quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Ilustrações de Blanca Gómez

publicado em artes e ideias por diana ribeiro | 1 comentário
Blanca Gómez é uma ilustradora e designer gráfica natural de Madrid. Em criança, passava os dias a pintar, imaginando que anos mais tarde seria pintora. Optou pela publicidade, experimentou depois a fotografia, mas nunca parou de desenhar. “Cosas mínimas” surgiu para divulgar os trabalhos que fazia, muitas vezes rabiscados em post-its e esquecidos em seguida. Minimalistas, divertidas e simples: assim são as suas criações.


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© Blanca Gómez, "Bike Blanca".
Blanca Gómez alimentava desde pequena o sonho de ser pintora. Na infância, passava os dias entre folhas e lápis, o que levou os pais a inscreverem-na em aulas de pintura. Anos mais tarde, prestes a entrar na universidade, optou pelo curso de publicidade. A artista espanhola explica que, ao crescer, foi-se apercebendo das dificuldades da profissão e preferiu escolher uma alternativa igualmente criativa.
Não gostou do curso mas continuou os estudos. Experimentou, entretanto, a fotografia e o design. Após regressar de Milão – onde passou o 4ºano - tirou uma especialização em design gráfico que a levou a trabalhar num pequeno estúdio de produção e ilustração literária.
Em paralelo, Blanca também desenhava. Mesmo no trabalho, aproveitava o tempo livre para rabiscar em posts-its que, na maioria das vezes, até ficavam esquecidos. “Cosas mínimas” surgiu por iniciativa do próprio chefe, com o objectivo de partilhar e divulgar essas criações. O site, que então servia apenas como uma montra dos projectos pessoais, transformou-se no seu cartão de visita profissional. As propostas recebidas foram tantas que, a partir daí, o hobby tornou-se no seu principal emprego.
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© Blanca Gómez, "Bike Blanca".
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© Blanca Gómez, "Poster Cabaret".
Questionada sobre o que a inspira, responde não saber bem. “É provável que seja aquilo que me rodeia, além dos meus gostos pessoais”. No entanto, aponta alguns artistas que admira e influenciam o seu estilo. “ Descobri o Sempé quando era pequena e li o “Pequeno Nicolau”. Adorava o humor das suas ilustrações. O Tatsuro Kiuchi só conheci recentemente. A simplicidade dos seus desenhos encantou-me”. O design dos anos 50 e 60 não deixa também de estar presente nas ilustrações de Blanca, através das cores sólidas e do aspecto retro que têm.
Quando começa um desenho, tanto pode fazê-lo em papel como usar directamente o programa “Illustrator”. Em primeiro lugar, define as personagens. Só depois de ter a visão certa de cada uma é que vai experimentando os contornos. Em seguida projecta cenários e joga com as cores. Por último, termina o desenho no Photoshop, onde acerta detalhes como as texturas, sombras ou outros contornos. Diversão e simplicidade (no melhor sentido da palavra) definem os seus trabalhos.
Blanca contacta com os clientes pelo site. Colabora com empresas específicas, sobretudo espanholas, fazendo ilustrações para textos jornalísticos, capas de revistas e livros, cartões de felicitações e calendários. A propósito de uma exposição no Suntory Museum, em Osaka, foi também convidada para colorir algumas páginas de um moleskine.
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© Blanca Gómez, "Hulot".
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© Blanca Gómez, ilustrações para textos jornalisticos do "El Pais".
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© Blanca Gómez, ilustrações para textos jornalisticos do "El Pais".
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© Blanca Gómez, "Minimas".
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© Blanca Gómez.
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© Blanca Gómez.
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© Blanca Gómez.

Lula - amor e ódio

Amor e ódio

Luis Fernando Veríssimo



Um historiador do futuro - figura retórica tão útil quanto o Marciano Hipotético para se olhar o Brasil atual de uma certa distância - terá duas grandes dificuldades para entender que diabos se passou por aqui nos últimos anos. Uma será explicar o amor ao Lula. A outra será explicar o ódio ao Lula. As duas coisas transbordaram de qualquer parâmetro racional. Lula terminou seu mandato com um índice de aprovação popular inédito, e odiado na mesma proporção. O amor resistiu a escândalos, gafes, alianças indefensáveis, uma imprensa hostil e uma oposição ativa. O ódio se manteve constante até depois do mandato e não se diluiu nem numa natural simpatia pelo homem doente - o antilulismo feroz não é solidário nem no câncer.

Nosso historiador talvez desista de encontrar explicações para essa polarização extrema na disputa política e sucumba a simplificações sociorromânticas. Talvez conclua que Lula teria o amor da maioria pelo seu tipo físico e sua biografia independentemente de qualquer outra coisa, e seria aprovado pelos seus semelhantes não importa que governo fizesse. E que o ódio ao Lula se explicava por nada menos científico ou novo no Brasil do que o preconceito social, uma repulsa atávica a quem ultrapassa sua classe e com isto ameaça todo o conceito de classe predestinada. No caso um torneiro mecânico inculto metido a grande coisa.

