era um entusiasta. De certa maneira, fez concessões para a ideia de algo independente, mas reconhece que não é isso que rege o sistema. Se nós não pudermos criticar que os monopólios estão comandando a forma de nossa sociabilidade, socialização, debate político, descanso e trabalho, então, a teoria social não serve para mais nada. É melhor jogar a toalha de vez e ir fazer outra coisa.
Para terminar, acho importante destacar também o caráter político do conceito de indústria cultural. Na sociologia, houve muitas pesquisas dedicadas a estudar a indústria cultural a partir de programas de televisão, da música pop e de outros bens culturais. Mas a indústria cultural tem um lado político expressivo que foi ignorado pela sociologia da cultura. Com a ascensão da extrema-direita, esse aspecto ficou evidente. Adorno e Horkheimer também tinham essa intuição, sobretudo porque leram os textos de Freud. Eles observam como a indústria cultural produz processos de identificação com as estrelas de cinema, como mencionei anteriormente. Nos Estados Unidos, por exemplo, líderes como Ronald Reagan, Donald Trump e Arnold Schwarzenegger, todos eles literalmente vieram da indústria cultural. Ou seja, eles comprovaram literalmente a tese da indústria cultural. Esse modelo de identificação com uma estrela do cinema pode se replicar na política. Estamos vendo isso hoje.
Adorno e Horkheimer estavam preocupados justamente com os desdobramentos políticos do processo de monopolização e mercantilização não só da cultura, mas da produção da cultura como mercadoria pré-fabricada. E daí aparecem todas as questões relacionadas à estereotipia, dos padrões repetitivos, etc e suas implicações políticas. No texto Aspectos do novo radicalismo de direita, Adorno sugere algo muito atual que é como a indústria cultural pode suplantar o partido de massas na organização do fascismo. Nesse caso, ele se refere à monopolização da cultura que ocorreu na Alemanha na década de 1930. Então, ele pensa nas figuras reacionárias do sistema de comunicação alemão daquele período, como Alfred Hugenberg. Nota-se que essa intuição do Adorno se verifica hoje com as redes sociais e que a extrema-direita tem se organizado completamente por meio delas. Isso tem a ver com as pesquisas de agitação no rádio que eles estudavam.
Adorno tem um texto interessante sobre a técnica do rádio de Martin Luther Thomas – “A técnica psicológica de Martin Luther Thomas” – um agitador de extrema direita e analisa o seu programa de rádio, cujo alcance e impacto eram enormes. Nesse sentido, o rádio contribuiu para a ascensão do fascismo pela questão da alienação e por espraiar uma propaganda de extrema-direita. Ele foi um grande laboratório de experimentação política, como é agora a indústria cultural digital. O maior laboratório de todos na história da nossa sociedade. Agora, as redes sociais intensificaram a forma da indústria cultural: tudo aquilo que estava na relação formal entre nós e a cultura (os padrões repetitivos, o pensamento estereotipado, etc.) se aprofundou pelo alcance e capilaridade das redes, pois elas penetram fundo no corpo social e fundo na subjetividade. Além disso, podemos dizer que as plataformas sociais – ao ocupar as pessoas a maior parte do dia – se tornaram elas próprias uma forma de gestão do conflito social e, portanto, da luta de classes.
A subjetividade na mira da indústria cultural
INB – Qual é o impacto da indústria cultural na formação da subjetividade? É possível dizer que a teoria adorniana é uma espécie de junção das influências de Freud e Marx?
BDT – Muito interessante o seu subtítulo, que aponta para o que os americanos chamam de weaponization da cultura. É isso mesmo, a psicologia torna-se uma arma para o sistema da indústria cultural. Hoje em dia, a chamada “propaganda direcionada” que visa manipular nossas preferências é só a ponta do iceberg.
Agora, essa história de junção de Freud e Marx é uma coisa muito complexa. Não é possível tratarmos de tudo aqui, até porque Adorno oscila muito ao longo de sua vida na leitura que faz da psicanálise e da sua importância para compreender alguns processos e isso se reflete em seus textos. Freud certamente é essencial para a elaboração da teoria crítica – a psicanálise, no geral, é essencial. De certa maneira, um ponto importante é que no tempo de Marx não havia dois instrumentos para pensar a alienação e reificação desse fenômeno, quais sejam: a psicanálise e uma teoria da mídia. A Escola de Frankfurt, e o Adorno principalmente, desdobram a teoria de Marx e tentam avançar no diagnóstico do capitalismo a partir da incorporação desses outros dois elementos.
