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segunda-feira, 1 de julho de 2024
Mitologia grega bbbb
Mitologia grega bbbb
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0101-31062012000100011&script=sci_arttext
É preciso ter um caos dentro de si
Para dar à luz uma estrela cintilante.
(Nietzsche, 1956, p. 13)
Na Grécia arcaica, meados do século VIII ao final do século VI a. C., Homero, em especial pela revolução intelectual da Ilíada, é considerado o primeiro poeta épico que confere à religião grega a sua forma histórica (Vegetti, 1993, p. 237). As epopeias homéricas – a Ilíada e a Odisseia – evidenciam as características e as peculiaridades do modo de viver do grego antigo, no momento histórico de início do processo de desenvolvimento de suas cidades-estados, as poleis democráticas. Homero estabelece a visão olímpica da existência, expressão imediata do deus Apolo de Delfos que, como princípio ético, se caracteriza por uma conduta de respeito à individualidade, viabilizada pelo autoconhecimento e manutenção da serenidade, pois os antigos gregos preconizam a "justa medida" – disposição valorativa que requer a proporção e a moderação em todas as circunstâncias da vida. Essa visão de mundo enuncia a instauração social da disciplina ética apolínea, pois a relação intrínseca entre a beleza plástica e a harmonia do ânimo se encontra na sabedoria de vida descrita por Homero. Em prol da implantação e consolidação da harmonia na ordem social, os códigos da justiça entre os homens da Hélade preconizam que todo grego deve seguir as prédicas apolíneas: "Nada em excesso" e "Conhece-te a ti mesmo" que indicam: "Reconhece que não és um deus" (Burkert, 1993, p. 294), inscritas no pórtico de Delfos. Essas regras deveriam proporcionar a estabilidade e a segurança de um mundo sustentado pelo apego aos aspectos ordenados da natureza, perante a qual se passa a viver em estado de respeitabilidade e harmonia. E, como a Antiguidade não possuía uma Bíblia nem uma igreja, eis por que Apolo surge para preencher o vazio, pois a sociedade grega arcaica "teria sido insuportável sem a segurança de um conselheiro divino onisciente, segurança de que por detrás do caos aparente havia conhecimento e finalidade" (Dodds, 2002, p. 81).
O poeta Hesíodo, inspirado em Homero, sistematiza a escrita da genealogia divina do panteão olímpico, na obra Teogonia. Nela, ele relata os primórdios de um complexo processo que dará origem ao cosmo, e às divindades que o presidirão. Três Forças Primordias, Kháos, Gaîa e Éros, surgem de maneira autônoma e constituirão o mundo. Essas entidades são, ao mesmo tempo, forças naturais e divindades. Além disso, Hesíodo esclarece que nem o universo e nem o que existe nele foram criados pelos deuses gregos; pelo contrário, universo, deuses e homens nascem juntos, num movimento de diferenciação das potências primordiais:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
(Hesíodo, 2011, vv. 116-120, p. 111).
No princípio era o caos. Na origem de tudo, há o Abismo, Kháos para os gregos. "Caos é a personificação do vazio primordial, anterior à criação, no tempo em que a ordem ainda não tinha sido imposta aos elementos do mundo" (Grimal, 2005, p. 73). É o vazio escuro em que nada se distingue: "Espaço de queda, vertigem e confusão, sem fim, sem fundo" (Vernant, 2000, p. 17). Portanto, na mitologia grega, o estado primordial do mundo é apenas esse Caos, abismo cego, noturno, ilimitado que evoca uma espécie de névoa opaca em que todas as fronteiras perdem nitidez. Mas, Caos, divindade rudimentar, é também capaz de fecundidade. A palavra "caos" pode ser definida, filosoficamente, como vazio obscuro, profundidade insondável que precede e propicia a geração do mundo. Caos gera Érebo e a Noite, Nyx. A Noite é a deusa das trevas, a mais antiga das divindades; da sua união com o irmão Érebo nascem o Dia e o Éter. Sozinha, a Noite gera outros entes, como a Morte, o Sono, o Destino, a Velhice, a Miséria e a Discórdia. Caos, Noite e Érebo se unem e procriam pela intervenção de uma força divina: Eros, ou o Amor. Eros é o deus da união e tem como adversário Anteros, que representa a apatia, a aversão, a separação e a desunião. A tensão entre Eros e Anteros garante a evolução do mundo e o impede de permanecer atado ao Caos.
