quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Breve história da democracia | MARILENA CHAUI

 

Breve história da democracia | MARILENA CHAUI 

https://www.youtube.com/watch?v=k1MIsK5D0LQ 

Índia: por que eclodiu a grande revolta Aniket Aga

 

Índia: por que eclodiu a grande revolta

Protestos têm origem na Revolução Verde — um programa intensivo de desenvolvimento agrícola implantado no contexto da Guerra Fria. Por que projetos do governo de ultradireita pioram a situação já precária? Quais as saídas?

Por Aniket Aga, na Scientific American | Tradução: Gabriela Leite

Em setembro de 2020, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, contornou procedimentos parlamentares para fazer pressão em prol de três projetos de lei que acabam com restrições ao setor privado em mercados agrícolas. Esse movimento enfureceu agricultores — especialmente os do noroeste do estado de Punjab, um epicentro da Revolução Verde desde os anos 1950. Após dois meses de protestos ignorados, dezenas de milhares de agricultores de Punjab começaram a marchar em direção a Delhi, no final de novembro. O governo Modi respondeu enviando tropas paramilitares armadas com canhões de água e bombas de gás lacrimogêneo, protegidas por barricadas, concertina e trincheiras profundas, que foram escavadas em vias expressas nas fronteiras da capital.

Desde então, as manifestações se espalharam pelo país e transformaram-se na maior mobilização de agricultores que já aconteceu na Índia desde sua independência. Já foram perdidas 70 vidas; muitas mortas de frio, outras por suicídio de protesto. O impasse não diz respeito apenas à revogação das três leis, mas inclui também a demanda de que o Estado garanta a política de preços mínimos de suporte (MSPs, na sigla em inglês). Em uma perspectiva mais ampla, no entanto, essa revolta está escrevendo o obituário da Revolução Verde.

A Revolução Verde — em essência, a promoção da agricultura industrial de capital intensivo — foi mais um estratagema da Guerra Fria que uma iniciativa humanitária, como têm mostrado categoricamente os fatos recentes. Após a independência, em 1947, movimentos camponeses liderados por comunistas fizeram forte pressão sobre o Congresso Nacional Indiano, o partido político que estava no comando, para que fosse feita uma redistribuição de terras dos latifundiários aos camponeses.

Mas o partido do Congresso, em dívida com os proprietários de terra, que garantiram apoio eleitoral em áreas rurais, relutou em implementar uma ampla reforma agrária. Nesse contexto, o governo norte-americano promoveu a Revolução Verde para prevenir uma “revolução vermelha” ao estilo soviético, como William Gaud, o responsável pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, discursou em 1968. O projeto compreendia na distribuição de subsídios a fertilizantes e irrigação, provisão de variedades de arroz e trigo cultivadas para absorver altas doses de fertilizantes e programas de treinamento dirigidos pelo Estado para ajudar os agricultores na transição para novas práticas. Dadas as despesas, ele foi implementado apenas em alguns distritos ricos de Punjab e em alguns outros estados. Como produções abundantes inevitavelmente fazem os preços desabarem, os agricultores tinham a compra garantida por meio de mandis estatais ou pátios de mercado em MSPs declarados com antecedência. A aquisição estatal foi, portanto, crucial para transformar Punjab no celeiro da Índia.

Em resumo, o governo indiano sustentou a promessa de abastecer os famintos com cereais subsidiados e injetou investimentos em massa para conquistar os segmentos abastados de fazendeiros proprietários de terra. Ideias alternativas para o desenvolvimento agrícola apoiado pela ciência, como a transição para variedades de alimentos locais e adaptações agroecológicas, nunca foram seriamente consideradas. 

