O debate nas esquerdas acerca da resposta à crise
da dívida é fundamental para definir a política socialista. É disso que
trata este texto.
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30 Novembro, 2011 - 01:07
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Da esquerda.net
Na primeira parte, discuto a crise do euro. Pretendo argumentar, como
muitos outros, que ela é estrutural e permanente, ao contrário do que
afirma o consenso entre a social-democracia e a direita. Na segunda
parte, discuto as duas alternativas que têm sido propostas contra a
estratégia do europeísmo de esquerda: a saída nacionalista e o salto
para o Estado Europeu. Pretendo provar que estas alternativas têm três
problemas: são violentamente contraditórias, apoiam-se na ocultação dos
seus efeitos económicos e sociais reais e ignoram a relação de forças em
que se fazem escolhas. Na terceira parte, discuto de novo o europeísmo
de esquerda e pretendo mostrar que uma alternativa económica exige uma
estratégia de luta de classes. Para isso, voltemos ao essencial.
1. A crise do euro é estrutural e vai-se agravar
As definições fundadoras da União Europeia e, em particular, da criação
da moeda única, têm o cunho do consenso histórico entre a
social-democracia e a direita. De facto, nas escolhas fundamentais para
esta estrutura institucional, não existiu até hoje qualquer diferença
essencial entre estes parceiros. Foi uma amplíssima maioria de governos
social-democratas que definiu o pilar fundador do euro, as regras de
Maastricht (máximos permitidos de 3% de défice e de 60% de dívida e,
ainda mais importante, a obrigação de uma contenção permanente da
inflação a níveis insignificantes). Esses dogmas são a origem dos
problemas actuais e os instrumentos da direita que governa a União
Europeia. Não são precisos outros para a máquina de destruição das
regras sociais do Estado-providência.
O problema é que a moeda que resulta desse consenso é uma construção
explosiva. É incoerente, vulnerável, desigualitária, prejudicial à
maioria dos Estados e, fundamentalmente, esvazia a democracia. É preciso
por isso analisar em detalhe porque está a fracassar o euro.
1.1. O euro é a crise
A política das lideranças da União Europeia está bloqueada num consenso
inicialmente muito forte: a criação de um regime de financeirização
dominante por via do euro, impondo a cada Estado o condicionamento da
sua economia e a minimização dos gastos sociais. Este consenso tem sido
abalado no que diz respeito à gestão das respostas à crise, porque o
euro é a crise: alguns governos aceitam hoje os eurobonds que recusaram
sempre, uns querem reduzir as dívidas com uma pequena desvalorização do
capital, outros sustentam o modelo de espoliação da Grécia e das outras
economias periféricas. As linhas que se seguem discutem estes dois
pontos: a razão da crise do euro e as tentativas de solução dentro do
euro.
Para esse efeito, vou resumir-vos a análise de Paul de Grauwe, um
economista belga que é um dos mais reconhecidos críticos do modelo do
euro e que tenta remediá-lo com várias propostas (“The Governance of a
Fragile Eurozone”, working paper da Universidade de Lovaina).
De Grauwe escreve que, quando existe uma zona de moeda comum, todos os
Estados passam a emitir dívida soberana em euros mas, porque não têm
controlo nacional sobre a moeda, tornam-se vulneráveis a ataques
especulativos que podem forçar a sua falência – o default (a cessação de
pagamentos). Ou seja, o euro aumenta o risco de falência.
O exemplo que apresenta é o da comparação entre a Espanha e o Reino
Unido, sabendo-se que o rácio dívida/PIB inglês é maior (em 2011 a
diferença entre um e outro é de 17%). Mas o Reino Unido, quando emite
dívida soberana, paga taxas de juro menores, apesar de estar muito mais
endividado. Há evidentemente uma primeira razão para esta diferença, que
De Grauwe, aliás, ignora: os mercados financeiros impõem taxas de juro
considerando as suas expectativas mas também o seu poder perante cada
economia, e o poder do Reino Unido é muito superior ao da Espanha,
porque é um dos maiores centros financeiros e uma grande economia
mundial.
Mas a segunda razão, que é analisada em detalhe por De Grauwe, é muito
importante para perceber o falhanço do euro: é que, se houver um forte
ataque especulativo, o Reino Unido tem uma capacidade de resposta que a
Espanha – ou Portugal – não tem. Imagine-se que os especuladores temem o
incumprimento britânico e que, por isso, vendem os títulos desta dívida
pública. Em resposta a esta situação, o Banco de Inglaterra comprará
todos esses títulos. A massa monetária não é assim reduzida (até pode
aumentar) e não chega a haver um problema de liquidez. Mas, nesse caso,
os vendedores dos títulos normalmente irão trocar por outra moeda as
libras que receberam, o que provoca um efeito automático: a libra
desvaloriza (25% desde o início da crise), o que facilita as exportações
britânicas (porque os produtos britânicos ficam mais baratos). Por
outras palavras, a economia corrige o problema se o Banco de Inglaterra
agir sem hesitações.
Em contrapartida, se acontecer o mesmo em Espanha – ou noutro país nas
mesmas circunstâncias –, os fundos financeiros venderão os títulos da
dívida espanhola. Mas é uma incógnita o que farão com os euros que
receberem: podem simplesmente investi-los ou depositá-los nalguma outra
economia. Cria-se assim um problema de liquidez porque se reduz a massa
monetária em Espanha, porque esses euros são transferidos para o
exterior. E o juro da dívida espanhola aumentou porque o Banco de
Espanha, que é agora uma sucursal do Banco Central Europeu, não quer nem
está autorizado a comprar os títulos. A oferta monetária reduz-se em
Espanha e os preços relativos não são corrigidos, passando a haver uma
restrição que agrava a austeridade.
O efeito seguinte é sobre as contas dos bancos nacionais, que têm em
carteira uma parte importante da dívida pública: se os títulos públicos
que detêm valem menos, os seus balanços ficam desvalorizados, têm mais
dificuldade para obter financiamento, e diminuem a concessão de crédito.
Sim, existe também um problema de dívida privada que, em Portugal como
noutros países, é maior do que a dívida pública. E esse problema agrava
os custos dos empréstimos que os bancos nacionais obtêm junto da banca
internacional. Indirectamente, os trabalhadores estão a pagar esse
custo, com o agravamento dos juros quando pedem novos empréstimos e com o
aumento dos impostos para financiarem as rendas que o Estado paga à
banca (as parcerias público-privado aumentaram este ano 4 mil milhões de
euros, a serem pagos por impostos futuros). Mas não haja ilusões: mesmo
que a dívida privada não fosse enorme, a pressão sobre a dívida
soberana poderia ainda ter um efeito desastroso, como está a acontecer.
O efeito dominó é muito forte: a especulação financeira consegue
ameaçar uma economia vulnerável. O Estado pode ficar insolvente
simplesmente se os mercados financeiros temerem que fique insolvente.
Para responder a esta dificuldade, a ortodoxia europeia só concebe a
solução da austeridade, que é a da recessão.
Só que esse efeito de ameaça às economias do euro não é a única ameaça
na Europa. O Reino Unido, o exemplo de De Grauwe, está agora a aplicar a
mais selvagem lei da austeridade, multiplicando as propinas
universitárias, cortando na saúde, atacando os pobres, reduzindo o
investimento e criando desemprego – apesar de ter todos os instrumentos
monetários para relançar a economia contra a especulação. Ou seja, o
problema europeu não é só o euro. É mesmo a luta de classes.
1.2. A solução europeia tem sido o aumento da exploração pela via da austeridade
A resposta europeia a estas crises nacionais, acentuadas pela
vulnerabilidade do euro, é bem conhecida: planos de austeridade para
recuperar a competitividade a partir da desvalorização dos salários
directos (retirar o subsídio de Natal e de férias, cortar nos salários,
aumentar o horário de trabalho) e indirectos (aumento dos custos da
saúde e educação, redução das pensões). A austeridade provoca recessão,
que agrava o défice orçamental, que exige novos aumentos de impostos,
que agravam a recessão. A recessão transforma-se, como pode acontecer em
Portugal, em depressão prolongada.