Depois de Caos aparece a Terra, a deusa Gaîa para os gregos. Embora emerja do seio de Caos, Terra representa, em certos aspectos, o seu contrário, pois Terra não é mais o espaço de queda escuro, indefinido, mas uma forma distinta, precisa. À confusão e à indistinção de Caos se opõem a nitidez e a estabilidade de Gaia. Ela é o chão do mundo, nossa morada, o cosmo. "Gaia é a mãe universal" (Vernant, 2000, p. 18). Florestas, grutas subterrâneas, ondas do mar, vasto céu, é sempre Gaia, a Mãe-Terra. Mas, sob o solo firme de Gaia existe o Abismo. No mais profundo da Terra se encontra o aspecto caótico original. Ela é, também, a Terra negra.
Após Caos e Terra aparece Éros, o Amor primordial. O Éros que surge em terceiro lugar não é o que preside os amores sexuados. Ainda não há masculino e feminino, não há seres sexuados. O Eros primordial não é aquele que virá depois, com a existência dos homens e das mulheres, dos machos e das fêmeas. O primeiro Eros expressa um impulso no universo.
Kháos é uma palavra neutra, e não masculina. Gaîa, a Mãe-Terra, é feminina. Mas, quem ela pode amar fora de si mesma, já que está sozinha ao lado de Caos? Se Terra vem de Caos, dela brotará, de forma obscura, pela sua força íntima, sem se unir a ninguém, o que já está dentro de si e que, ao sair dela, se torna seu duplo e seu contrário. Em primeiro lugar, Oranós, Céu e até mesmo Céu estrelado, uma réplica tão sólida como ela. Então, Úrano, do mesmo tamanho da Terra, se deita sobre ela e mantém uma noite contínua. Terra e Céu constituem um chão e uma abóboda que se cobrem completamente. Depois, Terra traz ao mundo Póntos, a água, a Onda do Mar, que a completa e a limita com suas vastas superfícies líquidas. Mas, Onda do Mar é, também, pura fluidez disforme e inapreensível: suas águas indistintas e confusas se misturam com a Terra. Na superfície Póntos é luminoso, porém, em suas profundezas, a escuridão é total, o que o vincula, como a Terra, ao Caos. Após Gaia produzir Úrano, seu duplo simétrico, temos a presença de um casal de contrários. Úrano é o Céu e Gaia é a Terra. Na presença de Úrano, Amor age de outro modo. Úrano primordial não tem outra atividade além da sexual: deitar-se sobre Gaia, incessantemente. Da conjunção dessas duas forças nascem seres diferentes, os seis Titãs e suas seis irmãs, as Titânidas. Krónos, o caçula dos Titãs se casa com Reia, com quem gera três filhos, dentre os quais Zeus. A teogonia e a cosmologia atingem sua forma definitiva com o surgimento de Zeus, em latim deus, que, ao se tornar soberano, completa o quadro divino e o da origem do universo (Kitto, 1970, p. 32). Neste mundo em que potências, forças, poderes se opõem e lutam entre si, em um dado momento um soberano impõe sua lei. A cosmogonia, na versão de Hesíodo, se centra na assunção do poder supremo por Zeus, que reúne elementos fundamentais de soberania que o distinguem dos seus antecessores: "nele e por ele, em sua realeza, a potência e a ordem, a violência e o direito, reconciliados, conjugam-se" (Lesky, 1995, p. 31). Assim, no topo do Olimpo, dominando o universo, temos Zeus soberano, pai dos deuses e dos homens, com sua esposa legítima, a irascível Hera, sua própria irmã. Logo, segundo essa visão, do caos, da desordem originária se destaca um poder soberano que institui e fixa a ordem do mundo.
O período que transcorre entre Homero e os poetas trágicos – século V a. C. com o surgimento da tragédia –, apresenta uma mudança significativa no sentimento religioso grego que se manifesta na tragédia, decorrente da problematização instaurada pelos tragediógrafos acerca do lugar do homem, do limite e da responsabilidade de sua ação diante do mundo divino. Os poetas trágicos inauguram um questionamento sobre a sujeição dos homens aos deuses. Decorre daí que, na tragédia, a tensão no vínculo entre os deuses e os homens se torna um conflito, que será vivido, na própria pele, pelo herói trágico (Romilly, 2001, p. 95).
