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sexta-feira, 21 de junho de 2024
Quine bbb
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O ASPECTO PRAGMÁTICO DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM
DE W. V. O. QUINE
Vera Lúcia Caldas Vidal
Departamento de Filosofia – UFRJ
Utilizando-se a definição de pragmática proposta por
Carnap – 'conjunto de investigações sobre a linguagem em que se faz
referência explícita aos usuários’1 – pode afirmar-se que a Filosofia da
Linguagem de Quine apresenta um aspecto nitidamente pragmático o qual
se revela na afirmação que inicia o prefácio de sua obra Palavra e Objeto:
'A linguagem e uma arte social. Para assimilá-la, dispomos
somente de alguns indícios sugestivos intersubjetivamente disponíveis, que
indicam o que se pode dizer e em que circunstâncias’.
Sua preocupação com o sujeito falante e com os atos de fala
acentua-se ainda mais quando, logo a seguir, afirma que a única abordagem
válida da noção de significado lingüístico é em termos das
'disposições a responder a estímulos observáveis socialmente'.
Esta afirmação revela a forte influência behaviürista recebida
especialmente de Skinner, embora discorde de certos pressupostos do
behaviorismo lingüístico. Também fica expresso aí o seu projeto de
construir uma teoria científica do significado alicert'ada em fatos
observáveis e de domínio público, pois acredita que o significado é
inseparável do comportamento do sujeito falante.
Este projeto é reforçado em outro texto no qual propõe que se
Husserl A crise das ciências europeias
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/Husserl.pdf
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/Husserl.pdf
sujeito, pessoa, indivíduo, cristianismo bb para criticar
file:///C:/Users/HOME/OneDrive/Documentos/comunidade%20civil%20e%20crist%C3%A3.pdf
1.2. A pessoa no horizonte da revelação judaico-cristã
Há também uma história do conceito de pessoa na compreensão
da revelação judaico-cristã. Por questão de espaço, contentemo-nos com
alguns referenciais bíblicos a modo de conceituação.
A tradição judaica do AT define o ser humano, não como espécie,
mas indivíduo-imagem-de-Deus (Gn 1,27). Por isso, será sempre um ser
digno de respeito e veneração, jamais manipulável ou meio para algum
fim. Adão não um simples animal que evoluiu, nem um espírito caído do
céu. Ele é, sim, a porção de terra que evoluiu e, ao mesmo tempo, o sopro
vivo de Deus (Gn 2,7), que o torna capaz de falar com Deus, de fazer
aliança com ele (depois o fariam Noé, Abraão ou Moisés: Gn 2,15-17;
Gn 9,8-17; 17,1-17; Ex 24,1-8), de encontrar-se com ele em uma relação
Cf. APEL, K. O. La transformación de la filosofía, 2 vols., Madrid 1985 (ver Vol. II, p.
149ss). 10 Cf. LEVINAS, E. Totalidad e infinito, Salamanca 1977, p. 101ss. 11 Cf. RICOEUR, P. Soi-même comme un autre, Paris 1990, cap. VIII e IX. 12 Cf. CAFFARENA, J. Gómez. “Persona y ética teológica”, op. cit., p. 168-172.
mútua e exclusiva. Essa relação única e exclusiva de Deus com cada um,
dando-lhe um nome irrepetível, faz do ser humano indivíduo e pessoa
(Gn 15,1; 22,1; Ex 3,4; Jr 1,11; Am 7,8).
O NT radicaliza ainda mais o valor pessoal de cada indivíduo.
Cristo torna-se o modelo de pessoa, com sua relação única com Deus (Cl
1,15; Hb 1,3). Por sua vez, cada ser humano é irmão de Cristo, sua
imagem, filho de Deus no Filho (Rm 8,29; Col 1,18-20; Gl 3,26-29).
Criatura co-criadora, cada pessoa é chamada a continuar a obra do Pai e
de Cristo, transformando o mundo até que ele chegue à sua plenitude
(Rm 8,18ss) e a colocar seus valores pessoais a serviço da comunidade
(Mt 20,28). Cristo trouxe-nos o Espírito, que é fonte de liberdade para
cada um, libertando-nos dos condicionamentos escravizadores e
convocando-nos para a edificação de um mundo novo, inspirado no amor
e na liberdade (2Cor 3,17s). Os pobres e abandonados são os primeiros
nessa eleição privilegiada de Deus (Mt 11,25-30; 22,8-9)13 .
