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A histórica entrevista de Félix Guattari com Luiz Inácio Lula da Silva
UMA ENTREVISTA COM
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Em 30 de abril de 1930 nascia o psicanalista, filósofo e militante francês Félix Guattari. Buscando articular teoria e prática, Guattari se encontra com Lula em 1982 para entender as origens do partido-movimento que unia camponeses, sindicalistas, professores e intelectuais e tentava reinventar a esquerda na última década da Guerra Fria.
Foto extraída do livro "Felix Guattari entrevista Lula", publicado em 1982 pela editora Brasiliense.
Ofilósofo, psicanalista, roteirista e militante revolucionário francês, Félix Guattari, nasceu em 30 de abril de 1930. Desde muito jovem soube conciliar seu trabalho de filósofo autodidata e escritor com a prática clínica e o ativismo político. Foi um dos fundadores dos campos da esquizoanálise e ecosofia, uma filosofia caracterizada por girar em torno de três dimensões da ecologia: ambiental, social e subjetiva. Mas se tornou conhecido internacionalmente através da sua obra com o filósofo francês, Gilles Deleuze, em O Anti-Édipo (1972) e Mil platôs (1980), que formam a coleção Capitalismo e esquizofrenia.
Guattari participou ativamente nas discussões do Partido Comunista Francês (PCF) na primeira metade dos anos 50. Depois, seguiu a militância fora do partido entre 1958 e 1964, participando da organização La Voie Commnunista, que publicava um jornal com o mesmo nome e, desde 1965, na “Oposição de Esquerda”. Em maio de 1968, se engajou ativamente nas manifestações que eclodiram na França junto com os usuários da Clínica Le Borde. E mais tarde, participou dos levantes promovidos na Itália pelo operaismo italiano, ajudando a fundar e difundir as rádios livres e o ambientalismo ativista.
O jornal francês Le Monde chamava Guattari de franco-atirador, por suas intervenções em várias áreas do conhecimento e da política. Mas franco-atirador não é um termo adequado para qualificar a sua atuação, pois o franco-atirador quer agir sozinho, enquanto Guattari deseja o ponto de contato plural, de movimento sociais, buscando respostas alternativas em diferentes níveis, que não pedem licença aos poderosos do dia para começarem, já, a procura de “uma nova terra”.
Na busca de uma militância mais autêntica que unia teoria e prática, Guattari vem ao Brasil em 1982 conhecer Lula, o jovem metalúrgico que comandava as greves do ABC, chamando a atenção de toda esquerda mundial por colocar de joelhos a ditadura que já durava 18 anos no poder. Deste encontro, feito junto com a filósofa Suely Rolnik, surgiu uma belíssima, e atual, entrevista que se debate o nascimento do PT, sua relação com a Igreja católica, com o movimento sindical polonês Solidariedade, a Guerra das Malvinas e o neo-imperialismo na última década da Guerra Fria.
Guattari morre 10 anos depois, em 1992, na Clínica Le Borde. Em sua lápide está escrito um epitáfio que é um verso de ninguém mais, ninguém menos que Drummond de Andrade: Il n’y a pas de manque dans l’absence. L’absence est une présence en moi – não há falta na ausência, a ausência é um estar em mim.
LI
Na medida em que os candidatos serão impedidos de ir à televisão e também em consequência deste novo tipo de cédula eleitoral, adotado ontem, onde a sigla do partido não aparecerá, e onde o eleitor deverá inscrever o nome completo do candidato que escolheu, o que complicará muito a tarefa, parece-nos que o verdadeiro objetivo do governo é descaracterizar o sentido das eleições, esforçando-se para obter a anulação de uma grande quantidade de cédulas. Nós, do PT, estamos muito preocupados com estas questões, mas estamos conscientes de que a luta do PT e a luta da classe operária não terminará com o processo eleitoral, que, na realidade, representa para nós um passo a mais na organização da classe operária. É unicamente por esta razão que nós aceitamos disputar as eleições e decidimos apresentar nossos candidatos.
E o risco de intervenção direta dos militares?