A tragédia grega surge atrelada ao culto do deus Dioniso, patrono da tragédia. Friedrich Nietzsche afirma que "é uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio" (Nietzsche, 2001, p. 66). Os heróis trágicos são representações de Dioniso e a tragédia encena os seus sofrimentos e sua dilaceração. Distinto dos cultos olímpicos, o ritual dionisíaco traz o êxtase e o despedaçamento. Filho da mortal Sêmele e de Zeus, "Dioniso revela-se ao mesmo tempo deus da fertilidade e da morte" (Eliade, 2010, p. 339). "Seu modo de ser exprime a unidade paradoxal da vida e da morte" (Eliade, 2010, p. 351). Eros e Thanatos são seus traços. Deus da contradição, da ambiguidade, oscila para o alto, explodindo em grandeza: é festivo, multialegre, carnavalesco, proporciona uma confraternização idílica entre seus seguidores que são arrastados para a manía, na comunhão feliz de uma idade de ouro reencontrada; e, ao mesmo tempo, para baixo, pois como deus do subterrâneo, mostra sua outra face, a das trevas: é terrível, cruel, vingativo e conduz aqueles que o negam para a confusão caótica de um horror aterrador (Vernant, 2002, p. 235). O cerne das reflexões de As Bacantes, de Eurípedes, recai sobre Dioniso, que traz em seu bojo a dimensão da alteridade, do estrangeiro, da desordem, do caos – tudo o que Dioniso representa na vida humana e no cosmo. Ele simboliza o aspecto inapreensível e desorientador do sagrado. Nesta tragédia, Dioniso adulto volta a sua terra natal Tebas, onde deseja ser cultuado. Porém, o rei tebano Penteu, seu primo, se opõe à religião dionisíaca em que os devotos se transmudam naquilo que possuem de mais erótico, de mais sensual, de mais atrelado à vida. "Dioniso é um deus à parte, (...) e ocupa até mesmo no panteão o lugar de 'estranho estrangeiro'. Entre os deuses e entre os homens, assume a figura do Outro" (Vernant, 2002, p. 235). "Por isso dispensavam a Dioniso um culto diferente do que reservavam às demais divindades olímpicas: estas existiam fora deles, enquanto Dioniso tomava vida e atuava em seus corações" (Civita, 1973, p. 226). O princípio violento de seu culto é o abatimento da presa nos rituais de sparagmós – despedaçamento –, e de omofagia, gozo de comer a carne humana crua. "A natureza é sparagmós, sempre despedaça para refazer", "Sparagmós é partilhar, partir o pão ou o corpo" (Paglia, 1992, p. 100). A aristocracia não aceita o culto a Dioniso, "pois a experiência religiosa que suscitava punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores. Tratava-se, sem dúvida, da supremacia ameaçada da religião olímpica e suas instituições" (Eliade, 2010, pp. 339-340). A teogonia olímpica é que deveria ser venerada. Ao se recusar a venerar Dioniso, Penteu é despedaçado pelas mulheres, enfurecidas pela embriaguez do vinho. Esse episódio mítico constitui o tema de As Bacantes. Assim, na Antiguidade grega, "o estilo clássico é sempre uma derrota de Dioniso (...). É a forma resgatada de dissolução oceânica da mãe terra. (...) A grande arte clássica é simples, serena, equilibrada. Mas, Dioniso, amarrado por Apolo, sempre escapa e volta para vingar-se" (Paglia, 1992, p. 101). A mãe, na tragédia grega, não é Gaia, com sua dança entre seus elementos opostos, mas Medeia, força mortífera.