Sob esse ponto de vista, a indústria cultural foi pensada como um sistema de socialização. Eu mencionei aquele exemplo do menino que se barbeia. Mas o que acho interessante na indústria cultural, para usar uma expressão althusseriana, é que ela tem efeitos de realidade enormes. Se pensarmos no que acontece na cidade e como a indústria cultural contemporânea opera nessa conjuntura, é visível que os grandes centros urbanos são marcados por quem está no trânsito. Temos plataformas que transformam o trânsito, como o Waze, o Uber, o IFood, etc. No caso do Waze, assim que saímos de casa já ligamos o aplicativo e se chamamos um Uber, ele imediatamente usa o Waze para indicar o melhor caminho até o seu destino. A cidade se transformou completamente com as plataformas de entregas e serviços. Mesmo para utilizar o sistema de transporte público muitas vezes utilizamos plataformas. O Instagram também determina em qual restaurante as pessoas vão comer, os locais que vão ou não ser frequentados, etc.
É por isso que eu digo que a indústria cultural contemporânea floresce com a plataforma. A indústria cultural digital muda a maneira como a cidade é experimentada. Pode ser fácil perceber isso tendo como exemplo as cidades, mas quando se trata da subjetividade é mais difícil. Mas o que acontece na cidade também acontece na nossa subjetividade: as plataformas são referências para as o vestir, o pensar, o se relacionar… evidentemente esse processo já estava presente na mídia impressa, quando as resenhas determinavam as nossas leituras. Mas com as plataformas, a escala é muito maior e sua força mais intensa.
Impasses contemporâneos e desafios presentes
Tal mudança quantitativa vem acompanhada de uma mudança qualitativa. A totalidade da nossa vida está marcada por esse sistema. No ano passado, uma amiga minha, a pesquisadora Isabella Meucci, me enviou uma matéria que mostrava as coisas mais procuradas no Google e eu achei o resultado impressionante. O Google utiliza, para fazer esses rankings de final de ano, um mapeamento das perguntas que começam com “como”. Nessa matéria que eu li, tinha uma pergunta que minha amiga me apontou: “como se tornar aquela garota?”. Além das questões de gênero envolvidas, eu fiquei pensando como isso revela um lado de socialização da indústria cultural, na medida que perguntamos para o Google como fazer qualquer coisa. Ou seja, perguntas do tipo: como eu posso me tornar uma profissional de sucesso? Ou como eu cozinho para ter uma vida saudável?
As respostas que obtemos são determinadas pelo algoritmo. Isso revela de que modo as pessoas tomaram as plataformas como principal quadro de referência. Os problemas da indústria cultural como instância de socialização são profundos. Mas essa teoria é até hoje muito criticada. No ano passado, Vivek Chibber escreveu um livro chamado Matrix das Classes Sociais no qual ele faz uma dura crítica ao conceito de ideologia. Segundo ele, o marxismo ocidental e suas teorias da ideologia pressupõem uma falha cognitiva da classe trabalhadora. E isso é um problema que a teoria da indústria cultural também enfrenta dentro do marxismo.
As teorias marxistas precisam explicar os motivos pelos quais a classe trabalhadora, afinal de contas, não se revolta e derruba o sistema no qual a gente vive. Segundo Chibber, o marxismo ocidental explica a perpetuação do capitalismo pela via da ideologia, que, como eu disse, segundo ele, pressupõe uma falha cognitiva na classe trabalhadora.
A indústria cultural é uma indústria objetiva, um conceito que visa abarcar o sistema de socialização e de produção cultural como um todo, além da dimensão política e laboral que já ressaltei. Nesse sentido, não se trata de estar de fora dela ou ser suscetível a ela por uma falha cognitiva. Por isso também a psicanálise é importante. Como a publicidade, que é a sua língua materna, ela tem efeitos inconscientes. É só você ver como funciona a propaganda no mundo em que vivemos. Às vezes acho que os sociólogos deveriam estudar um pouco de propaganda e marketing antes de ficar valorizando a “agência dos indivíduos”. O fato da indústria cultural agir no âmbito dos nossos desejos inconscientes é um dado quase óbvio. Mas se a gente não entende como a psicanálise é mobilizada pela teoria crítica, ela fica parecendo uma teoria subjetivista. Não é disso que se trata, mas da transformação da psicologia social em um instrumento da expansão e reprodução capitalista.
Adorno e Horkheimer nos mostram como a indústria cultural fornece os objetos dos nossos desejos. Assim, não são oferecidas apenas mercadorias, mas também as pessoas como mercadorias (como as estrelas de cinema, tão bem retratadas em seu caráter mercantil por Andy Warhol). De certa maneira, a indústria cultural nos dá o objeto do nosso desejo pré-fabricado e cria necessidades retroativas do ponto de vista capitalista e psicanalítico.