O Concílio Vaticano II também fez da antropologia um de seus
temas. Entre outros, afirma que a pessoa, dotada de dignidade (GS 26;
DH 1), em razão de sua sublime vocação para a comunhão com Deus
(GS 19), merece reverência e respeito (GS 27), pois Deus a respeita (DH
11), mesmo quando ela erra (GS 28). É um ser de relações sociais (GS
12; 25), sem as quais não pode viver (GS 12 e desenvolver seus talentos
(GS 12; 25). É sujeito de direitos invioláveis (DH 6), que devem ser
respeitados em qualquer regime político (GS 29). É princípio, sujeito e
fim de todas as instituições sociais (GS 25; 29).
1.3. Perspectiva de ação hoje: a personalização 1.3. Perspectiva de ação hoje: a personalização
No âmbito da pessoa, segundo as Diretrizes da CNBB, o grande
desafio na atualidade consiste na reconstrução da identidade pessoal e na
conquista de uma liberdade autêntica, na sociedade consumista (DGAE
65-68).
Identidade pessoal
A identidade do ser humano se tece na conjugação harmônica entre
sua natureza individual e social. Desfaz-se esta harmonia, quando a pessoa
se fecha no egoísmo ou se deixa absorver ou é agredida pelo universo
exterior. A pessoa se afirma pelo dom. Os vínculos se estreitam quando
através deles cresce a pessoa. Individualismo, desenraizamento cultural
pela migração ou êxodo, ecletismo religioso, modismos, relativismo ético,
etc. são sintomas de perda de identidade. Ações como acolhida e orientação,
aconselhamento pastoral, atenção às necessidades básicas, educação
permanente e integral, formação do espírito crítico e outras podem
contribuir na reconstrução da identidade pessoal (DGAE 85).
Liberdade autêntica
Elemento essencial da identidade pessoal é a liberdElemento essencial da identidade pessoal é a liberdade, que faz
dela, ao mesmo tempo, única e um fim em si mesma. A pessoa é o ser
irrepetível, diferente de qualquer outro e incapaz de ser suprimido por
outro, com uma vocação e tarefa própria na história. Na pessoa, dá-se a
conexão entre o universal e o particular, a unidade do universal e do
infinito, constituindo-se base de direitos inalienáveis e fundamento de
sua dignidade. A pessoa é um ser que comporta em si mesmo um destino
a uma finalidade. É o eterno do temporal, o infinito do finito, o espírito da
matéria. E tudo isso, por causa da liberdade que lhe é constitutiva e a
torna sujeito de responsabilidades.
Essa valorização da pessoa, raiz de direitos inalienáveis, deve
estender-se a todas as circunstâncias, mesmo aos casos extremos, em que
a pessoa não se manifesta na plenitude de suas faculdades. Sobre o ser
humano não se pode aplicar critérios utilitários.
Mas, a dimensão social da pessoa, não se limita a esse encontro
profundo com sua dignidade personalizada. Ser pessoa é abrir-se no
respeito ao outro, a todos, considerando-os iguais e irmãos na dignidade
humana. Dignidade que se expressa na igualdade de oportunidades em
suas relações sociais e políticas. Brota, daí, a grande tarefa da
personalização de grandes contingentes de nossa população,
menosprezados em sua condição de explorados ou excluídos. A
personalização de uns poucos não pode estar justificada pela escravidão
das maiorias. O grande escândalo é o do ‘não-homem’14 , oprimido pela
sociedade – o escravo, o explorado, o pisoteado, o estrangeiro, o pobre social-econômica-política-racial e culturalmente. Cada pessoa vale tanto
quanto qualquer outra, por isso, aos mais abastados pesa a maior
responsabilidade de serem promotores da radical igualdade de todos.
Segundo as Diretrizes da CNBB, ações pastorais, tais como: uma
sólida pastoral da juventude, promotora da formação de uma personalidade
madura face aos desvios sexuais, drogas e consumismo ilusório (DGAE
85); uma evangelização inculturada, no diálogo intercultural, através do
conhecimento e da promoção do intercâmbio das tradições culturais
(DGAE 92); pastoral da comunicação e presença pública da Igreja junto
à sociedade (DGAE 103); etc., podem contribuir para a conquista de
uma liberdade autêntica, na sociedade consumista.