Na tragédia, o homem passa a ser o cerne da reflexão. Os tragediógrafos denunciam a hierarquia e a finitude a que o homem está submetido: um mortal cujo destino está nas mãos apaixonadas dos deuses que, conforme o estado de ânimo, o atiram de um lado para o outro. Os deuses gregos, possuidores de características humanas, são temperamentais, visto estarem inseridos no páthos e, portanto, enlouquecem, se vingam, castigam e tratam os mortais como marionetes. Além disso, desde a mitologia grega, Moira, heirmarmene, no singular, designa o destino. Na Ilíada, representa a lei que paira soberana sobre deuses e homens, e que nem mesmo Zeus está autorizado a transgredi-la sem interferir na harmonia cósmica. Na Odisseia, temos as fiandeiras. Homero afirma que "homem nenhum, porém, foge à Moira, mau ou bom, desde o dia em que nasce" (Homero, 2003, vv. 488-489, p. 261). Assim, uma das características fundamentais dos deuses gregos é que suas ações e decisões são determinadas pelas Moiras, filhas de Caos e da Noite, segundo certa versão, e divindades do destino que estão acima dos deuses e dos homens. Na origem, cada homem tem a sua Moira, a parte de felicidade e de desgraça que a ele cabe neste mundo. As Moiras, quase cegas, são três irmãs: Cloto, Láquesis e Átropos. Por tecerem às cegas, ao acaso o destino dos deuses e dos homens são as responsáveis pela sorte ou azar dos homens, pela duração de suas vidas e seu quinhão de atribulações e sofrimentos. Elas tecem belas tapeçarias em que cada fio representa a vida de um indivíduo, e cada fio cortado, a morte. Cloto, em grego do verbo "fiar", é a fiandeira que tem nas mãos a trama do destino humano, pois tece a teia da vida ao segurar o fuso e puxar o fio da vida; Láquesis, "sortear", é a que sorteia o fio que será cortado; e Átropos, que significa "sem volta", "inflexível", corta implacavelmente o fio que representa quem morrerá. As Moiras evidenciam, assim, a existência da fatalidade, da sina no destino humano, algo que o grego não podia evitar; restava a ele se debater, com coragem, areté, numa luta incessante. No Mênon, Platão diz que a "virtude, areté, não é nem inata nem ensinável, mas é distribuída pela sorte divina (Moira) e sem entendimento àqueles que foram sorteados" (Schopenhauer, 2001, p. 191). Em síntese, os deuses gregos não detêm pleno poder nem sobre a própria vida nem sobre a dos humanos, pois são passíveis de serem submetidos a regras desconhecidas e imponderáveis das Moiras, que não enxergam nitidamente, mas com opacidade, os destinos que estão tecendo. A Moira, o acaso, é a responsável pelo destino do herói; é a Moira que impede ou concede à divindade o auxílio ao herói no campo de batalha. Cabe ressaltar, portanto, a presença não só do caos, como também do acaso, que se impõe nas tragédias gregas, como um dos elementos que caracterizam o trágico grego.
Na tragédia grega, a excitação do ânimo dos expectadores tem a função de que eles sintam a entrada do herói trágico como uma figura encarnada, nascida da visão extasiada deles próprios, e não como um homem informe mascarado. Tal fenômeno se espraia de forma epidêmica e todo o público se sente enfeitiçado pelo sofrimento e morte do herói, causados pela sua hybris, e consequente hamartia, o erro trágico que desencadeia, como punição, a peripécia. A elevação dionisíaca provoca na multidão, por meio da empatia, o reconhecimento da queda e a catarse dos sentimentos de terror e compaixão, conforme Aristóteles (Aristóteles, 1966, p. 74), diante da reviravolta no destino do herói. No ditirambo "se ergue diante de nós uma comunidade de atores inconscientes que se encaram reciprocamente como transmudados" (Nietzsche, 2001, p. 57). O trágico, para os gregos antigos, é a tomada de consciência da experiência da hybris, da desmesura dos homens em suas ações, é a experiência do desejo entusiasta e furioso de transgressão da condição finita do homem, limite que separa o humano do divino. O caráter ficcional da expressão estética teatral grega permite o conhecimento, pelos homens, de uma mensagem que, de outra forma, eles não assimilariam, e sofreriam como uma fatalidade. E "entendem-na com uma certa alegria. A expressão artística permite o domínio, é o que chamamos de catarse. A estetização de determinadas questões é realmente uma das características da cultura grega" (Vernant, 2002, p. 355).
Em Totem e tabu, Freud articula que a tragédia grega é um substituto do banquete totêmico, mito da origem da cultura. E, ao se referir ao inexorável sofrimento humano, Freud evoca "os sofrimentos do bode divino, Dioniso, e a lamentação dos bodes seguidores, que se identificavam com ele" (Freud, 1976a, p. 185).
Em Análise terminável e interminável, Freud nos convoca a um retorno às nossas origens gregas e estabelece uma conexão entre o acaso e as pulsões. Ao refletir sobre a origem caótica do psiquismo e das pulsões fundamentais de sua teoria, ele se dirige ao pré-socrático Empédocles de Agrigento e evidencia que, há quase dois milênios e meio, o acaso já comparece no pensamento do pensador grego que "incluiu, no corpo teórico do conhecimento, ideias modernas como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso nessa evolução" (Freud, 1976b, p. 279). Freud declara, também, que localiza o par de opostos, a pulsão de vida e a pulsão de morte, em Empédocles: "um dos maiores pensadores da antiga Grécia" e "uma das maiores e mais notáveis figuras da história da civilização grega" (Freud, 1976b, pp. 278-279). Nascido por volta de 495 a. C., Empédocles é um daqueles jônios que investigam do que são feitas as coisas: se de água, fogo, átomos ou movimento. O médico místico acredita na mistura dos quatro elementos, designados por ele de "raízes de todas as coisas" (Reali, 1993, p. 134), como explicação para a variedade das coisas.