LI
Em um país dirigido por militares, há sempre o risco de que a repressão militar possa se acentuar. Enquanto o povo não se organizar, enquanto ele não tiver uma consciência política, este risco subsistirá. É por isto que a gente diz, no PT, que a coisa mais importante que temos a fazer é organizar a classe trabalhadora. Em seguida, caberá a ela decidir, por si mesma, o seu destino.
O PMDB tenta atualmente exercer um tipo de chantagem sobre o processo eleitoral, com sua campanha dita do “voto útil”, proclamando que o PT não tem maturidade suficiente e que seus dirigentes não têm competência real que justifique sua pretensão de gerir os negócios do país. Este tipo de argumento poderá ter impacto sobre a opinião pública?
LI
Eu acredito que este argumento possa ter um certo peso de influência sobre o eleitorado. Em primeiro lugar, porque a experiência de participação política de nosso povo ainda é muito restrita. Ao longo de toda a nossa vida, e isso desde a proclamação da República, temos sido tratados como massa de manobra. O povo sempre foi induzido a acreditar que não existia para ele nenhuma possibilidade de se autogovernar e que seria preciso alguém que o dirigisse.
Em segundo lugar, devido aos preconceitos de classe existentes em nosso país, muitos setores das camadas médias, em particular as camadas médias altas, e o conjunto da burguesia nacional consideram que a capacidade das pessoas é medida pela quantidade de diplomas ou pelo acúmulo de renda que têm nos bancos, ou por suas propriedades, seus títulos de comércio, etc. Uma das grandes tarefas do PT é, precisamente, desmistificar este erro histórico, segundo o qual nós só servimos para trabalhar. E provar que a administração de um Estado não é uma questão técnica, mas sim política.
Na passeata que atravessou São Paulo, há dois dias, para apresentação pública dos candidatos do PT, uma grande faixa de papel, levada por 4 ou 5 pessoas, trazia a inscrição: “Nós sabemos trabalhar, nós sabemos governar”.
LI
Toda a questão é saber onde está o Estado: do lado do poder econômico ou do lado dos trabalhadores? Nós consideramos que este apelo ao “voto útil” é uma proposta fascista, pois pressupõe que a existência da força política do PMDB depende da inexistência de outras forças políticas. E nós, no PT, defendemos a existência do PMDB, do mesmo modo que defendemos a nossa própria existência.
FG
Este “processo de competência” parece-me tanto mais improcedente, na medida em que os dirigentes atuais já deram amplamente provas de sua incompetência e de sua corrupção. Na convenção do PT, no mês de julho, você reafirmou que seu partido não faria nenhum acordo, nenhum compromisso com o PMDB e outras formações da esquerda tradicional. Vocês manterão esta posição depois das eleições? Vocês se recusariam, por exemplo, a participar de uma “coalizão de esquerda” para gerir o Estado de São Paulo?
LI
Eu não vejo como conseguiríamos conciliar interesses tão divergentes. Eu não acredito que o avanço de uma classe possa depender simplesmente do fato de que alguns de seus membros ocupem cargos oficiais. Já foi contatado por uma pessoa do PMDB que explicou que uma das grandes preocupações de seu partido era, se eles ganharem as eleições, obter o apoio do PT, de modo a poder governar tranquilamente, sem greves, sem manifestações.
FG
O PT nasceu do afluxo do movimento de São Bernardo, depois que a classe operária industrial deu mostras de que ela era capaz de se engajar em lutas políticas de envergadura, às quais poderiam se associar o conjunto dos membros da classe operária e também das classes médias, intelectuais, etc. Eu sei também que o PT se preocupa, igualmente, com os interesses dos camponeses; ele, inclusive, formulou o primeiro e verdadeiro programa de reforma agrária no Brasil. Mas o PT não permanece, ainda hoje, essencialmente, o que eu chamaria “um partido das cidades”? De que bases de apoio ele dispõe no campo?