Mas, como muitos argumentam, o pacote da Revolução Verde criou mais problemas do que resolveu. Nos anos 1980, mesmo sendo geograficamente limitado, provou-se fiscalmente oneroso. À medida que o apoio do Estado diminuía, o problema de preços que não geravam lucros e as dívidas escalaram. Crises ecológicas começaram a surgir, como a redução do lençol freático, solos salinos e degradados, perda de biodiversidade e problemas de saúde causados ​​pelo uso de pesticidas — culminando em uma crise agrária completa na década de 1990 e uma epidemia de suicídios de agricultores. 

Modi aclama leis como as reformas de bacias hidrográficas, que supostamente inaugurarão uma nova era de prosperidade para os agricultores, apoiados por investimentos corporativos. Em face disso, elas permitem que compradores privados adquiram produtos agrícolas fora da supervisão e sem o pagamento de impostos e taxas aos mandis; autorizam limitar a intervenção estatal nos preços de varejo; e fornecem uma estrutura para agricultura sob contrato com corporações. 

Nos detalhes, entretanto, as leis agrícolas interferem nos poderes regulatórios dos governos estaduais e intensificam a já severa assimetria de poder entre as corporações e a massa de agricultores indianos, quase 86% dos quais cultivam menos de dois hectares. Cláusulas como a que proíbe os agricultores — ou qualquer outra pessoa — de buscar recursos legais em disputas contratuais são o motivo do medo de que as leis prejudiquem os agricultores. Em uma análise incisiva, o economista Sudha Narayanan conclui que os supostos benefícios para os agricultores têm pouca justificativa empírica e, de fato, as três leis “tornam invisíveis ao mesmo tempo as transações da área de comércio, contratos de agricultura e estocagem de uma forma que as torna não-reguláveis”. 

Os agricultores temem que as leis sejam um presságio do esvaziamento total das compras regulamentadas pelo estado em mandis. Até hoje, os mandis sinalizam os preços com anúncios regulares de MSPs e, se forem enfraquecidos mais do que já estão, os agricultores ficarão totalmente expostos a pressões de preço debilitantes. Como Balbir Singh Rajewal, presidente do Bharatiya Kisan Union (Sindicato dos Agricultores Indianos) explica, os agricultores estão protestando não porque o sistema existente é justo, mas porque está sendo substituído por um ainda mais incompreensível, que os prejudicará ainda mais. A verdadeira agenda por trás das leis, alegam os agricultores, é facilitar o controle corporativo sobre a agricultura e alimentos. Reliance e Adani Group, duas das maiores casas de negócios da Índia, vistas como próximas do governo de Modi, provocaram em especial a ira dos agricultores. 

A revolta também atraiu algum apoio de sindicatos de trabalhadores agrícolas que, em sua maioria, possuem pouca ou nenhuma terra, pertencentes a castas Dalit (ou oprimidas) e provenientes de famílias que sofreram séculos de violência e exploração de agricultores — tipicamente mais ricos na hierarquia de castas. Mulheres agricultoras oriundas de castas latifundiárias e Dalit também estão na vanguarda das manifestações, uma conquista de décadas de luta pelo reconhecimento como organizadoras da economia agrária e ativistas contra a violência sexual baseada em castas. Grupos de agricultores se uniram à causa de outros protestos na Índia, exigindo a libertação de prisioneiros políticos, agitadores estudantis, ativistas de direitos humanos e revolucionários. 

Subjacente a esta ampla base de descontentamento está o fracasso da Revolução Verde. Até mesmo uma revisão comemorativa, publicada em 2003, foi forçada a admitir que o principal benefício do pacote era a redução dos preços dos grãos para alimentos, mas enquanto isso a grande maioria dos agricultores e trabalhadores agrícolas sofreram reduções de renda. Em suma, a Revolução Verde garantiu cereais baratos, mas foi incapaz de oferecer justiça e sustentabilidade ecológica. Estudos mais recentes pedem uma revisão total da narrativa de sucesso da Revolução Verde, que questiona até mesmo se realmente havia uma escassez geral de alimentos na Índia dos anos 1950 — a suposta razão para sua introdução. 

