sábado, 9 de junho de 2018

visão limitada da crítica Parul Sehgal sobre Machado de Assis, por Gilberto Cruvinel

A visão limitada da crítica Parul Sehgal sobre Machado de Assis, por Gilberto Cruvinel

A visão limitada da crítica Parul Sehgal sobre o magistral contador de histórias Machado de Assis
por Gilberto Cruvinel
Publicado nos Estados Unidos neste mês de junho, o volume The Collected Stories of Machado de Assis traduzido por Margaret Jull Costa e Robin Patterson reúne 76 contos selecionados entre os mais de 200 que o escritor carioca produziu. Um lançamento importante para o leitor americano que só teve acesso até esta data aos três romances mais conhecidos do escritor, Memórias Póstumas de Brás CubasQuincas Borba e Dom Casmurro. A tradução do artigo da crítica literária Parul Sehgal no The New York Times  que registrou este lançamento é publicada com exclusividade hoje no GGN. Desde julho de 2017, Sehgal é a chefe da equipe de críticos do Timesque diariamente faz a resenha de um livro.
Sehgal incorre, ao falar do escritor brasileiro, na mesma visão parcial dos três homens cegos da parábola hindu por ela citada que apalpam um elefante para saber com o que ele se parece. Cobra, leque e tronco de árvore, nenhum dos homens logra entender a que um elefante se assemelha.
A crítica do Times escorrega na velha armadilha e muito conhecida da crítica machadiana quando afirma que o Brasil está ausente das histórias do Bruxo:  “Há poucos marcos, poucas menções ao tempo”. Machado que lia muito e sobretudo o que vinha da Europa faria muitas alusões a Molière e Goethe que comparecem mais que o Brasil. Nada mais ilusório. Pode-se recorrer ao próprio autor do célebre artigo Instinto de Nacionalidade, quando diz que
“O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.” (Machado de Assis, O Instinto de Nacionalidade)
Mesmo quando apela a Molière e a Goethe, quando coloca Bentinho no teatro assistindo ao Othelo de Shakespeare ou ainda quando faz pelo menos duas dezenas de citações de Dante e traduz para o português o canto XXV do “Inferno” da Divina Comédia, Machado está, alegoricamente, falando do Brasil, de seu povo e de sua elite no século XIX.
Mas Sehgal vai adiante e afirma que “ uma das prolongadas frustrações com a obra de Machado” é “sua recusa em escrever mais explicitamente sobre a escravidão.” Novamente, a crítica apalpou um elefante e só conseguiu distinguir um rato. John Gledson, um estudioso inglês apaixonado pelo escritor carioca escreveu um livro inteiro, Machado de Assis - Ficção e História, para demonstrar, e o fez com brilho, como a ficção de Machado está intimamente ligada à história do Brasil do século XIX. Mas vamos primeiro recorrer aos dois críticos brasileiros que melhor interpretaram a obra do Bruxo. Dois trabalhos da crítica, A Pirâmide e o Trapézio de Raymundo Faoro, e Ao Vencedor as Batatas de Roberto Shwarz, nos  mostraram que
“Machado não apenas refletia a sociedade e a política brasileiras de uma forma passiva ou meramente documentária, mas também refletia sobre elas.” (John Gledson, Machado de Assis - Ficção e História).
Shwarz identificou a preocupação de Machado com o fenômeno do favor, o tema central de Ao Vencedor as Batatas (inspirado em parte em importante artigo de Antônio Cândido sobre Memórias de Um Sargento de Milícias) e que essa preocupação não era acidental ou reflexo da experiência pessoal de Machado, mas “estava voltada para aspectos difusos de uma sociedade brasileira moldada pela instituição da escravidão”.
E então fechamos este comentário que já vai mais longo que o recomendável, não sem antes resgatar a observação certeira e afiada do grande John Gledson sobre o Bruxo do Cosme Velho. Em 1871, houve uma tentativa de reformar o sistema social injusto, desumano e ultrapassado que vigorava no Brasil. Uma tentativa que resultou em fracasso e produziu apenas a Lei do Ventre Livre que só saiu por medo de uma revolta dos escravos, por pressão abolicionista e pressão estrangeira. Gledson então faz a refinada conexão com a obra machadiana:
“as causas e os resultados desses fracassos estão presentes em todos os romances da maturidade de Machado, constituindo uma lição de História do Brasil. Um rígido sistema de classes, baseado na escravidão, que produz uma classe dominante incestuosa, incapaz de renovação procedente dos escalões inferiores (ver, especialmente, Brás Cubas, Casa Velha e Dom Casmurro)  e um capitalismo superficial, explorador, com raízes no exterior, incapaz de beneficiar a nação em conjunto, em parte porque esse “conjunto” é uma ficção (ver, especialmente, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Memorial de Aires). Esses são dois aspectos menos encorajadores e, claro, interdependentes da visão que Machado tinha da História do Brasil."  (John Gledson, Machado de Assis – Ficção e História).
Alguma semelhança entre o Brasil da segunda metade do século XIX e o Brasil da segunda década do século XXI ?