Isto é uma boa notícia para a finança e para a burguesia, porque altera
profundamente as relações de força entre as classes, abrindo as portas a
um novo regime social – despedimentos fáceis, fim dos contratos
colectivos, redução do poder sindical, serviços públicos mínimos com a
mercantilização de serviços essenciais para a vida das pessoas. A
finança do século XXI quer viver tanto dos mercados bolsistas como da
gestão dos hospitais e dos fundos da segurança social. Mas, entretanto, a
depressão desvaloriza uma parte do capital produtivo, e isso é a má
notícia para os capitalistas que forem à falência. Assim, temos dois
pólos de tensão na classe dominante: entre a finança e os bancos, por um
lado, e entre estes dois sectores e partes do capital produtivo, por
outro lado.
A depressão é sobretudo uma má notícia para a maioria da população,
porque significa um recuo geracional do salário, ou seja, um aumento da
exploração. Assim, a estrutura do euro acentua a pior das políticas, a
da desvalorização do salário.
Vou depois voltar esta conclusão, porque ela é a chave de todo o debate
político: com o euro, a desvalorização do salário é o alfa e o ómega da
política económica dominante.
1.3. Algumas novas e velhas soluções imediatistas
Recapitulemos De Grauwe, porque ele exprime com clareza a dificuldade
de busca de alternativas no quadro económico actual, mas propõe três
alternativas principais à gestão actual do BCE e do directório da União.
Vejamos quais são e qual a sua viabilidade.
A primeira proposta é que o Banco Central Europeu compre títulos da
dívida soberana dos países em dificuldades e os aceite como garantia
colateral dos bancos privados quando estes pedem empréstimos. Isso já
está a ser feito em alguma escala, apesar de ser contra tudo o que o BCE
sempre afirmou. Mas esta medida não basta: para que a sua actuação
tivesse impacto, o BCE devia ser um factor decisivo no mercado da
dívida, o que significaria comprar toda a dívida emitida – como propôs
recentemente Cavaco Silva. Devia comprar directamente aos Estados e não
somente no mercado secundário, nos momentos de aflição. Isso não vai
acontecer na dimensão necessária, porque a Alemanha não o permite.
A segunda proposta apresentada por De Grauwe é a redução do juro
imposto nos empréstimos aos países em dificuldades. A razão é evidente: o
juro alto aumenta as dificuldades e assinala que a própria União
considera que pode haver um incumprimento da dívida por parte desses
Estados, o que convida a ataques especulativos contra eles. Houve em
Julho uma pequena redução (de 1%), mas o juro actual está ainda mais de
2% acima do custo do seu financiamento, que anda pelos 2%.
A terceira proposta de De Grauwe é um mecanismo de emissão de
eurobonds, que asseguraria o equivalente a 60% da dívida soberana de
cada país, devendo o Estado suportar os títulos restantes. Assim, cada
país teria dois tipos de títulos soberanos: os europeus, de juro mais
baixo (mas com custos diferenciados de acesso segundo o risco de cada
economia) e os nacionais, que poderiam ter juro mais elevado. É uma
proposta de Jacques Delors e já tem cerca de 20 anos. Nunca foi
concretizada e é difícil que o seja, porque tem o veto do governo
alemão.
Para as três propostas, De Grauwe sugere uma contrapartida: uma
autoridade fiscal comum e portanto uma União política. Ora, não é
preciso que a senhora Merkel lidere um governo europeu unificado para
que seja viável a emissão de títulos europeus ou juros razoáveis nos
empréstimos às economias atingidas – basta haver regras aceites que
determinem estas acções.
Como vamos ver adiante, a recusa anterior pela governação europeia da
lógica destas medidas não implica que não ceda e que não as aplique em
alguma medida, combinadas com um cocktail de outras iniciativas, para
não deixar cair o euro. A redução dos juros da dívida negociada com a
troika continuará, e haverá uma forte reestruturação da dívida da
Grécia, com perdas para o capital financeiro (e com o BCE a compensar
parcialmente a banca). O euro não pode cair, se o capital alemão defende
os seus interesses. Haverá por isso medidas activas para reorganizar o
sistema de crédito e as relações institucionais, com o BCE a fazer
sistematicamente o que por doutrina e mesmo por Estatutos tinha sempre
recusado.
1.4. A política que dirige a Europa é autoritária mas consensual entre a direita e a social-democracia
Considerando estes argumentos, o impasse actual pode ser assim
resumido: o euro tem organizado o capitalismo europeu durante os anos de
crescimento, mas fraqueja quando há uma crise financeira, porque os
mercados especulativos atacam com sucesso as economias mais frágeis e
criam um perigoso efeito dominó. A resposta é simplesmente austeritária,
a austeridade autoritária. Só que o efeito de contágio é muito intenso,
dado que mais de metade da dívida soberana dos vários países está
detida por entidades financeiras de outros países. E a recessão alastra,
agravando a instabilidade financeira. O euro torna-se por isso um
factor determinante da crise.
Esta estrutura do poder financeiro e da decisão europeia é suportado
por um consenso entre a direita e a social-democracia, que tem resistido
sempre com vantagem da direita. Ele tem um fundamento: Kohl, Schroeder
ou Merkel, na Alemanha, representam exactamente as mesmas políticas
europeias, como Prodi e Berlusconi em Itália, ou Aznar e Zapatero em
Espanha, ou Durão Barroso e Sócrates em Portugal. Para que a política
não seja meramente uma imaginação alegre, convido os economistas que têm
defendido a saída do euro a lembrarem-se da configuração política que
definiu estas regras, as impôs e as mantém, para que possamos procurar
alternativas viáveis, que não ignorem os adversários e que procurem
aliados para além de figuras de retórica. Se me permitem, recomendo-lhes
por isso que não contem com a socialdemocracia europeia: ela não vai
erguer uma alternativa europeia, porque defende para a Europa o Tratado
de Lisboa com o seu Directório e o euro tal como ele existe.
2. Austeridade contra a austeridade?
Esta crise é estimulada pelo euro, que cria um efeito de contágio. Mas
ela não é criada pelo euro. Para a compreendermos no seu quadro geral,
devemos ir mais fundo e fazer o que a maior parte dos economistas
recusa: pensar a economia a partir das classes sociais. É isso que faço
de seguida, considerando as duas alternativas que têm sido recentemente
propostas por alguns sectores de esquerda (e de direita): a opção
nacionalista da saída do euro e a contra-opção federalista da criação de
um Estado europeu unificado.
2.1. Avante para a esquerda, ou então, se não puder ser, para a direita
Grande parte das esquerdas críticas partilha este diagnóstico sobre a
crise do euro (e também, como vimos, alguns dos mais tradicionais
economistas). Ele não é novo. Está presente desde a formação do euro, e
foi por isso que recusámos a seu tempo a sua estrutura, como rejeitámos a
artificial valorização do escudo no momento da integração – valor que
tem vindo a destruir a economia portuguesa – bem como a excessiva
valorização posterior do euro. Sim, isso já se sabia. Neste quadro, o
BCE só podia ser o que veio a ser: uma agência para a liberalização dos
mercados financeiros e a protecção da banca, impedindo as escolhas
necessárias perante cada recessão. Neste quadro, também a Comissão
Europeia só podia ser o que veio a ser: uma agência dos principais
governos, com o poder legislativo que o Parlamento Europeu não tem e que
os parlamentos nacionais estão a perder.
Foi portanto com pleno conhecimento destas realidades que as esquerdas
elaboraram as suas respostas. Ninguém pode agora argumentar que não
sabia ou que não percebeu. Ou que, com estes tratados, a União podia ser
o que não foi. Ou que as instituições se regenerariam e salvariam as
economias da recessão. Não vale. Não vale inventar agora que a União do
directório era outra coisa, que podia ter sido social ou até que podia
ter sido economicamente competente.