No fundo o que o perplexo historiador do futuro estaria dizendo é que é impossível confiar em padrões históricos como os que explicam outras sociedades para nos explicar. Não se trata de reativar a frase que o De Gaulle nunca disse, sobre nossa falta de seriedade. Somos sérios, sim. Mas também somos movidos a paixões que sabotam toda coerência histórica. O Lula foi um catalisador de paixões, a favor e contra. E o mais extraordinário e brasileiro disso é que o amor e o ódio não têm nada a ver com os sucessos ou os fracassos do seu governo. Existem num plano ahistórico e apolítico de pura devoção ou pura raiva.

Publicado na edição "online" do jornal O Globo de 01/12/2011.

A esquerda portuguesa contra a dividadura financeira

O debate nas esquerdas acerca da resposta à crise da dívida é fundamental para definir a política socialista. É disso que trata este texto.


Na primeira parte, discuto a crise do euro. Pretendo argumentar, como muitos outros, que ela é estrutural e permanente, ao contrário do que afirma o consenso entre a social-democracia e a direita. Na segunda parte, discuto as duas alternativas que têm sido propostas contra a estratégia do europeísmo de esquerda: a saída nacionalista e o salto para o Estado Europeu. Pretendo provar que estas alternativas têm três problemas: são violentamente contraditórias, apoiam-se na ocultação dos seus efeitos económicos e sociais reais e ignoram a relação de forças em que se fazem escolhas. Na terceira parte, discuto de novo o europeísmo de esquerda e pretendo mostrar que uma alternativa económica exige uma estratégia de luta de classes. Para isso, voltemos ao essencial.
1. A crise do euro é estrutural e vai-se agravar
As definições fundadoras da União Europeia e, em particular, da criação da moeda única, têm o cunho do consenso histórico entre a social-democracia e a direita. De facto, nas escolhas fundamentais para esta estrutura institucional, não existiu até hoje qualquer diferença essencial entre estes parceiros. Foi uma amplíssima maioria de governos social-democratas que definiu o pilar fundador do euro, as regras de Maastricht (máximos permitidos de 3% de défice e de 60% de dívida e, ainda mais importante, a obrigação de uma contenção permanente da inflação a níveis insignificantes). Esses dogmas são a origem dos problemas actuais e os instrumentos da direita que governa a União Europeia. Não são precisos outros para a máquina de destruição das regras sociais do Estado-providência.
O problema é que a moeda que resulta desse consenso é uma construção explosiva. É incoerente, vulnerável, desigualitária, prejudicial à maioria dos Estados e, fundamentalmente, esvazia a democracia. É preciso por isso analisar em detalhe porque está a fracassar o euro.
1.1. O euro é a crise
A política das lideranças da União Europeia está bloqueada num consenso inicialmente muito forte: a criação de um regime de financeirização dominante por via do euro, impondo a cada Estado o condicionamento da sua economia e a minimização dos gastos sociais. Este consenso tem sido abalado no que diz respeito à gestão das respostas à crise, porque o euro é a crise: alguns governos aceitam hoje os eurobonds que recusaram sempre, uns querem reduzir as dívidas com uma pequena desvalorização do capital, outros sustentam o modelo de espoliação da Grécia e das outras economias periféricas. As linhas que se seguem discutem estes dois pontos: a razão da crise do euro e as tentativas de solução dentro do euro.
Para esse efeito, vou resumir-vos a análise de Paul de Grauwe, um economista belga que é um dos mais reconhecidos críticos do modelo do euro e que tenta remediá-lo com várias propostas (“The Governance of a Fragile Eurozone”, working paper da Universidade de Lovaina).
De Grauwe escreve que, quando existe uma zona de moeda comum, todos os Estados passam a emitir dívida soberana em euros mas, porque não têm controlo nacional sobre a moeda, tornam-se vulneráveis a ataques especulativos que podem forçar a sua falência – o default (a cessação de pagamentos). Ou seja, o euro aumenta o risco de falência.
O exemplo que apresenta é o da comparação entre a Espanha e o Reino Unido, sabendo-se que o rácio dívida/PIB inglês é maior (em 2011 a diferença entre um e outro é de 17%). Mas o Reino Unido, quando emite dívida soberana, paga taxas de juro menores, apesar de estar muito mais endividado. Há evidentemente uma primeira razão para esta diferença, que De Grauwe, aliás, ignora: os mercados financeiros impõem taxas de juro considerando as suas expectativas mas também o seu poder perante cada economia, e o poder do Reino Unido é muito superior ao da Espanha, porque é um dos maiores centros financeiros e uma grande economia mundial.