LI
Eu diria que, proporcionalmente, o PT é mais forte no campo do que nas cidades. Principalmente no Norte e no Nordeste do país. A acusação segundo a qual nós seríamos em partido somente dos grandes centros perdeu sentido, na medida em que nosso trabalho no campo desenvolveu-se consideravelmente. Mas é um trabalho difícil, que se dá em condições financeiras terríveis, onde faltam meios de locomoção, por exemplo, o que é um problema cruel num país tão grande quanto o nosso. Creio, entretanto, que, pela primeira vez na história deste país, nós concretizamos o velho sonho que a esquerda brasileira nunca pôde realizar: a união dos trabalhadores do campo com os da cidade.
FG
Muitos católicos estão no PT. Dizem por aí que tem o apoio do episcopado. Que tipo de relação a Igreja estabelece com o seu partido? Será algo comparável com o que existe na Polônia entre a hierarquia religiosa e uma parte da direção do sindicado “Solidarnösc”, consultas regulares, mediação com os poderes estabelecidos e etc.?
LI
Não. Este tipo de relação com a Igreja não existe aqui. O que existe, na verdade, é que, a partir de Puebla[i], a Igreja brasileira, ou melhor, uma parte da Igreja brasileira, decidiu fazer uma opção na questão da organização do povo oprimido. Foi a partir daí que as comunidades de base e os bispos “progressistas” começaram a aparecer. E o que sucede é que as formas de organização que eles propõem coincidem com as do PT. Nenhum bispo orienta os cristão a se inscreverem no PT. Mas eu acredito que todos – ou ao menos uma grande parte – orientam o cristão a adotar critérios para que escolham seus partidos e seus candidatos, e isto também coincide com as propostas políticas do PT. Ora, qualquer outro partido poderia adotar formas de organização semelhantes às que nós preconizamos; aí a orientação atual da igreja poderia beneficiar a todos.
FG
O programa econômico do PT prevê uma reapropriação coletiva dos grandes meios econômicos, como bancos, complexos industriais, para liberá-los do domínio dos monopólios nacionais e das multinacionais. Isto não implicaria uma certa concepção subjacente de futuras relações entre o Estado, a economia e a sociedade? Que forma, segundo você, deveria tomar essa coletivização? A de uma nacionalização de caráter estatal, ou a de um processo mais autogestionário?
LI
Se eu devesse responder de pronto a essa questão, eu diria que as coisas se orientariam mais em direção a um sistema de estatização. Entretanto, é preciso estar com os dois pés no chão e saber que os processos de transformação não se dão porque queremos, mas sim em virtude das forças políticas sobre as quais eles se apoiam. Se, numa primeira etapa, nós pudéssemos fazer uma nacionalização [ii], isso já seria muito importante, mas o objetivo final continua sendo a estatização. Mas é preciso que as coisas estejam claras: essa estatização só terá sentido no quadro de um Estado democrático, onde o povo poderá gerir e administrar suas indústrias e seus bancos em benefício da coletividade e não em benefício das burocracias do Estado.
Nós devemos ser realistas; as propostas do PT não podem ser sonhadoras: hoje, nós não temos nem delegados sindicais, nem comissões de fábrica. Se nós conseguirmos obter isso, já será um passo decisivo, que poderia ser seguido de outros passos, nos aproximando desta forma de cogestão, do acesso à contabilidade das empresas, com poder de decisão para discutir projetos e investimentos. Em seguida, chegaríamos à etapa de nacionalização, e acumularíamos forças para passar enfim à estatização. É como se estivéssemos subindo uma escada de 16 degraus: se não subirmos um a um, arriscamos cair e quebrar a perna. Nós não queremos ir com sede ao pote. Nós queremos é matar nossa sede! Por isto, precisamos ter cuidado!
Você não vê, portanto, no alto de sua escada, um modelo constituído, de tipo soviético, chinês ou cubano?
LI
Não, de forma alguma. E aliás, nem francês, nem sueco!
FG
Você quer forjar um outro tipo de Estado, um outro tipo de sociedade. Mas não há uma contradição entre esta perspectiva criadora e a maneira pela qual o PT se define hoje como organização centralista? Eu li os estatutos do PT. Eles se parecem muito com os de qualquer partido comunista ou socialista tradicional.
