quarta-feira, 4 de abril de 2012

A importância da indústria - Belluzzo - J.Almeida

A importância da indústria

O Brasil está em condições de estabelecer uma macroeconomia da reindustrialização usando de forma inteligente as vantagens que se revelaram recentemente. Não se trata de concentrar os esforços na manutenção de um câmbio subvalorizado mas de desenvolver um conjunto de políticas voltado para o objetivo de expansão do mercado interno sem incorrer nas restrições de balanço de pagamentos. O artigo é de Luiz Gonzaga Belluzzo e de Júlio Sérgio G. Almeida.

O grande historiador Carlo Cipolla afirmou que a economia dos Homens atravessou dois momentos cruciais: o neolítico e a Revolução Industrial. No neolítico, os povos abandonaram a condição de “bandos selvagens de caçadores” e estabeleceram as práticas da vida sedentária e da agricultura. Entre as incertezas e brutalidades da “vida natural”, tais práticas difundiram condições mais regulares de subsistência dos povos e assentaram as bases da convivência civilizada. Podemos afirmar que ao longo de milênios as sociedades avançaram lentamente nas técnicas de gestão da terra, desenvolvidas à sombra de distintos regimes sociais e políticos e, portanto, sob formas diversas de geração, apropriação e utilização dos excedentes.

Às vésperas da Revolução Industrial os fisiocratas ainda refletiam a predominância da agricultura na economia do Ancien Regime. Consideravam “produtiva” somente a classe de agricultores. A manufatura era a atividade da classe estéril que conseguia apenas repor seus custos por meio das trocas e assim, preparar-se para o período de produção seguinte. A agricultura, além de cobrir os seus custos de produção, transfere uma parcela do produto gerado, sem contrapartida, aos proprietários da terra, paga uma renda. A agricultura era, nesse sentido, “produtiva”, ou seja, a única atividade capaz de gerar excedente.

O segundo momento, o da Revolução Industrial, subverteu de maneira ainda mais radical o modo de produzir. Não se tratava mais de administrar as cambiantes condições naturais de produção, mas de utilizar o engenho humano para transformar e, mais recentemente, reinventar a natureza. “A Revolução industrial transformou o Homem agricultor e pastor no manipulador de máquinas movidas por energia inanimada.”

A ruptura radical no modo de produzir introduziu profundas alterações no sistema econômico e social. Aí nascem, de fato, o capitalismo, a sociabilidade, a urbe moderna e seus padrões culturais. A diferença entre a vida moderna e as anteriores decorre do surgimento do sistema industrial que não só cria novos bens e os bens instrumentais para produzi-los, como suscita novos modos de convivência, de “estar no mundo”. Deste ponto de vista, a indústria não pode ser concebida como mais um setor ao lado da agricultura e dos serviços.

A ideia da revolução industrial como um momento crítico, trata da constituição histórica de um sistema de produção e de relações sociais que subordinam o crescimento da economia à sua capacidade de gerar renda, empregos e criar novas atividades. O surgimento da indústria como sistema produção apoiado na maquinaria endogeiniza o progresso técnico e impulsiona a divisão social do trabalho, engendrando diferenciações na estrutura produtiva e promovendo encadeamentos intra e inter-setoriais. Além de sua permanente auto-diferenciação, o sistema industrial deflagra efeitos transformadores na agricultura e nos serviços. A agricultura contemporânea não é mais uma atividade “natural” e os serviços já não correspondem ao papel que cumpriam nas sociedades pré-industriais. O avanço da produtividade geral da economia não é imaginável sem a dominância do sistema industrial no desenvolvimento dos demais setores.

Os autores do século XIX anteciparam a industrialização do campo e perceberam a importância dos novos serviços gestados nas entranhas da expansão da indústria. Não há como ignorar, por exemplo, as relações umbilicais entre a Revolução Industrial, a revolução nos Transportes e o transformações dos sistemas financeiros no século XIX. As interações entre a expansão da ferrovia, do o navio a vapor, o desenvolvimento da indústria metalúrgica e da metalomecânica foram decisivas para a o avanço dos bancos de depósito e para o surgimento do setor de bens de capital.

A história dos séculos XIX e XX pode ser contada sob a ótica dos processos de integração dos países aos ditames do sistema mercantil-industrial originário da Inglaterra. Essa reordenação radical da economia exigiu uma resposta também radical dos países incorporados à nova divisão internacional do trabalho. Para os europeus retardatários, para os norte-americanos e japoneses e mais tarde para os brasileiros, coreanos, chineses, russos e outros, a luta pela industrialização não era uma questão de escolha, mas uma imposição de sobrevivência das nações, de seus povos e de suas identidades.

Paradoxalmente, a especialização de alguns países na produção de bens não industriais é fruto da própria diferenciação da estrutura produtiva capitalista à escala global comandada pela dominância do sistema industrial. Este é o caso de países dotados de uma relação população/ recursos naturais favorável, como Austrália, Nova Zelândia, Uruguai, Chile. Essa especialização decorre da própria divisão do trabalho suscitada pela expansão do sistema industrial.

A especialização ou re-especialização virtuosa dos produtores de commodities na economia atual, no entanto, não legitima nem justifica o processo de desindustrialização em curso no Brasil. Ao longo de cinco décadas, até o início dos anos 80 do século passado, o país empreendeu um ingente esforço para construir um sistema industrial relativamente avançado.

Concentrados na expansão dos setores pesados, os investimentos do II PND em meados dos anos 70 deram impulso a um novo ciclo de exportação de manufaturados de tecnologia madura e de substituição de importações. No entanto, a estratégia escolhida não só provocou a crise da dívida do início dos anos 80, como descurou da incorporação dos setores da chamada Terceira Revolução Industrial, como a eletrônica de consumo, componentes eletrônicos, informatização dos processos produtivos, novos materiais e química fina. A crise da dívida externa e as políticas liberais que se seguiram à estabilização dos anos 90 encerraram uma longa trajetória de crescimento industrial e criaram as bases para o retrocesso da indústria de transformação.

A participação da indústria no PIB caiu de 35,8% em 1984 para 15,3% em 2011. Essa queda seria natural se decorresse dos ganhos de produtividade obtidos ou difundidos pelo crescimento da indústria, como ocorreu em países de industrialização madura. Mas não foi isso que se observou no Brasil. No momento em que ocorria uma revolução tecnológica e a intensa redistribuição da capacidade produtiva manufatureira entre o Centro e os Emergentes, alterando o esquema tradicional Centro-Periferia, o Brasil foi empurrado, em nome da inserção competitiva (sic), para uma inserção desastrada que culminou na desvalorização do real de 1999.

As políticas inspiradas no Consenso Neoliberal desataram a valorização da taxa de câmbio real (neste caso, na contramão do Consenso de Washington), a privatização das empresas produtoras de insumos e serviços fundamentais e promoveram uma elevação da carga tributária, onerando, sobretudo a indústria, o investimento e as exportações. As privatizações tinham como propósito de curto prazo aumentar a receita do governo. Na verdade, a receita fiscal foi tragada pela carga de juros - irmã siamesa do câmbio real valorizado. A suposta eficiência dos serviços privatizados escorreu pelo ralo do aumento real de tarifas. A cavalgada desses Três Cavaleiros do Apocalipse não prescindiu do Quarto, o bombardeio da opinião pública pelos ditos formadores de opinião.

O Brasil encerrou os anos noventa com uma regressão da estrutura industrial, ou seja, não acompanhou o avanço e a diferenciação setorial da indústria manufatureira global e, ademais, perdeu competitividade e elos nas cadeias que conservou. Contrariamente ao afirmado pela vulgata neoliberal a respeito da globalização, o movimento de re-localização manufatureira foi determinado por duas forças complementares e, não raro, conflitantes: o movimento competitivo da grande empresa transnacional para ocupar espaços demográficos de mão de obra abundante e as políticas nacionais dos Estados Soberanos nas áreas receptoras.