Mas a segunda razão, que é analisada em detalhe por De Grauwe, é muito importante para perceber o falhanço do euro: é que, se houver um forte ataque especulativo, o Reino Unido tem uma capacidade de resposta que a Espanha – ou Portugal – não tem. Imagine-se que os especuladores temem o incumprimento britânico e que, por isso, vendem os títulos desta dívida pública. Em resposta a esta situação, o Banco de Inglaterra comprará todos esses títulos. A massa monetária não é assim reduzida (até pode aumentar) e não chega a haver um problema de liquidez. Mas, nesse caso, os vendedores dos títulos normalmente irão trocar por outra moeda as libras que receberam, o que provoca um efeito automático: a libra desvaloriza (25% desde o início da crise), o que facilita as exportações britânicas (porque os produtos britânicos ficam mais baratos). Por outras palavras, a economia corrige o problema se o Banco de Inglaterra agir sem hesitações.
Em contrapartida, se acontecer o mesmo em Espanha – ou noutro país nas mesmas circunstâncias –, os fundos financeiros venderão os títulos da dívida espanhola. Mas é uma incógnita o que farão com os euros que receberem: podem simplesmente investi-los ou depositá-los nalguma outra economia. Cria-se assim um problema de liquidez porque se reduz a massa monetária em Espanha, porque esses euros são transferidos para o exterior. E o juro da dívida espanhola aumentou porque o Banco de Espanha, que é agora uma sucursal do Banco Central Europeu, não quer nem está autorizado a comprar os títulos. A oferta monetária reduz-se em Espanha e os preços relativos não são corrigidos, passando a haver uma restrição que agrava a austeridade.
O efeito seguinte é sobre as contas dos bancos nacionais, que têm em carteira uma parte importante da dívida pública: se os títulos públicos que detêm valem menos, os seus balanços ficam desvalorizados, têm mais dificuldade para obter financiamento, e diminuem a concessão de crédito.
Sim, existe também um problema de dívida privada que, em Portugal como noutros países, é maior do que a dívida pública. E esse problema agrava os custos dos empréstimos que os bancos nacionais obtêm junto da banca internacional. Indirectamente, os trabalhadores estão a pagar esse custo, com o agravamento dos juros quando pedem novos empréstimos e com o aumento dos impostos para financiarem as rendas que o Estado paga à banca (as parcerias público-privado aumentaram este ano 4 mil milhões de euros, a serem pagos por impostos futuros). Mas não haja ilusões: mesmo que a dívida privada não fosse enorme, a pressão sobre a dívida soberana poderia ainda ter um efeito desastroso, como está a acontecer.
O efeito dominó é muito forte: a especulação financeira consegue ameaçar uma economia vulnerável. O Estado pode ficar insolvente simplesmente se os mercados financeiros temerem que fique insolvente. Para responder a esta dificuldade, a ortodoxia europeia só concebe a solução da austeridade, que é a da recessão.
Só que esse efeito de ameaça às economias do euro não é a única ameaça na Europa. O Reino Unido, o exemplo de De Grauwe, está agora a aplicar a mais selvagem lei da austeridade, multiplicando as propinas universitárias, cortando na saúde, atacando os pobres, reduzindo o investimento e criando desemprego – apesar de ter todos os instrumentos monetários para relançar a economia contra a especulação. Ou seja, o problema europeu não é só o euro. É mesmo a luta de classes.
1.2. A solução europeia tem sido o aumento da exploração pela via da austeridade
A resposta europeia a estas crises nacionais, acentuadas pela vulnerabilidade do euro, é bem conhecida: planos de austeridade para recuperar a competitividade a partir da desvalorização dos salários directos (retirar o subsídio de Natal e de férias, cortar nos salários, aumentar o horário de trabalho) e indirectos (aumento dos custos da saúde e educação, redução das pensões). A austeridade provoca recessão, que agrava o défice orçamental, que exige novos aumentos de impostos, que agravam a recessão. A recessão transforma-se, como pode acontecer em Portugal, em depressão prolongada.
Isto é uma boa notícia para a finança e para a burguesia, porque altera profundamente as relações de força entre as classes, abrindo as portas a um novo regime social – despedimentos fáceis, fim dos contratos colectivos, redução do poder sindical, serviços públicos mínimos com a mercantilização de serviços essenciais para a vida das pessoas. A finança do século XXI quer viver tanto dos mercados bolsistas como da gestão dos hospitais e dos fundos da segurança social. Mas, entretanto, a depressão desvaloriza uma parte do capital produtivo, e isso é a má notícia para os capitalistas que forem à falência. Assim, temos dois pólos de tensão na classe dominante: entre a finança e os bancos, por um lado, e entre estes dois sectores e partes do capital produtivo, por outro lado.
A depressão é sobretudo uma má notícia para a maioria da população, porque significa um recuo geracional do salário, ou seja, um aumento da exploração. Assim, a estrutura do euro acentua a pior das políticas, a da desvalorização do salário.
Vou depois voltar esta conclusão, porque ela é a chave de todo o debate político: com o euro, a desvalorização do salário é o alfa e o ómega da política económica dominante.