LI
Você fala dos estatutos oficiais. Estes estatutos são os mesmos para todos os partidos. Mas a prática do PT é completamente diferente. Por exemplo, os estatutos do PT preveem convenções com um delegado para cada municipalidade. O PT inventou uma outra “figura”: a da pré-convenção descentralizada, aberta à participação de muito mais delegados. As convenções oficiais só servirão para referendar as decisões das convenções ampliadas. Apesar de todas as imperfeições, o PT conseguiu criar um sistema de núcleos de base, garantindo que todas as decisões passem por um processo de discussão a nível local e de tal modo que as instâncias nacionais disponham sempre de uma representação exata do que pensa na realidade o conjunto do partido.
FG
Eu tive a oportunidade de verificar o que você acabou de dizer quando encontrei militantes do comitê local do PT de Pinheiros, comitê em torno do qual juntaram-se diversos grupos que se qualificam de “autônomos” (ecologistas, feministas, homossexuais, etc). Este comitê defende posições que parecem bastante minoritárias, marginais em relação às do conjunto da organização. Certas instâncias hierárquicas do PT tentaram proibir, para as próximas eleições, a candidatura de Caty Koltai, que apresenta, em seu nome, um programa de estilo um tanto quanto “situacionista”. Finalmente, foi uma convenção, do tipo desta a que você se referiu, que resolveu a questão, aprovando a candidatura de Caterine Koltai por aclamação, após a leitura pública do programa em questão.
Nós temos uma expressão na França para qualificar a linguagem esclerosada, dogmática de muitos dos militantes: nós dizemos que eles falam uma “língua de pau” (“langue de bois”). Com relativo sucesso, um certo número de experiências de rádios-livres, na Itália e na França, tentaram substituir esta “língua de pau” por meios de expressão melhor adaptados aos grupos sociais reais, às minorias, às diferentes sensibilidades. Vocês também têm em mente a criação de rádios-livre, que não estejam nem sob o controle do Estado, nem dos partidos, nem de grupos comerciais?
LI
Nós ainda não estamos a ponto de criar mídias alternativas. Mas penso que chegaremos lá. Somente é preciso compreender que estamos no Brasil, não na Europa. É um outro universo, uma outra formação política, uma outra experiência de luta, mas acreditamos que chegaremos lá, pois é a única forma de nos liberarmos das dependências das mídias corporativas.
FG
Como os intelectuais são vistos no seio do PT? Existe entre eles e o movimento social novos tipos de relação? Eu penso, por exemplo, naqueles que se instauraram na Polônia dentro do “Solidarnösc”.
LI
Um fato muito importante, no interior do PT, é a desmistificação da distância entre o intelectual, o estudante, o camponês e o trabalhador. O PT aproximou as pessoas; ele criou novas relações de fraternidade e lá as pessoas se sentem mais iguais. Eu acredito mesmo que uma das razões do grande sucesso que conhece este partido se deve ao fato de que nele não existem divergências baseadas na posição social e origem de classe de seus membros. Na verdade, este tipo de preconceito existia menos na classe operária que em outros setores da sociedade. Eu acredito sinceramente que as pessoas vivem livremente dentro do PT.
FG
Na passeata do PT que atravessou São Paulo, havia algumas faixas de solidariedade ao “Solidarnösc”. Isto corresponde a uma posição de conjunto do PT ou uma posição minoritária?
LI
uma posição oficial do PT, se bem que essas faixas que você viu são as de uma tendência do PT, chamada Convergência Socialista e Liberdade e Luta (LIBELU), que, aliás, nasceu em Paris.
FG
Você encontrou-se com Lech Walesa, antes de sua prisão, quando você foi à Europa. O PT manteve relações com os dirigentes exilados do “Solidarnösc”?
LI
Não, pois logo após a onda de prisões do mês de dezembro, nós tínhamos enviado dois ofícios ao escritório do Solidariedade em Londres e não tivemos resposta. O último nos foi, inclusive, devolvido.
FG
Qual foi a posição do PT durante a Guerra das Malvinas?