Foi por isso que o Bloco de Esquerda se definiu desde a sua fundação
como “europeísta de esquerda”, e levou a sério essa definição. Ela
implica o combate contra a arquitectura dos poderes de facto e contra as
políticas da governação europeia, porque são factores da crise e
recusam a democracia. Implica a recusa do Tratado de Lisboa, porque
encerra a Europa no Directório, e das regras do BCE, porque agravam cada
recessão. Implica a exigência da saída da NATO e a recusa de um
militarismo europeu, porque é parte de uma política imperial. Implica a
exigência clara da refundação da União e isso tem uma consequência, que é
o combate sem concessões contra a sua estrutura e política actual.
Esse combate, portanto, não é novo. Nem é novidade que ele nos
diferencie de uma esquerda nacionalista que tem tido receio de afirmar a
sua posição pela saída do euro e da União Europeia, em nome de uma
alternativa soberanista mal explicada e de viabilidade discutível. O que
há de novo, no entanto, é que alguns sectores de esquerda,
tradicionalmente europeístas e por vezes até pouco críticos da
governação europeia, procuram agora outras soluções. Essa deslocação é
em si mesma um bom sinal. Prova que, perante o impasse actual, há quem
procure novas alternativas. Mas essas alternativas têm de ser mais
fortes e mais consistentes do que as políticas que querem substituir.
O que pode surpreender quem achar que já viu tudo é que haja quem
defenda simultaneamente as duas propostas, a saída do euro e o Estado
europeu, o que um dos seus defensores chama, elegantemente, sair da
crise por “cima” ou por “baixo”. De facto, a sobreposição destas duas
propostas radicalmente antagónicas prova de que a imaginação humana é
tolerante. Quem quer a solução extrema de um Estado Europeu que dirija
as economias nacionais dificilmente pode querer também a solução
nacionalista extrema da separação do euro (e da aplicação de políticas
que significam a saída da União Europeia) – pelo menos não se espera que
defenda as duas simultaneamente. De facto, estas soluções dirigem-se a
objectivos contraditórios, servem sectores sociais e mobilizam forças
diferentes, concitam sistemas de alianças distintos. A primeira favorece
os sectores financeiros mais integrados a nível europeu, a segunda
espera a liderança dos sectores exportadores da burguesia nacional. A
primeira depende da anuência do governo alemão e dirige-se à
convergência com o sector federalista do PS (António José Seguro), a
segunda restringe-se à aliança com o sector mais conservador do PCP e
nem sequer inclui o movimento sindical.
Assim, o exercício de debater com a ideia de “um partido-duas
políticas” é dos mais criativos a que se pode aspirar. Qualquer das
alternativas, por si própria, é consistente e tem argumentos sólidos.
Qualquer delas sustenta uma mudança de orientação para as esquerdas. Mas
o que não consigo compreender é o elaborado argumento de que, se uma
não resultar, queremos a outra. Se, para nos indicarem o caminho, nos
disserem “se não for para a esquerda, vá para a direita”, ficaremos
provavelmente sem orientação. Lamento, mas é o caso: duas propostas
contraditórias é o mesmo que nenhuma proposta.
E é por isso que não se pode nunca defender algo e o seu contrário. Ou
imagine-se o que seria, na campanha eleitoral recente, o destino de um
partido que defendesse simultaneamente a saída do euro e o Estado
Europeu unificado. No debate com Sócrates e Passos Coelho defenderia a
saída do euro e no debate com Jerónimo de Sousa defenderia o Estado
Europeu? Ou seria o contrário? Ou defenderia ambas as alternativas com
qualquer deles? E pediria o voto aos eleitores para quê, se não é
indiscrição?
Pelo seu lado, o Bloco de Esquerda assume a responsabilidade da política, porque sabe que a política é escolher caminho.
2.2. A primeira solução autoritária contra o austeritarismo: o federalismo
Prefiro então discutir cada uma das propostas em separado, pelos seus
méritos e não pela sua estranha amálgama. A pergunta que se tem de
colocar por isso é esta: a nova proposta ajuda a responder à recessão e à
austeridade, constitui uma alavanca de mobilização e de alternativa? Se
sim, deveríamos adoptá-la sem hesitação.
Veja-se então a primeira proposta, o federalismo. Segundo esta
proposta, se há uma crise da dívida, a solução estaria na transformação
da União Europeia num Estado unificado, com uma autoridade fiscal única,
um governo único e um orçamento único. É a saída “por cima”. Há uma
dívida, o Estado Europeu que se encarregue dela e que dirija o nosso
orçamento a partir de agora. Eles que tomem conta disto.
O federalismo é um conceito que, em si mesmo, diz tudo: a federação é
uma forma de organização de um Estado, com regiões ou províncias (nos
Estados Unidos ou no Brasil chamam-se estados) com alguma margem de
autonomia, mas submetidos a um poder político centralizado, que decide o
orçamento e a política económica e social, que tem leis uniformes, um
exército e uma representação externa. Ou seja, a federação é um Estado
unificado. Joshka Fisher, o líder dos Verdes alemães e uma figura de
topo dos federalistas, escrevia recentemente, com alguma arrogância,
que, nesse Estado Europeu, era admissível que os Estados nacionais
tivessem algo mais de autonomia do que os lander (as províncias) alemães
têm hoje.
É fácil de entender porque é que esta proposta se disfarça com o
argumento suave de que só propõe pequenos passos, com factos consumados,
num caminho que esconde o seu destino. O motivo é evidente: não existe
qualquer possibilidade de acordo europeu para um Estado europeu nos
tempos de hoje.
E não existe por duas razões. A primeira é que os pequenos passos criam
tensão máxima, como é o caso da actuação do directório, agora um eixo
franco-alemão que gravita em torno de Merkel. Foi com esses pequenos
passos que chegámos aqui, e não é bonito de se ver. A segunda é que
nenhuma das burguesias – nem as opiniões públicas – de qualquer dos
grandes países aceitaria a incógnita de um governo europeu. Falta-lhe
para isso o consentimento social e a hegemonia ideológica.
Um governo europeu significaria que a Inglaterra e a França poderiam
ser governadas de Berlim. Impossível. Ou que a Alemanha poderia ter de
aceitar um governo liderado por um primeiro-ministro polaco eleito por
uma coligação com os populistas italianos.
Inaceitável. Ou que Portugal, a única nação ibérica que ao longo de
séculos se libertou do reino de Castela, perderia agora a velha aposta
histórica da independência. Difícil, não é?
Evidentemente, a impossibilidade actual de criação deste Estado Europeu
poderia não ser razão para o rejeitar no futuro ou até para não o
desejar no presente. A esquerda poderia defendê-lo como um modelo, como
uma estratégia ou, como hoje se diz, como um desígnio. Pela minha parte,
só vejo motivos para rejeitar categoricamente a ameaça de um Estado
Europeu.
Começo pela razão mais circunstancial. Imaginemos que não havia nenhuma
resistência, que o consenso era forte, que o federalismo tinha vencido e
que o Estado Europeu era criado, e que o seu governo era eleito, tudo
hipóteses bastante extravagantes. Só que, como se verificou nas eleições
para o parlamento europeu, o resultado dessa eleição seria uma
estrondosa vitória da direita europeia, incluindo os sectores mais
populistas e agressivos. Em consequência, a capacidade de disputa dos
movimentos de trabalhadores reduzir-se-ia, muito em particular nos
países onde criaram uma relação de forças que lhes tem permitido
combater por alternativas. Para a esquerda, este cenário seria
suicidário.
Mas ignoremos esta objecção. Afinal, se a proposta fosse absolutamente
essencial, o Estado Europeu seria uma conquista da democracia e todos
viveríamos melhor com isso, a longo prazo. Mas é essencial? A Europa
beneficiaria desse Estado? A minha resposta é convictamente que não: um
Estado Europeu democrático nunca será democrático. Essa é a objecção
mais importante, porque tem que ver com a natureza da esquerda e com o
nosso compromisso de representação e luta pela emancipação dos
explorados.