O que interessa a Freud é, especialmente, o fato de o filósofo grego incluir o acaso em sua teoria do conhecimento, e atribuir a ele um papel fundamental na evolução gradual das criaturas vivas. Vejamos essa ideia mais de perto, pela pena do próprio Freud:
Nascido, como foi, numa época em que o reino da ciência ainda não estava dividido em tantas províncias, algumas de suas teorias devem inevitavelmente impressionar-nos como primitivas. Explicava ele a variedade das coisas pela mistura dos quatro elementos, a terra, o ar, o fogo e a água. Sustentava que toda a natureza era animada, e acreditava na transmigração das almas. Mas, também, incluiu, no corpo teórico do conhecimento, ideias modernas como a evolução gradual das criaturas vivas, a sobrevivência dos mais aptos e o reconhecimento do papel desempenhado pelo acaso (tiké) nessa evolução. (Freud, 1976b, p. 279)
Ao prosseguir, Freud acrescenta que identifica no pensamento de Empédocles, cuja "mente parece ter unido as mais agudas contradições" (Freud, 1976b, p. 279), uma teoria em íntima ligação com a teoria psicanalítica das pulsões:
A teoria de Empédocles que merece especialmente nosso interesse é uma teoria que se aproxima tanto da teoria psicanalítica das pulsões, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filósofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica. Ao mesmo tempo, o fato de Empédocles atribuir ao universo a mesma natureza animada que aos organismos individuais despoja essa diferença de grande parte de sua importância. (Freud, 1976b, p. 279)
Freud descreve, em seguida, os dois princípios formulados por Empédocles, amor e combate, que guerreiam entre si e se alternam na predominância de um sobre o outro, e os considera como "forças naturais a operar como pulsões, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente" (Freud, 1976b, p. 280):
O filósofo postula dois princípios do devir na vida do mundo e na vida da mente, e que esses princípios estão perenemente em guerra um com o outro. Chamou-os de philia (amor) e neikos (discórdia). Desses dois princípios – que ele concebeu como sendo, no fundo, "forças naturais a operar como pulsões, e de maneira alguma inteligências com um intuito consciente" –, um deles se esforça por aglomerar as partículas primevas dos quatro elementos numa só unidade, ao passo que o outro, ao contrário, procura desfazer todas essas fusões e separar umas das outras as partículas primevas dos elementos. Empédocles imaginou o processo do universo como uma alternação contínua e incessante de períodos, nos quais uma ou outra das duas forças fundamentais leva a melhor, de maneira que em determinada ocasião o amor e noutra a discórdia realizam completamente seu intuito e dominam o universo, após o que o outro lado, vencido, se afirma e, por sua vez, derrota seu parceiro. (Freud, 1976b, pp. 279-280)
Freud evidencia, assim, que os dois princípios amor e discórdia de Empédocles correspondem – em nome e, sobretudo, em função –, às pulsões de vida e de morte formuladas pela psicanálise:
Os dois princípios fundamentais de Empédocles – philia, amor e neikos, combate – são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossas duas pulsões primevas, Eros e destrutividade, das quais a primeira se esforça por combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que a segunda se esforça por dissolver essas combinações e destruir as estruturas a que elas deram origem. (Freud, 1976b, p. 280)
Desta forma, Empédocles antecipa, em dois milênios e meio, não só a teoria evolucionária de Darwin, como também a teoria da dualidade pulsional de Freud. O homem trágico ressurge, portanto, no discurso psicanalítico a partir do reconhecimento da presença do acaso e das forças em constante conflito implicadas na existência humana.