Nos anos 2000, a estrutura e a dinâmica da produção e do comércio globais, originada pela concomitância entre os movimentos da grande empresa e as políticas nacionais (particularmente as da China), colocou o Brasil, por conta de sua dotação de recursos naturais-água, energia, terras agriculturáveis, base mineral – em posição simultaneamente promissora e perigosa. Bafejado pela liquidez internacional - antes e depois do estouro da bolha imobiliária - e abalroado pela demanda chinesa de commodities, o Brasil, foi condescendente com a ampliação e generalização do déficit comercial que afetou a maioria dos setores industriais, ao mesmo tempo em que o agronegócio e a mineração sustentavam um superávit global no comércio exterior.

A abundância de divisas teve larga contribuição do fluxo de capitais – antes e depois da crise financeira. A situação benigna provocou o descuido com a persistência dos fatores que determinaram o encolhimento e a perda de dinamismo da indústria: câmbio valorizado, tarifas caras, em termos internacionais, dos insumos de uso geral e carga tributária onerosa. Na medida em que tivemos a ventura de ampliar o déficit financiável em conta corrente, o câmbio passou a apresentar uma tendência acentuada e contínua de valorização.

A crise financeira internacional e as políticas monetárias utilizadas nos países desenvolvidos para conter seus efeitos só agravaram a situação. Por um lado, o aguçamento da competição global aumentou a agressividade dos exportadores de manufaturas e, de outro, a nossa posição como exportadores (atuais e potencias) de commodities deu maior fôlego ao influxo de capitais. Essa combinação é extremamente prejudicial à indústria e promete uma nova e inaceitável “rodada” de regressão da manufatura. Essa configuração de fatores internos e externos já sinaliza um recuo nas decisões de investir dos empresários.

Fica claro que a falsa inserção competitiva da economia brasileira está cobrando o seu preço. Falsa, porque as políticas dos anos 90 entendiam que bastava expor a economia à concorrência externa e privatizar para lograr ganhos de eficiência micro e macroeconômicas. Percorremos o caminho inverso dos asiáticos que abriram a economia para as importações redutoras de custos. A abertura estava, portanto, comprometida com os ganhos de produtividade voltado para aumento das exportações. As relações importações/exportações faziam parte das políticas industriais, ou seja, do projeto que combinava o avanço das grandes empresas nacionais nos mercados globais e a proteção do mercado interno. As importações não tinham o objetivo de abastecer o consumo das populações. Estas, se beneficiaram, sim, dos ganhos de produtividade e da diferenciação da estrutura produtiva assentada em elevadas taxas de investimento.

Curiosamente, o Brasil já havia adotado políticas ativas de inserção internacional no final dos anos 60, com a criação do Befiex e de outros instrumentos de promoção dos ganhos de produtividade e de estímulo às exportações de manufaturados. A sanha liberalóide, a submissão política e a crença em duendes do livre-mercado destruiu tudo. A economista americana Alice Amsdem, especialista nas experiências de desenvolvimento do pós-guerra em seu livro The Rise of The Rest (2001) deixa claro que, já antes da crise do petróleo de 1973, o Brasil havia constituído um sistema “agressivo” de promoção das exportações.

As indústrias que nasceram do processo de substituição de importações nos anos 40 e 50 - aço, produtos químicos, automóveis, máquinas e equipamentos tornaram-se, na segunda metade dos anos 60, fornecedoras de produtos nos mercados externos. Alice Amsdem demonstra que o sistema de incentivos criados pelo governo brasileiro – como a prática das mini-desvalorizações cambiais, os mecanismos de drawbrack, o financiamento das exportações e os subsídios fiscais reduziram significativamente o risco dos exportadores.

O crescimento brasileiro jamais se valeu de uma estratégia de crescimento puxada pelas exportações – export led – mas, a partir dos anos 60 procurou estimular as exportações para ampliar a capacidade de importar e afastar o risco do estrangulamento externo. Nesse particular, o crescimento brasileiro tem grande semelhança com o crescimento dos Estados Unidos, uma economia continental. Dotados de fartos recursos naturais, os Estados Unidos recorreram a políticas escancaradamente protecionistas para garantir o seu desenvolvimento industrial, voltado, sobretudo para o mercado interno.

O país incorporou 16 milhões de famílias ao mercado de consumo moderno por conta das políticas sociais e de elevação do salário mínimo que habilitam esses novos cidadãos ao crédito. Essa incorporação será limitada se não estiver apoiada na ampliação do espaço de criação da renda. Nas economias emergentes bem sucedidas, a ampliação do espaço de criação da renda é fruto da articulação entre as políticas de desenvolvimento da indústria (incluídas a administração do comércio exterior e do movimento de capitais) e o investimento público em infraestrutura. Esse arranjo, ao promover o crescimento dos salários e dos empregos gera, em sua mútua fecundação, estímulos às atividades complementares e efeitos de encadeamento para trás e para frente.

Não se trata de retornar às politicas dos anos 50, 60 e 70, mas de ajustar a estratégia nacional de desenvolvimento às oportunidades e restrições criadas pela nova configuração da economia mundial.

O modelo adotado desde os anos 90, no entanto, a pretexto de estimular a competitividade da indústria, realizou a operação contrária. Desestimulou as exportações de manufaturados e favoreceu as importações predatórias, filhas diletas do cambio valorizado, dos custos elevados dos insumos de uso generalizado e de um sistema tributário irracional.

Daí, uma nova estapa de crescimento industrial não deve contemplar – nem pode, nas condições atuais da economia mundial – uma estratégia export led. O Brasil está em condições de estabelecer uma macroeconomia da reindustrialização usando de forma inteligente as vantagens que se revelaram recentemente. Não se trata de concentrar os esforços na manutenção de um câmbio subvalorizado mas de desenvolver um conjunto de políticas voltado para o objetivo de expansão do mercado interno sem incorrer nas restrições de balanço de pagamentos. Nessa estratégia, não cabe a determinação da taxa de câmbio como um ativo cujo “preço” é formado pelo movimento de capitais. A taxa de câmbio tem que ser administrada de modo a evitar valorizações bruscas como a observada nos últimos meses, em que o valor da morda brasileira em relação ao dólar passou de R$ 1,85 a R$ 1,70.

Essa estatégia apoiada no mercado interno envolve ademais o equilíbrio do orçamento corrente e a rápida ampliação do orçamento de investimento e o prosseguimento do processo de inclusão e de distribuição de renda. Mas isso será viavel se os recursos oriundos do pré-sal forem destinados à correção das distorções da estrutura tributária e para reverter o encarecimento dos insumos fundamentais, além de gerar espaço e demanda para a reindustrialização.

Mais do que uma política industrial, concebida em termos restritos, o Brasil reclama um arranjo que promova a reindustrialização. Esse arranjo deve estar apoiado no potencial de seu mercado interno, nas vantagens competitivas do agronegócio e da mineração - agora acrescidas das perpectivas do pré-sal - e no seu sistema público de financiamento.

(*) Luiz Gonzaga Belluzzo é economista, professor titular da Unicamp. Júlio Sérgio G. Almeida é economista, professor titular da Unicamp.