2. A realização no âmbito da comunidade
A comunidade é essencial na vida e no desenvolvimento de uma
pessoa. Com efeito, todo ser humano nasce no seio de uma comunidade,
a família, e dependerá desta para o desenvolvimento de suas possibilidades.
Só consegue personalizar-se e tomar consciência do mundo e dos outros,
através do encontro pessoal e de amor no seio de uma comunidade concreta.
Da mesma forma em que é no encontro do “eu” com um “tu” que desperta
a consciência pessoal, a harmonia fundamental da pessoa depende da
aprendizagem do gerenciamento de seus conflitos no seio de uma
comunidade, transformando-os em relações amorosas15 . A Igreja quer
ser um espaço de realização da vocação cristã, enquanto comunidade,
ícone da Trindade16 2.1. História e evolução do conceito
Em linhas gerais, o conceito de comunidade pressupõe uma
pluralidade de indivíduos que se unem e se inter-relacionam com vínculos
pessoais. A comunidade se diferencia da sociedade pelo fato de que não
se forma pelas relações jurídicas ou pelos simples objetivos comuns, mas
fundamentalmente pelas relações interpessoais entre seus membros. Não basta a simples sintonização em torno de objetivos comuns, com
colaborações mútuas ocasionais; nem as relações de proximidade e
afetividade difusa, que podem dar-se em aglomerações de massas. A
comunidade sempre apresenta uma dimensão de amor e, a eclesial, também
de fé, que liga e enriquece seus membros.
Entretanto, em muitos casos, as fronteiras entre sociedade e
comunidade permanecem ambíguas. Neste sentido, pode-se dizer que o
conceito de comunidade é igualmente recente, pois depende do
desenvolvimento do conceito de pessoa. Só há comunidade quando há
indivíduos personalizados. O desenvolvimento da vivência comunitária
está ligado ao processo de personalização de seus membros. Em muitos
aspectos, a própria família, historicamente, foi mais uma sociedade com
fins econômicos e sociais, que condição de uma autêntica comunidade,
inspirada pelo amor. Sobretudo na cristandade medieval, pode-se falar
de um desenvolvimento de relações predominantemente de massas, que
se caracterizavam mais pela proximidade e pela ação conjunta do que
por formas mais individualizadas e personalizadoras. A própria Iga Igreja
caracterizou-se, neste período, mais como massa de batizados do que
como verdadeira comunidade de irmãos.
A comunidade comporta numerosos níveis e formas diversas. A
família é certamente a comunidade natural mais espontânea e fundante.
A própria experiência eclesial depende dela. Daí, pode-se passar para
comunidades mais amplas; no campo social, como a de uma associação,
município, de uma pátria ou até mesmo da humanidade inteira; e, no
campo eclesial, como a da “Igreja doméstica”17 (grupo de famílias),
comunidade de base, paróquia, diocese, enquanto “comunidade de
comunidades” (Puebla). A própria humanidade, do ponto de vista religioso,pode ser concebida como comunidade, quando alicerçada sobre vínculos
personalizadores desde pequenas comunidades, à medida em que o amor
e a fé aproximem todos os membros em torno a vivências comuns.
Contudo, deve-se levar em conta que a comunidade, enquanto
integradora de indivíduos personalizados, é inevitavelmente espaço da
exteriorização de tensões entre o indivíduo e o grupo. Por um lado, está a comunidade como expansão da pessoa em um amplo grupo de indivíduos,
que se superam para além de suas diferenças; por outro, estão pessoas,
com suas identidades diferenciadas e livres. Além disso, o egoísmo e o
pecado podem agravar esta situação. Neste caso, só a abertura ao diálogo
sincero pode levar à comunidade, em que, o comum não anula a dimensão
interior e profunda de cada um de seus membros18 .
2.2.A comunidade no horizonte da revelação
judaico-cristã
Na tradição judaica do AT, as relações comunitárias e a dimensão
interpessoal não se encontram muito desenvolvidas. A comunidade
religiosa estava indissoluvelmente ligada à organização política do povo.