Na história da filosofia, o filósofo francês Clément Rosset nos brinda com sua reflexão acerca dos percalços na constituição e no reconhecimento da filosofia trágica. O autor relata que a história da filosofia tradicional no ocidente se descortina pela constatação de um luto: a desaparição das noções de acaso, de desordem, de caos. Anaxágoras, um dos filósofos pré-socráticos, foi fiel a esse pensamento ao afirmar que "no começo era o caos; depois vem a inteligência, que arruma tudo" (Anaxágoras citado por Rosset, 1989, p. 13). Assim, as primeiras palavras que tiveram ressonância na consciência filosófica do homem ocidental foram que "o acaso não era mais" (Rosset, 1989, p. 13), ou seja, a filosofia ocidental tradicional evacua de seu campo a ideia de caos, de acaso original, constitutivo, gerador de existência. No seio dessa filosofia, o acaso encontra, então, um novo lugar, o de segundo nível: "O acaso existia, mas somente a partir, e no quadro, de uma ordem que lhe servia de horizonte" (Rosset, 1989, p. 13). A tarefa dessa perspectiva filosófica tem por objeto a revelação de certa ordem:
Arrumar a desordem aparente, fazer aparecer relações constantes e dotadas de inteligibilidade, tornar-se senhor dos campos de atividades abertos pela descoberta dessas relações, assegurando assim à humanidade e a si mesma a outorga de uma melhora em relação ao mal-estar vinculado à errância no ininteligível – é este o programa comum a toda filosofia reputada séria. (Rosset, 1989, p. 14)
Nessa dimensão filosófica encontramos o fantasma do otimismo, a esperança secreta de que a força da inteligência é capaz de dissolver o mal-estar e propiciar a felicidade. Nessa perspectiva, "o exercício da filosofia recobre uma tarefa séria e tranquilizadora: um ato simultaneamente construtor e salvador" (Rosset, 1989, p. 14).
Por outro lado, Rosset nos mostra que à margem, e opostamente a essa filosofia tradicional, surgem pensadores, os filósofos trágicos, determinados em cumprir uma tarefa inversa, uma vez que eles têm como alvo dissolver a ordem aparente para reencontrar o caos enterrado por Anaxágoras, dissipar a ideia de felicidade para afirmar a desgraça – o trágico filosófico. Assim, o pensamento trágico filosófico parte da ordem aparente e da felicidade virtual, passando pelo necessário corolário da impossibilidade de toda felicidade, para culminar no caos, na desordem, no acaso, no silêncio (Rosset, 1989, p. 14). A filosofia trágica representa, portanto, um ato disruptivo, desastroso, na medida em que o pensamento passa a ter como propósito desfazer, dissolver, desconstruir, enfim, privar o homem de tudo aquilo de que ele havia se munido, intelectualmente, a título de provisão e de remédio em caso de desgraça.
Para Rosset, a filosofia trágica se relaciona, fundamentalmente, ao acaso original (Rosset, 1989, p. 9) que, por sua vez, no horizonte da cultura ocidental, está no cerne do pensamento dos sofistas e, sucessivamente, de Lucrécio, Montaigne, do homem sem Deus de Pascal, do homem dionisíaco em Nietzsche, e de Freud (Rosset, 1989, p. 15). Cada autor, na sua angulação própria, apresenta a preocupação comum e paradoxal de pensar e afirmar o caos, a desordem, o pior. O discurso da convenção dos sofistas, no século V a. C., ao pregar o antropocentrismo e se contrapor à visão oficial cosmocêntrica, provoca a primeira revolução na história da filosofia, principalmente por intermédio do adágio de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas" (Chaui, 2002, p. 170). Assim, não é possível um conhecimento verdadeiro, mas apenas provável; não há uma lei moral absoluta, somente leis convencionais e, nessa dimensão empírica do conhecimento humano, o prazer se apresenta como a única meta para o homem. Por isso, o que Platão teme nos sofistas é a natureza trágica do homem. Segue Lucrécio, no século I a. C., que resgata o acaso ao rejeitar o princípio divino da criação e ao afirmar no poema De rerum natura que "para início, tomaremos como base que não há coisa alguma que tenha jamais surgido do nada por qualquer ação divina" (Lucrécio citado por Rosset, 1989, p. 9), o que, com efeito, desconsidera a ação dos deuses sobre o terror que se instala nos homens. A natura lucreciana é não-natureza, é o acaso.