O naufrágio da Grã-Bretanha neoliberal - V. Safatle, em Carta Capital

Reino Unido, laboratório de catástrofes

Nos últimos 30 anos, o Reino Unido transformou-se em uma espécie de laboratório de catástrofes. Espaço das ideias “inovadoras” que pareciam quebrar consensos estabelecidos, chega hoje a uma situação social e econômica bem exemplificada na frase enunciada desesperadamente por seu ministro das Finanças, George Osborne, há mais de uma semana, à ocasião da aprovação do novo Orçamento: “Nós vamos assistir aos Brasis, às Chinas e às Índias como potências mundiais à nossa frente na economia global ou teremos a determinação nacional de dizer: ‘Não, não ficaremos para trás. Nós queremos liderar?”
Se Osborne tivesse um pouco de curiosidade especulativa, ele perceberia que a crise na qual seu país entrou, de maneira muito mais forte se comparada a vizinhos como a França e a Alemanha, é apenas o último capítulo de uma destruição há muito gestada. Sem parque industrial relevante, sem base agrícola, com a economia reduzida ao setor de serviços e finanças, o Reino Unido é o melhor exemplo de um país completamente vulnerável aos humores da economia mundial nesta época de desregulamentação.
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As respostas a tal vulnerabilidade parecem mecanismos autistas de defesa que só conseguem piorar o quadro. Para começar, o primeiro-ministro David Cameron, bastião da moralidade britânica e amigo de cidadãos irrepreensíveis como o magnata da mídia Rupert Murdoch, apresentou um pacto recessivo baseado em cortes de gastos estatais, demissão de 400 mil funcionários públicos e privatização de fato do sistema universitário, com direito a fechamento de departamentos não alinhados ao novo padrão técnico de ensino.
Não é preciso ser um keynesiano radical para perceber que tal política apenas piora a capacidade da economia de contar com seu mercado interno, isto em uma época em que o Reino Unido nada tem a exportar. Sem lembrar que, ao desmantelar ainda mais os aparelhos de seguridade social, Cameron deu sua contribuição para colocar fogo na crise social que a Inglaterra assistiu não faz muito tempo: no ano passado, quando hordas de jovens da periferia quebraram e saquearam lojas.
Seu governo apresenta agora um inacreditável “plano de recuperação” baseado em corte de tributos para os mais ricos (cujo Imposto de Renda cairá de 50% para 45%) e aumento da idade para a aposentadoria. A justificativa para a redução do imposto dos ricos seria “incentivar o aumento do empreendedorismo”. Não, não se trata de uma piada. Cameron quer levar os britânicos a acreditar que os milionários não pegarão tal sobra de dinheiro e a aplicarão no sistema financeiro internacional, principalmente em países como o Brasil, onde eles terão muito mais retorno com juros do que empreendendo em uma economia combalida. O Reino Unido ganharia mais se tivesse um governo com os pés no chão, em vez de indivíduos que deliram mundos possíveis onde ricos investem na produção e bancos trabalham em favor da economia real.
A passividade britânica diante dos desatinos de seu governo vem, entre outras coisas, da sedação pela qual o país passou nestes últimos 30 anos. Primeiro, foi a era Thatcher com a tríade desregulamentação do sistema financeiro, privatização e flexibilização do mercado de trabalho, e a consequente Jihad contra os sindicatos. Estávamos na década de 1980 e Thatcher formava com Ronald Reagan o Casal 20 dos novos tempos. Impulsionada por fatos externos, entre eles a Guerra das Malvinas e o lento colapso do bloco soviético, Thatcher parecia seguir a direção do vento. Ninguém percebia como suas pregações por democracia escondiam amizades pessoais com Augusto Pinochet e afirmações medonhas como “a sociedade civil não existe”. Ninguém queria perceber a transformação da economia britânica em uma tênue vidraça a ser quebrada na primeira crise real.
Depois veio Tony Blair, que passou anos a tentar convencer o mundo sobre o mito da Terceira Via, que transformaria seu reino em uma Cool Britannia moderna e glamourosa. Enquanto Blair se preparava para seguir George W. Bush em suas mais delirantes intervenções internacionais, tínhamos de ouvir seu amigo Anthony Giddens nos dizer que o Estado de Bem-Estar Social havia acabado e que a sociedade de risco viria para ficar. Só faltou explicar que nesta sociedade os riscos são divididos de acordo com a boa e velha lógica de conflito de classe, como vemos claramente agora. Ou seja, riscos são muito diferentes quando estou autorizado a pegar dinheiro que o governo investe em bancos falidos e pagar minhas bonificações e stock options.
Choque neoliberal, Terceira Via: depois de décadas de predomínio de tais absurdos, fica realmente difícil para a sociedade britânica voltar a pensar em alternativas concretas. Resta ver seu governo tentar vender, como remédio, as próprias causas da doença. De nossa parte, diremos ao ministro Osborne: creio que essa história de liderança ficará apenas na vontade.