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Parul Sehgal
The New York Times
Tradução de Gilberto Cruvinel
 
Sonny Figueroa/The New York Times

Na famosa parábola hindu, três homens cegos encontram um elefante pela primeira vez e tentam descrevê-lo, cada um tocando uma parte diferente. “Um elefante é como uma cobra,” disse um, agarrando a tromba. “Tolice; um elefante é um leque,” disse outro, que segurou uma orelha. “Um tronco de árvore,” insiste o terceiro, sentindo a circunferência de uma perna.
No mundo anglófono, um tipo de confusão semelhante ronda Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), o filho e astuto cronista do Rio de Janeiro de quem Susan Sontag uma vez chamou “o maior escritor jamais produzido na América Latina.”
Para Stefan Zweig, Machado foi a resposta do Brasil a Dickens. [Charles Dickens, 1812-1870]. Para Alen Ginsberg, ele foi um outro Kafka [Frans Kafka, 1883-1924]. Harold Bloom chamou um descendente de Laurence Sterne [1713-1768], e Philip Roth comparou-o a Beckett. [Samuel Beckett, 1906-1989]. Outros citam Gogol [Nikolaj Vasil'evič Gogol', 1809-1852], Poe [Edgar Allan Poe, 1809-1849] Borges [Jorge Luis Borges, 1899-1996] e Joyce [James Joyce, 1882-1941]. No prefácio a “The Collected Stories of Machado de Assis,” publicado este mês, o crítico Michael Wood invoca Henry James [1843-1916], Henry Fielding [1707-1754], Chekhov [Anton Chekhov, 1860-1904], Sterne [Laurence Sterne, 1713-1768], Nabokov [Vladimir Nabok, 189-1977] e Calvino [Italo Calvino, 1923-1982] – tudo isso em dois parágrafos.
Devido a outros problemas mais complexos, Machado sempre me lembrou Alice Munro.
O que há aqui? Que tipo de escritor induz tão arrebatador e desenfreadamente inconsistentes caracterizações? Que tipo de escritor pode figurar em tantas fantasias diferentes?
O multiforme, teimosamente inclassificável Machado nasceu na pobreza, o neto mestiço de um casal de escrvos libertos. Ele não teve educação formal ou treinamento; como Twain [Mark Tuwin, 1835-1910], seu contemporâneo, ele teve seu começo como impressor aprendiz. Vindo de um regime de feroz auto-educação, ele se estabeleceu inicialmente como um escritor de romances leves para e sobre as mulheres da elite dominante.
Mas em 1879, seu estilo mudou – ou melhor, apareceu. Uma doença prolongada (Machado era epilético), e a recente perda da visão, colocaram-no sob alerta. O romântico suave evoluiu para um excelente ironista cujas intromissões autorais, cortes repentinos e marotos desvios de rumo influenciaram experimentalistas americanos como John Barth [1930] e Donald Barthelme [1931-1989].
Cinco romances produzidos neste período – inclusive sua obra prima, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) – consolidaram sua reputação. Se esta coleção de 76 contos (selecionados de mais de 200) não pode alcançar a qualidade deles, ainda oferece uma distinta e valiosa vantagem – especialmente para leitores que gostam de manter um olho na vida e outro na arte.