LI
O PT se pronunciou contra a demonstração de força da Inglaterra, mas também contra a ditadura dos militares argentinos. Nós achamos que o general Galtieri tentou dar um “golpe de mestre” para fazer com que o povo argentino esquecesse seus problemas internos com os 30 mil desaparecidos, a inflação a 150%, etc. Resultado: isto não resolveu nada no plano interno e a Argentina saiu completamente desmoralizada da questão. O mais grave nisso tudo é que as vidas humanas perdidas não serão jamais recuperadas. De qualquer modo, esta guerra deixou clara uma coisa: que os países desenvolvidos vão sempre preferir se ajudar, em vez de serem solidários com os países subdesenvolvidos. E um exemplo disso foram os norte-americanos que, mesmo sendo os maiores credores da Argentina, não hesitaram em abandonar este país para apoiar a Inglaterra.
FG
Você aprova a palavra de ordem “As Malvinas são argentinas”?
LI
Esta questão foi muito debatida dentro do PT. Nós a discutimos um dia inteiro. Minha posição é que as Malvinas pertencem à Argentina.
FG
No mínimo elas pertencem ao continente latino-americano!
LI
Perfeitamente! Mas é preciso também não esquecer que seus primeiros proprietários foram franceses. E é preciso levar também em consideração os dois mil ingleses que vivem ali há tanto tempo. Mas a América Latina e a Argentina têm direito sobre essas ilhas.
FG
Se eu compreendi bem, você não aprovou a posição assumida por uma grande parte da esquerda argentina sobre esta questão.
LI
Não. Eu fui até convidado a participar de uma reunião no Peru, onde diversos setores da esquerda argentina proclamaram sua intenção de voltar a Buenos Aires – inclusive os Montoneros – para apoiar o General Galtieri. Eu me recusei a ir. Em momento algum, o PT apoiaria não só a Guerra das Malvinas, como também o General Galtieri. Com a esquerda, na América Latina – sobretudo a esquerda ligada aos partidos comunistas argentino e brasileiro – nunca se sabe se estamos, na verdade, à esquerda ou à direita.
FG
Qual é a posição do PT a respeito das ameaças de intervenção dos Estados Unidos na Nicarágua, em El Salvador ou em Cuba?
LI
Nós estamos solidários com todos os povos oprimidos do mundo. Nós achamos que o povo salvadorenho deve resolver, ele mesmo, seus problemas, sem nenhuma ingerência dos Estados Unidos. Do mesmo modo, o povo da Nicarágua e os outros povos da América Latina. Seria melhor que o governo norte-americano acabasse com o racismo e o desemprego nos Estados Unidos, em vez de se preocupar com um bloqueio eventual de Cuba ou da Nicarágua. Nós achamos, no PT, que Reagan é apenas presidente dos Estados Unidos e não presidente do mundo.
FG
Não há uma espécie de fatalidade, para os países que tentam sair da zona de influência norte-americana, de se acharem como que aspirados por um outro imperialismo, o da União Soviética? E isto, por todo tipo de razões: econômicas, estratégicas e etc.?
LI
O que é preciso, na verdade, é criar condições que nos permitam não depender nem do imperialismo norte-americano nem do imperialismo soviético.
FG
O PT mantém relações privilegiadas com a Internacional Socialista?
LI
Não. No PT nós não nos preocupamos em estabelecer compromissos com nenhuma das internacionais existentes. Aliás, enquanto estivermos em fase de crescimento, as questões ideológicas não poderão ser colocadas em sua amplitude, no PT. Seria prematuro se engajar a nível internacional. Nós esperamos estabelecer relações estreitas com todas as forças democráticas do mundo e isto só será possível se não fizermos opções ideológicas de cúpula, antes que a base faça suas próprias escolhas.
FG
Eu te agradeço por ter respondido tão francamente às minhas questões.
LI
De meu lado, eu gostaria de conhecer teu ponto de vista sobre a política atual do Partido Socialista Francês. Ele está colocando em prática o que propunha antes das eleições?