postado no site de Carta Capital 

Mélenchon, o Lula francês

Jean-Luc Mélenchon (“Bairros Populares, bairros solidários”) – Há muito mérito em vocês terem vindo me encontrar. Li nos jornais, que vocês não estão aqui por ideias, mas para “assistir a um show” [vaias]. Obrigado.
Viemos todos até aqui, porque aqui é como uma fronteira, entre a zona industrial mais importante e mais rica da Europa, e a cidade mais pobre de toda a região de Île de France [1]. Esse contraste apaga os discursos pretensiosos que já ouvi sobre os centros e as periferias, os subúrbios (banlieues) e os bairros. Como aquele discurso poderia explicar que aqui, num mesmo lugar, concentrem-se imensa pobreza sempre crescente e os polos mais avançados do espírito, da pesquisa, bem ao lado do Syncotron [2], com uma estação do trem-bala TGV [3], um aeroporto?
Como se pode explicar que aqui, onde há de tudo, haja também tanta pobreza, tanta dificuldade para viver? Esse é o escândalo que vim apontar, aos que se dizem sem máscara. Ainda agora ........ queria que eu não viesse falar aqui. Como se fosse o caso de se manter à parte, preservado entre os iguais, impedir que viéssemos falar aqui, tomar a palavra, quando todos deveriam, isso sim, vir até aqui, e falar aos companheiros. É preciso que a França inteira veja o que se passa aqui [bravo!].
O que se passa aqui é essa estigmatização favorecida por um punhado de energúmenos, sempre postos em cena. É preciso que os apontemos. Temos de mostrar nossos bairros, nossas cidades, para que eles também vejam essas imagens, para que tenhamos também o direito à imagem, para que deixemos de ser pretexto da boa consciência da boa sociedade, que precisa de que haja esses bantustões, onde prendem, onde cercam uma parte da população, que eles põem a viver em círculos, presos em suas misérias e sofrimentos [bravo, bravo].
Que a França toda veja o que foi feito dessas crianças que todos discriminam. Por isso todas as descriminações que se conhecem têm de ser apontadas. Por isso, é preciso acrescentar, na lei, a discriminação pelo endereço, que é a mais infame, talvez, que temos a suportar, pois propõe um princípio de culpabilização coletiva inaceitável.
Aqui se vê, vocês que me ouvem de longe, a infinita paciência dos suburbanos (banlieues).
O que mais queremos é mostrar a força e a potência de nossa vontade de estar reunidos, numa França unida e indivisível [Viva a França!], na qual recusamos a guerra entre nós, pela cor da pele e pela religião [Resistência! Resistência!].
Meus amigos, antes de tudo, expulsem do coração de vocês o veneno do autodesprezo e do ódio ao outro, que essa é a pior das cadeias às quais poderiam prender vocês. 
Claro que vocês verão gente que têm as soluções já prontas, pequenos grupos ou grandes partidos, que se apresentarão como se soubessem, melhor que os que se encontram aqui, o que seria preciso fazer. Sempre há listas de medidas prontas. Mas nunca serão melhores listas as que sejam feitas pelas pessoas que se organizam. Vocês ouvirão muitas ideias prontas, da boca de uns e outros que só porque são candidatos apresentam-se como se soubessem melhor que vocês o que seria preciso fazer.
Nós somos sempre mais fortes quando nos amparamos na nossa inteligência coletiva, do que quando ouvimos propostas de um ou outro que se apresenta como se soubesse melhor que nós, o que é preciso fazer.
No fundo, o problema é um só. Só há um problema: é o problema da distribuição, da partilha da riqueza.
O mais absolutamente necessário de tudo é que a imensa riqueza acumulada no nosso país, seja partilhada. Que deixe de acumular-se só num polo da sociedade, enquanto o outro nada tem. Como se vê nesse mapa inverossímil segundo o qual ao longo da linha do trem transeuropeu, se se parte de Luxemburgo até o fim da linha, vê-se que tudo se vai degradando, ao longo do percurso: o que se tem, o número de médicos por metro quadrado, o número de professores sem os quais os nossos jovens não podem fazer o progresso humano do qual nossa sociedade carece para crescer e encontrar o equilíbrio. 
Não acreditem nos que dirão a vocês que há soluções locais. Não estamos numa eleição municipal ou cantonal. Estamos numa eleição que diz respeito a todo o país, no coração da Europa.
Nosso objetivo, apesar de tudo que dirão contra nós, é quebrar essa cadeia que, em toda a Europa, procura manter o povo na austeridade e na dependência do grande capital que decidiu aumentar, a favor da dívida, a predação sobre toda a sociedade. Temos de consagrar a isso toda a nossa energia, toda nossa inteligência, toda nossa mobilização. Esse é o problema que temos de vencer.
Partilhar as riquezas. Imponham a partilha! O problema e as soluções andam juntos. Nada há aqui de diferente do que se vê por toda a parte. Faltam professores, falta saúde, transporte, segurança, esses não são problemas locais, são problemas gerais. Ataquem o coração do sistema! Ataquem onde se acumula a riqueza. Partilhem, imponham a partilha [Resistência! Resistência!] Sim, resistência! Resistência!
Agora, no caminho, antes de chegar aqui para encontrar vocês, encontrei uma senhora, uma mulher honesta, que vive de seu trabalho e luta para manter sua família, virou-se para mim e disse: “O senhor sabe, Senhor Mélenchon, essas coisas sempre andam muito depressa. Pensamos sempre que só acontece com os outros, até que, um dia, cortam a eletricidade da nossa casa. E então, como fazer, para cuidar das crianças, da família?” E outra me disse: “Na minha casa, cortaram a água”. 
Qual é a primeira coisa que temos de dizer entre nós, uns aos outros? Que só contamos conosco. Nada se deve esperar dos que chegam com boas palavras. Comece cada um dando a mão a quem esteja próximo. Seja cada um fraterno, todos vocês fraternos entre vocês mesmos. Ajudem o companheiro que vacila, que cai. Lembrem-se sempre que, em todas as circunstâncias, a fraternidade, a solidariedade que une vocês, sempre será mais forte que qualquer adversidade. Lembrem sempre que, sim, nós podemos tomar as medidas que tenham de ser tomadas. Não é verdade, não, de modo algum, que estamos condenados ao fracasso.
É o que digo, não só no meu programa, mas sempre e imediatamente. É o que mostraram nossos camaradas da ....., que religam a energia elétrica dos que tenham tido a energia cortada. Glória ao Robin Hood! [aplausos]. Como eles fizeram, amigos e camaradas, que o primeiro faça o que tiver de ser feito.
Quero dizer: as coisas sem as quais a vida não é possível, o primeiro metro cúbico de água, o primeiro Kw/h, deve custar o mesmo preço que o último. Mas o primeiro metro cúbico de água, o primeiro Kw/h sem os quais não se pode viver com dignidade, esses têm de ser mais baratos. E que se aumentem os preços dos metros cúbicos de água usados para encher piscinas e para outras finalidades desse tipo.
Criar tarifas sociais para os bens essenciais, essa é a primeira medida que terá de tomar a nova República que queremos construir, a República social, a 6ª República.