Em sua palestra após a vitória do Prêmio Nobel da Paz em 1970, Norman Borlaug, um dos “pais” da Revolução Verde, apresentou uma defesa obtusa do programa: “Alguns críticos dizem que a Revolução Verde criou mais problemas do resolveu. Não posso aceitar essa afirmação, pois acredito que é muito melhor para a humanidade lutar com novos problemas causados pela abundância do que com o velho problema da fome”. Cinco décadas depois, fechamos o ciclo e ficou evidente que os novos problemas da agricultura industrial se somaram aos velhos problemas da fome e da desnutrição. 

Nenhum tipo de ajuste de marketing vai consertar um modelo de produção fundamentalmente distorcido e insustentável. Portanto, o governo deve exigir imediatamente a retirada das três leis. Mas para realmente garantir um futuro viável para os agricultores, devemos abandonar o paradigma da Revolução Verde e adotar sistemas agrários e alimentares agroecológicos, diversos, descentralizados e justos. 

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Economia do Comum, urgência máxima - Mazzucato e Skidelski

 

Economia do Comum, urgência máxima

Crise, pobreza e enriquecimento especulativo alastram-se no Ocidente. O dogma da “superioridade dos mercados” fracassou. Exemplos históricos demonstram: é possível reorientar a produção para o social, o ambiente e os empregos dignos

Por Mariana Mazzucato and Robert Skidelsky, no Project Syndicate | Tradução: Simone Paz e Gabriela Leite

A pandemia de COVID-19 teve um impacto imenso, imprevisível e duradouro nas economias do mundo inteiro. Como resultado, os governos tiveram a oportunidade — e a obrigação — de repensar o papel e o propósito da política fiscal.

Quanto piores os fundamentos e previsões econômicas, mais misteriosos tornam-se os resultados do mercado de ações nos EUA. Em uma época em que as notícias reais sugerem que os preços das ações deveriam estar caindo, e não atingindo altas recordes, explicações baseadas na psicologia da multidão, na viralização das ideias e na dinâmica das epidemias narrativas podem trazer alguma luz.

Faz tempo que precisamos de uma nova abordagem. Desde a era da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do presidente dos EUA Ronald Reagan, a ortodoxia econômica predominante tem negado a função de investimento potencial do Estado e fez do equilíbrio do orçamento um fim em si mesmo. Essa indiferença tanto em relação à direção, quanto ao nível de atividade econômica, tornou a crise de 2008-09 quase inevitável, e a subsequente corrida para a “austeridade” enfraqueceu a recuperação. Agora, o colapso simultâneo da oferta e da demanda, após a chegada da covid-19, tornou a ortodoxia neoliberal duplamente insustentável.

Há, no entanto, poucas evidências de que qualquer novo pensamento fiscal esteja em andamento. É verdade que o financiamento de emergência está sendo implementado. Mas, a menos que esse gasto seja estruturado, o resultado pós-2008 se repetirá, com a liquidez elevando os preços dos ativos nos mercados financeiros, mas fazendo pouco para ajudar a economia real. No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson pode aspirar ao manto do presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt. Mas seu anunciado “New Deal” não chega nem perto da escala ou ambição do original de Roosevelt. Nenhum dos gastos do governo anunciados até agora vai além de um “trabalho de ambulância”.

O que essa resposta emergencial colocou em evidência foi o imenso poder fiscal do Estado, que, quando as circunstâncias exigem, é perfeitamente capaz de manter as famílias abastecidas, ao longo de uma paralisação de meses da iniciativa privada. Dessa forma, a meta nos próximos meses e anos não deve ser descartar a economia subsidiada o mais rápido possível, mas sim transformá-la em uma nova parceria duradoura entre o Estado, a iniciativa privada e os trabalhadores.