O trágico admite como postulado que todo pensamento é, necessariamente, de ordem desastrosa e caótica. Este postulado é considerado o mais sombrio e desesperador para a maioria dos filósofos acometidos por uma incapacidade de suportar a realidade. Pois trata-se de uma filosofia que traz "não a cura, mas a peste" (Rosset, 1989, p. 15), assim como a psicanálise. Na história da filosofia houve muita resistência em se admitir a filosofia trágica porque significaria "uma negação prévia de toda outra filosofia" (Rosset, 1989, p. 17). Foi preferível, assim, excluir o trágico do circuito da filosofia e abandoná-lo à arte e à literatura. Mas, se de um lado, temos um grande número de filósofos unânimes em louvar a razão, a ordem do mundo e o progresso, de outro, encontramos aqueles que se caracterizam por afirmar uma visão de mundo desesperada. Porém, esses filósofos trágicos, ao introduzirem a peste no discurso filosófico, são condenados a um lugar marginal e até mesmo de exclusão, no campo propriamente filosófico. Pois a filosofia trágica não nasce das exigências da razão, mas de imperativos outros, como o coração, a afetividade, a angústia, o acaso, o caos (Rosset, 1989, p. 17), e resgata a afetividade na consciência filosófica; ela é anticartesiana, antiplatônica, pois não se refere a ideias claras e distintas, mas a ideias obscuras, enfatiza Gilles Deleuze. Ao falar em lógica do pior, "o termo lógica visa designar o caráter filosófico do discurso trágico" (Rosset, 1989, p. 18), já que o trágico é aquilo que deve ser falado – légein significa pensar e falar, e daí "lógica" (Rosset, 1989, p. 30). Para Rosset, sua lógica do pior "não significa então nada além do que a filosofia trágica considerada como possível" (Rosset, 1989, p. 19).
O pensador trágico designa "a impossibilidade prévia de todo dado, enquanto natureza constituída" (Rosset, 1989, p. 20). Rosset distingue que "a afirmação do acaso é aquela de todo pensamento trágico", ao passo que "a negação do acaso é a chave-mestra" do pensamento pessimista (Rosset, 1989, p. 20). Assim, o mundo trágico não está constituído a priori, ao contrário, "o que existe que não é nem natureza nem ser, nem objeto adequado de pensamento" (Rosset, 1989, p. 22), são encontros, ocasiões que não supõem o recurso a nenhum princípio que transcenda as perspectivas trágicas da inércia e do acaso. Ele não busca uma sabedoria ao abrigo do otimismo; ao contrário, "busca uma coisa inteiramente outra: loucura controlada e júbilo" (Rosset, 1989, pp. 23-24). Outro elemento fundamental para definir o pensamento trágico "é a recusa da inferência de desejar nada" (Rosset, 1989, p. 44).
Rosset vislumbra uma articulação entre a fala do filósofo trágico e a prática psicanalítica, já que ambas não podem ser consideradas progressistas. Para o autor, a prática psicanalítica possibilita que o paciente fale algo que ele pensa, mas não exprime. O único "progresso", por assim dizer, que os dois campos pretendem deve ser buscado em um lugar inteiramente outro, fora da consciência, na noção de disponibilidade. "Trata-se de tornar o homem capaz de servir-se daquilo que ele já sabe" (Rosset, 1989, p. 31), como no caso de Édipo, de Sófocles. Tornar o trágico disponível é oferecer a sua fala, o seu conhecimento. A intenção da fala trágica é tornar exprimível um conhecimento já possuído, é capacitar o homem para utilizar o saber trágico do qual ele dispõe virtualmente, ou seja, devolver ao homem a disponibilidade de um saber trágico que ele dissimula e oculta. Enfim, o trágico é patrimônio universal da humanidade.
Rosset não só define que o trágico é o acaso, como também introduz uma conexão entre o trágico filosófico e o trágico psicanalítico. Encontramos a pujante presença do acaso na teoria psicanalítica no texto Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância, de 1910, em que Freud radicaliza que "tudo é acaso na vida dos homens" (Freud, 1976c, p. 124).
Freud nos diz que a teoria das pulsões, "região obscura" (Freud, 1976d, p. 131), "é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões, Triebe, são entidades míticas, magníficas em sua indeterminação" (Freud, 1976e, p. 56) e resistentes ao olhar teórico mas, ao mesmo tempo, imprescindíveis no pensamento psicanalítico, pois constituem a sua metapsicologia, a sua feiticeira.
A constatação da presença do caos e do acaso no pensamento freudiano atrelado à teoria da dualidade pulsional é confirmada por Luiz Alfredo Garcia-Roza, ao considerar "as pulsões, pura potência indeterminada" (Garcia-Roza, 1990, p. 53), e ao afirmar que "a pulsão de que nos fala Freud seria a emergência desse caos original, dessa força não domada e que persiste como fundo não ordenado de todo ser vivo. A pulsão seria, pois, a reafirmação constante do acaso" (Garcia-Roza, 1986, p. 19), ou melhor, "a pulsão (...) é o lugar do acaso" (Garcia-Roza, 1990, p. 127). Portanto, na psicanálise, é o conceito de pulsão que introduz, literalmente, a presença do acaso. Garcia-Roza se refere à concepção de pulsão como um fundo de acaso, de caos e de desordem que habita a psicanálise.
