domingo, 31 de outubro de 2021

Política e moral Nivaldo T. Manzano

 

Política e Moral – uma lição aos moralistas

Ou: Da impossibilidade de se eliminar o conflito, para a nossa sorte.

Nivaldo T. Manzano

O que é certo ou errado nas relações de poder? Questão equivocada. No âmbito da Política, o poder define-se pela capacidade de mandar (presidir, controlar, dirigir, ordenar, sujeitar, subordinar...) pela força ou pela capacidade de convencimento. É dizer que não existe uma força, uma instância superior às relações de poder, para estabelecer o que é o certo e o errado, como acredita quem confunde Moral com Política. O que existe, pois, são relações de poder, interesses conflitantes, conflitos inerentes a toda sociedade, que não se podem eliminar (nem na futura sociedade comunista, para desapontamento dos aficionados do paraíso terrestre, ou do desencanto na existência).

Assim, não se consegue eliminar diferenças de opinião entre grupos, entre pessoas ou dentro de uma mesma pessoa. O conflito é próprio da condição humana, em qualquer sociedade, o conflito social ou individual, como mostra Luís Fernando Veríssimo, na parábola sobre o conflito do turista: o paladar,aventureiro, quer viajar, para provar novos sabores, enquanto os intestinos, sedentários, querem permanecer em casa, com receio de se expor à mudança de dieta.

A analogia ilustra o caráter positivo do conflito: Se o turista se decide pela viagem, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita equivocadamente a propósito dos pactos políticos ou do entendimento por desavenças entre casais. Pois as partes conflitantes seguem juntas, ainda mais teimosas na sua oposição: os intestinos ainda mais receosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se ele embarca, enfim, é justamente por motivo inverso e complementar: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir.

Em contraste, o consenso é o paralelismo das vontades, que não estimula a solidariedade política (solidariedade no sentido técnico, não moralista), ou seja, não convida à aproximação entre forças divergentes, pois ninguém se dispõe a abdicar do próprio interesse ao custo de apoiar o interesse dos outros. Não é o consenso, mas é a irredutibilidade das diferenças que estimula a promoção de um acordo com vistas ao reforço na posição de cada um. Não haveria interesse na solidariedade, se o preço fosse a abdicação do interesse próprio. Aqui reside o equívoco da filosofia política de Habermas (consenso), ancorada no pensamento de Kant, da superioridade da racionalidade sobre as demais faculdades humanas (ética, estética, sentimentos, intuição). Da política participa o sujeito inteiro, não apenas a racionalidade.

Esta é a lição genial de Homero: Na Odisseia, o conflito é definidor nos contextos das peripécias de Ulisses, em sua longa viagem de volta à casa. Ulisses faz-se atar com cordas no mastro da nau por seus marinheiros, para não ceder à sedução das sereias, dizendo a elas e a si mesmo não, o que se traduzia, no mesmo gesto, em sim a Penélope, a esposa que o esperava em casa, na Ilha de Ítaca. É de admitir que o desejo de retornar a Penélope intensificava-se tanto mais quanto mais o premia a sedução das sereias, de modo que, se não lhe afligisse o conflito, Ulisses não encontraria estímulos para resistir à sedução das sereias nem para ansiar pelo retorno à casa .

Na filosofia da Grécia Antiga, o primeiro a chamar atenção para o conflito na existência foi Heráclito (540 – 470 a. C.), ideia que colheu no mito cosmogônico do devir. Da mesma inspiração provém a filosofia de Hipócrates (460 – 375 a. C.), a mais difundida e duradoura episteme da Cultura Ocidental, tendo se estendido, em parte por influxo do filósofo e médico Averróis (1126 –1198), por dois mil anos – do século V a. C., até pelo menos o fim do século XV. Hipócrates, que, além de filósofo era médico, localiza o conflito no interior do organismo do paciente, a quem perguntava o que estava sentindo,antes de recorrer a instrumentos mecânicos de diagnóstico: o problema estava no SUJEITO na sua resistência ou resposta à pressão do ambiente interno ou externo. Daí que, por extensão teórica, tem-se a compreensão de que dispor de poder político consiste da capacidade (autonomia) de resistir à influência de outrem, ou de sujeição a outrem, e confiar a decisão à própria cabeça. A AUTONOMIA do ser humano, graças à reflexão descolada do mito, é a contribuição mais preciosa da Grécia Antiga à cultura ocidental.

Se ainda hoje a noção de política permanece confusa a muita gente, é porque cientistas desde Descartes (século (1596 – 1650) e a escola, do primário ao nível superior, insistem, por opção ideológica, em defender a COAÇÃO e não a INTERAÇÃO do sujeito com o seu meio interno ou externo. A coação é mecânica, determinista, unidirecional; a interação é contágio, transformação ativa entre as partes (sujeito e meio), da qual resulta um novo estado do problema, um novo estado de equilíbrio em que se instala o conflito, jamais eliminado. Ou seja, a coação dispensa o sujeito como protagonista do processo, individual ou social, ao contrário da interação, que faz do sujeito o protagonista do processo de mudança individual ou social. (Aí está a pedagogia de Paulo Freire). A coação atribui às máquinas (à tecnologia, ao hardware, ao software, ao algoritmo) a fantasia delirante de conduzir e mudar o mundo, em contraste com a interação, que faz do sujeito e da humanidade protagonistas de sua própria história. Goethe ilustrou essa ideia com a sua alegoria do aprendiz de feiticeiro.