Meus amigos, quantas vezes, quando se ouve falar dos subúrbios (banlieues) e dos bairros, vê-se que quem fala esquece a imensa riqueza humana que vive aqui. E quando se fala da humanidade, as reclamações pesam contra nós, e nada se diz contra os que creem que o principal valor da existência é o lucro, o dinheiro.
O primeiro valor da humanidade é o amor e a fraternidade. Por isso digo a esses jovens que estão aqui, lembrando dos meus pais: jamais desprezem ou se envergonhem de seu pai e de sua mãe imigrantes, que tiveram a coragem de partir para oferecer a vocês um futuro melhor. Pensem nos filhos de vocês que nascerão e crescerão aqui, bem vindos.
Nós somos todos um povo só, a nova França, somos a vanguarda desse país que construímos juntos. Somos todos parecidos, somos todos iguais na França republicana, cada vez que renovamos o juramento inicial “Liberdade, igualdade, fraternidade”.
Não escutem os que dizem a vocês que é preciso manter submissos os que hoje não têm os documentos legais exigidos pelo Estado! Porque, se não dermos a eles o direito de viver livres, de se organizar em sindicatos, se lhes negamos o direito à resistência, nós os estaremos condenando ao sofrimento do medo cotidiano, eles e seus filhos. E assim, a iniquidade se instala entre nós, surgem trabalhadores que lutam uns contra os outros. E nos condenamos, nós, não eles, a combater entre nós mesmos, uns contra os outros.
Por isso digo, olhando nos olhos a quem me pergunta e me acusa:
“Sim, nós daremos todos os documentos legais necessários a todos os trabalhadores indocumentados (sans-papiers)! Daremos a eles esses documentos, porque não podemos esperar pelos professores de Direito Comparado, que nos digam qual seria a fórmula perfeita de prestação social. As coisas não se passam assim. O inimigo é a miséria. A miséria é madrasta. É preciso combater a miséria.
Que fazem vocês, poderosos, que reclamam que nós, que partimos pela trilha do imigrante [4], sempre o rumo sul, com risco de nossa própria vida, se vocês destruíram toda a agricultura nos nossos países de origem? Prestem contas! Por que desperdiçam, por que vendem a preço vil o produto da agricultura intensiva que a Europa subvenciona, e que destruiu toda a agricultura de subsistência nos nossos países? Vocês são culpados de toda aquela miséria! Por isso queremos acabar com a miséria, mudando as políticas que geram o que vivemos hoje!”
Jamais diremos outra coisa. O problema central é sempre organizar a distribuição da riqueza, seja no plano nacional ou internacional.
Assim também, não aceitarei jamais o discurso que aponta o dedo para algumas áreas da França ou a alguns bairros das cidades, e voltam sempre à conversa fiada da segurança, como se fosse o mal dos males e fosse assim por responsabilidade ou consentimento nosso, dos pobres. Como se houvesse uma única casa, uma única família, onde o pai e a mãe não se desesperem se o filho se atrasa na volta para casa, onde o pai e a mãe não sofram se o filho não vai bem na escola. Mas há também os que fazem tudo certo, que vão bem na escola, mas, mesmo assim, são condenados pelo endereço, ou, ainda pior, porque são desempregados e discriminados! Os pais e mães que vivem aqui são iguais aos pais e mães de qualquer lugar. Todos os pais e mães amam seus filhos e querem o sucesso deles. A todos horroriza o sofrimento que vêm à sua volta.
Mas... a televisão mostra sempre os nossos bairros, sempre para mostrar cenas “de tráfico” – que, sim, acontece pela cidade inteira, inclusive nos bairros ricos. Onde estão os grandes traficantes de armas? Porque é claro que o armamento pesado não é comprado na esquina. Quando veremos na televisão os grandes traficantes de droga, de armas? Esse tráfico é organizado! Quando os veremos? Eles zombam de nós!
Zombam também de nós, quando tentam fazer crer que praga abominável do tráfico de drogas brota aqui, nos nossos bairros. Não. Ela brota longe daqui, poderosos da terra! Será que não veem que essa praga brota, sobretudo, nos países onde não há assistência social, nem salário mínimo, onde o Estado é “mínimo”, em resumo, onde reina o paraíso de vocês e seu mercado livre, onde a violência é mais extrema, com seus bandos que fazem a lei e seus exércitos privados?
Não permitimos isso, aqui. Por isso queremos construir essa 6ª República, na qual todas as questões, inclusive a questão da segurança, será questão a ser discutida e encaminhada também pelo povo, para que o povo possa cuidar, ele, dele mesmo.
A solução de todos os problemas de vocês é política! Ela depende de poder político! Da orientação política que vocês darão a nosso país. 
Em poucas semanas, vocês terão a possibilidade de abrir uma brecha, não só na França, não só num partido onde tudo estava arranjado para se passar como sempre, entre os mesmos. Vocês poderão quebrar esse círculo infernal.
Depois de vocês abrirem uma brecha aqui, pela mesma brecha passarão outros, depois de vocês, em eleições que haverá na Grécia, na Alemanha, na Bélgica, numa grande revolta de toda a Europa, para nos libertar todos.
Se agirem como ovelhas, vocês serão degolados. Se se entregarem aos que lhes dizem, em todos os tons, que vocês têm de curvar-se à austeridade, vocês, que já têm quase nada, terão nada e, depois, terão menos que nada.
Se vocês não se ocuparem da política, a política se ocupará de vocês! Disso, podem ter certeza.
Mas temos uma dificuldade imediata [5]. Vivemos hoje um momento em que, por nossos esforços, pelo trabalho de muitos, não de um só homem, o movimento que lançamos e que se verifica mais uma vez hoje pela presença de vocês, já não é movimento de campanha eleitoral, já não é só movimento da Frente da Esquerda, e já se converte em Frente do Povo, do qual ninguém se livrará, seja qual for o resultado das eleições, mesmo que se livrem de mim. [Resistência! Resistência!] A maior força desse movimento da Frente do Povo que vocês estão construindo vem de vocês, de cada um e cada uma.
É o resultado que já conseguimos pela potência de nossa manifestação na Bastilha, em nosso comício de Lille, em breve, com suas bandeiras vermelhas, lenços vermelhos, camisas vermelhas, sapatos vermelhos qualquer coisa, desde que vermelha, as próximas manifestações em Toulouse, em Marselha, que estamos organizando. Tudo isso é, sim, movimento revolucionário! Sim, Mme. Parisot [6], é movimento revolucionário! É a revolução cidadã que avança!
Pois aquela senhora disse, que eu represento o terror... À carteira de dinheiro dela, talvez seja, concordo, dessa gente de cérebro pequeno, cujo coração limita-se à carteira de dinheiro. Para nós, é o contrário. Que nos derrotem, que nos arrasem, é normal, é a democracia. Que digam o que queiram. Eles dizem, nós dizemos. Somos livres: eles, das nossas suas opiniões; nós, das deles.
Mesmo assim, não é possível errar tanto, tão completamente.