A União pode ter procedimentos democráticos ou autoritários, e isso faz
uma enorme diferença. Nós temos proposto sempre os procedimentos
democráticos, e recusado os autoritários: o sistema actual do directório
já é uma das piores características do federalismo. Ora, o Bloco
defendeu sempre referendos sobre cada Tratado (e, já agora,
comprometemo-nos com o “não” ao Tratado de Maastricht, depois ao de
Nice, depois ao de Lisboa, e por fortes razões). Denunciámos os poderes
europeus e os governos que conspiraram para maquilhar um Tratado
Constitucional como um Tratado comum, e para o impor sem os referendos
que tinham prometido solenemente. Apresentamos uma moção de censura
contra Sócrates por causa disso.
Levamos muito a sério a luta pelos procedimentos democráticos. Sabemos
que faz toda a diferença ter os governos a legislar a partir do Conselho
Europeu e da sua Comissão ou ter controlo parlamentar escrutinável. Faz
muita diferença ter a possibilidade de os europeus decidirem ou manter
um poder enclausurado nos governantes do directório.
Mas paremos agora um momento para pensar o que tem sido a nossa luta
pelos procedimentos democráticos. Quanto propomos um referendo em
Portugal e queremos que nesse referendo ganhe o “não” contra o Tratado
do directório, estamos certamente a defender uma solução para a Europa.
Somos nisso completamente europeus. Mas fazemo-lo onde podemos, como
podemos e como queremos que a democracia decida a questão – onde a
reconhecemos, em Portugal. Porque não propusemos um referendo simultâneo
em toda a Europa que decidisse sobre o Tratado, em que o voto do alemão
e do polaco valesse como o da portuguesa? Porque o povo que
reconhecemos para decidir sobre a aceitação de um tratado por Portugal é
o eleitorado português. É com ele que falamos. E é a sua decisão que
aceitamos como legítima, mesmo que a achemos errada e que combatamos as
suas consequências.
A razão desta legitimidade eleitoral é de importância transcendente
para a esquerda. E é simples. É que a democracia parlamentar foi criada
historicamente no Estado-Nação, baseada na aceitação social de uma
representação legitimada: cada um tem o direito de voto, há pluralismo, e
aceitamos que o partido mais votado representa o Estado e governa. Este
regime é frágil, é manipulável, tem um enorme peso da ideologia
dominante e das fábricas do consenso, não é uma democracia de
participação e de acção para o povo, mas é a parte da democracia que
resulta das lutas sociais pelo sufrágio universal e contra a ditadura, e
dela não abdicamos. Ela é ponto de partida para as lutas, porque é
verificável e disputável pela força que a luta popular pode criar. É por
isso que a democracia representativa no país é um espaço de
confrontação para todos, mas a democracia europeia não existe – existem
procedimentos democráticos ou autoritários na Europa, mas não existe
democracia europeia como espaço comum de reconhecimento e de
legitimidade unificada.
O Estado Europeu não é por isso democrático, porque exclui a democracia
representativa realmente existente, que é a que existe nos
Estados-Nação. Ainda não há nem houve qualquer forma de democracia
internacional, que tenha como base de sustentação a legitimação perante
um povo global. Faz falta, mas não existe.
Tem escrito Rui Tavares que, se Merkel manda em nós, devíamos ao menos
poder votar nas eleições que a escolhem. E assim ao nível europeu: se
mandam em nós, queremos votar sim ou sopas. Mas o problema é que esse
voto não tem sentido. Não comunicamos com um alemão, dono de uma
cervejaria em Munique, como com uma desempregada em Figueiró dos Vinhos.
Não falamos da mesma história, da mesma cultura, não partilhamos
disputas e diferenças: não podemos decidir em conjunto um governo que
nos obrigue a todos, porque, como dizia Linecker, nesse jogo há duas
equipas e no fim ganha sempre a Alemanha. E o pior é que, quando
elegermos o governo do Estado Europeu, sobrar-nos-á um feitor da
província instalado no palácio de S. Bento, a quem poderemos entregar
petições. Mas com ele não discutiremos a lei, os orçamentos, os
impostos, a defesa, a política externa, os serviços públicos. Essa
democracia não seria democracia.
Dir-me-ão que, no fim das contas, Merkel e Passos Coelho pensam e
propõem o mesmo para a sociedade. Sim, mas a diferença entre ter um
governo alemão para a União e ter um governo português dentro da União,
mesmo subordinado e sorumbático, é que podemos disputar com o segundo e
influenciar a política que o determina. Nessa disputa, estamos nós, o
povo.
Mais fundamentalmente, não existe um povo europeu único que se
reconheça, existem povos europeus. Ser português e ser europeu são duas
identidades e não uma. É ainda nos quadros nacionais que se forma o
essencial dos processos de acumulação e sobretudo a determinação das
condições salariais ou seja, a repartição do rendimento, a exploração e a
luta contra ela, que não abdicamos de lutar onde temos poder.
Foi isso mesmo que nós sempre dissemos a respeito da Europa. Que devia
ser um lugar de políticas comuns, incluindo com partilha negociada de
soberanias, mas também uma convergência de Estados-Nação. Toda a
política europeísta de esquerda se baseia nessa convicção forte. A
Europa tem de ser a combinação de políticas europeias e de margens de
acção dos Estados nacionais. Queremos reforçar umas e outras,
delimitando o que a União deve fazer: melhor orçamento comum para
medidas para pleno emprego, e também mais capacidade de escolha de cada
país na sua gestão financeira, fiscal, orçamental e social. Tudo bons
motivos para recusar o Estado Europeu.
Finalmente, há mais duas razões para rejeitarmos o truque federalista. A
primeira é que qualquer deriva para o Estado Europeu, sempre
autoritária, multiplica os nacionalismos – e dispensamos esse pesadelo,
porque sabemos como começa mas não sabemos onde acaba. Já muitos países
da Europa têm direitas nacionalistas radicais a 20%. O federalismo é um
dos seus alimentos. Rejeitar o nacionalismo e cortar-lhe espaço implica,
como sempre, que a esquerda quer disputar a hegemonia do seu povo, quer
construir uma maioria para dirigir a nação. Essa luta pela hegemonia é a
razão de ser da esquerda, e desgraçada da esquerda que dela abdica ou
que, pelo contrário, se torna ela própria nacionalista – acabará, como o
PC grego, a votar sistematicamente com Le Pen no parlamento europeu.
Pode ter votos, como o PC grego tem, mas o nacionalismo nunca será a
esquerda para a luta necessária. A utopia reaccionária do Estado Europeu
cria os seus anti-corpos e destrói a esquerda em cada país.
A última razão é a coerência connosco mesmos. Deixei essa razão para o
fim, porque é unicamente a nossa própria cultura política que está em
causa. Mas é um valor importante. Foi deliberadamente que escrevemos no
“Contrato pela Europa” – que é um dos três textos fundadores do Bloco de
Esquerda – que defendemos “uma nova perspectiva da esquerda para a
Europa, contra o federalismo” e que o “principal adversário da nossa
alternativa de projecto é o federalismo” que “transforma a Europa numa
feira de capitais”. Nesse momento, chamávamos também a atenção para o
significado imperialista da ideia do Estado Europeu: com ele chegam um
exército e um aparelho repressivo unificado.
Admito que haja quem tenha aprovado esta posição durante dez anos e que
agora se arrependa. Ou que pense que a crise de Portugal é tão grave
que mais vale esta solução do que continuar tudo como está. E não pode
de facto continuar como está.
Mas, pergunto: é o imediatismo que move a abdicação da nossa posição de
sempre? É a emergência que leva à aceitação de um poder europeu que
sempre recusámos? Se assim é, para quê então defender uma alternativa
que não tem viabilidade imediata e emergente?