Uma nova linha mínima

Assim como a saída da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial exigiu colaboração política e a adoção de ideias que, nas décadas de 1920 e 1930, eram consideradas radicais e “anti capitalistas”, a recuperação pós-pandemia deve ir além do mero gerenciamento de crises. É hora de abraçar a capacidade única e profunda que o Estado tem para conduzir a vida econômica na defesa do bem comum.

Afinal, não faltam desafios de longo prazo que exigirão liderança política proativa e investimento público voltado para essa missão. Diante de uma onda de calor histórica no Ártico, a necessidade de reorientar a economia para um crescimento limpo e sustentável nunca foi tão urgente ou óbvia. E embora os apelos por um “Green New Deal” na escala da transformação socioeconômica na era da 2ª Grande Guerra já tenham ganhado força, a crise do COVID-19 mostrou que “os negócios como de costume” não são adequados para isso. Quando chega a hora, os Estados — e não as empresas privadas — é que são os principais atores econômicos.

As dimensões socioeconômicas e climáticas da crise atual estão intimamente relacionadas. O legado das políticas de laissez-faire acabou deixando setores-chave e grandes grupos da força de trabalho subempregados e subvalorizados de maneira crônica. Como o Comitê de Mudanças Climáticas do Reino Unido mostrou, a atual crise econômica é, portanto, o momento perfeito para acelerar “a transição para uma economia mais limpa, livre de emissões, e fortalecer a resiliência do país frente aos impactos das mudanças climáticas.”

Mas qualquer versão atualizada do New Deal deve incluir uma nova constituição fiscal. Caso contrário, não teremos nenhuma garantia contra a retomada da ortodoxia financeira quando a emergência atual for considerada encerrada.

O Estado deveria assumir um papel permanente e contínuo de guiar, estabilizar e — se necessário — transformar a vida econômica. Intervir apenas em momentos difíceis para consertar o sistema só garante outra crise. Do lado da oferta, deve haver mais atenção em direcionar a produção para as necessidades de desenvolvimento de longo prazo: para uma economia mais sustentável, inovadora e inclusiva. E do lado da demanda, é hora de reafirmarmos o compromisso keynesiano com o pleno emprego, estabelecendo um esquema de garantia de emprego para assegurar que o capital humano não seja desperdiçado nem corroído durante a transformação econômica que se aproxima.

Mais especificamente, um New Deal modernizado significa prestar atenção tanto à direção do crescimento quanto à sua taxa. Significa inclinar o campo de jogo em uma direção mais verde, que exige não apenas projetos do tipo “shovel-ready” ou pronta-entrega em infraestrutura limpa, energia renovável e outras formas de descarbonização, mas também demanda uma visão de como projetar e coordenar projetos como parte de um novo caminho de crescimento sustentável. Precisamos, também, de novos incentivos para direcionar o investimento privado na direção certa. Impostos, regulamentos e outras políticas públicas devem estar alinhados para promover o planejamento de longo prazo e reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em toda a economia. Essa abordagem — da gestão econômica voltada para uma missão — renderia um maior retorno para o investimento público, tanto diminuindo o multiplicador negativo nas recessões de qualquer negócio, quanto aumentando o multiplicador positivo de qualquer recuperação nos negócios.

O Estado oco

Como John Maynard Keynes observou em meados da década de 1930, “A dificuldade reside não nas novas ideias, mas em escapar das antigas, que se ramificam em todos os cantos de nossas mentes”. Hoje, o principal fracasso do modelo econômico predominante — particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido — tem sido o descaso com os bens públicos. Embora seja essencial para o funcionamento adequado da economia, o setor privado carece de qualquer incentivo para fornecê-los. É por isso que Adam Smith argumentou em A Riqueza das Nações que o Estado tem o dever de fornecer a infraestrutura da qual depende a economia de mercado. E à medida que a lista de bens públicos se expande para incluir o acesso a dados e tecnologias digitais, precisamos nos tornar mais ambiciosos em fornecer o que os cidadãos precisam para prosperar.