Tudo isso é fundamental para pensar em ideologia. É claro que Adorno não diz que a ideologia é a razão pela qual as pessoas não fazem revolução – nenhum marxista ocidental diz isso. Mas ele está investigando os processos amplos de dominação. Ele não deriva, como alguns marxistas, a ideologia da perspectiva de classe ou do trabalho de maneira imediata, mas isso não significa que esses elementos não estão presentes em suas análises.
Adorno aponta tendências, ele mostra como terceirizamos, para usar uma expressão mais contemporânea, uma série de aspectos e dinâmicas de nossa vida interior (se é que ainda existe algo como isso) e de nossa vida social para esse aparato. Os programas de assinatura hoje escolhem os produtos que vamos consumir por nós, as nossas opções de entretenimento e descanso, o nosso debate político, tudo isso é determinado por esse aparato que agora aparece nessa versão plataformizada. Por exemplo, o Instagram, de certa maneira, impulsiona essa duplicação do real. Hoje as pessoas não vão a um restaurante para comer, mas sim para postar o que elas comeram. O mesmo vale para museus, parques, etc. Toda as nossas relações intersubjetivas e com o mundo exterior são mediadas por essas imagens postadas nas redes. Então, ao comprar aquela comida ambiciona-se a possibilidade de postar o ato de consumo, aquilo que vai ser comprado. Basicamente a possibilidade de expor aquela imagem na rede. A indústria cultural media a nossa relação com o mundo – a palavra mediação é muito importante para entender o seu conceito.
Há um outro aspecto que outros pesquisadores têm desenvolvido, como o Byung-Chul Han, que são os efeitos da indústria cultural na vida subjetiva. Apesar de flertar com uma crítica conservadora da cultura, ele mostra como esse tipo de imersão na atividade constante das telas do celular e computador gera hiperatividade e infartos psíquicos. O autor comenta como a indústria cultural – embora não use esse nome, é sobre isso que está falando – muda a estrutura de nossa concentração. Qual é a capacidade de concentração total de uma pessoa? A cada ano esse tempo diminui porque há uma mudança antropológica de uma geração para outra.
A filósofa Susan Buck-Morss tem um texto muito bom sobre o Benjamin, que se chama Estética e Anestética: O “Ensaio sobre a obra de arte” de Walter Benjamin reconsiderado, em que ela utiliza o termo anestética que tem a ver com anestesia. Para Morss, esses meios têm um lado anestesiante dos estímulos. E, para retomar o Benjamin, um declínio da experiência.
Quem expressou isso muito bem foi Aldous Huxley, uma influência importante para Adorno na concepção de indústria cultural. Jorge de Almeida, professor do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Usp, escreveu um texto brilhante sobre o assunto. Huxley tem uma frase que Adorno gostava de citar que era: “hoje, conversar é discutir mercadorias”. Essa é a distopia. Que experiência, no sentido forte do termo – que pressupõe uma coletividade – pode sair daí?
A indústria cultural possui um elemento muito distópico e que gera um adoecimento mental total. Há pesquisas sobre o assunto, como o episódio da “whistle-blower” do Instagram que revelou como a empresa sabia que ocorria envio de conteúdos tóxicos para jovens e como isso produzia adoecimento. E a empresa atuava dessa forma porque gerava mais engajamento, não é?
Agora, por que continuamos a nos engajar em algo que nos adoece tanto? Essa é a grande pergunta que temos de saber responder como teóricas críticas e como sociedade. Sem dúvida o conceito de indústria cultural pode ajudar a encontrar essa resposta.
Por fim, há algo que Adorno não desenvolveu, mas podemos desenvolver a partir de agora que é a relação da indústria cultural com o gênero. Outras autoras exploram essas relações. Tem um livro que foi publicado em inglês chamado Adorno e o Feminismo, com comentários a respeito do tema. É evidente que Adorno era muito machista. No capítulo A Indústria cultural: O Esclarecimento Como Mistificação das Massas na Dialética do Esclarecimento, todos os exemplos de reificação estão vinculados às mulheres: é a mulher que toma sol e fetichiza o seu corpo, a dona de casa que chora ao ouvir Arturo Toscanini.