Os vínculos essenciais entre os membros do povo eram estabelecidos
pela vocação religiosa (Dt 7,7-8). Somente em uma etapa posterior é que
começa um ‘resto’ ou comunidade a se diferenciar da multidão do povo
(Is 4,3; Jr 23,3-4)
No NT a dimensão cNo NT a dimensão comunitária da religião e da vida é posta em
relevo. A acolhida da própria mensagem pressupõe uma profunda
personalização, que sente sua vocação pessoal diante de Deus como única
e transcendente. A mensagem cristã se resume na fé e no amor a Deus,
mas que passa pela comunidade dos irmãos. A obra de Cristo é
precisamente um Reino de amor, que tem na Igreja seu sacramento. Para
isso, ele escolhe apóstolos que o acompanhem (Mc 3,14-15) e com eles
vive em especial intimidade, através da qual lhes foi revelando os mistérios
do Reino (Mc 6,30-31; 7,17; 4,10-11). É pela mediação desta comunidade
que surge a fé em Cristo (Mc 8,27ss; Mt 16,13-17), que se vive a nova
experiência do amor e do serviço (Mc 9,33-35; 10,41-45) e que se começou
a nova experiência missionária (Mc 6,6ss; Lc 9,1-2). A Igreja, nascida a partir da experiência pessoal, também surgiu na vivência comunitária
dos discípulos reunidos na experiência do novo encontro com o Senhor
(Lc 24,33-35; Jo 20,19; Mt 28,16ss). Os novos convertidos aderem ao
sacramento da comunidade e, por meio desta adesão, participam dos dons
de Cristo (At 2,41). Toda a experiência da difusão do cristianismo reside
na irradiação evangélica das comunidades cristãs, através das quais se
experimenta o novo e contagioso amor de Cristo (At 4,32), nas quais o Espírito dinamiza e faz sentir a experiência antecipada do Reino (At 4,ss).
As novas comunidades acolheram milhares de discípulos que buscavam
um mundo novo e seu fermento conseguiu transformar a face do mundo
(At 14,22ss; 18,7-8; 19,9ss). As cartas de Paulo constituem testemunhos
vivos das comunidades em que se vivia o cristianismo com uma unidade
capaz de superar os antagonismos de raça, classe social, de tradições
religiosas e de culturas (Fm 8,12; 1Cor 7,17-24; 12,12-13; Fl 1,7;
1,27ss)19 .
O tema da comunidade é muito presente no Concílio Vaticano II,
tanto no sentido eclesial como no social. Os textos falam que a comunidade
humana forma uma só família (GS 24), análoga à vida intratrinitária (GS
24); a vida comunitária é uma exigência da própria natureza humana,
que é um ser social (GS 12; 25; AA 18); por isso, o imperativo de respeitar
a dignidade da pessoa humana no ‘outro eu’ (GS 27), mesmo que seja
adversário (GS 28) ou até inimigo (GS 28). Reconhecer a igualdade
essencial entre todos (GS 29), implica superar a ética individualista (GS
30) e considerar como dever principal as relações sociais (GS 30), pois
Deus não criou o ser humano para viver isoladamente, mas os reúne em
seu Povo (GS 32).2.3. Perspectiva de ação hoje: refazer o tecido eclesial
Segundo as Diretrizes da CNBB, o grande desafio no âmbito da
comunidade é a fragmentação da vida e a busca de relações mais humanas
(DGAE 111).
Na esfera eclesial, longe de fundamentalismos ou saudosismos,
pode-se afirmar que a marca comunitária do cristianismo foi
gradativamente sendo perdida, na medida em que a Igreja foi difundindo
a fé cristã no encontro com os povos da cultura greco-romana. Sobretudo
quando o cristianismo tornou-se ‘religião’ oficial do Império Romano,
começou a predominar uma vivência mais de massa e multidões do que
de comunidade. Da experiência da fé em ‘Igrejas domésticas’, passa-se
às peregrinações, à presença de multidões nas grandes catedrais, às
procissões. As relações interpessoais passaram a ceder lugar ao impacto
emotivo de eventos massivos. Os sacramentos, símbolos de uma
comunidade de fé, passam a ser sinais sociológicos da pertença a uma Com o advento da modernidade, a fragmentação do comunitário
se acirra. A irrupção do indivíduo e da liberdade de consciência opera
uma privatização da religião na esfera do pessoal. O intimismo reduz o
religioso à dimensão invisível e anti-social da pessoa, perdendo-se toda a
riqueza do encontro comunitário. Em momentos o racionalismo frio, em
outros seu antagonista, o intimismo, substituem a autêntica vivência Na contemporaneidade, o sistema liberal-capitalismo acirrou ainda
mais o individualismo, fragmentando as experiências e instituições
comunitárias como um todo, a começar pela família. A pessoa se perde
no anonimato dos poderes do Estado e das instituições políticas e
econômicas. No campo religioso, as grandes tradições perdem terreno
para grupos religiosos autônomos, que tendem a fazer de Deus objeto de
desejos particulares. Cada vez mais as pessoas têm dificuldade de crer
com os outros e naquilo que os outros crêem. A experiência religiosa se
volta para o emocional, conformando comunidades invisíveis e virtuais,
de ‘cristãos’ sem Igreja.