A ortodoxia contemporânea, no entanto, subordina esse dever ao de equilibrar o orçamento do governo. A responsabilidade de desenvolver os recursos reais da economia é simplesmente abandonada em nome de um imperativo financeiro que, na verdade, só se aplica às famílias. Embora as famílias precisem equilibrar os orçamentos ao longo do tempo, os governos deveriam criar orçamentos para equilibrar a economia, garantindo a utilização total da capacidade produtiva. É crucial, para ressuscitar a noção de bens públicos, garantir que eles não sejam meramente “correções” para falhas de mercado, mas sim elementos centrais na interação entre governo e empresa privada. Uma lógica estreita de manutenção de mercado deve abrir espaço para uma lógica de criação e modelagem de mercado mais proativa.

A ortodoxia predominante repousa em duas presunções supostamente axiomáticas: que o investimento público é uma forma de desperdício e, portanto, deve ser minimizado; e que as economias de mercado têm uma tendência espontânea para alcançar o pleno emprego (definido como a taxa “natural” de desemprego). A partir desses axiomas, conclui-se que somente quando os mercados não podem alocar recursos de forma eficiente é que o investimento público deve ser usado para suavizar “atritos”.

A crise financeira de 2008-09 já expôs a fragilidade desse modelo. No Reino Unido, entre 1975 e 2000, o investimento público bruto como parcela do PIB caiu de 8,9% para 1,7%. Como resultado, mais gastos com investimentos foram direcionados à especulação, onde não só foram desperdiçados, mas provocaram instabilidade, contribuindo para uma sequência de crises financeiras.

A crise do covid-19 tornou as falhas do modelo ortodoxo ainda mais óbvias, ao ressaltar a grave deficiência de bens públicos, desde a infraestrutura básica de saúde até equipamentos de proteção individual. A ortodoxia prescreveu a privatização, a proteção de patentes e a terceirização de funções críticas do governo em quase todos os domínios relevantes, desde pesquisa e desenvolvimento em medicina e tecnologia até transporte, saúde e educação. Depois de anos de cortes de gastos, muitos governos ocidentais estavam completamente despreparados para administrar um choque como o que ocorreu este ano.

Assim que a covid-19 surgiu, também surgiram os sinais da putrefacção, desde as críticas lacunas nas cadeias de abastecimento até a pouca e inadequada capacidade do Estado. Em todo o mundo ocidental, os governos reuniram tudo o que tinham para responder à pandemia, mas foi tarde demais. Construir capacidade estatal suficiente requer anos de investimento constante e ponderado, não apenas “dinheiro de helicóptero” despejado na economia em resposta a uma emergência. Além disso, essa oferta insuficiente é produto da falta de demanda. As economias têm operado bem abaixo da capacidade total desde a crise de 2008. Em 2018, o Reino Unido pode ter tido uma taxa de desemprego de “manchete” — de 4,2% — mas sua taxa de subemprego, que inclui aqueles que trabalham em tempo parcial e que são incapazes de garantir empregos de jornada completa, estava mais perto de 8% (e esse número exclui aqueles que foram forçados a trabalhar abaixo de seu nível de habilidade).

Aprendemos a lição?

Mas como os governos permaneceram mais em dívida com a contabilidade financeira do que com a de recursos reais, durante a Grande Recessão, eles perderam a oportunidade de começar a mudar a atividade econômica numa direção mais sustentável e inclusiva. Pior, muitos abandonaram as medidas de estímulo ao crescimento, inibindo a consolidação fiscal. No caso do Reino Unido, Simon Wren-Lewis, da Universidade de Oxford, estima que a austeridade tenha atrasado a recuperação da economia por até três anos, exatamente como o keynesianismo elementar teria previsto. E embora a política monetária tenha permanecido expansiva, ela não compensou a política fiscal contracionista do país.