Dito tudo isto, a minha conclusão é esta: a ideia federal do Estado
Europeu unificado não vai ter qualquer papel determinante na política
portuguesa ou europeia nos anos que vivemos. Haverá medidas de reforço
do Conselho, da Comissão, do BCE, criar-se-ão fundos comuns e regras
rígidas, vigiar-se-ão orçamentos e políticas, nada que não conheçamos
com a tutela dos credores hoje em dia. Haverá medidas para os tais
pequenos passos de avanços e recuos, mas não haverá o salto imenso para
um Estado Europeu federal.
Nem as partes da social-democracia que a defendem – e que são alguns
partidos quando estão na oposição, nem todos e nem sempre – terão um
protagonismo suficiente para colocarem na agenda essa solução. Nem ela
ganhará credibilidade noutros sectores de esquerda. Pura e simplesmente,
ela não existe no campo das decisões.
2.3. A segunda solução autoritária contra o austeritarismo: sair do euro e da União Europeia
A segunda solução, em contrapartida, terá um peso crescente no debate
político. A proposta da saída do euro será persistente, é com ela que
nos vamos defrontar. Ela será defendida por dois tipos de correntes: os
economistas que recusam o espartilho do euro e não encontram outra
solução, e as esquerdas que preferem o nacionalismo ao arrastamento da
crise europeia. São dois sectores diferentes, com ideias diferentes e
propostas diferentes, e só por diletantismo é que os segundos se
refugiam nos argumentos dos primeiros.
Entre os economistas que defendem a saída do euro estão alguns dos seus
críticos de sempre, como João Ferreira do Amaral, em Portugal, ou, mais
prudentemente, Paul Krugman e Nouriel Roubini, nos Estados Unidos. Para
estes economistas, já não é uma questão de escolha, é (ou começa a ser)
uma inevitabilidade. Segundo eles, a espiral recessiva das medidas de
ajustamento orçamental tornará a governação impossível, com aumentos de
impostos que já não criam mais receitas, com a paralisia da economia e
com a exaustão das políticas. Por isso, argumentam que só resta a saída
do euro como forma de desvalorizar uma nova moeda e esperar que a
economia se reequilibre por via do aumento das exportações e da
diminuição dos salários. Assinale-se que nenhum deles defende a rejeição
da dívida, antes esperam ganhar algum tempo para pagar a dívida de
outra forma, com o aumento das exportações. E todos aceitam que os
trabalhadores devam pagar o ajustamento com a redução dos salários. Há
nisto bons e maus argumentos, como escrevi atrás a respeito do euro como
factor da crise. Mas, sobretudo, é uma resposta que propõe uma
austeridade salarial permanente e indiferente à economia que afecta as
pessoas.
Além disso, esperar que a União financie a saída do euro ou que os
mercados financeiros mantenham uma atitude de neutralidade perante a
nova moeda é ingénuo.
Tudo vai da aposta: um governo de direita que fizesse esta operação com
o intuito de provocar uma redução acentuada e permanente dos
rendimentos dos trabalhadores poderia obter algum apoio da finança
internacional, mas é duvidoso que este se mantivesse perante as medidas
drásticas que, neste contexto, se tornam necessárias.
Vamos então ver como se aplicaria a saída do euro, e convocar agora os
sectores de esquerda que devem defender a sua proposta a partir de um
ponto de vista que considere a vida dos trabalhadores.
Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar uma nova moeda, vamos
chamar-lhe escudo. O governo, perante as dificuldades económicas, decide
sair do euro e passar a usar o escudo como moeda nacional (ou, o que é o
mesmo para os efeitos económicos e sociais, é expulso do euro). Manda
então imprimir em segredo as notas e prepara-se para anunciar a grande
novidade, numa sexta à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já
estão fechados. Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas
extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para
que a nova moeda possa estar em circulação na segunda-feira.
O problema é que esta operação envolve milhares de pessoas, que
transportam e distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias.
E, de qualquer modo, toda a gente assistiu nas semanas anteriores a
declarações dos ministros a explicar que isto vai muito mal e precisamos
de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo,
toda a gente percebeu o que vai acontecer.
O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos
bancos levantar todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se
não o fizerem, todas as suas contas e poupanças vão ser transformadas em
escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que,
afinal, é o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão
desvalorizadas como a moeda em que passam a estar registadas.
Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus saldos e
poupanças, porque esta corrida irá arruiná-los. Não querem nem podem,
pois simplesmente não têm o dinheiro para isso – nem há notas
suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe em
Portugal (a massa monetária é a soma das notas e moedas em circulação
com os depósitos nos bancos, e os bancos não guardam esse dinheiro,
porque o emprestam). Os bancos vão por isso fechar as portas quando se
generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército para guardar os
edifícios. Foi assim na Argentina, foi assim em todos os casos em que se
anunciaram desvalorizações brutais (e nem se tratava de sair de uma
moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União
Europeia).
A esquerda que defendeu a saída do euro começa então a ter a primeira
dificuldade. É que vai defender o exército e os bancos contra a
população. E vai ter de fazer a sua primeira vítima, os depositantes nos
bancos. Contas certas: se a desvalorização for de 50% (Ferreira do
Amaral calcula em 40%, outros em bastante mais), as poupanças e
depósitos dos trabalhadores vão perder metade do seu valor.
Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo
desvalorizou-se então 50% em relação ao euro. O governo e a esquerda
nacionalista esperam que o efeito benéfico seja o seguinte: as
exportações aumentam porque se tornam mais baratas (porque os seus
preços em moeda estrangeira ficam mais baratos, além da redução dos
salários), enquanto as importações diminuem porque se tornam mais caras
em escudos. Assim, haverá uma deslocação de capital para as indústrias e
serviços exportadores, e uma redução do consumo e das importações. Tudo
melhora substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a
vida melhorar para o Amorim, o dono da maior multinacional industrial
portuguesa, melhorará também para toda a economia.
Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o
preço dos produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou
a custar uma vez e meia o seu preço anterior (e todo o sistema de
transportes também), e o mesmo aconteceu com os alimentos importados.
Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o consumo,
imagina-se o efeito imediato destes dois aumentos de preços. Já por este
efeito, o salário passou a valer ainda menos.
Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no
estrangeiro queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde
que não haja recessão no estrangeiro, e que os produtos portugueses
correspondam a mercados com procura crescente, e que as suas
características acompanhem as exigências dos consumidores estrangeiros,
etc.). Aumentam, mas devagar: as receitas das vendas só entram quando se
fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção e até do
aumento da capacidade produtiva. Depois, o que exportamos inclui o custo
da matéria-prima e outros produtos que são importados, que são mais de
metade do valor das exportações, e que ficaram mais caros. Por isso, as
receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde.
Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma
longa dívida ao banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa.
Emprestou em euros. E das duas, uma: ou, no dia da saída do euro, o
governo aceita o que os bancos querem (que esta dívida seja considerada
ao seu valor real, que é o do escudo desvalorizado), ou decreta, para
proteger os devedores, que a dívida é transformada em escudos ao valor
anterior à desvalorização.
No primeiro caso, os devedores multiplicam a sua dívida. Imaginemos
quem tinha 50 mil euros de dívida, convertidos, ao escudo desvalorizado,
numa dívida de 15 mil contos. Se o seu salário era de 1000 euros (na
nova moeda, 200 contos… que valem só 500 euros) e se usava metade para
pagar ao banco, precisava antes de 100 meses inteiros, com a corda ao
pescoço, para pagar a dívida. Agora, precisará de 150 meses com as
mesmas dificuldades, dando metade do seu salário ao banco. Perdeu cinco
anos de vida.
No segundo caso, em que o governo defende os devedores, quem tinha uma
dívida de 50 mil euros passa a ter uma dívida de 10 mil contos… que
valem 25 mil euros. O banco perdeu metade. O problema é que o banco vai à
falência, porque criou um buraco gigantesco no seu balanço. É por isso
que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será
necessário nacionalizar todos os bancos, não tanto para socializar o
capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco pode
custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se
nacionaliza um banco, fica-se com as suas dívidas, que são dívidas a
quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente
a banca estrangeira. Ora, essa dívida está em euros, mas o banco,
falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em
escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos em euros. A
sua dívida ao exterior subiu 50% do dia para a noite. Salvar os bancos
tem um custo, e não é pequeno.