A grande tarefa neste âmbito é ajudar os indivíduos a dar o passo
do pessoal para a comunidade, como forma de superação do individualismo
egoísta. A relação “eu-tu” precisa desembocar num “nós”, seja no eclesial,
como no social, acima de particularismos estreitos e estéreis. Esta tarefa
implica abertura para a colaboração, para o trabalho em equipe, para a
organização social e a amizade a ser travada nas lutas da vida. Só
verdadeiras comunidades podem contribuir na construção de uma
sociedade solidária. Para isso, urge a oferta de oportunidade de encontro,
de prática solidária e experiências de amizade, bem de espaços de educação
ao relacionamento solidário e fraterno (DGAE 123). Desafia a renovação 3. A realização no âmbito da sociedade
A realização da vocação humana e cristã se dá quando o indivíduo
sai de si e torna-se pessoa e, na seqüência, transcende-se na comunidade
para, finalmente, com os outros, fazer-se servidor de todos na sociedade.
Indivíduos atomizados ou massificados, não podem exprimir toda a riqueza
de seu ser. Tornam-se pessoa pela comunidade. Mas como membros da
humanidade e cidadãos universais, necessitam também da sociedade para
realizarem-se, nela sintam-se livres e participem na construção de um mundo para todos. A vocação humana advoga para a convivência de
cidadãos livres, numa sociedade livre, justa e solidária. A Igreja, enquanto
comunidade, igualmente só cumpre sua missão, na medida em que se faz
missionária, sai de si, e exerce um serviço na sociedade, o espaço de
edificação do Reino de Deus, que não é uma realidade intimista. Vaticano
II põe a Igreja nesta perspectiva: inserir-se no seio da sociedade, numa
atitude de diálogo e serviço a todos, em especial os mais pobres. 3.1. História e evolução do conceito
A sociedade é o espaço dos cidadãos. A cidadania está ligada
essencialmente à consciência dos direitos cidadãos, direitos individuais e
sociais. Esta consciência tem sua evolução histórica.
a) A invenção da cidadania
Vejamos, brevemente, alguns tópicos do processo de invenção da
cidadania.
Do direito primitivo ao direito moderno
Segundo Max Weber, nas sociedades primitivas, encontramos um
direito carismático, revelado pelos profetas ou autoridades religiosas,
que interpretavam a vontade de Deus e dos heróis míticos fundadores.
Não existe ainda o conceito de normas objetivas, independente dos
costumes. No direito tradicional, a lei é imposta por poderes seculares
ou teocráticos. As normas são tomadas como dadas, como convenções
transmitidas pela tradição. É ainda um direito particularista; não está
baseado em princípios legais universais. O direito natural inaugura o
Direito Moderno (séc. XVII e XVIII), baseado em princípios, tidos como
emanados da natureza humana. As normas são promulgadas segundo
princípios estabelecidos livremente por acordos racionais. O ser humano
passa a ser visto como portador de direitos univ universais que antecedem a
instituição do Estado.
A afirmação de um direito racional, universalmente válido, levou
à necessidade de codificação de um estatuto legal, de organização de um
sistema lógico e à corporificação do direito como sistema. Entretanto,
só a partir do século XX estas codificações passaram a ser feitas a partir
de certos acordos entre os diversos atores sociais, num espírito mais
democrático. Nos regimes absolutistas, os direitos do indivíduo são
concebidos como dádiva do soberano, em face ao direito divino dos reis.
