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terça-feira, 4 de março de 2025
POR QUE LEIO COISAS ASSIM?
POR QUE LEIO COISAS ASSIM?
Nestes tempos ásperos, de grosseria, arrogância, impolidez, incivilidade, desrespeito, rudeza, ignorância empafiosa, encontro oportunidade de catarse (será?) na leitura de biografias de tipos oportunistas, malandros, argentários, bajuladores, ladrões de casaca, golpistas, matreiros, campeões da dissimulação e outras adjetivações elevadas à enésima potência, integrantes da mesma constelação semântica, que se alçaram aos píncaros do prestígio junto às cortes europeias nos séculos XVII e XVIII, tendo sido responsáveis por decisões políticas que mudaram o destino de Estados, em razão de suas habilidades de dar nó em pingo d'água. Refiro-me a Joseph Fouché, por exemplo, que saltou dos jacobinos, na sua amizade com Robespièrre, na Revolução Francesa, ao Diretório e ao Imperio, como escudeiro, conselheiro e chefe de polícia de Napoleão Bonaparte, um mágico da calhordice, natureza de réptil, provavelmente a personalidade pública mais odiada em seu tempo, que mereceu memórias escritas com fel por todos os que experimentaram o dissabor e a repulsa moral de lhe estar próximo nas suas incumbências institucionais. Ao nteressado, sugiro a leitira de "Fouché", por Stefan Zweig, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, livro de sebo, barato. Outra biografia, verdolenga do mesmo fel é a de Nicolas Fouquet, nobre francês, jesuíta, bispo, ministro na Revolução Francesa e no Império Napoleônico, considerado como fundador da polícia política e conhecido como "o judas da Revolução" (Veja-se a página do google de acessos ao seu nome). O terceiro é o cardeal Giulio Mazarino (1602- 1661), tutor de Luis XIV, herdeiro intelectual nas artes diplomáticas do cardeal Richelieu. Mazarino, envolvente, se valeu de sua conversa labiosa para estar junto ao leito da raínha Ana de França, ocasiões em que ela que lhe abria as portas de acesso ao saque financeiro que praticou no convívio dos poderosos que frequentou. As suas peripécias de golpes ladinos encontram limite na imaginação. Mas o que me provocou sincero engulho foi a leitura de seu "Breviário dos políticos", um vademecum, como sugere o título, com recomendações aos principiantes, de um cinismo tal que me fez arrepiar a pele e sustar a leitura a meio caminho, algo que não me ocorrera antes. Reconheço, porém, que há estômagos mais fortes do que o meu. Nivaldo Manzano
PARA O SER HUMANO A NORMA
PARA O SER HUMANO A NORMA É A CAPACIDADE DE MUDAR DE NORMA" (Georges Canguilhem)
Passam-se os anos, e algumas ideias sedimentam-se em mim com a intensidade de um encantamento. Todas elas têm como referência última a existência, que não tem outra referência senão a si mesma. Existir é inventar-se a si mesmo, movido pelo desejo de permanecer no que se é, diferentemente, como diz Espinosa. O filósofo diria que existir é conjugar os verbos e advérbios modais nas suas infinitas flexões. Desejo sair de mim mesmo em busca de outrem, como objeto do desejo, que retorna à minha consciência como exponenciação da variedade dos modos de existir, mediante a representação de novos papeis, um reflexo caleidoscópico de minhas potencialidades, nas quais busco realizar-me, recorrentemente. A felicidade não está no fim da viagem, a última estação. Nessa visão de mundo, o que importa é o MODO de viajar.
Em contraste, as ontologias - todas elas - buscam agarrar-se a um pau de enchente metafísico, inseguras e medrosas de si mesmas. Toda ontologia, assim como a Bíblia, desdobra-se numa narrativa, com começo, meio e fim. E para tanto impõe-se uma visão do tempo como transcurso entre o antes e o depois. Para nós, ocidentais, a aferição costumeira do tempo é a do relógio mecânico (agora digital), que faz do tempo algo à disposição do ser humano à maneira de um taxi estacionado no ponto, à espera de percorrer um caminho que se estende à sua frente, antes de se anunciar para onde pretende ir. Tanto esse sentimento é premente na atualidade, que se fala em TRAJETÓRIA de vida, uma metáfora retirada da Física, que descreve o deslocamento de um corpo, se consciente, rumo a um objetivo determinado. Não há ideologia que não comece por submeter à sua forja a noção de tempo. Assim, Platão, em sua República, contrapondo-se ao tempo cíclico do mito, inaugura no Ocidente o tempo LINEAR. Com Platão, somos advertidos de que é preciso chegar a algum lugar determinado, não se admitindo mais que o caminho se faça ao caminhar, como escreve o poeta espanhol Antonio Machado, possivelmente inspirado na sabedoria do Tao. Que lugar é esse de Platão? Sabem-no os filósofos, que ele elegeu para conduzir a cidade (Estado). Assim, com o tempo linear, caberá a uns mandar e aos demais obedecer. O tempo linear é o do progresso automático, da ontologia, do messianismo, da utopia, que tem aqui a função de gerar, alimentar e manter o estado de salivação feérica em que se debate a vítima, em resposta à expectativa de uma existência que se frustra, porque lhe é oferecida em migalhas, fragmentos de uma experiência que se quer plena a cada instante. Trata-se de uma ontologia associada ao monoteísmo, que se converte em modelo na Mecânica newtoniana, sob a égide do deslocamento, uma ontologia que é tambem uma ÉTICA, a ÉTICA DO DEVER SER, que se impõe indistintamente à maçã de Newton e ao ser humano. A opção de "liberdade" assim oferecida a ambos é a mesma: dizer sim à lei da gravidade, como se para o ser humano a norma não consistisse na capacidade de mudar de norma, para sintonizar-se com o seu contexto, em estado de mudança. Por não admitir o tempo como vivência interior, assim como ocorre em outras culturas, como no Oriente ou entre os ameríndios, o tempo linear impõe-se na sua pretensão objetivista de modo autoritário e excludente. E esse é o tempo que prevalece na atualidade, o tempo do status quo, o tempo dos meritocratas que crescem à custa de puxar para cima os próprios cabelos, o tempo do mercado autorregulável, o tempo do Capital. /// A questão sobre outras modalidades do tempo, além do tempo linear, fica para uma outra postagem. Nivaldo Manzano
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