Exemplos de coação encontram-se nas teorias da evolução de Charles Darwin e do positivismo de Auguste Comte, ignorantes do caráter interativo do organismo com seu o meio interno e o seu meio externo; equívocos associados também ao funcionalismo do criador da sociologia, Émile Durkheim, e de seu discípulo Talcott Parsons, entre outros ismos, como os monocausais (energetismo etc). Imagine você, que, para eliminar o conflito de sua sociedade imaginária do EQUILÍBRIO, Talcott Parsons, o sociólogo oficial da cultura americana, do período da Guerra Fria aos dias de hoje, entregou o conflito (o “desvio social”) aos cuidados da polícia ou à psiquiatria.

Paralelamente à sua Lógica, Aristóteles advoga na sua Política e na Ética o caráter legítimo, necessário e irremovível do conflito: a defesa do interesse individual se legitima somente quando, ao se associar à solidariedade entre os interesses divergentes, não abre mão do pleito individual. Na defesa de sua ideia, ele recorre a duas analogias: A Política não se reduz à “homofonia de uma mesma voz num coral de vocalistas”, nela se manifesta a “polifonia”, coral de várias vozes, de timbres ou linhas melódicas diferentes, que na sua interação produz a harmonia. Por definição, a harmonia consiste da integração vertical de linhas melódicas distintas e opostas (não contrárias) umas às outras, que geram um efeito conflitivo, ao mesmo tempo divergente e convergente, dissonante consonante (unitário), agradável aos ouvidos. Outro exemplo é o do piquenique, em oposição a um banquete oferecido por um anfitrião aos seus convivas. Ambos os exemplos (da homofonia e do banquete) ilustram a sua rejeição à ideia de Platão de que a Cidade deve ser conduzida unicamente por filósofos, profissionais da Verdade, que, por definição platônica, é única.

A Política, na qual se confrontam opiniões irremovíveis, assemelha-se a um piquenique, diz Aristóteles, no qual os convivas compartilham pratos preparados, cada um na sua casa (divergência), propiciando uma degustação variada, que enriquece o paladar de todos (convergência). Já o banquete não contempla o prazer na sua diversidade, pois o anfitrião oferece um prato único à degustação de todos. Ou seja, Aristóteles confere à Política o lugar do diálogo, ao passo que Platão a reduz ao monólogo (unidirecional, autoritário, aristocrático, de cima para baixo), em nome da remoção do conflito, como condição da eficiência e da eficácia na gestão pública. Platão é o patrono dos tecnocratas.

Aristóteles parece entender que se enxerga melhor e mais profundamente oque se busca enxergar no debate democrático e na existência, quando se associam diversas perspectivas à própria (a visão de outrem, por exemplo). A unidade da visão do objeto, mais aderente à realidade, emerge da convergência das diversas perspectivas, que não se anulam umas às outras (divergência); ao contrário, a enriquecem.

Em outros termos, ao recorrer a essas analogias, Aristóteles pretende mostrar, contra Platão, que a Política é feita da diversidade na unidade, um axioma que conflita contra a sua própria Lógica formal. Não se trata de contradição no pensamento de Aristóteles, pois ele se refere a planos diferentes da realidade humana: A Lógica tem a sua aplicação circunscrita ao mundo das noções abstratas, ao passo que a Política e tudo o mais na existência CONCRETA têm a sua “lógica” na Práxis (Filosofia Prática), que versa sobre a existência concreta, individual e social, das pessoas.

Ou: A abstração, como a ideia de cidadão, por exemplo, não cobre toda a realidade da PESSOA, pois cidadão diz respeito a um dos infinitos papéis, opostos uns aos outros, que uma pessoa pode assumir na existência. A cidadania diz respeito tão somente à dimensão JURÍDICA da pessoa na sua relação com o Estado e vis-à-vis com os demais cidadãos. Mas não é a categoria abstrata do DIREITO (cidadania) que exaure o sentido de PESSOA, ou sujeito. A pessoa também é pai, irmão, amigo, tenista e médico – papeis que se opõem na sua funcionalidade ao mesmo tempo que se integram na UNIDADE de uma mesma pessoa, em desacordo com o princípio de identidade da Lógica abstrata.

Ainda: Aristóteles afirma que a LEI não é a última palavra para se dirimir divergências na democracia, porque é abstrata. É preciso contemplar também a EQUIDADE, noção que corresponde à ideia de que é preciso aplicar não a letra, mas o espírito da lei em cada caso concreto, pois, sendo abstrata, a lei é incapaz de atender a cada um de acordo com o que lhe convém à luz da Justiça, respeitando-se ao mesmo tempo o direito de todos.

Em síntese: a oposição entre o interesse individual e a solidariedade entre todos fundamenta-se e justifica-se como legítima com base no axioma da diversidade na unidade. Ou seja, a despeito das diferenças, ou graças a elas, cada um de nós, sem abdicar de si mesmo, é capaz de se reconhecer em outrem, no caráter humano da existência, que é a referência de todas as referências. “Sou homem e nada do que é humano me é estranho” (Terêncio).