Então, o Estado Leviatã é defendido (Hobbes) como a única maneira de evitar a anarquia social, pois “o homem é o lobo do homem”. No século
XIX, o positivismo considera o Estado como fonte central de todo o Direito,
concebido a partir de um paradigma ideal, fixo e imutável, fora de seu
contexto social, escamoteando os interesses que se ocultavam por detrás
da exaltação da razão21 .
Do direito de Estado ao estado de direito
A idéia de que os cidadãos podem organizar o Estado e a sociedade
de acordo com sua vontade, baseada na razão, desconsiderando as
tradições e os costumes, foi uma das grandes bandeiras do Iluminismo.
Na linha do “Contrato Social” de J. Rousseau, o princípio da legitimidade
dinástica é substituído pelo princípio da soberania popular. Invertendo a
relação tradicional de direitos dos governantes e deveres dos súditos, agora
o indivíduo tem direitos, e o governo obriga-se a garanti-los. É o nascimento do Estado de Direito, em que se passa do ponto de
vista do príncipe para o ponto de vista do cidadão. No Estado despótico,
o indivíduo só tem deveres, e não direitos. No Estado absoluto, os
indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado
de Direito, o indivíduo tem, não só direitos privados, mas também direitos
públicos. O Estado de Direito é o Estado de Cidadãos22 .
O que é cidadania
Segundo a concepção de T. H. Marshal, a cidadania é composta
dos direitos civis e políticos (direitos de primeira geração), e dos direitos
sociais (direitos de segunda geração)23 Os direitos civis, conquistados no séc. XVIII, correspondem aos
direitos individuais de liberdade, igualdade, propriedade, de ir e vir, direito
à vida, segurança, etc. São os direitos que embasam a concepção liberal
clássica. Já os direitos políticos, alcançados no séc. XIX, dizem respeito
à liberdade de associação e reunião, de organização política e sindical, à
participação política eleitoral, ao sufrágio universal, etc. São também
chamados direitos individuais exercidos coletivamente.
Os direitos de segunda geração – os direitos sociais, econômicos
– foram conquistados no século XX, a partir das lutas do movimento operário e sindical. São os direitos ao trabalho, saúde, educação,
aposentadoria, seguro-desemprego, enfim, a garantia de acesso aos meios
de vida e bem-estar-social. No que se refere à relação entre direito de
cidadania e o Estado, existiria uma tensão interna entre os diversos direitos
que compõem o conceito de cidadania. Enquanto os direitos de primeira
geração – civis e políticos – exigiriam, para sua plena realização, um
Estado mínimo, os direitos de segunda geração – direitos sociais –
demandariam uma presença mais forte do Estado para serem cumpridos.
Na segunda metade de nosso século, surgiram os chamados “direitos
de terceira geração”. Trata-se de direitos que têm como titular, não o
indivíduo, mas grupos humanos como o povo, a nação, coletividades
étnicas ou a própria humanidade. É o caso do direito à autodeterminação
dos povos, direito ao desenvolvimento, direito à paz, direito ao meio
ambiente, direito das minorias, direitos das mulheres, dos jovens, das
crianças, dos anciãos, etc Já se fala hoje de “direitos de quarta geração”, relativos à bioética,
para impedir a destruição da vida e regular a criação de novas formas de
vida em laboratório pela engenharia genética.
Assim, os cidadãos ou a cidadania são sujeitos de direitos -
individuais e sociais, que, se por um lado, devem ser promovidos e
respeitados, por outro, precisam ser protegidos e defendidos pela própria
cidadania, através da organização e ação da sociedade civil.
b) Sociedade civil
a) Evolução do conceito
Na Antiguidade, há o conceito aristotélico de Politike koinonia,
traduzido para o latim por societas civilis – sociedade civil. Na Idade
Média, a societas civilis não distinguia a sociedade do Estado. Na Idade
Moderna, está associada a um corpo político onde liberdade e razão
deveriam coexistir, fundadas na concepção de contrato social. No século
XIX, Hegel a concebe como uma instância intermediária entre o Estado,
regulador das relações entre indivíduos e, instituições privadas, que se
comportam segundo seus interesses próprios. Para ele, sociedade civil
implica determinações individualistas e a procura de um princípio ético
que jamais poderia vir do mercado, mas sim das corporações. Para Marx,
sociedade civil não significa instituições intermediárias entre a sociedade
e o Estado, no sentido de uma diferenciação entre Estado e sociedade,
mas a fusão de ambos.Nos anos 70, a noção de sociedade civil muda consideravelmente.