Digo-lhes que é pena, grande pena, enorme pena, que, no momento dessa formidável mobilização de vocês todos, quando vocês estão conseguindo levar a candidatura comum da Frente de Esquerda que eu encarno à frente da candidatura da Sra. LePen; no momento em que, pelos esforços pacientes de vocês, quando souberam resistir às caricaturas, às críticas que fizeram e fazem, de mim, e também de vocês mesmos; quando por efeito do trabalho de vocês, que souberam todos levar suas opiniões aos amigos, aos vizinhos, argumentando, respeitando a palavra do outro, exigindo argumentos, para poder responder, contra-argumentar, no momento em que chegamos até aqui...
É pena que, nesse momento, vejo armar-se contra mim um infernal fogo de barragem, “fogo amigo”, inacreditável.
Mas, afinal o que significa isso, esse ataque contra mim, dos que se dizem de esquerda? Prestem atenção à direita! Preocupem-se com Sarkozy, não conosco! [Resistência! Resistência!]. 
Ah, mas nem precisam se explicar! Basta ver a propaganda no caminhão! Lá dentro, eles levam o grande cão de guarda, que gira em torno do próprio rabo, para fazer medo a todo mundo. E assim a democracia se agacha, se encolhe, se acanalha, reduzida a uma espécie de Pnud (?). Só sabem calcular probabilidades, quem tem mais chances, quem não tem chances... Para nunca dizer o que tem de ser dito, para nunca se comprometer, para nunca tomar qualquer posição séria, madura, numa decisão em que se joga o futuro da França por cinco anos! 
Ah, mas nós fizemos o trabalho das ruas! Nos livramos do cão de guarda e estamos agora dedicados a libertar a palavra política na França. Isso, graças ao nosso trabalho político!
Dizem que... Até acho engraçado. Um jornal financeiro pagou alguém – e há quem pague por isso! – para fazer um estudo de imagem. Depois do estudo, concluíram que o Sr. Bayrou controla-se muito bem, porque não mostrou os tiques; e que o Sr. Sarkozy é homem muito sincero, porque não esconde a agitação. E de mim, disseram que agito demais os braços, não porque venho do Mediterrâneo, mas porque pareço um macaco. [Risos. Vaias.].
Meus amigos... Eu não poderia ter recebido mais belo elogio!
A verdade é que nem isso é invenção deles. Já li sobre isso. Também chamaram Ivo Morales, de macaco. Logo depois de eleito, porque Ivo Morales é índio. Também chamaram Obama, de macaco, porque é negro. Também chamaram Hugo Chávez de macaco, porque é moreno. Pois muito me alegra ser incluído nesse clube de macacos! [Aplausos].
Preparem-se. De agora até as eleições, vocês não serão poupados de nenhuma ofensa, de nenhuma provocação. Mesmo agora, estão por aí, aqui mesmo. Ah, não duvidem! Conhecemos bem tudo isso. Eles não se deixam derrotar assim tão facilmente. E nós somos a força, o grande número, a inteligência! Sob o cabelo de macaco, há cérebro!
Enquanto a direita me compara a um macaco, há esse pobre Sr. Gérard Collomb, prefeito de Lyon, [7] que diz que o que lhes proponho é o que já fracassou no Camboja. Muitos talvez não saibam do que se trata. Explico: no Camboja, houve um massacre de dois milhões de pessoas. Eis como me fala gente que posa como socialista! Acusa-me de propor à minha pátria um plano de extermínio de dois milhões de pessoas. Vejam a que ponto chega o discurso que só ofende, agride, separa, segrega. E, em seguida, aparecem os mesmos, com sua pose arrogante. Para dizer que o problema dessa eleição seríamos nós?!
Mas quem leva com coragem a palavra da esquerda, se não nós? Quem reúne outra vez a esquerda nas ruas, em grandes números, se não nós? Mas a palavra da esquerda afinal tem nome! Partilhar! Partilhar! Partilhem!
Aumentar o salário mínimo, salário mínimo a 1.700 euros! Reembolso da saúde, 100%! Porque não é normal que, conforme o endereço, na linha do trem, se morra mais num ponto, que noutro, por falta de assistência médica! Mais professores! Tudo é questão de partilhar.
E me dirijo a vocês, aqui reunidos. Não permitam que nosso subúrbio (banlieue) seja capturado por mercenários que oferecem financiamento aqui ou ali, para calar vocês. Não admitam que o gueto se estabeleça no próprio coração de vocês. Não admitam que nossos bairros, nosso subúrbio (banlieue), o interior do país sejam o mais triste deserto político que os bon vivants esperam ver e ao qual querem condenar vocês. Porque se fizerem o que eles pregam, vocês estarão renunciando àquele momento de grandeza, de dignidade, que o poeta Victor Hugo descreve tão bem, dizendo que, ali, somos todos reis: à boca da urna.
Seja qual for a decisão que cada um tome, com seu voto, o mais miserável é igual ao mais poderoso. Jamais renunciem a essa dignidade, porque vocês são muitos, portanto são a força, e a decisão está nas mãos de vocês. Não acreditem nos que lhes pedem que digam só o que acham melhor para o seu bairro. Pensem no que desejam para toda a pátria.
Constituiremos Comitês da Frente do Povo nos bairros, para fazer o levantamento global dos pontos fortes e dos pontos fracos. E com essa lista assim estabelecida, a ação política será dirigida a partir de instruções que virão de baixo.
É preciso governar por Indicadores de Desenvolvimento Humano. Temos de ter a coragem de aplicar aos nossos bairros, ao interior da França, os mesmos instrumentos de medida que se aplicam pelo mundo e que aqui se desprezam, sob o pretexto de que a França seria “país desenvolvido”. Quero que todos saibamos qual é o nível de mortalidade infantil em cada bairro, em cada vila. O nível de alfabetização, de acesso à cultura, bairro a bairro, para que todos se vejam e para que se estime com clareza o que falta fazer. Erradicar o analfabetismo, melhor cultura para todos, porque esse é o caminho para que o ser humano melhore. E com melhor coração, o ser humano é melhor para a sociedade inteira.
Assumam o lugar de vocês mesmos no grande movimento que estamos construindo. Deem-me a chance, não a mim, porque nada quero para mim, que, eu, já tive tudo, mas para muitos tenham acesso a todos os benefícios que tive a sorte de ter.
Não apliquem a moral do egoísmo, do “aproveite-se você mesmo”. Olhem à volta e vejam toda a inteligência que é preciso liberar, toda a inteligência que está aqui sufocada.
Só tenho mais uma palavra a dizer, que, do resto, vocês sabem tudo.
Aconteça o que acontecer, o movimento continuará, sim, mas temos o dever de derrotar Sarkozy. Que seja derrota completa, grande, ampla derrota, a de Sarkozy. Não por ira pessoal, que não somos gente de ódio. Mas temos de derrotar uma política que arrasta com ela a infelicidade de muitos.
Mas vejam o que está acontecendo na Grécia de Papandreou que se rendeu imediatamente. E os gregos foram esmagados por sete planos de austeridade.
Nós podemos afinal, dar a toda a Europa um sinal de é possível uma nova organização política da sociedade, que partilha a riqueza, protege o mundo natural e parte da ideia de que o valor principal é o valor humano.
Aos mais jovens, quero dizer que não duvidem, que não se deixem arrancar de vocês mesmos, que não se rendam à caricatura de vocês que lhes queiram impor nem ao folclore que lhes sugerem. A França é nossa. Esse país é nosso. Não importa de onde vieram vocês, os pais de vocês, seja qual for a cor da pele, seja qual for a religião. A França é grande, porque vocês são grandes.
Viva a França, viva a República, viva a Internacional!