1.3. Algumas novas e velhas soluções imediatistas
Recapitulemos De Grauwe, porque ele exprime com clareza a dificuldade de busca de alternativas no quadro económico actual, mas propõe três alternativas principais à gestão actual do BCE e do directório da União. Vejamos quais são e qual a sua viabilidade.
A primeira proposta é que o Banco Central Europeu compre títulos da dívida soberana dos países em dificuldades e os aceite como garantia colateral dos bancos privados quando estes pedem empréstimos. Isso já está a ser feito em alguma escala, apesar de ser contra tudo o que o BCE sempre afirmou. Mas esta medida não basta: para que a sua actuação tivesse impacto, o BCE devia ser um factor decisivo no mercado da dívida, o que significaria comprar toda a dívida emitida – como propôs recentemente Cavaco Silva. Devia comprar directamente aos Estados e não somente no mercado secundário, nos momentos de aflição. Isso não vai acontecer na dimensão necessária, porque a Alemanha não o permite.
A segunda proposta apresentada por De Grauwe é a redução do juro imposto nos empréstimos aos países em dificuldades. A razão é evidente: o juro alto aumenta as dificuldades e assinala que a própria União considera que pode haver um incumprimento da dívida por parte desses Estados, o que convida a ataques especulativos contra eles. Houve em Julho uma pequena redução (de 1%), mas o juro actual está ainda mais de 2% acima do custo do seu financiamento, que anda pelos 2%.
A terceira proposta de De Grauwe é um mecanismo de emissão de eurobonds, que asseguraria o equivalente a 60% da dívida soberana de cada país, devendo o Estado suportar os títulos restantes. Assim, cada país teria dois tipos de títulos soberanos: os europeus, de juro mais baixo (mas com custos diferenciados de acesso segundo o risco de cada economia) e os nacionais, que poderiam ter juro mais elevado. É uma proposta de Jacques Delors e já tem cerca de 20 anos. Nunca foi concretizada e é difícil que o seja, porque tem o veto do governo alemão.
Para as três propostas, De Grauwe sugere uma contrapartida: uma autoridade fiscal comum e portanto uma União política. Ora, não é preciso que a senhora Merkel lidere um governo europeu unificado para que seja viável a emissão de títulos europeus ou juros razoáveis nos empréstimos às economias atingidas – basta haver regras aceites que determinem estas acções.
Como vamos ver adiante, a recusa anterior pela governação europeia da lógica destas medidas não implica que não ceda e que não as aplique em alguma medida, combinadas com um cocktail de outras iniciativas, para não deixar cair o euro. A redução dos juros da dívida negociada com a troika continuará, e haverá uma forte reestruturação da dívida da Grécia, com perdas para o capital financeiro (e com o BCE a compensar parcialmente a banca). O euro não pode cair, se o capital alemão defende os seus interesses. Haverá por isso medidas activas para reorganizar o sistema de crédito e as relações institucionais, com o BCE a fazer sistematicamente o que por doutrina e mesmo por Estatutos tinha sempre recusado.
1.4. A política que dirige a Europa é autoritária mas consensual entre a direita e a social-democracia
Considerando estes argumentos, o impasse actual pode ser assim resumido: o euro tem organizado o capitalismo europeu durante os anos de crescimento, mas fraqueja quando há uma crise financeira, porque os mercados especulativos atacam com sucesso as economias mais frágeis e criam um perigoso efeito dominó. A resposta é simplesmente austeritária, a austeridade autoritária. Só que o efeito de contágio é muito intenso, dado que mais de metade da dívida soberana dos vários países está detida por entidades financeiras de outros países. E a recessão alastra, agravando a instabilidade financeira. O euro torna-se por isso um factor determinante da crise.
Esta estrutura do poder financeiro e da decisão europeia é suportado por um consenso entre a direita e a social-democracia, que tem resistido sempre com vantagem da direita. Ele tem um fundamento: Kohl, Schroeder ou Merkel, na Alemanha, representam exactamente as mesmas políticas europeias, como Prodi e Berlusconi em Itália, ou Aznar e Zapatero em Espanha, ou Durão Barroso e Sócrates em Portugal. Para que a política não seja meramente uma imaginação alegre, convido os economistas que têm defendido a saída do euro a lembrarem-se da configuração política que definiu estas regras, as impôs e as mantém, para que possamos procurar alternativas viáveis, que não ignorem os adversários e que procurem aliados para além de figuras de retórica. Se me permitem, recomendo-lhes por isso que não contem com a socialdemocracia europeia: ela não vai erguer uma alternativa europeia, porque defende para a Europa o Tratado de Lisboa com o seu Directório e o euro tal como ele existe.