Ela ressurge como uma oposição ao Estado, não para acabar com ele e
com o mercado, mas para fortalecer as formas societárias de organização.
A partir dos anos 80, em função da perda de prestígio dos partidos
políticos, aumentou o fosso entre o sistema institucional de representação
no plano do Estado e a chamada sociedade civil organizada. As associações
da sociedade civil assumiram o papel de formadoras da opinião pública e
constituidoras da opinião coletiva nos espaços situados fora do Estado e
do mercado. A noção de sociedade civil passa a ser compreendida em
oposição não apenas ao Estado, mas também ao mercado. Os atores da
sociedade civil organizados em movimentos sociais cumprem função
pública, absorvendo a ação comunitária existente no mundo da vida e
levando-a ao nível da esfera pública. Defendem o interesse público e se
constituem como instância de crítica e controle do poder.
Mais recentemente, novas formas de ação social transformadora
emergiram no mundo: movimentos populares, que centrados em temas de
democratização, cidadania, liberdades identidade cultural, etc., assumiram
a forma de organizações não-governamentais (ONGs), particularmente
transnacionais. Nas últimas décadas, tornaram-se importantes peças de
apoio aos programas de desenvolvimento. Nos países em desenvolvimento,
elas beneficiam cerca de 250 milhões de pessoas. Elas atuam nos planos
local, nacional, regional e internacional. Em muitos países, as ONGs
ajudam a formular as políticas públicas. Em outros, seu papel é importante
para fiscalizar projetos governamentais, por exemplo24 .
Conceituação atual
A sociedade civil, hoje, tende a autocompreender-se como a esfera
de interação social entre a economia e o Estado, composta pela esfera
íntima (família), pela esfera associativa (associações voluntárias) e pelos
movimentos sociais. Portanto, ela não engloba toda a vida social. A
sociedade política (Estado) constitui-se de partidos, organizações políticas,
parlamentos, etc. A sociedade econômica compõe-se de organizações de
produção e distribuição, como empresas e cooperativas, firmas, etc.
. Mais
bem, as sociedades políticas e econômicas surgem da sociedade civil.
Entretanto, enquanto os atores da sociedade política e econômica estão
diretamente envolvidos com o poder do Estado e com a produção econômica visando o lucro, que eles buscam controlar e gerir, o papel da
sociedade civil não está diretamente relacionado à conquista e controle
do poder, mas à geração de influência na esfera pública cultural.
Para isso, joga um papel importante a sociedade política. O papel
mediador da sociedade política entre a sociedade civil e o Estado é
indispensável, assim como o enraizamento da sociedade política na
sociedade civil. Daí a relevância da busca de formas de exercício de uma
democracia participativa. O mesmo deve ocorrer entre sociedade civil e
sociedade econômica, ainda que sua influência seja bem menor que sobre
a sociedade política. Ainda assim, a legalização dos sindicatos e o papel
das negociações coletivas testemunham a influência da sociedade civil
sobre a vida econômica e acabam desempenhando, por sua vez, um papel
mediador entre sociedade civil e o sistema de mercado2
3.2.O horizonte da revelação judaico-cristã,
na Doutrina Social da Igreja
Para a Doutrina Social da Igreja, a essência social do ser humano
deriva de sua própria limitação como indivíduo. Surge, assim, a família
como complementação do indivíduo. O mesmo acontece no campo do
trabalho, no qual somente através da colaboração de muitos é que se
pode realizar grandes tarefas, que satisfaçam as necessidades comuns.
Do mesmo modo, a organização política, que ajuda os indivíduos na
administração dos bens comuns e na sua proteção. Em resumo, a
cooperação social consegue em comum, o que nunca os indivíduos
conseguiriam sozinhos.
Entretanto, através da integração e complementação dos esforços
comuns, a sociedade não se limita a agrupar os indivíduos. A partir das
comunidades, ela consegue alcançar uma especificidade própria, capaz
de novas e diferentes conquistas. Neste sentido, o fato do ser humano
estar constituído simultaneamente por uma dimensão individual e social,
historicamente tem levado a concepções extremas. Por um lado, aparece
o individualismo que, ao considerar o indivíduo como um ser independente,
põe os interesses e objetivos dos indivíduos acima dos da sociedade. Nee. Nesta
perspectiva, a sociedade civil não é necessária, pois restringe as liberdades
eclesial comunitária.
individuais. Por outro lado, aparece o coletivismo, para o qual a pessoa
se reduz a uma peça na engrenagem da sociedade, submetida a seus fins
pré-determinados. Então, subjuga-se a liberdade, visando apenas o
fortalecimento e a organização do coletivo.