O candidato Mélenchon, o Lula francês

Jean-Luc Mélenchon (“Bairros Populares, bairros solidários”) – Há muito mérito em vocês terem vindo me encontrar. Li nos jornais, que vocês não estão aqui por ideias, mas para “assistir a um show” [vaias]. Obrigado.
Viemos todos até aqui, porque aqui é como uma fronteira, entre a zona industrial mais importante e mais rica da Europa, e a cidade mais pobre de toda a região de Île de France [1]. Esse contraste apaga os discursos pretensiosos que já ouvi sobre os centros e as periferias, os subúrbios (banlieues) e os bairros. Como aquele discurso poderia explicar que aqui, num mesmo lugar, concentrem-se imensa pobreza sempre crescente e os polos mais avançados do espírito, da pesquisa, bem ao lado do Syncotron [2], com uma estação do trem-bala TGV [3], um aeroporto?
Como se pode explicar que aqui, onde há de tudo, haja também tanta pobreza, tanta dificuldade para viver? Esse é o escândalo que vim apontar, aos que se dizem sem máscara. Ainda agora ........ queria que eu não viesse falar aqui. Como se fosse o caso de se manter à parte, preservado entre os iguais, impedir que viéssemos falar aqui, tomar a palavra, quando todos deveriam, isso sim, vir até aqui, e falar aos companheiros. É preciso que a França inteira veja o que se passa aqui [bravo!].
O que se passa aqui é essa estigmatização favorecida por um punhado de energúmenos, sempre postos em cena. É preciso que os apontemos. Temos de mostrar nossos bairros, nossas cidades, para que eles também vejam essas imagens, para que tenhamos também o direito à imagem, para que deixemos de ser pretexto da boa consciência da boa sociedade, que precisa de que haja esses bantustões, onde prendem, onde cercam uma parte da população, que eles põem a viver em círculos, presos em suas misérias e sofrimentos [bravo, bravo].
Que a França toda veja o que foi feito dessas crianças que todos discriminam. Por isso todas as descriminações que se conhecem têm de ser apontadas. Por isso, é preciso acrescentar, na lei, a discriminação pelo endereço, que é a mais infame, talvez, que temos a suportar, pois propõe um princípio de culpabilização coletiva inaceitável.
Aqui se vê, vocês que me ouvem de longe, a infinita paciência dos suburbanos (banlieues).
O que mais queremos é mostrar a força e a potência de nossa vontade de estar reunidos, numa França unida e indivisível [Viva a França!], na qual recusamos a guerra entre nós, pela cor da pele e pela religião [Resistência! Resistência!].
Meus amigos, antes de tudo, expulsem do coração de vocês o veneno do autodesprezo e do ódio ao outro, que essa é a pior das cadeias às quais poderiam prender vocês. 
Claro que vocês verão gente que têm as soluções já prontas, pequenos grupos ou grandes partidos, que se apresentarão como se soubessem, melhor que os que se encontram aqui, o que seria preciso fazer. Sempre há listas de medidas prontas. Mas nunca serão melhores listas as que sejam feitas pelas pessoas que se organizam. Vocês ouvirão muitas ideias prontas, da boca de uns e outros que só porque são candidatos apresentam-se como se soubessem melhor que vocês o que seria preciso fazer.
Nós somos sempre mais fortes quando nos amparamos na nossa inteligência coletiva, do que quando ouvimos propostas de um ou outro que se apresenta como se soubesse melhor que nós, o que é preciso fazer.
No fundo, o problema é um só. Só há um problema: é o problema da distribuição, da partilha da riqueza.
O mais absolutamente necessário de tudo é que a imensa riqueza acumulada no nosso país, seja partilhada. Que deixe de acumular-se só num polo da sociedade, enquanto o outro nada tem. Como se vê nesse mapa inverossímil segundo o qual ao longo da linha do trem transeuropeu, se se parte de Luxemburgo até o fim da linha, vê-se que tudo se vai degradando, ao longo do percurso: o que se tem, o número de médicos por metro quadrado, o número de professores sem os quais os nossos jovens não podem fazer o progresso humano do qual nossa sociedade carece para crescer e encontrar o equilíbrio. 
Não acreditem nos que dirão a vocês que há soluções locais. Não estamos numa eleição municipal ou cantonal. Estamos numa eleição que diz respeito a todo o país, no coração da Europa.
Nosso objetivo, apesar de tudo que dirão contra nós, é quebrar essa cadeia que, em toda a Europa, procura manter o povo na austeridade e na dependência do grande capital que decidiu aumentar, a favor da dívida, a predação sobre toda a sociedade. Temos de consagrar a isso toda a nossa energia, toda nossa inteligência, toda nossa mobilização. Esse é o problema que temos de vencer.
Partilhar as riquezas. Imponham a partilha! O problema e as soluções andam juntos. Nada há aqui de diferente do que se vê por toda a parte. Faltam professores, falta saúde, transporte, segurança, esses não são problemas locais, são problemas gerais. Ataquem o coração do sistema! Ataquem onde se acumula a riqueza. Partilhem, imponham a partilha [Resistência! Resistência!] Sim, resistência! Resistência!
Agora, no caminho, antes de chegar aqui para encontrar vocês, encontrei uma senhora, uma mulher honesta, que vive de seu trabalho e luta para manter sua família, virou-se para mim e disse: “O senhor sabe, Senhor Mélenchon, essas coisas sempre andam muito depressa. Pensamos sempre que só acontece com os outros, até que, um dia, cortam a eletricidade da nossa casa. E então, como fazer, para cuidar das crianças, da família?” E outra me disse: “Na minha casa, cortaram a água”. 
Qual é a primeira coisa que temos de dizer entre nós, uns aos outros? Que só contamos conosco. Nada se deve esperar dos que chegam com boas palavras. Comece cada um dando a mão a quem esteja próximo. Seja cada um fraterno, todos vocês fraternos entre vocês mesmos. Ajudem o companheiro que vacila, que cai. Lembrem-se sempre que, em todas as circunstâncias, a fraternidade, a solidariedade que une vocês, sempre será mais forte que qualquer adversidade. Lembrem sempre que, sim, nós podemos tomar as medidas que tenham de ser tomadas. Não é verdade, não, de modo algum, que estamos condenados ao fracasso.
É o que digo, não só no meu programa, mas sempre e imediatamente. É o que mostraram nossos camaradas da ....., que religam a energia elétrica dos que tenham tido a energia cortada. Glória ao Robin Hood! [aplausos]. Como eles fizeram, amigos e camaradas, que o primeiro faça o que tiver de ser feito.
Quero dizer: as coisas sem as quais a vida não é possível, o primeiro metro cúbico de água, o primeiro Kw/h, deve custar o mesmo preço que o último. Mas o primeiro metro cúbico de água, o primeiro Kw/h sem os quais não se pode viver com dignidade, esses têm de ser mais baratos. E que se aumentem os preços dos metros cúbicos de água usados para encher piscinas e para outras finalidades desse tipo.
Criar tarifas sociais para os bens essenciais, essa é a primeira medida que terá de tomar a nova República que queremos construir, a República social, a 6ª República.
Meus amigos, quantas vezes, quando se ouve falar dos subúrbios (banlieues) e dos bairros, vê-se que quem fala esquece a imensa riqueza humana que vive aqui. E quando se fala da humanidade, as reclamações pesam contra nós, e nada se diz contra os que creem que o principal valor da existência é o lucro, o dinheiro.
O primeiro valor da humanidade é o amor e a fraternidade. Por isso digo a esses jovens que estão aqui, lembrando dos meus pais: jamais desprezem ou se envergonhem de seu pai e de sua mãe imigrantes, que tiveram a coragem de partir para oferecer a vocês um futuro melhor. Pensem nos filhos de vocês que nascerão e crescerão aqui, bem vindos.
Nós somos todos um povo só, a nova França, somos a vanguarda desse país que construímos juntos. Somos todos parecidos, somos todos iguais na França republicana, cada vez que renovamos o juramento inicial “Liberdade, igualdade, fraternidade”.
Não escutem os que dizem a vocês que é preciso manter submissos os que hoje não têm os documentos legais exigidos pelo Estado! Porque, se não dermos a eles o direito de viver livres, de se organizar em sindicatos, se lhes negamos o direito à resistência, nós os estaremos condenando ao sofrimento do medo cotidiano, eles e seus filhos. E assim, a iniquidade se instala entre nós, surgem trabalhadores que lutam uns contra os outros. E nos condenamos, nós, não eles, a combater entre nós mesmos, uns contra os outros.
Por isso digo, olhando nos olhos a quem me pergunta e me acusa:
“Sim, nós daremos todos os documentos legais necessários a todos os trabalhadores indocumentados (sans-papiers)! Daremos a eles esses documentos, porque não podemos esperar pelos professores de Direito Comparado, que nos digam qual seria a fórmula perfeita de prestação social. As coisas não se passam assim. O inimigo é a miséria. A miséria é madrasta. É preciso combater a miséria.
Que fazem vocês, poderosos, que reclamam que nós, que partimos pela trilha do imigrante [4], sempre o rumo sul, com risco de nossa própria vida, se vocês destruíram toda a agricultura nos nossos países de origem? Prestem contas! Por que desperdiçam, por que vendem a preço vil o produto da agricultura intensiva que a Europa subvenciona, e que destruiu toda a agricultura de subsistência nos nossos países? Vocês são culpados de toda aquela miséria! Por isso queremos acabar com a miséria, mudando as políticas que geram o que vivemos hoje!”
Jamais diremos outra coisa. O problema central é sempre organizar a distribuição da riqueza, seja no plano nacional ou internacional.
Assim também, não aceitarei jamais o discurso que aponta o dedo para algumas áreas da França ou a alguns bairros das cidades, e voltam sempre à conversa fiada da segurança, como se fosse o mal dos males e fosse assim por responsabilidade ou consentimento nosso, dos pobres. Como se houvesse uma única casa, uma única família, onde o pai e a mãe não se desesperem se o filho se atrasa na volta para casa, onde o pai e a mãe não sofram se o filho não vai bem na escola. Mas há também os que fazem tudo certo, que vão bem na escola, mas, mesmo assim, são condenados pelo endereço, ou, ainda pior, porque são desempregados e discriminados! Os pais e mães que vivem aqui são iguais aos pais e mães de qualquer lugar. Todos os pais e mães amam seus filhos e querem o sucesso deles. A todos horroriza o sofrimento que vêm à sua volta.
Mas... a televisão mostra sempre os nossos bairros, sempre para mostrar cenas “de tráfico” – que, sim, acontece pela cidade inteira, inclusive nos bairros ricos. Onde estão os grandes traficantes de armas? Porque é claro que o armamento pesado não é comprado na esquina. Quando veremos na televisão os grandes traficantes de droga, de armas? Esse tráfico é organizado! Quando os veremos? Eles zombam de nós!