2. Austeridade contra a austeridade?
Esta crise é estimulada pelo euro, que cria um efeito de contágio. Mas ela não é criada pelo euro. Para a compreendermos no seu quadro geral, devemos ir mais fundo e fazer o que a maior parte dos economistas recusa: pensar a economia a partir das classes sociais. É isso que faço de seguida, considerando as duas alternativas que têm sido recentemente propostas por alguns sectores de esquerda (e de direita): a opção nacionalista da saída do euro e a contra-opção federalista da criação de um Estado europeu unificado.
2.1. Avante para a esquerda, ou então, se não puder ser, para a direita
Grande parte das esquerdas críticas partilha este diagnóstico sobre a crise do euro (e também, como vimos, alguns dos mais tradicionais economistas). Ele não é novo. Está presente desde a formação do euro, e foi por isso que recusámos a seu tempo a sua estrutura, como rejeitámos a artificial valorização do escudo no momento da integração – valor que tem vindo a destruir a economia portuguesa – bem como a excessiva valorização posterior do euro. Sim, isso já se sabia. Neste quadro, o BCE só podia ser o que veio a ser: uma agência para a liberalização dos mercados financeiros e a protecção da banca, impedindo as escolhas necessárias perante cada recessão. Neste quadro, também a Comissão Europeia só podia ser o que veio a ser: uma agência dos principais governos, com o poder legislativo que o Parlamento Europeu não tem e que os parlamentos nacionais estão a perder.
Foi portanto com pleno conhecimento destas realidades que as esquerdas elaboraram as suas respostas. Ninguém pode agora argumentar que não sabia ou que não percebeu. Ou que, com estes tratados, a União podia ser o que não foi. Ou que as instituições se regenerariam e salvariam as economias da recessão. Não vale. Não vale inventar agora que a União do directório era outra coisa, que podia ter sido social ou até que podia ter sido economicamente competente.
Foi por isso que o Bloco de Esquerda se definiu desde a sua fundação como “europeísta de esquerda”, e levou a sério essa definição. Ela implica o combate contra a arquitectura dos poderes de facto e contra as políticas da governação europeia, porque são factores da crise e recusam a democracia. Implica a recusa do Tratado de Lisboa, porque encerra a Europa no Directório, e das regras do BCE, porque agravam cada recessão. Implica a exigência da saída da NATO e a recusa de um militarismo europeu, porque é parte de uma política imperial. Implica a exigência clara da refundação da União e isso tem uma consequência, que é o combate sem concessões contra a sua estrutura e política actual.
Esse combate, portanto, não é novo. Nem é novidade que ele nos diferencie de uma esquerda nacionalista que tem tido receio de afirmar a sua posição pela saída do euro e da União Europeia, em nome de uma alternativa soberanista mal explicada e de viabilidade discutível. O que há de novo, no entanto, é que alguns sectores de esquerda, tradicionalmente europeístas e por vezes até pouco críticos da governação europeia, procuram agora outras soluções. Essa deslocação é em si mesma um bom sinal. Prova que, perante o impasse actual, há quem procure novas alternativas. Mas essas alternativas têm de ser mais fortes e mais consistentes do que as políticas que querem substituir.
O que pode surpreender quem achar que já viu tudo é que haja quem defenda simultaneamente as duas propostas, a saída do euro e o Estado europeu, o que um dos seus defensores chama, elegantemente, sair da crise por “cima” ou por “baixo”. De facto, a sobreposição destas duas propostas radicalmente antagónicas prova de que a imaginação humana é tolerante. Quem quer a solução extrema de um Estado Europeu que dirija as economias nacionais dificilmente pode querer também a solução nacionalista extrema da separação do euro (e da aplicação de políticas que significam a saída da União Europeia) – pelo menos não se espera que defenda as duas simultaneamente. De facto, estas soluções dirigem-se a objectivos contraditórios, servem sectores sociais e mobilizam forças diferentes, concitam sistemas de alianças distintos. A primeira favorece os sectores financeiros mais integrados a nível europeu, a segunda espera a liderança dos sectores exportadores da burguesia nacional. A primeira depende da anuência do governo alemão e dirige-se à convergência com o sector federalista do PS (António José Seguro), a segunda restringe-se à aliança com o sector mais conservador do PCP e nem sequer inclui o movimento sindical.
Assim, o exercício de debater com a ideia de “um partido-duas políticas” é dos mais criativos a que se pode aspirar. Qualquer das alternativas, por si própria, é consistente e tem argumentos sólidos. Qualquer delas sustenta uma mudança de orientação para as esquerdas. Mas o que não consigo compreender é o elaborado argumento de que, se uma não resultar, queremos a outra. Se, para nos indicarem o caminho, nos disserem “se não for para a esquerda, vá para a direita”, ficaremos provavelmente sem orientação. Lamento, mas é o caso: duas propostas contraditórias é o mesmo que nenhuma proposta.