Em sua defesa, o Banco da Inglaterra alegou que a situação teria sido ainda pior se eles não tivessem bombeado recursos como fizeram. E ainda, nessa busca por comprar ativos, os legisladores apenas colocavam dinheiro “novo” nas mãos dos detentores de ativos existentes, que tinham menos probabilidade de gastá-lo. A menos que a criação de dinheiro esteja ligada à criação de oportunidades na economia real, a maior parte da liquidez fornecida pelo banco central acabará no setor financeiro — exatamente como aconteceu depois de 2008.

As lições da última crise são evidentes: a marginalização da função de investimento estatal privou os legisladores das ferramentas necessárias para lidar com um evento inesperado ou estabilizar a economia, quanto mais posicioná-la para um crescimento sustentado. O investimento público é essencial não apenas para “consertar” as falhas do mercado, mas também para impulsionar os gastos de capital intensivo e de alto risco necessários para a inovação — e, portanto, para o próprio desenvolvimento de capital. Pode ser alavancado tanto desde o lado da oferta — com investimentos em projetos transformadores, que apresentam riscos grandes demais para uma empresa privada — quanto do lado da demanda, por meio de políticas de compras públicas.

Segundo o Consenso de Washington, que é neoliberal, são essas funções estatais que foram amplamente “terceirizadas” para os mercados — voluntariamente, no caso dos países desenvolvidos, e como uma condição de apoio financeiro nos países em desenvolvimento (que foram então renomeados como “mercados emergentes”). A desregulamentação do setor financeiro e do mercado de trabalho, a privatização de empresas estatais e a austeridade fiscal foram as prescrições de uma fórmula supostamente universal que combina micro e macroeconomia e deve ser aplicada independentemente do estágio de desenvolvimento de um país.

A economia neoliberal segue a “lei” do economista dos inícios do século XIX, Jean-Baptiste Say, de que a oferta cria sua própria demanda. A implicação é que, ao eliminar a influência política indevida sobre os incentivos econômicos, o mercado garantirá a criação de valor ideal. A política, portanto, torna-se uma corrida para diminuir o papel de modelagem do mercado do Estado, enquanto ignora amplamente a relação do mundo real entre oferta e demanda — particularmente a escassez de oferta e de demanda.

Mas a isenção neoliberal também se baseou seletivamente na “economia do bem-estar”, que atribui um papel aos governos para consertar as coisas quando os resultados se desviam do ideal do mercado perfeito. Essa referência analítica, combinada com o medo do inevitável “fracasso do governo”, garantiu que a recuperação do mercado nunca chegasse ao nível de renovação do mercado. É o mercado, e não o Estado, quem sempre recebeu o benefício da dúvida.

Mercados e missão

Agora que o COVID-19 expôs os danos causados pelo paradigma anterior, é hora de começar a mapear uma nova era de investimento público para remodelar nosso cenário tecnológico, produtivo e social. O novo modelo deveria abraçar a compreensão de que nossas economias estão sempre evoluindo em alguma direção, em vez de apenas se expandir no vácuo. Deixadas por conta própria, as economias de mercado tendem a favorecer atividades de curto prazo ou de rentismo — daí as tendências radicais de financeirização e desindustrialização testemunhadas nas últimas quatro décadas.

Em contraposição, nas economias de mercado com governos voltados para alguma missão, os gastos públicos e a formulação de políticas direcionarão as atividades para a realização de metas socialmente desejáveis, e não só para o mero crescimento a seu próprio favor. Para além dos Estados Unidos da era do New Deal, um bom exemplo real do novo modelo é a Nova Zelândia, cujo governo adotou um “orçamento de bem-estar” para alinhar as decisões de gastos públicos com objetivos mais amplos.

Uma abordagem orientada por essa missão também permite uma nova forma de estímulo fiscal direcionado. O objetivo é começar com um desafio de grande escala, como a mudança climática, e dividi-lo em objetivos políticos concretos, como alcançar emissões zero em uma determinada região, em uma data específica. Com as metas estabelecidas, toda a força dos subsídios do governo, empréstimos e contratos de aquisição podem ser empregados para alavancar o potencial combinado dos setores público, privado e não governamental.