Aqui temos a esquerda nacionalista a defender a banca e a pedir aumento
de impostos para financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja
dívida foi protegida, tem de pagar por outra via (novos impostos).
Claro, os porta-vozes desta esquerda nacionalista podem dizer-me o
governo deve simplesmente declarar que não paga as dívidas
internacionais dos bancos que nacionalizou. Mas, desculpem, de que
governo concreto é que estamos a falar? Não era de Portugal, 2011?
Alguém acha que se pode impor a nacionalização dos bancos, que
colapsaram com a desvalorização; depois apresentar como solução o corte
com os credores externos; e esperar ao mesmo tempo ter um mercado aberto
para as exportações que vão salvar a economia? Ou seja, a socialização
do capital e ao mesmo tempo a aliança com projectos exportadores bem
acolhidos pelo capital em todo o mundo?
Faço aqui um parêntesis para tornar clara a minha opinião numa questão
ideológica: sim, estou certo de que a nacionalização do sistema
financeiro é uma necessidade estratégica para a política socialista,
porque o sistema de crédito deve ser um bem público. E estou também
certo de que um governo de esquerda terá de enfrentar a resistência do
capital financeiro, que é o seu principal adversário, e pode por isso
ser forçado a um imperativo realista mesmo que inconveniente de
nacionalização em condições que não sejam as desejáveis para o seu
sucesso. Mas não deixo de pensar que deve fazer tudo o possível para
construir sempre as melhores condições para a sua acção. Como toda a
experiência histórica demonstra, o não isolamento internacional é uma
questão de vida ou de morte para um governo socialista, que precisa de
ganhar apoios na Europa e no mundo para a sua luta.
Em todo o caso, para vencer é preciso ter a força necessária e, para
que seja possível ter um sistema de crédito público que funcione, é
preciso um tempo certo para uma política vencedora contra os
especuladores. Ora, entendamo-nos bem, nenhuma das actuais discussões
sobre a saída do euro é acerca de um hipotético governo de esquerda e
desse tipo de situação. Por isso mesmo, o que importa agora são as
relações de forças concretas, as que existem agora e as que podemos
criar no contexto de uma resposta social muito mais forte contra a
ditadura da dívida. É o que podemos fazer e o que vamos fazer, não um
romance de ficção política. Fim de parêntesis.
Voltemos agora aos problemas que a nossa esquerda nacionalista está a
viver no apoio ao governo que decidiu a saída do euro. Já tem contra si
quem vai pagar mais impostos ou viu multiplicar as suas dívidas, e paga
mais pelos alimentos e pelos transportes, ou perdeu parte das suas
poupanças. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que
perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço
orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai
ser paga em euros mas os impostos são recebidos pelo Estado em escudos),
e a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo isso, o trabalhador
vai lutar por recuperar o seu salário.
Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. As exportações são
mais baratas porque o escudo vale menos, as mercadorias ficaram mais
baratas, e porque as empresas pagam os salários mais baixos em escudos.
Se os salários subirem, a competitividade é de novo prejudicada. Que vai
fazer a nossa esquerda nacionalista perante o protesto justo dos
trabalhadores?
A resposta é simples: não há problema, argumenta um dos arautos da
esquerda nacionalista, basta um milagre, reúne-se a concertação social e
convencemos os patrões a aumentarem os salários, compensando assim os
trabalhadores pelo que perderam com a desvalorização. Imagine-se essa
reunião da concertação: o país em alvoroço, motins à porta dos bancos,
impostos e preços a subir, inflação de novo, salários a descer, e os
patrões oferecem-se para sacrificar os seus lucros em favor do trabalho.
A hipótese é tão interessante que dispensa argumentação.
Por outras palavras, a esquerda nacionalista que defende a saída do
euro meteu-se numa alhada. Queria impedir a continuação da austeridade e
nisso tinha toda a razão, mas propõe um sistema de mais austeridade,
toda orientada para o benefício de um sector social, a burguesia
exportadora, e aceitando a queda dos salários com a desvalorização do
escudo. Não resolveu nenhum problema e criou novas dificuldades. E
perdeu a capacidade de uma orientação socialista, porque não pode ser
sequer compreendida pelos trabalhadores que está a prejudicar.
A política socialista tem um critério que é o da defesa da classe
trabalhadora. Essa política é a que defende o salário e se bate por ele,
e não a que sacrifica o salário. A solução autoritária de saída do euro
é uma proposta de mais austeridade.
3. O europeísmo de esquerda é a referência da política socialista
Rejeito por isso estas duas propostas, o federalismo do Estado Europeu e
o nacionalismo da saída do euro. Ambas procuram responder ao
agravamento vertiginoso da crise mas conduzem a políticas autoritárias e
austeritárias, que agravam a crise. Ora, porque a crise se precipita
mesmo, isso não dispensa a análise e a correcção da nossa política.
Sugiro que a nossa reflexão sobre a resposta necessária comece pelo princípio, pela natureza da crise que enfrentamos.
3.1. Depois de trinta anos de crescimento medíocre
A Segunda Guerra Mundial foi um momento culminante do século XX. Gerou
massacres horrendos, de Auschwitz a Hiroxima. Mas, do ponto de vista da
economia, foi também um processo de destruição radical de forças
produtivas, trabalhadores e capital. E foi essa destruição que abriu as
portas à reconfiguração do capitalismo moderno, a uma nova organização
das potências, à estruturação de uma nova ordem monetária assente no
dólar e, nos países mais desenvolvidos, à promoção do consumo de massas
assente na generalização da produção em série. Foi somente com essa
destruição gigantesca e com a reorganização que se lhe seguiu que se
encerrou a grande crise de 1929.
Vale a pena, então, registar um dado sobre esta crise: a recuperação da
economia já então dominante, a dos Estados Unidos, demorou 25 anos – só
em 1954 é que as Bolsas voltaram aos seus níveis anteriores ao crash. E
foi precisa uma guerra e a definição de um novo mundo para que tal
recuperação fosse possível. A chave da recuperação foi precisamente essa
destruição massiva de forças produtivas e a configuração de um novo
mundo para a acumulação de capital.
Foi assim possível criar novos sectores industriais de crescimento
rápido, novos mercados financeiros, novas multinacionais. Já assim
acontecera no passado: o capitalismo industrial moderno tem-se
desenvolvido por ondas longas, umas de crescimento e outras de crise,
que duram décadas, e que definem a pulsação do processo de acumulação.
Nos períodos longos de crescimento (como 1945-1974), as crises são
raras, breves e superficiais, enquanto nos períodos longos de crise são
frequente, duradouras e intensas (1974 até hoje).
Em cada uma destas épocas do capitalismo a sua estrutura adapta-se. O
impulso que a electrificação tinha dado à indústria e o papel motor da
siderurgia, desde o final do século XIX, deu lugar ao novo impulso da
motorização, dos derivados de petróleo e da química fina no período
posterior à 2ª Guerra Mundial. Esse novo modelo produtivo constitui-se
no quadro de novas relações sociais, de um novo contrato entre o
trabalho e o capital, com regras que faziam do salário dos trabalhadores
uma parte importante do consumo dirigido às empresas. Às constelações
de novas tecnologias de produção em massa correspondia, na Europa e na
América do Norte, um arranjo institucional com o contrato de trabalho e
um salário indirecto importante, através do acesso à segurança social e à
saúde. Foi pelo crescimento da procura que se criaram os mercados de
massas em que cresceu a economia capitalista durante os Trinta Anos
Gloriosos do pós-guerra.
