domingo, 1 de novembro de 2020

A rolha virou: o lado que lambia o vinho teve de ceder o seu lugar para o outro lado, que vivia no seco

 A rolha virou: o lado que lambia o vinho teve de ceder o seu lugar para o outro lado, que vivia no seco

Nivaldo T. Manzano (01/11/2010)

O Chile terá a primeira constituição do mundo a assegurar de forma igualitária (50%) a participação de homens e mulheres. Será a primeira vez das mulheres a redigir de igual para igual a redação de uma Carta, desde a Constituição chilena de 1833, elaborada com exclusividade, como era costume em toda parte, por machos conservadores.
No contexto atual da luta popular contra o regime neoliberal, essa conquista das mulheres deve-se à sua liderança nas grandes manifestações do “rechazo” nos últimos doze meses, ao governo elitista e autoritário do bilionário presidente Sebastián Piñera. O vigor do movimento feminista, que já vinha ganhando robustez desde 2010, rebentou em 08 de março de 2020 na maré de dezenas de milhares de jovens, que encheram as ruas de Santiago (https://brasil.elpais.com/.../milhares-de-mulheres... ), quando a capital chilena passou a ser celebrada como o epicentro mundial da luta contra o machismo. Na país em que até recentemente o divórcio era proibido, foi somente depois de dezenove anos de campanha da oposição feminina que o Senado - que ainda abriga resquícios pinochetistas, como a vitaliciedade de senadores -, aprovara a Convenção Contra Todas as Formas de Discriminação às Mulheres.
Tendo estado presente em Lisboa na Revolução dos Cravos, em abril de 1974, sentado à mesa de um bar para um café, ouvi do dono dirigir-se a mim apontando para um jovem garçom: “Ele está eufórico, porque pensa que a rolha virou”. “Rolha virou”? Estranhei a expressão até me dar conta de seu significado: a ponta da rolha que lambia o vinho no tempo da ditadura teve de ceder o seu lugar à outra ponta, que vivia no seco. Era a revolução que chegara.
Estou convencido da iminência da virada da rolha na América Latina. Nas eleições da Bolívia, de 18 de outubro de 2020, as mulheres conquistaram 20 das 32 cadeiras do Senado, dentre elas a maioria de origem ameríndia. No Brasil, em que pese a aparente passividade política, será o movimento das mulheres, em especial as negras, que irá destronar de seu mando multissecular a Casa Grande, para ceder lugar à democracia da solidariedade, sob a direção comunitária da Senzala.
Rogério Fernando Furtado

O valor transcendental da dúvida e das paquera

 O valor transcendental da dúvida e das paquera

Nivaldo T. Manzano (01/11/20)

“O sonho da razão produz monstros” (Goya)
Poucas ideias na história da humanidade continuam a inspirar no bestunto tanta estupidez e violência fratricida quanto a de racionalidade, na sua acepção de propriedade distintiva do homo sapiens superior a todas as demais, acima da intuição, dos sentimentos, das emoções, da ética e da estética. Em especial na atualidade, a racionalidade é alçada à condição de condão responsável por separar a civilização da barbárie, um cajado de Moisés a abrir o mar ao meio e conduzir o povo eleito à terra prometida. Como marco da Idade Moderna na Filosofia, esse cajado foi utilizado por René Descartes (1496 – 1650) como único meio legítimo de se chegar ao conhecimento, e por Immanuel Kant (1724 – 1804), como despertador que acordou o ser humano de seu sono dogmático em que se encontrava desde a expulsão do Paraíso, até que o Altíssimo o tivesse feito renascer em Koeningsberg (hoje Kaliningrado), circunstância geografia somente comparável, no diapasão religioso, a Belém, onde nasceu Jesus.
A razão, entronizada como deusa na Catedral de Notre Dame, em Paris, na Revolução Francesa, está na base da ideologia dominante na atualidade, da escolha racional, segundo a qual o indivíduo, calculista de nascimento, age visando a maximizar a realização de seus fins, com vistas a obter a maior satisfação possível de suas ambições e interesses pessoais. Está aí a justificativa da competição social fratricida, que o pensamento liberal, na sua versão atualíssima, consagra como a única regra a regular a “sociedade de mercado”, regra copiada da mesma que regulava a luta entre os gladiadores no Circo Romano, de cuja arena ninguém poderia sair vivo.
Será assim? Em reação às luzes do Iluminismo, que professava, Goya chama à atenção o “sueño de la razón” que “produce monstruos” (leia aqui o belíssimo ensaio “Luz e razão – a sede de Goya” https://www.ifch.unicamp.br/.../PDFTrabs/MI-Osonodarazao.pdf
A propósito desse evangelho utilitarista, de cálculos sobre os custos e benefícios, o filósofo norueguês Jon Elster (1940 - ) arrola mais um desmentido, demolidor como os demais que o precederam, ao advertir para o equívoco de se pretender hierarquizar os valores humanos. Como pano de fundo de sua crítica, Elster investe contra o modelo positivista (funcionalista), que preside à pesquisa científica na Academia contaminando todos os saberes, incluída a ecologia, considerada como um economista em busca do equilíbrio ótimo na alocação dos recursos disponíveis, em sua programação linear, com vistas à maximização dos ganhos e minimização dos custos. Ao destituir esse imediatismo palmar do comportamento humano, Elster propõe em seu lugar a maximização da uma estratégia global, o que implica uma tomada de distância (descolar-se do veredito supostamente implacável dos algoritmos), mediante a contenção do impulso “racional”, para permitir a entrada em ação da criatividade. E apresenta o seu argumento inspirado na sabedoria de Homero, um epítome do pensamento grego na antevéspera do advento da filosofia no Ocidente.
Elster está longe de ser um irracionalista: dedica a sua obra a remover o caráter hierárquico e excludente da primazia da racionalidade, para colocá-la, como o quiseram os gregos com a ideia de logos*, ao pé de igualdade com os demais valores. Para ilustrá-la, recorre ao episódio da Odisseia em que Ulisses ordena a seus marinheiros que o amarrem ao mastro da nau, para não sucumbir à sedução do canto das sereias, na expectativa de retornar à casa, onde o esperava a esposa Penélope (Leia-se “Ulissses e as sereias”, Lisboa, Estampa, 1994). Ao utilizar essa metáfora, Elster destitui, assim, o imediatismo palmar atribuído ao suposto comportamento humano dos meios e dos fins racionais, e propõe em seu lugar a adoção de uma estratégia global, o que implica a inclusão, no processo de decisão, de uma tomada de distância (descolar-se do veredito dos algoritmos), para permitir a entrada em ação da criatividade, que não se dissocia da intuição e dos demais valores.
A consciência da distância (ensaio e erro, hesitação, dúvida, imaginação, fantasia, sonho, simulação, paquera) expressão do caráter não causal, não mecânico e não determinista da ação do cérebro sobre a mente, é de suma atualidade no momento em que o bilionário Elon Musk anuncia o seu projeto de alcance trilionário, confiado à sua empresa Starlink, de vincular DIRETAMENTE um chip colado ao computador, permitindo que o comportamento humano seja acionado à distância pelo dr. Strangelove, sem que intervenha o livre arbítrio, à exceção do controlador que controlaria todos os demais, reduzidos a autômatos.
• A noção de racionalidade, como faculdade humana dissociada dos demais valores distintivos da existência, deriva na história da cultura ocidental de um “erro” não deliberado na sua tradução do grego para o latim, por ausência de termo correspondente. O logos expressa a união inseparável, porém distinta, entre razão, intuição, sentimentos, ética e estética.
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