Machado de Assis - Biblioteca Nacional do Brasil

“The Collected Stories” revela o arco da carreira de Machado das francas histórias de amor aos cerebrais e imprevisíveis trabalhos posteriores. Um dos contos é narrado do ponto de vista de um alfinete. Sátiras políticas começam a aparecer. Em um conto, um ditador, calvo desde a juventude, decreta que todos os seus subordinados devem raspar suas cabeças argumentando que a “ unidade moral do estado dependia de todas as cabeças parecendo iguais.”
ESCOLHAS DO EDITOR
As histórias de Machado pulsam com a vida. Os finais são frequentemente obscuros e estranhos, muitas vezes abruptamente truncados. O título de um dos primeiros trabalhos caracteriza-os bem: “Muito calor, pouca luz.”
Algumas preocupações persistem: viúvas sedutoras, jovens rapazes ingênuos, uma predileção pela coincidência. Machado permaneceu fascinado pela feminilidade e as regras estritas que governam a vida das mulheres – é por isso que me lembra de Munro. Como peças de um jogo de xadrez, mulheres bem-nascidas do Rio podiam fazer apenas movimentos autorizados (Machado era um enxadrista fanático), mas tudo estava na mãos delas para o bem e para o mal.
Acima de todos aparece a figura do bibliomaníaco. “Esta é minha família”, disse, apontando para sua estante. Estas eram personagens formatadas pela suas leituras, algumas vezes fisicamente (“sua cabeça sobressaiu adiante levemente  a partir de seu longo traje.”)
É uma curiosa característica das histórias de Machado que o Brasil esteja tão ausente. Há poucos marcos, poucas menções ao tempo. Mas há muitas alusões a Molière e Goethe. Romances e autores são os marcos. Como seus personagens. Machado era uma criatura da literatura; tinta corria em suas veias. Embora ele nunca tenha viajado para longe de sua cidade natal ele lia muito, sobre toda a cultura, de toda a Europa – dando a seu trabalho aquele notável sentimento cosmopolita.
Esta criação de uma cartografia pessoal – fundada na vida mental – pode explicar uma das prolongadas frustrações com a obra de Machado: nomeadamente, sua recusa em escrever mais explicitamente sobre a escravidão. Ele pôde não ter encarado; a escravidão terminou no Brasil somente em 1888. Seus contos permaneceram estacionados, às vezes monotonamente, na elite, escravos flanavam em silêncio.
Ainda que Machado tenha sempre escrito sobre a libertação a seu modo, o que para ele começa com a liberdade – a obrigação – de pensar. Poucos escritores de ficção escreveram tão afetuosamente sobre idéias, como se elas fossem pessoas reais; ele está sempre descrevendo como as idéias surgem e se movem, a forma como elas podem perder seu rumo e ser pegas em uma multidão com outras. A forma como elas podem aparecer “completamente prontas e belas” às vezes, ou “grávidas” de outras idéias.
Idéias e obsessões elevam e torcem estes contos. Em um, um homem esgotado por seu pássaro de estimação torna-se um “canário de raça”. Em outro, um pai querendo arrumar seu filho para fazê-lo um manda-chuva solicita que  ele cultive a necessária monotonia: “Eu te proíbo de ter qualquer idéia ou conclusão que já não tenha sido adotada por outros. Evitar qualquer coisa que tenha um sopro de reflexão, originalidade ou o que seja.”
Para Machado, sua identidade e os limites do seu mundo são formados não apenas por suas circunstâncias mas pelo que você pensa habitualmente. Você é o que você considera, portanto escolha com sabedoria. Estas histórias são um espetacular lugar para começar.