Este sistema funcionou sem dificuldades de maior durante essas três
décadas. Depois, esgotou-se, sendo o seu fim marcado pela segunda
recessão generalizada do século, a de 1973-4. A partir daí, perdeu-se
esta conjugação fácil entre o modo de funcionamento da produção e as
suas instituições sociais, o impulso tecnológico esgotou-se, a margem de
lucro fora reduzida sistematicamente e a acumulação e o investimento
foram por isso postos em causa. Seguiram-se algumas décadas de
crescimento medíocre, financiado pelo crédito e pelo endividamento, com
recessões intensas e frequentes (1973-4, 1981, 1993, 2003, 2008-9),
exactamente como nas longas décadas de crise depois de 1929. A
rentabilidade do capital recuperou muito lentamente, mas a acumulação
manteve-se a níveis excepcionalmente baixos.
Essa é a situação actual. A criação de enormes mercados financeiros é a
característica desta nova época do capitalismo – a que se tem chamado
de “capitalismo tardio” – e em que os capitais disponíveis são colocados
na especulação e não no investimento, gerando um sempre crescente
“capital fictício”, como lhe chamava Marx, e que procura rentabilidades
garantidas. É isso que explica tudo o que temos conhecido, desde a
especulação imobiliária até às privatizações da segurança social e às
parcerias público-privado.
Para relançar o crescimento, a burguesia procura criar uma nova
economia com um novo regime social: a precarização da relação do
trabalho, ou seja, o fim do contrato, para se adequar ao uso pleno dos
novos sistemas de tecnologias de produção sofisticada com trabalho
barato, o aumento da mais-valia absoluta (mais tempo de trabalho e menos
salário) e a diminuição do salário indirecto (custo dos serviços
públicos essenciais). O novo regime requer por isso um desgaste social
que produza os efeitos das grandes desvalorizações do trabalho e de
capital que confluíram na Segunda Guerra Mundial. Mas o movimento
popular, apesar de muito atacado por um prolongadíssimo desemprego
estrutural, ainda tem capacidade de combate.
É nele que nos apoiamos, ele é a nossa política realista. Está tudo em
jogo. Bem sei que, como dizia Warren Buffet, o segundo homem mais rico
do planeta, “há uma luta de classes, e é a nossa classe que está a
ganhar”: os 1% que dominam as economias recebiam 40% dos lucros e
dividendos há dez anos, 60% há cinco e 70% agora. A concentração de
capital é imensa. Mas a nova sociedade ainda está a ser definida, e
verdadeiramente o que mais surpreende, do ponto de vista histórico, não é
tanto o seu avanço mas sim a extraordinária dificuldade que tem tido em
se impor. Os 1% que dominam as economias não conseguiram esmagar os
outros 99% porque estes, quando a convocam, têm a força da democracia.
Como os 1% têm mais poder, é contra eles que se deve dirigir o combate:
a política da direita e da burguesia é desvalorizar o salário, a dos
trabalhadores é desvalorizar o capital e defender o salário. O nosso
confronto é com a finança, que é a dona da dívidadura. É verdade, é um
combate de época. E é por isso que não precisamos de ideias que dividam a
frente da luta popular e criem confusão. Precisamos de clareza e
mobilização. Precisamos agora, e não amanhã, de uma aliança grande para a
luta pelo salário.
3.2. Europeísmo de esquerda e a luta contra a dividadura
Neste quadro, o que é que devemos fazer? Não podemos, ou não devemos,
na minha opinião, alimentar o sonho de um Estado Europeu – antes devemos
combatê-lo – e não podemos nem devemos favorecer as ilusões
nacionalistas de uma solução autárcica, que devemos recusar. Pelo
contrário, devemos combater por soluções europeias, que não desistam do
que é essencial: uma aliança europeia de esquerdas políticas e sociais
para a luta contra a austeridade. E devemos definir onde colocamos as
nossas forças para a mais ampla luta pelo salário.
Começo pela Europa. Bem sei que, desde o definhamento dos Fóruns
Sociais Europeus, não se tem conseguido refazer um dispositivo mínimo de
resposta. O Partido da Esquerda Europeia é muitíssimo limitado, como
outras redes em que participamos; nunca conseguimos concretizar a nossa
proposta de um grande congresso dos movimentos sociais e políticos
europeus; e os partidos de esquerda do Norte da Europa receiam os
efeitos eleitorais da defesa do povo grego contra o estrangulamento da
dívida e nem querem ouvir falar de uma greve europeia.
Devemos por isso explorar, com os nossos aliados, a ideia de recuperar o
Fórum Social – ou de abrir as portas a uma nova forma de rede global –,
talvez de o reunir em Espanha, com os movimentos dos Indignados, para
lançar uma agenda europeia para a luta contra a austeridade. E, com
eles, manter os objectivos essenciais que definem o europeísmo de
esquerda que temos vindo a defender:
• A obrigação do BCE de certificar e de comprar dívida soberana de cada Estado,
• O lançamento de obrigações europeias mutualizando parte da dívida,
• A desvalorização do euro para aliviar as economias,
• A tributação do capital e o fim dos offshores, em particular o de Londres e do Luxemburgo,
• A criação de uma agência europeia de notação para os títulos privados,
• O reforço do orçamento europeu para um plano de criação de emprego,
• A criação de regras fiscais comuns como uma taxa mínima para o IRC, para evitar a concorrência fiscal entre Estados,
• A reestruturação profunda da dívida da Grécia, em prejuízo dos bancos credores.
Finalmente, a proposta da refundação da Europa é o centro do europeísmo
de esquerda. Deve ser concretizada. Devemos trabalhar mais na sua
explicitação, propondo por exemplo um novo Tratado que crie duas
câmaras, um parlamento eleito directamente e uma câmara que represente
em igualdade todos os Estados, para mobilizar as duas dimensões da
Europa, ou uma única câmara com representação que evite a marginalização
dos países pequenos e médios.
Não será fácil criar movimento com estes objectivos políticos. Mas,
hoje, as possibilidades são maiores do que há um mês atrás. São essas
possibilidades que nos interessam e acho que devemos levar muito a
sério, dedicando esforços sérios para que esta orientação se concretize.
Não tenho dúvidas de que podemos e temos de fazer mais neste sentido.
Mas o que dizemos sobre a Europa, para ser realista e como sugeri
atrás, é proposta, é convite e aproximação a outras esquerdas, mas não é
certamente onde temos a maior capacidade de confronto político. Onde
temos mais força é no que depende de nós. Se for possível ter um fórum
europeu de algum tipo, que junte movimentos e que crie agenda política,
então avançaremos para um patamar novo, como queremos. Em todo o caso,
essa perspectiva não diminui a nossa disputa taco-a-taco com o governo e
o plano da troika, a dívidadura.
E é nela que temos de acertar posições.
Em primeiro lugar, rejeitamos a ideia de que não existem alternativas
ao plano da troika. E devemos tomar a contra-ofensiva nesse campo. Já é
possível fazê-lo porque a vertigem da mudança da percepção popular é
estimulada por esta violência orçamental do corte dos subsídios de
férias e de Natal. Depois do 15 de Outubro e da convocação da greve
geral CGTP-UGT, a situação começa a mudar. Exige-se por isso mais
ofensiva, sacudir a letargia social, ganhar iniciativa. Assim, o nosso
argumento deve ser:
• Portugal precisa de vencer o plano da troika, porque ele significa
empobrecimento e desemprego para no fim ter mais dívida (o maior aumento
da dívida desde sempre, 125% do PIB em 2014, diz o Banco de Portugal). O
fim da submissão à austeridade é a condição para a democracia poder
decidir. É ela que define todo o nosso quadro de diálogos, convites e
alianças.
• Devemos apresentar um plano para o emprego, indicando os sectores em
que é possível desenvolver a economia: criar emprego a partir de uma
política industrial baseada em novos sectores estratégicos, investimento
público, reduzir em meia-hora o horário de trabalho em vez de o
aumentar, proibir os despedimentos em empresas com resultados, etc.