E é por isso que não se pode nunca defender algo e o seu contrário. Ou imagine-se o que seria, na campanha eleitoral recente, o destino de um partido que defendesse simultaneamente a saída do euro e o Estado Europeu unificado. No debate com Sócrates e Passos Coelho defenderia a saída do euro e no debate com Jerónimo de Sousa defenderia o Estado Europeu? Ou seria o contrário? Ou defenderia ambas as alternativas com qualquer deles? E pediria o voto aos eleitores para quê, se não é indiscrição?
Pelo seu lado, o Bloco de Esquerda assume a responsabilidade da política, porque sabe que a política é escolher caminho.
2.2. A primeira solução autoritária contra o austeritarismo: o federalismo
Prefiro então discutir cada uma das propostas em separado, pelos seus méritos e não pela sua estranha amálgama. A pergunta que se tem de colocar por isso é esta: a nova proposta ajuda a responder à recessão e à austeridade, constitui uma alavanca de mobilização e de alternativa? Se sim, deveríamos adoptá-la sem hesitação.
Veja-se então a primeira proposta, o federalismo. Segundo esta proposta, se há uma crise da dívida, a solução estaria na transformação da União Europeia num Estado unificado, com uma autoridade fiscal única, um governo único e um orçamento único. É a saída “por cima”. Há uma dívida, o Estado Europeu que se encarregue dela e que dirija o nosso orçamento a partir de agora. Eles que tomem conta disto.
O federalismo é um conceito que, em si mesmo, diz tudo: a federação é uma forma de organização de um Estado, com regiões ou províncias (nos Estados Unidos ou no Brasil chamam-se estados) com alguma margem de autonomia, mas submetidos a um poder político centralizado, que decide o orçamento e a política económica e social, que tem leis uniformes, um exército e uma representação externa. Ou seja, a federação é um Estado unificado. Joshka Fisher, o líder dos Verdes alemães e uma figura de topo dos federalistas, escrevia recentemente, com alguma arrogância, que, nesse Estado Europeu, era admissível que os Estados nacionais tivessem algo mais de autonomia do que os lander (as províncias) alemães têm hoje.
É fácil de entender porque é que esta proposta se disfarça com o argumento suave de que só propõe pequenos passos, com factos consumados, num caminho que esconde o seu destino. O motivo é evidente: não existe qualquer possibilidade de acordo europeu para um Estado europeu nos tempos de hoje.
E não existe por duas razões. A primeira é que os pequenos passos criam tensão máxima, como é o caso da actuação do directório, agora um eixo franco-alemão que gravita em torno de Merkel. Foi com esses pequenos passos que chegámos aqui, e não é bonito de se ver. A segunda é que nenhuma das burguesias – nem as opiniões públicas – de qualquer dos grandes países aceitaria a incógnita de um governo europeu. Falta-lhe para isso o consentimento social e a hegemonia ideológica.
Um governo europeu significaria que a Inglaterra e a França poderiam ser governadas de Berlim. Impossível. Ou que a Alemanha poderia ter de aceitar um governo liderado por um primeiro-ministro polaco eleito por uma coligação com os populistas italianos.
Inaceitável. Ou que Portugal, a única nação ibérica que ao longo de séculos se libertou do reino de Castela, perderia agora a velha aposta histórica da independência. Difícil, não é?
Evidentemente, a impossibilidade actual de criação deste Estado Europeu poderia não ser razão para o rejeitar no futuro ou até para não o desejar no presente. A esquerda poderia defendê-lo como um modelo, como uma estratégia ou, como hoje se diz, como um desígnio. Pela minha parte, só vejo motivos para rejeitar categoricamente a ameaça de um Estado Europeu.
Começo pela razão mais circunstancial. Imaginemos que não havia nenhuma resistência, que o consenso era forte, que o federalismo tinha vencido e que o Estado Europeu era criado, e que o seu governo era eleito, tudo hipóteses bastante extravagantes. Só que, como se verificou nas eleições para o parlamento europeu, o resultado dessa eleição seria uma estrondosa vitória da direita europeia, incluindo os sectores mais populistas e agressivos. Em consequência, a capacidade de disputa dos movimentos de trabalhadores reduzir-se-ia, muito em particular nos países onde criaram uma relação de forças que lhes tem permitido combater por alternativas. Para a esquerda, este cenário seria suicidário.
Mas ignoremos esta objecção. Afinal, se a proposta fosse absolutamente essencial, o Estado Europeu seria uma conquista da democracia e todos viveríamos melhor com isso, a longo prazo. Mas é essencial? A Europa beneficiaria desse Estado? A minha resposta é convictamente que não: um Estado Europeu democrático nunca será democrático. Essa é a objecção mais importante, porque tem que ver com a natureza da esquerda e com o nosso compromisso de representação e luta pela emancipação dos explorados.