Para evitar objeções previsíveis, essa abordagem orientada para a missão não envolve escolher vencedores e perdedores em termos de setores, tecnologias ou empresas; em vez disso, a ideia é escolher problemas específicos e permitir que soluções surjam por meio de um processo ascendente de experimentação e inovação em todos os setores. O mesmo processo também criará novas oportunidades de emprego. Alcançar a neutralidade de carbono em uma determinada região, por exemplo, exigiria novas formas de colaboração entre energia, transporte, materiais, o digital, a tecnologia, a infraestrutura e outros setores, bem como novos tipos de empregos para reaproveitamento, reutilização e reciclagem de recursos e capital existentes.

A criação de empregos, e o lado da demanda de maneira mais geral, é onde o segundo pilar da nova constituição fiscal entra em ação. Uma transição econômica suave exigirá um programa de empregos no setor público que busque gerar uma base tributária sustentável por meio do “crowding in” [efeitos dos gastos públicos sobre o investimento privado] da atividade econômica que, de outra maneira, a crise teria deixado ociosa. Na verdade, o pleno emprego genuíno deve ser considerado um bem público.

Afinal, uma pessoa empregada aumenta não apenas sua própria renda, mas também a da comunidade em geral, aumentando suas compras. Quando as pessoas estão em subempregos ou desempregadas, têm menos renda para impulsionar a demanda na economia, deixando todos em situação pior. 

Em 1948, o (futuro) economista ganhador do Prêmio Nobel Paul Samuelson apontou que “o sistema fiscal moderno tem ótimas propriedades de estabilização automática”. Quando a economia desacelera, o déficit orçamentário aumenta automaticamente; quando a economia se recupera, o déficit cai automaticamente. Para preservar essa estabilidade inerente, ele argumentou que “nenhuma atitude deve ser tomada para equilibrar o orçamento em uma desaceleração”. Mas, como o próprio Samuelson observou, “um estabilizador embutido atua para reduzir parte de qualquer flutuação na economia, mas não elimina 100% da perturbação. Ele deixa o resto do distúrbio para ação discricionária fiscal e monetária resolverem.” 

O mercado radical

No caso da recuperação de hoje, tal ação discricionária deveria incluir um programa de emprego público (PEP), nos moldes que o Levy Economics Institute, com sede nos EUA, descreveu. Isso constituiria um estabilizador anticíclico muito mais poderoso que o sistema descrito por Samuelson, mas também representaria uma continuação das políticas inauguradas pelo New Deal de Roosevelt. 

Entre 1935 e 1943, a Administração de Progresso de Obras dos EUA (WPA, na sigla em inglês) empregou 8,5 milhões de norte-americanos e ofereceu quase todo tipo de trabalho imaginável, desde construção de infraestrutura e extermínio de pragas até a produção de livros em braille e apresentações nas maiores sinfonias do mundo. Da mesma forma, o Corpo de Conservação Civil (CCC) foi projetado para oferecer trabalho a cerca de um milhão de jovens desempregados em projetos que incluíam “a prevenção de incêndios florestais, inundações e erosão do solo, controle de pragas e doenças em plantas, construção, manutenção ou reparo de vias, trilhas e saídas de incêndio nos parques nacionais e florestas nacionais, e outros trabalhos … que o presidente possa determinar como desejáveis. ”

Em nosso próprio esboço para um PEP, o governo do Reino Unido garantiria emprego a uma valor/hora fixo (não inferior ao salário mínimo nacional) para qualquer candidato a emprego ou adulto em idade produtiva que não encontre vagas no setor privado. Se concentraria na criação de empregos em áreas cruciais para conduzir a economia em direção a uma transição verde e forneceria programas de treinamento para que os trabalhadores do PEP pudessem obter ou manter suas de habilidades, preparando-os assim para empregos no setor privado. 