Freud traz, inicialmente, o conceito de pulsão ao definir a especificidade e a originalidade da sexualidade humana, no tocante à variabilidade de seu objeto que, então, é definido por Freud como o mais indeterminado da pulsão. E Garcia-Roza irá considerar o acaso como o fundamento dessa indeterminação. O autor salienta que a dualidade crucial na psicanálise não se dá entre o corpo e a linguagem, já que o corpo é ele próprio corpo-linguagem, mas se encontra entre o que "é ordenado", incluídas aí não só a linguagem como também a representação, e o que "é exterior à ordem" (Garcia-Roza, 1990, p. 53), ou seja, as pulsões em estado bruto. Temos, assim, de um lado, o corpo-linguagem e, de outro, "as pulsões, pura potência indeterminada" (Garcia-Roza, 1990, p. 53). E Garcia-Roza encontra na pulsão de morte o fundamento dessa afirmação. A dualidade ordem e acaso é, sem dúvida, fundamental, mas apenas uma das modalidades em que a dualidade se manifesta na teoria freudiana. Mas, no nível das pulsões, o que interessa é a dualidade entre a pulsão de vida e a de morte, e a dualidade entre a pulsão e a representação. O autor afirma "que as pulsões são anárquicas" (Garcia-Roza, 1986, p. 20) e que de fato "toda pulsão é pulsão de morte, já que ela não tem por objetivo a autoconservação, a repetição do 'mesmo', mas é, sobretudo, expansão, produção de diferenças, puro lugar da dispersão" (Garcia-Roza, 1986, p. 19).
Seguindo Freud em O ego e o id, Garcia-Roza esclarece que "o Isso é inconsciente – embora não seja o inconsciente" (Garcia-Roza, 1990, p. 128), e que há uma distinção entre o Isso e a pulsão: "o Isso é, também, uma instância psíquica enquanto que a pulsão é extra-psíquica" (Garcia-Roza, 1990, p. 128). "Há uma presença da pulsão no psiquismo, e as noções de Triebrepräsentanz e de Vorstellungsrepräsentanz pretendem designar exatamente isto" (Garcia-Roza, 1990, p. 60), ou seja, designar os modos de aparição da pulsão no psiquismo. Mas, o autor diferencia que "uma coisa é o representante da pulsão no psiquismo, outra coisa é a pulsão ela mesma" (Garcia-Roza, 1990, p. 60). Vemos, assim, que há uma dimensão psíquica que apresenta a pulsão como energia, o que Freud chama de delegação, repräsentaz, e a distingue da representação, vorstellung, que já é uma ideia de algo e, portanto, já é uma forma derivada daquele índice que anuncia a pulsão como tal. Para desenvolver essa questão, Garcia-Roza se utiliza das duas dimensões, já mencionadas, a da ordem e a do acaso. Assim, por um lado, na esfera da ordem, temos a pulsão sexual, que obedece ao princípio do prazer, referida ao corpo erógeno, produto da nomeação pelo Outro e, portanto, determinada pelo corpo simbólico, criador de novos rumos possíveis. Por outro, na esfera do acaso, temos aquilo que é exterior à ordem da linguagem, ou seja, o acaso, a pulsão de morte referida ao corpo pulsional, nosso fado. O autor é levado a pensar que a pulsão navega no acaso dos encontros, sempre faltosos, e, ao mesmo tempo, recebe uma ordem, não da natureza, mas da rede de significantes (Garcia-Roza, 1986, p. 53). É a pulsão de morte que assinala o lugar da pura diferença, da dispersão, do caos e do acaso. Decorre daí que a pulsão de morte é pura potência indeterminada e, nesse sentido, a pulsão por excelência, enfatiza Garcia-Roza.
A ética implicada na reflexão acerca do agir humano se dirigiu, na perspectiva da tradição filosófica, para um ideal a ser atingido. Entretanto, na filosofia trágica e na psicanálise temos uma mudança de orientação em que o pensamento passa a focalizar não um ideal, mas os acasos, os impasses, os conflitos e, sobretudo, a desmedida que vigora na relação do homem com sua ação.
Referências
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