Algumas autoras podem ser mobilizadas para pensar essa relação entre a indústria cultural e a produção da masculinidade e feminilidade, mas mais especificamente um controle político das mulheres. Naomi Wolf em seu livro O Mito da Beleza demonstra que após os protestos da década de 1960, as revistas femininas começaram a tratar do corpo ideal feminino, mas antes desse período elas falavam de receitas, de como ser uma boa dona de casa, etc. Do ponto de vista empírico, percebe-se de fato a indústria cultural: as mulheres entraram nessa coisa lunática de “como perder cinco quilos em três dias”, que tanto vemos hoje em dia. Portanto, a indústria cultural também teve esse papel reacionário de manutenção da desigualdade de gênero e de contrarrevolução depois da década de 1960. Se juntarmos essas pesquisas empíricas com o conceito de Adorno, verifica-se que podemos pensar muita coisa a partir dele.
INB – De que maneira é possível começar a se aproximar dos estudos sobre a Indústria cultural?
BDT – A indústria cultural é uma agenda de pesquisa aberta por Adorno e que ele repensou por toda a sua vida. Então, desde seus textos da década de 1930 sobre o jazz, até as cartas em que comentava sobre os romances de detetive, tudo isso demonstra como ele queria explorar o conceito. O interessante dos conceitos da Teoria Crítica é que eles nunca se fecham, são sempre abertos.
E isso tem a ver com o fato de que a maior parte dos textos do Adorno são ensaios, ou seja, são experimentos de pensamento. Mesmo a sociologia é concebida dessa maneira aberta, passível de erro. Adorno achava que a ciência tinha que ser objetiva, porém experimental. Por isso mesmo não há um cientificismo e um positivismo carregados em suas obras.
Ele pensou o cinema, os textos sobre o público e os ensaios e entrevistas que concedeu sobre a televisão e que foram reunidas no livro Educação e Emancipação. Tem uma entrevista que ele fez com o Elias Canetti sobre o tema da massa, que é muito boa. Ou seja, há muitos textos pelos quais começar.
Eu recomendaria o livro que saiu pela editora UNESP chamado Indústria cultural, que é uma introdução ao tema. Mas esse assunto aparece no Minima Moralia, no Prismas, na Teoria Estética, em cursos que ele deu e que foram publicados em português recentemente. Como eu disse, a indústria cultural é uma agenda de pesquisa, algo que foi desenvolvido durante uma vida inteira. Eu fiz um roteiro de introdução para a teoria crítica no site do Labemus, só com textos disponíveis em português. Mas vale dizer que na teoria crítica, a ideia de um caminho unívoco é algo deslocado. Ela de certa forma nos obriga a procurar o nosso próprio caminho em meio ao nevoeiro, como gostava de dizer Adorno e por isso ela é tão fascinante e, muitas vezes, assustadora. Mas eu arriscaria dizer que nenhuma vertente do marxismo teve alcance crítico comparável a ela no século XX e, por enquanto, no XXI também.
Entrevista publicada no site do INB no dia 11 de abril de 2023.
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Bruna Della Torre é pós-doutoranda no Departamento de Sociologia da Unicamp sob supervisão de Marcelo Ridenti (bolsista Fapesp) e editora executiva da revista Crítica Marxista. Foi selecionada para receber a bolsa Max Horkheimer (em homenagem aos 50 anos da morte do autor) no Institut für Sozialforschung em 2023. Foi pesquisadora visitante no Centro Käte Hamburger de Estudos Apocalípticos e Pós-apocalípticos da Universidade de Heidelberg/Alemanha e realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP sob a supervisão de Jorge de Almeida, com estágio de pesquisa na Universidade Humboldt sob supervisão de Rahel Jaeggi e no Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim, com apoio do DAAD. Doutora em Sociologia (bolsista Capes), mestra em Antropologia Social sob a orientação de Lilia Katri Moritz Schwarcz (bolsista Fapesp) e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Durante o doutorado, realizou estágio de pesquisa na Goethe Universität em Frankfurt am Main, sob orientação de Thomas Lemke e no Arquivo Arquivo Walter Benjamin/Theodor W. Adorno da Akademie der Künste, em Berlim (bolsista DAAD). Em 2016, realizou um doutorado sanduíche de duração de um ano no Departamento de Literatura da Duke University (EUA) sob orientação de Fredric Jameson, com bolsa da Capes. Foi, entre 2017 e 2018 e em 2021, professora substituta no Departamento de Sociologia da UNB. É autora do livro Vanguarda do atraso ou atraso da vanguarda? Oswald de Andrade e os teimosos destinos do Brasil, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra da coletiva “marxismo feminista“. Tem experiência em pesquisa e docência no ensino superior nas áreas de teoria literária e sociologia. Suas pesquisas concentram-se, principalmente, nos estudos da relação entre estética e política, cultura, literatura e sociedade, na obra de Theodor W. Adorno e da Escola de Frankfurt e nos debates relativos à teoria crítica e ao marxismo contemporâneo.
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