A União pode ter procedimentos democráticos ou autoritários, e isso faz uma enorme diferença. Nós temos proposto sempre os procedimentos democráticos, e recusado os autoritários: o sistema actual do directório já é uma das piores características do federalismo. Ora, o Bloco defendeu sempre referendos sobre cada Tratado (e, já agora, comprometemo-nos com o “não” ao Tratado de Maastricht, depois ao de Nice, depois ao de Lisboa, e por fortes razões). Denunciámos os poderes europeus e os governos que conspiraram para maquilhar um Tratado Constitucional como um Tratado comum, e para o impor sem os referendos que tinham prometido solenemente. Apresentamos uma moção de censura contra Sócrates por causa disso.
Levamos muito a sério a luta pelos procedimentos democráticos. Sabemos que faz toda a diferença ter os governos a legislar a partir do Conselho Europeu e da sua Comissão ou ter controlo parlamentar escrutinável. Faz muita diferença ter a possibilidade de os europeus decidirem ou manter um poder enclausurado nos governantes do directório.
Mas paremos agora um momento para pensar o que tem sido a nossa luta pelos procedimentos democráticos. Quanto propomos um referendo em Portugal e queremos que nesse referendo ganhe o “não” contra o Tratado do directório, estamos certamente a defender uma solução para a Europa. Somos nisso completamente europeus. Mas fazemo-lo onde podemos, como podemos e como queremos que a democracia decida a questão – onde a reconhecemos, em Portugal. Porque não propusemos um referendo simultâneo em toda a Europa que decidisse sobre o Tratado, em que o voto do alemão e do polaco valesse como o da portuguesa? Porque o povo que reconhecemos para decidir sobre a aceitação de um tratado por Portugal é o eleitorado português. É com ele que falamos. E é a sua decisão que aceitamos como legítima, mesmo que a achemos errada e que combatamos as suas consequências.
A razão desta legitimidade eleitoral é de importância transcendente para a esquerda. E é simples. É que a democracia parlamentar foi criada historicamente no Estado-Nação, baseada na aceitação social de uma representação legitimada: cada um tem o direito de voto, há pluralismo, e aceitamos que o partido mais votado representa o Estado e governa. Este regime é frágil, é manipulável, tem um enorme peso da ideologia dominante e das fábricas do consenso, não é uma democracia de participação e de acção para o povo, mas é a parte da democracia que resulta das lutas sociais pelo sufrágio universal e contra a ditadura, e dela não abdicamos. Ela é ponto de partida para as lutas, porque é verificável e disputável pela força que a luta popular pode criar. É por isso que a democracia representativa no país é um espaço de confrontação para todos, mas a democracia europeia não existe – existem procedimentos democráticos ou autoritários na Europa, mas não existe democracia europeia como espaço comum de reconhecimento e de legitimidade unificada.
O Estado Europeu não é por isso democrático, porque exclui a democracia representativa realmente existente, que é a que existe nos Estados-Nação. Ainda não há nem houve qualquer forma de democracia internacional, que tenha como base de sustentação a legitimação perante um povo global. Faz falta, mas não existe.
Tem escrito Rui Tavares que, se Merkel manda em nós, devíamos ao menos poder votar nas eleições que a escolhem. E assim ao nível europeu: se mandam em nós, queremos votar sim ou sopas. Mas o problema é que esse voto não tem sentido. Não comunicamos com um alemão, dono de uma cervejaria em Munique, como com uma desempregada em Figueiró dos Vinhos. Não falamos da mesma história, da mesma cultura, não partilhamos disputas e diferenças: não podemos decidir em conjunto um governo que nos obrigue a todos, porque, como dizia Linecker, nesse jogo há duas equipas e no fim ganha sempre a Alemanha. E o pior é que, quando elegermos o governo do Estado Europeu, sobrar-nos-á um feitor da província instalado no palácio de S. Bento, a quem poderemos entregar petições. Mas com ele não discutiremos a lei, os orçamentos, os impostos, a defesa, a política externa, os serviços públicos. Essa democracia não seria democracia.
Dir-me-ão que, no fim das contas, Merkel e Passos Coelho pensam e propõem o mesmo para a sociedade. Sim, mas a diferença entre ter um governo alemão para a União e ter um governo português dentro da União, mesmo subordinado e sorumbático, é que podemos disputar com o segundo e influenciar a política que o determina. Nessa disputa, estamos nós, o povo.
Mais fundamentalmente, não existe um povo europeu único que se reconheça, existem povos europeus. Ser português e ser europeu são duas identidades e não uma. É ainda nos quadros nacionais que se forma o essencial dos processos de acumulação e sobretudo a determinação das condições salariais ou seja, a repartição do rendimento, a exploração e a luta contra ela, que não abdicamos de lutar onde temos poder.
Foi isso mesmo que nós sempre dissemos a respeito da Europa. Que devia ser um lugar de políticas comuns, incluindo com partilha negociada de soberanias, mas também uma convergência de Estados-Nação. Toda a política europeísta de esquerda se baseia nessa convicção forte. A Europa tem de ser a combinação de políticas europeias e de margens de acção dos Estados nacionais. Queremos reforçar umas e outras, delimitando o que a União deve fazer: melhor orçamento comum para medidas para pleno emprego, e também mais capacidade de escolha de cada país na sua gestão financeira, fiscal, orçamental e social. Tudo bons motivos para recusar o Estado Europeu.