• A alternativa imediata para recuperar a economia é a criação de
moeda, e o Estado pode fazê-lo através do banco público, da
capitalização da CGD e do efeito multiplicador que pode ter uma injecção
de liquidez em investimento para o emprego, criação de novas
indústrias, exportações e sobretudo substituição de importações.
Essa liquidez não deve ser usada em crédito ao consumo ou à habitação,
porque assim se criaria mais dívida, e devia ser gerida por um banco da
CGD para o fomento industrial. Esse é o estrangulamento imediato da
economia portuguesa e é assim que se pode vencer a crise, com a criação
de emprego.
Uma palavra mais sobre a criação de moeda. Esta é uma alternativa
concreta à saída do euro e à desvalorização do escudo, e tem a enorme
vantagem de não atingir os salários e rendimentos do trabalho,
permitindo pelo contrário o aumento da actividade económica com custos
de crédito mais baratos, orientados para a produção e portanto com mais
possibilidade de equilibrar a balança externa.
• Defendemos, como sempre, uma revolução fiscal que se baseie na tributação do capital e do dos valores elevados de património.
• Mas podemos e devemos levar mais longe essa recuperação económica
pela devolução do capital, impondo regras anti-especulativas à banca:
controlo das transferências internacionais de capital, proibição de
investimento bancário em fundos de risco, separação entre a banca
comercial e a banca de aplicações especulativas.
Em segundo lugar, e porque a apresentação de alternativas deve conduzir
ao confronto social, é na luta contra a dívida que nos devemos
concentrar. Assim, sugiro a seguinte orientação:
• A ideia da renegociação da dívida deve assumir uma forma mais
concreta: reestruturação. Ou seja, anulação de uma parte da dívida. A
proposta, que tinha razão e ganhou força, é até cada vez mais apoiada
por economistas diferentes, e mesmo por políticos de outras opiniões.
Mas já está em segundo plano, porque respeita mais ao argumento do que
ao movimento.
• No movimento social e na disputa directa, o centro deve ser a
auditoria à dívida. E toda a clareza: a auditoria faz-se para recusar
toda a dívida abusiva. Isso mesmo, serve para recusar pagar a dívida
abusiva. Esse é o “não pagamos” que tem coerência. Atacar os credores
onde eles são mais fracos, porque culpados. Exemplos:
o Nas últimas emissões de dívida, foram cobrados juros acima dos custos
reais, em função de taxas punitivas e especulativas. Recusamos essa
dívida, que serão alguns milhares de milhões de euros, e não pagamos.
o As contrapartidas de material militar foram anuladas pelo credor, que
era o Estado português. São quase 3 mil milhões de euros que foram
perdidos sem caso judicial.
o A dívida dos 78 mil milhões paga 30 mil milhões de juros. Quase 20 mil milhões são juros abusivos. Etc.
Um novo parêntesis: a “suspensão” do pagamento da dívida é uma solução
envergonhada e um disfarce de uma proposta que não se apresenta – como
explicou a FER recentemente em reunião interna do Bloco, é uma forma de
dizer “saída do euro”, mas sem pinga de coragem. A “suspensão” é, por
outro lado, uma imitação mal pensada das alternativas latino-americanas:
a Argentina suspendeu o pagamento da dívida e fez muito bem, porque
pagava uma dívida excessiva a credores que já não lhe emprestavam há
mais de um ano. Mas esse não é o caso português. Na realidade, o Estado
português não está agora a pagar dívida – é o plano da troika que paga a
dívida toda, e só dentro de uns anos Portugal começa a pagar essa
dívida reciclada. Por isso, a “suspensão” não suspende nada e tem medo
de dizer o que é preciso, que há uma dívida que não deve ser paga. A
“suspensão” uma resposta direitista que devemos recusar. Fim de
parêntesis.
Volto à dívida. O nosso ponto mais forte é atacar os principais
devedores. Leste bem, os devedores: temos de virar o debate sobre a
dívida. E falar da maior das dívidas. É o mais difícil, mas é o mais
importante, porque aponta o alvo que importa, o capital financeiro.
Falamos por isso do que eles nos devem, o que o capital deve aos
contribuintes, aos trabalhadores, ao povo:
o O que levaram nas privatizações abusivas dos monopólios naturais e bens públicos,
o O que transferiram para offshores sem pagar imposto (6,6 milhões por dia este ano),
o Os dividendos e lucros que se fizeram pagar quando eram financiados pelo Estado,
o O desvio fiscal criado pelo aumento dos impostos sobre o trabalho e o
consumo, ao mesmo tempo que se reduzia o imposto efectivo sobre os
lucros,
o Os impostos por pagar, particularmente da banca, e o que os outros
contribuintes financiaram desses impostos não pagos (provisões, isenções
e outros benefícios),
o O que gastaram nos submarinos e outras despesas injustificadas,
o O que querem receber das parcerias público-privado, a grande fatia da dívida escondida do Estado.
Vejam esta dívida: o acréscimo nas parcerias público privado de mais de
4 mil milhões, ou seja, quatro anos de confisco de subsídios de Natal e
de férias, a que já me referi atrás. O rendimento máximo garantido do
capital financeiro, que são as parcerias, é o centro do nosso ataque. Se
nos perguntam por alternativa para a consolidação orçamental, aqui está
uma prioridade.
Essa dívida não pode sair do nosso discurso, ela é o centro da luta
contra a dívidadura. O financiamento da criação de emprego e das contas
externas só pode vir de quem nos ficou a dever, o capital financeiro.
Esta orientação tem uma ideia nuclear: sim, chama-se resistência. Mas,
se a única alternativa à resistência que quer criar movimento social é
procurar uma fantasia – o nacionalismo, o capital exportador, ou o
federalismo de António José Seguro – então é preferível mesmo fazer
resistência. Como sempre, empenhamo-nos na resistência com uma
perspectiva europeia e procuramos pontes para que ela seja luta
europeia. E, no plano nacional, não aceitamos o acantonamento de
resistência de trincheira, porque queremos que seja alternativa de
governo, proposta de liderança para o país, luta global, acção imediata,
presença de rua.
E, se é política a sério, discutamos que interessa na política: as
alianças. O federalismo serviria para nos juntarmos ao PS. Mas, com
franqueza, que diferença haveria então entre essa esquerda e as
imposições autoritárias da Merkel com o “semestre europeu”? Como
poderíamos, com tal linha política, recusar a submissão dos orçamentos
nacionais à inspecção e decisão de Berlim, que afinal é o modelo
desejado do Estado federal? Quanto ao nacionalismo, juntar-nos-ia com o
PCP, que por agora ainda mal balbucia a ideia da saída do euro, com pés
de lã, porque sabe o temor que isso provoca entre os trabalhadores,
escaldados de desvalorizações e inflações. Os principais beneficiários
dessa estratégia, o capital exportador, fogem certamente da ideia como o
diabo da cruz. Isto é, não serve para nada senão para dar voz ao
desespero.
Em contrapartida, uma plataforma de luta contra as medidas de
austeridade permite falar com a maioria destes sectores, junta todos, de
franjas do PS ao PCP, ao movimento sindical, aos indignados da rua, aos
desempregados e precárias. É nessa luta, e só nela, que se pode erguer o
nosso objectivo estratégico: punir o capital, defender o salário.
A greve geral que foi hoje convocada é uma boa prova provada desta
política. Ela não tem como objectivo qualquer sonho do Estado Europeu,
nem muito menos a exigência da saída do euro. Nem podia, pois não? Tem a
plataforma correcta que junta mais gente, a da rejeição dos cortes dos
subsídios ou dos aumentos dos impostos, a defesa do salário e de uma
política de emprego. Chama-se resistência e responde pelo país – é a
luta pela hegemonia e cria acção social.
É nessa acção que se aprende e que se erguem alternativas. Como dizia
alguém, é sempre da prática que vêm as ideias justas. Vamos à luta.
Francisco Louçã, 17 de Outubro de 2011