FG
Comecemos pela política internacional. François Mitterrand afirmou a vontade da França – particularmente em Cancun – de não deixar o campo livre à política imperialista norte-americana no 3º Mundo. Mas isto não o impediu de levar seu apoio a Tatcher e a Reagan na questão das Malvinas. Por outro lado, os socialistas franceses afirmaram sua solidariedade à resistência do povo polonês. Mas eles não querem tocar na questão do comércio com a URSS, por exemplo. Negócios são negócios! Após um encaminhamento sinuoso, ambíguo, com relação à política de Israel, a França decidiu levar uma certa ajuda aos povos mártires do Líbano e da Palestina. Parece-me que estamos sempre num movimento oscilante. Em certas regiões do mundo, como a África, a política parece ainda menos evidente. É verdade que é mais fácil para a França ser anti-imperialista na América Latina que na África.
LI
Por que mais fácil?
FG
Porque na África o governo socialista tem que se haver com gestão de toda uma herança neocolonialista. Apesar disso, creio que há, assim mesmo, certos aspectos positivos na política internacional da França. Por exemplo, a denúncia feita por Jack Lang, ministro da Cultura francês, no México, diante da Unesco, das práticas norte-americanas em matéria de “exportação cultural”, sobretudo no domínio da televisão e do cinema. Sua ideia de uma cooperação de novo tipo entre os diferentes componentes do que ele chama as culturas latinas poderia ser, igualmente, interessante. Portanto, nem tudo é negativo neste plano, longe disso.
Por outro lado, o que me parece muito mal encaminhada é a política interna. Após um período que podemos chamar de “estado de graça”, porque foi vivido em meio à surpresa e à espera de grandes mudanças, com medidas de revalorização do nível de vida das categorias mais desfavorecidas e, sobretudo, medidas para a salvaguarda das liberdades (supressão dos tribunais de exceção, libertação dos prisioneiros políticos, abolição da pena de morte, etc.) o governo pouco a pouco se atolou na crise: ele se debate e não consegue resolver a inflação, o desemprego, a fuga dos capitais, a paralisação dos investimentos, a queda nas exportações e etc. E vem, progressivamente, gerindo o país quase como o teria feito um governo conservador. O fundo da questão é que o Partido Socialista não tem uma verdadeira política de transformações sociais. Ele se preocupa com o dia-a-dia e se comporta, cada vez mais, como um partido clássico. Agora há pouco, eu perguntei sobre os estatutos do PT, formais demais, rígidos demais para o meu gosto. Mas com o PS é outra coisa. Não só os estatutos são esclerosados. No PT, vocês tentam, no mínimo, colocar a questão do respeito à autonomia dos diversos componentes sociais e minoritários, que se associam à ação do Partido. Sem dúvida, há sempre problemas. Fique tranquilo, não estou idealizando o PT. Mas, na França, esse tipo de problema não se coloca, ou só aparece em período eleitoral, quando se trata de angariar votos.
Eu sei que a questão das minorias e das marginalidades se coloca, no Brasil, em termos bem diferentes e em escala muito maior, a tal ponto que todos os partidos atuais se confrontam com o problema. Mas na França também existem fenômenos de marginalização social, de minoração subjetiva, que dizem respeito a grupos cada vez mais numerosos e a categorias sociais cada vez mais amplas. Diante dessas questões, que estão, na verdade, no centro da crise, a sociedade francesa cochila num conformismo temeroso e sonha com sua glória passada. Nestes últimos tempos, provocações terroristas serviram de pretexto para uma retomada de um tema batido: “a segurança antes de tudo”, e fala-se de novo numa “rede de controle informatizada” da sociedade, no estilo da Alemanha Ocidental. Sei muito bem que não se pode esperar tudo de um partido, e que podemos imputar o impasse atual, em larga medida, às incidências internacionais da crise. Mas, tudo está ligado, e não se pode, indefinidamente, diluir as responsabilidades de um partido que não responde às aspirações de mudança em função dos quais foi eleito.