Zombam também de nós, quando tentam fazer crer que praga abominável do tráfico de drogas brota aqui, nos nossos bairros. Não. Ela brota longe daqui, poderosos da terra! Será que não veem que essa praga brota, sobretudo, nos países onde não há assistência social, nem salário mínimo, onde o Estado é “mínimo”, em resumo, onde reina o paraíso de vocês e seu mercado livre, onde a violência é mais extrema, com seus bandos que fazem a lei e seus exércitos privados?
Não permitimos isso, aqui. Por isso queremos construir essa 6ª República, na qual todas as questões, inclusive a questão da segurança, será questão a ser discutida e encaminhada também pelo povo, para que o povo possa cuidar, ele, dele mesmo.
A solução de todos os problemas de vocês é política! Ela depende de poder político! Da orientação política que vocês darão a nosso país. 
Em poucas semanas, vocês terão a possibilidade de abrir uma brecha, não só na França, não só num partido onde tudo estava arranjado para se passar como sempre, entre os mesmos. Vocês poderão quebrar esse círculo infernal.
Depois de vocês abrirem uma brecha aqui, pela mesma brecha passarão outros, depois de vocês, em eleições que haverá na Grécia, na Alemanha, na Bélgica, numa grande revolta de toda a Europa, para nos libertar todos.
Se agirem como ovelhas, vocês serão degolados. Se se entregarem aos que lhes dizem, em todos os tons, que vocês têm de curvar-se à austeridade, vocês, que já têm quase nada, terão nada e, depois, terão menos que nada.
Se vocês não se ocuparem da política, a política se ocupará de vocês! Disso, podem ter certeza.
Mas temos uma dificuldade imediata [5]. Vivemos hoje um momento em que, por nossos esforços, pelo trabalho de muitos, não de um só homem, o movimento que lançamos e que se verifica mais uma vez hoje pela presença de vocês, já não é movimento de campanha eleitoral, já não é só movimento da Frente da Esquerda, e já se converte em Frente do Povo, do qual ninguém se livrará, seja qual for o resultado das eleições, mesmo que se livrem de mim. [Resistência! Resistência!] A maior força desse movimento da Frente do Povo que vocês estão construindo vem de vocês, de cada um e cada uma.
É o resultado que já conseguimos pela potência de nossa manifestação na Bastilha, em nosso comício de Lille, em breve, com suas bandeiras vermelhas, lenços vermelhos, camisas vermelhas, sapatos vermelhos qualquer coisa, desde que vermelha, as próximas manifestações em Toulouse, em Marselha, que estamos organizando. Tudo isso é, sim, movimento revolucionário! Sim, Mme. Parisot [6], é movimento revolucionário! É a revolução cidadã que avança!
Pois aquela senhora disse, que eu represento o terror... À carteira de dinheiro dela, talvez seja, concordo, dessa gente de cérebro pequeno, cujo coração limita-se à carteira de dinheiro. Para nós, é o contrário. Que nos derrotem, que nos arrasem, é normal, é a democracia. Que digam o que queiram. Eles dizem, nós dizemos. Somos livres: eles, das nossas suas opiniões; nós, das deles.
Mesmo assim, não é possível errar tanto, tão completamente.
Digo-lhes que é pena, grande pena, enorme pena, que, no momento dessa formidável mobilização de vocês todos, quando vocês estão conseguindo levar a candidatura comum da Frente de Esquerda que eu encarno à frente da candidatura da Sra. LePen; no momento em que, pelos esforços pacientes de vocês, quando souberam resistir às caricaturas, às críticas que fizeram e fazem, de mim, e também de vocês mesmos; quando por efeito do trabalho de vocês, que souberam todos levar suas opiniões aos amigos, aos vizinhos, argumentando, respeitando a palavra do outro, exigindo argumentos, para poder responder, contra-argumentar, no momento em que chegamos até aqui...
É pena que, nesse momento, vejo armar-se contra mim um infernal fogo de barragem, “fogo amigo”, inacreditável.
Mas, afinal o que significa isso, esse ataque contra mim, dos que se dizem de esquerda? Prestem atenção à direita! Preocupem-se com Sarkozy, não conosco! [Resistência! Resistência!]. 
Ah, mas nem precisam se explicar! Basta ver a propaganda no caminhão! Lá dentro, eles levam o grande cão de guarda, que gira em torno do próprio rabo, para fazer medo a todo mundo. E assim a democracia se agacha, se encolhe, se acanalha, reduzida a uma espécie de Pnud (?). Só sabem calcular probabilidades, quem tem mais chances, quem não tem chances... Para nunca dizer o que tem de ser dito, para nunca se comprometer, para nunca tomar qualquer posição séria, madura, numa decisão em que se joga o futuro da França por cinco anos! 
Ah, mas nós fizemos o trabalho das ruas! Nos livramos do cão de guarda e estamos agora dedicados a libertar a palavra política na França. Isso, graças ao nosso trabalho político!
Dizem que... Até acho engraçado. Um jornal financeiro pagou alguém – e há quem pague por isso! – para fazer um estudo de imagem. Depois do estudo, concluíram que o Sr. Bayrou controla-se muito bem, porque não mostrou os tiques; e que o Sr. Sarkozy é homem muito sincero, porque não esconde a agitação. E de mim, disseram que agito demais os braços, não porque venho do Mediterrâneo, mas porque pareço um macaco. [Risos. Vaias.].
Meus amigos... Eu não poderia ter recebido mais belo elogio!
A verdade é que nem isso é invenção deles. Já li sobre isso. Também chamaram Ivo Morales, de macaco. Logo depois de eleito, porque Ivo Morales é índio. Também chamaram Obama, de macaco, porque é negro. Também chamaram Hugo Chávez de macaco, porque é moreno. Pois muito me alegra ser incluído nesse clube de macacos! [Aplausos].
Preparem-se. De agora até as eleições, vocês não serão poupados de nenhuma ofensa, de nenhuma provocação. Mesmo agora, estão por aí, aqui mesmo. Ah, não duvidem! Conhecemos bem tudo isso. Eles não se deixam derrotar assim tão facilmente. E nós somos a força, o grande número, a inteligência! Sob o cabelo de macaco, há cérebro!
Enquanto a direita me compara a um macaco, há esse pobre Sr. Gérard Collomb, prefeito de Lyon, [7] que diz que o que lhes proponho é o que já fracassou no Camboja. Muitos talvez não saibam do que se trata. Explico: no Camboja, houve um massacre de dois milhões de pessoas. Eis como me fala gente que posa como socialista! Acusa-me de propor à minha pátria um plano de extermínio de dois milhões de pessoas. Vejam a que ponto chega o discurso que só ofende, agride, separa, segrega. E, em seguida, aparecem os mesmos, com sua pose arrogante. Para dizer que o problema dessa eleição seríamos nós?!
Mas quem leva com coragem a palavra da esquerda, se não nós? Quem reúne outra vez a esquerda nas ruas, em grandes números, se não nós? Mas a palavra da esquerda afinal tem nome! Partilhar! Partilhar! Partilhem!
Aumentar o salário mínimo, salário mínimo a 1.700 euros! Reembolso da saúde, 100%! Porque não é normal que, conforme o endereço, na linha do trem, se morra mais num ponto, que noutro, por falta de assistência médica! Mais professores! Tudo é questão de partilhar.
E me dirijo a vocês, aqui reunidos. Não permitam que nosso subúrbio (banlieue) seja capturado por mercenários que oferecem financiamento aqui ou ali, para calar vocês. Não admitam que o gueto se estabeleça no próprio coração de vocês. Não admitam que nossos bairros, nosso subúrbio (banlieue), o interior do país sejam o mais triste deserto político que os bon vivants esperam ver e ao qual querem condenar vocês. Porque se fizerem o que eles pregam, vocês estarão renunciando àquele momento de grandeza, de dignidade, que o poeta Victor Hugo descreve tão bem, dizendo que, ali, somos todos reis: à boca da urna.
Seja qual for a decisão que cada um tome, com seu voto, o mais miserável é igual ao mais poderoso. Jamais renunciem a essa dignidade, porque vocês são muitos, portanto são a força, e a decisão está nas mãos de vocês. Não acreditem nos que lhes pedem que digam só o que acham melhor para o seu bairro. Pensem no que desejam para toda a pátria.
Constituiremos Comitês da Frente do Povo nos bairros, para fazer o levantamento global dos pontos fortes e dos pontos fracos. E com essa lista assim estabelecida, a ação política será dirigida a partir de instruções que virão de baixo.
É preciso governar por Indicadores de Desenvolvimento Humano. Temos de ter a coragem de aplicar aos nossos bairros, ao interior da França, os mesmos instrumentos de medida que se aplicam pelo mundo e que aqui se desprezam, sob o pretexto de que a França seria “país desenvolvido”. Quero que todos saibamos qual é o nível de mortalidade infantil em cada bairro, em cada vila. O nível de alfabetização, de acesso à cultura, bairro a bairro, para que todos se vejam e para que se estime com clareza o que falta fazer. Erradicar o analfabetismo, melhor cultura para todos, porque esse é o caminho para que o ser humano melhore. E com melhor coração, o ser humano é melhor para a sociedade inteira.
Assumam o lugar de vocês mesmos no grande movimento que estamos construindo. Deem-me a chance, não a mim, porque nada quero para mim, que, eu, já tive tudo, mas para muitos tenham acesso a todos os benefícios que tive a sorte de ter.
Não apliquem a moral do egoísmo, do “aproveite-se você mesmo”. Olhem à volta e vejam toda a inteligência que é preciso liberar, toda a inteligência que está aqui sufocada.
Só tenho mais uma palavra a dizer, que, do resto, vocês sabem tudo.
Aconteça o que acontecer, o movimento continuará, sim, mas temos o dever de derrotar Sarkozy. Que seja derrota completa, grande, ampla derrota, a de Sarkozy. Não por ira pessoal, que não somos gente de ódio. Mas temos de derrotar uma política que arrasta com ela a infelicidade de muitos.
Mas vejam o que está acontecendo na Grécia de Papandreou que se rendeu imediatamente. E os gregos foram esmagados por sete planos de austeridade.
Nós podemos afinal, dar a toda a Europa um sinal de é possível uma nova organização política da sociedade, que partilha a riqueza, protege o mundo natural e parte da ideia de que o valor principal é o valor humano.
Aos mais jovens, quero dizer que não duvidem, que não se deixem arrancar de vocês mesmos, que não se rendam à caricatura de vocês que lhes queiram impor nem ao folclore que lhes sugerem. A França é nossa. Esse país é nosso. Não importa de onde vieram vocês, os pais de vocês, seja qual for a cor da pele, seja qual for a religião. A França é grande, porque vocês são grandes.
Viva a França, viva a República, viva a Internacional!