Na perspectiva cristã, a sociedade não constitui uma limitação das
pessoas e das comunidades, mas sua autêntica complementação. Ao
contrário do que preconiza o individualismo, não há autêntica liberdade
senão dentro da sociedade, pois é aí que a pessoa pode desenvolver sua
força criadora e social. E, ao contrário do coletivismo, antes de a pessoa
ser membro de um Estado, ela pertence a um povo. É nessa dimensão
mais espontânea e natural que sua liberdade amadurece e se desenvolve.
Povo está ligado a solo, sangue, história, cultura, a formas peculiares de
organização social, etc. Povo constitui nação, que não se confunde com
Estado. O Estado é o resultado do ordenamento jurídico da autoridade a
serviço do bem comum. Pode pressupor um ou vários povos. A isso o
Estado acrescenta a unidade relacional superior, que engloba e configura
as unidades relacionais inferiores, dirigindo-as no sentido de um bem que
seja comum a todos.
No horizonte do Con3.3. Perspectiva de ação hoje: refazer o tecido social
Segundo as Diretrizes da CNBB, o grande desafio no âmbito da
sociedade é o escândalo da exclusão e da violência na sociedade consumista
(DGAE 151).
No horizonte da Doutrina Social da Igreja, a sociedade deve regerse pelo princípio da solidariedade, segundo o qual a pessoa existe para a
comunidade e para a sociedade e, estas, para a pessoa. Cada pessoa é
responsável pelo bem comum na sociedade. E, a sociedade, não tem outro
objetivo senão buscar uma vida digna para as pessoas. Além deste, cabe
à sociedade reger-se igualmente pelo princípio da complementariedade,
segundo o qual ela deve ajudar a complementar a ação das pessoas ou
comunidades, naquilo em que elas não são capazes. É a busca do bem
comum, que consiste na estruturação e organização social adequadas,
capazes de somar os objetivos, esforços e ideais de todos os membros da
sociedade.
Nesta perspectiva, importa hoje reconstruir sem cessar o tecido
social, que as tendências anarquistas e totalitárias, bem como a
mercantilização das relações humanas e institucionais, operadas pelo
sistema liberal capitalista, tendem a fragmentar e destruir. Importa lutar
contra a lógica de uma sociedade engendrada pela cultura tecnológica.
Uma das missões mais importantes da Igreja, hoje, é a defesa das pessoas
e comunidades, assim como a defesa da sociedade em seus ‘corpos
intermediários’, organizados enquanto sociedade civil, diante do poder,
seja do sistema financeiro e do grande capital, seja dos Estados
‘herodianos’, que se limitam a garantir o progresso econômico de uns
poucos. O sistema liberal capitalista tende a submeter as pessoas e as
comunidades a seus objetivos pragmáticos, uniformizando povos e
culturas. Defender as culturas agredidas por modismos hegemônicos e os
valores populares ameaçados de desaparecimento, é uma das missões
mais prementes da Igreja hoje.
Por outro lado, cabe pressionar o Estado a cumprir com sua
finalidade, que é a de estimular as forças adormecidas ou excluídas da
sociedade a promover um desenvolvimento solidário, organizando os
diversos setores sociais e mobilizando-os em vista da superação da fome
e da miséria. As sociedades dos países subdesenvolvidos têm sua situação
agravada em virtude das grandes diferenças na distribuição dos bens naturais e dos recursos econômicos, dos grandes desníveis e de educação
e capacitação técnica, do desemprego, o déficit habitacional, etc. Essas
desigualdades aumentam a violência, contribuindo para a instabilidade
da situação social.
Mas, não bastam ações no âmbito dos Estados nacionais. É preciso
desencadear ações em rede, de alcance mundial, encurtando distâncias
entre os povos e contribuindo para a criação de uma comunidade
internacional, regida por uma instância de autoridade racional comum.
Só um poder de todos, consertado em nível internacional, é capaz de
regulamentar conflitos internacionais e alcançar uma relação justa e
igualitária entre os povos
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