Se os socialistas não se decidirem a modificar seu próprio modo de funcionamento enquanto partido do poder, sua concepção de intervenção no campo social – ou melhor, a ausência evidente de qualquer perspectiva concreta nesse campo – então é claro que um abatimento, uma perda irresistível de confiança acabará se instaurando entre a maioria daqueles que os levaram ao poder. E a França recairá, mais uma vez, nas mãos dos piores bandos reacionários. Apesar das diferenças de contexto, sempre consideráveis e, aliás, evidentes, acredito que certos problemas sociais tendem, cada vez mais, a atravessar os países e até os continentes. Para mim, o “Solidarnösc” na Polônia, o PT no Brasil, são espécies de experiências em grande escala que tentam inventar novos instrumentos de entendimento e de luta coletiva e mesmo uma nova sensibilidade e uma nova lógica política e micropolítica. As conquistas e os fracassos destas experiências não concernem somente a Polônia e Brasil, mas também a todos aqueles que, em condições diferentes, se chocam com os mesmos tipos de impasses de organização, burocratismo, esclerose.
Na verdade, isto acontece em toda a superfície do planeta e em todos os níveis sociais e individuais, a começar pelo nível mais imediato da linguagem. Eu fiquei sinceramente fascinado com a leitura de uma coletânea com suas entrevistas e discursos [iii], por sua liberdade de tom, pelo teu modo, por exemplo, de falar de Ghandi, de Mao Tsetung, de Fidel Castro ou de Adolf Hitler, sem nenhuma das costumeiras preocupações, sem clichês e mesmo se aventurando de modo, por assim dizer “imprudente” em considerações intempestivas. Você não parece se dar conta de que algumas vezes as tuas propostas poderiam ser voltadas contra você, você parece confiar a priori na boa fé dos teus interlocutores.
LI
A grande força, a melhor arma do PT é justamente isto – o não dogmatismo. Porque ele se parece no mundo inteiro. Por exemplo, quando fui à Itália, participei de uma reunião com o grupo “Manisfesto”, e lá também a gente pôde perceber com muita clareza que as pessoas são doutrinadas pela cartilha. E somente depois é que chegam à prática. Mas nós acreditamos que a prática deve ser estreitamente ligada à teoria. Se não, não faz nenhum sentido! Não nos interessa discutir a teoria se o próprio povo também não estiver disposto a discuti-la. É preciso, antes, despertar seu interesse, é evidente!
FG
A esse respeito, você não tem a impressão de que coexistem, igualmente, no interior do PT, muitos componentes militantes, tradicionais e dogmáticos? Será que os velhos grupos que também investiram no PT, estão evoluindo de seu lado?
LI
A tendência é, antes de tudo, à sua “diluição” no interior do PT, sem que haja, no entanto, “patrulhas ideológicas”. Quanto mais numerosos forem os trabalhadores dentro do PT, menos haverá motivo para a sobrevivência de tais tendências.
FG
Certos candidatos operários do PT encontram grandes dificuldades para levar adiante suas campanhas, pois eles dispões de menos tempo e de menos condições materiais que outros.
LI
Esse é um problema muito sério no interior do partido. Nós temos todo interesse em eleger um máximo de candidatos operários. Mas temos dificuldades para criar condições que permitam aos trabalhadores candidatos fazer uma campanha semelhante aos outros candidatos. A isto se acrescenta o fato de que muitos líderes operários, que poderiam se eleger tranquilamente deputados no Parlamento ou nas Assembleias estaduais, foram obrigados a apresentar sua candidatura para os cargos de senador e governador de Estado. Mas, para poder consolidar a legalização do Partido, seria preciso que dispuséssemos de uma base de candidatos a mais ampla possível.
[i] Lula faz alusão ao encontro de Puebla, no México, em janeiro de 1979, por ocasião da 3ª Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), com a presença do Papa João Paulo II.
[ii] Lula parece distinguir aqui uma fase de “nacionalização” correspondendo a uma política de salvaguarda da economia, contra o domínio internacional, e uma fase de “estatização” propriamente dita (Nota de Félix Guattari)
[iii] Lula – Entrevistas e Discursos – Editora O Repórter, Guarulhos Ltda., 1981.