Além disso, um PEP robusto ofereceria quatro vantagens importantes sobre o status quo. Em primeiro lugar, criaria um estoque regulador do mercado de trabalho que se expande e se contrai automaticamente com o ciclo de negócios, limitando variações discricionárias nas despesas. Portanto, apoiaria a demanda agregada e, ao mesmo tempo, protegeria contra a possibilidade de gastos públicos inadequados (devido a previsões ruins ou interferência política indevida). 

Em segundo lugar, um PEP manteria a empregabilidade dos trabalhadores melhor do que um seguro-desemprego, e poderia ser prontamente acoplado ao treinamento no local de trabalho – um fator importante na recuperação econômica e no crescimento a longo prazo. 

Em terceiro lugar, esses funcionários do PEP seriam pagos a uma taxa fixa, estabelecendo assim um piso para os salários do setor privado. Se o salário PEP fosse definido pelo salário mínimo nacional, não haveria necessidade de legislação de salário mínimo e todos os custos de conformidade decorrentes. E, como Pavlina R. Tcherneva, do Levy Economics Institute, argumenta, se o salário do PEP fosse fixado acima do salário mínimo, teria até um efeito distributivo benéfico. 

Por fim, o PEP pode ser usado para influenciar a estrutura geral de empregos, direcionando talentos e recursos para os objetivos previstos no Green New Deal. 

O paradigma do Programa de Emprego Público

Num esboço paa o Reino Unido, o programa seria financiado nacionalmente, mas seria administrado localmente por várias agências: governos, ONGs e empresas sociais. Cada um teria a tarefa de criar oportunidades de emprego “no ponto” onde fossem mais necessárias (cuidado ambiental, cívico e humano), atendendo às necessidades da comunidade com pessoas desempregadas ou subempregadas. 

Haverá empecilhos, é claro; e como todas as novas ideias, será preciso romper a barreira do pensamento arraigado. A noção de que as economias tendem naturalmente ao pleno emprego é um tipo de ortodoxia que os eventos históricos já deveriam ter provado totalmente errada. No entanto, permanece enraizada nas condições cada vez mais duras exigidas para o recebimento de benefícios de desemprego, com a suposição implícita de que o problema é sempre a relutância dos desempregados em trabalhar, e não a escassez de empregos. Em qualquer caso, um PEP superaria esses debates morais proporcionando trabalho ou treinamento a todos os que estivessem dispostos e capazes, aliviando assim a necessidade dos benefícios de desemprego.

Um PEP é, para concluir, uma ideia inerentemente biosustentável, porque aborda duas formas cruciais de negligência econômica e devastação na economia: a do capital natural e humano. Portanto, não deve ser visto apenas como um programa de consumo anticíclico, mas também como ingrediente essencial no que a especialista em tecnologia Carlota Perez chama de “crescimento verde inteligente”.

A economia carece de capacidade produtiva atualizada, enquanto uma grande parte de sua força de trabalho permanece subempregada e mal remunerada. Mas com políticas salariais inclusivas e demanda agregada mais forte, as empresas terão de investir em equipamentos mais inteligentes. Espremer os trabalhadores precários não será mais uma opção viável para sustentar os lucros corporativos.

A revolução da tecnologia da informação e os principais avanços em energia renovável dos últimos anos mostraram que a inovação gera novos produtos, serviços, materiais e modos de vida — e todos geram empregos. A ortodoxia neoliberal ignorou a necessidade de transformar o antigo capital em novo, e por isso, agora estamos econômica e socialmente mais pobres.

É hora de reiniciar os ciclos virtuosos de forte demanda e alto investimento, com foco no crescimento verde e alinhamento adequado do lado da oferta e da demanda da economia. Uma nova constituição fiscal, garantida por meio de um PEP, fornece a base. Não devemos desperdiçar esta chance de reformar as economias para o bem das pessoas e do planeta.