Finalmente, há mais duas razões para rejeitarmos o truque federalista. A primeira é que qualquer deriva para o Estado Europeu, sempre autoritária, multiplica os nacionalismos – e dispensamos esse pesadelo, porque sabemos como começa mas não sabemos onde acaba. Já muitos países da Europa têm direitas nacionalistas radicais a 20%. O federalismo é um dos seus alimentos. Rejeitar o nacionalismo e cortar-lhe espaço implica, como sempre, que a esquerda quer disputar a hegemonia do seu povo, quer construir uma maioria para dirigir a nação. Essa luta pela hegemonia é a razão de ser da esquerda, e desgraçada da esquerda que dela abdica ou que, pelo contrário, se torna ela própria nacionalista – acabará, como o PC grego, a votar sistematicamente com Le Pen no parlamento europeu. Pode ter votos, como o PC grego tem, mas o nacionalismo nunca será a esquerda para a luta necessária. A utopia reaccionária do Estado Europeu cria os seus anti-corpos e destrói a esquerda em cada país.
A última razão é a coerência connosco mesmos. Deixei essa razão para o fim, porque é unicamente a nossa própria cultura política que está em causa. Mas é um valor importante. Foi deliberadamente que escrevemos no “Contrato pela Europa” – que é um dos três textos fundadores do Bloco de Esquerda – que defendemos “uma nova perspectiva da esquerda para a Europa, contra o federalismo” e que o “principal adversário da nossa alternativa de projecto é o federalismo” que “transforma a Europa numa feira de capitais”. Nesse momento, chamávamos também a atenção para o significado imperialista da ideia do Estado Europeu: com ele chegam um exército e um aparelho repressivo unificado.
Admito que haja quem tenha aprovado esta posição durante dez anos e que agora se arrependa. Ou que pense que a crise de Portugal é tão grave que mais vale esta solução do que continuar tudo como está. E não pode de facto continuar como está.
Mas, pergunto: é o imediatismo que move a abdicação da nossa posição de sempre? É a emergência que leva à aceitação de um poder europeu que sempre recusámos? Se assim é, para quê então defender uma alternativa que não tem viabilidade imediata e emergente?
Dito tudo isto, a minha conclusão é esta: a ideia federal do Estado Europeu unificado não vai ter qualquer papel determinante na política portuguesa ou europeia nos anos que vivemos. Haverá medidas de reforço do Conselho, da Comissão, do BCE, criar-se-ão fundos comuns e regras rígidas, vigiar-se-ão orçamentos e políticas, nada que não conheçamos com a tutela dos credores hoje em dia. Haverá medidas para os tais pequenos passos de avanços e recuos, mas não haverá o salto imenso para um Estado Europeu federal.
Nem as partes da social-democracia que a defendem – e que são alguns partidos quando estão na oposição, nem todos e nem sempre – terão um protagonismo suficiente para colocarem na agenda essa solução. Nem ela ganhará credibilidade noutros sectores de esquerda. Pura e simplesmente, ela não existe no campo das decisões.
2.3. A segunda solução autoritária contra o austeritarismo: sair do euro e da União Europeia
A segunda solução, em contrapartida, terá um peso crescente no debate político. A proposta da saída do euro será persistente, é com ela que nos vamos defrontar. Ela será defendida por dois tipos de correntes: os economistas que recusam o espartilho do euro e não encontram outra solução, e as esquerdas que preferem o nacionalismo ao arrastamento da crise europeia. São dois sectores diferentes, com ideias diferentes e propostas diferentes, e só por diletantismo é que os segundos se refugiam nos argumentos dos primeiros.
Entre os economistas que defendem a saída do euro estão alguns dos seus críticos de sempre, como João Ferreira do Amaral, em Portugal, ou, mais prudentemente, Paul Krugman e Nouriel Roubini, nos Estados Unidos. Para estes economistas, já não é uma questão de escolha, é (ou começa a ser) uma inevitabilidade. Segundo eles, a espiral recessiva das medidas de ajustamento orçamental tornará a governação impossível, com aumentos de impostos que já não criam mais receitas, com a paralisia da economia e com a exaustão das políticas. Por isso, argumentam que só resta a saída do euro como forma de desvalorizar uma nova moeda e esperar que a economia se reequilibre por via do aumento das exportações e da diminuição dos salários. Assinale-se que nenhum deles defende a rejeição da dívida, antes esperam ganhar algum tempo para pagar a dívida de outra forma, com o aumento das exportações. E todos aceitam que os trabalhadores devam pagar o ajustamento com a redução dos salários. Há nisto bons e maus argumentos, como escrevi atrás a respeito do euro como factor da crise. Mas, sobretudo, é uma resposta que propõe uma austeridade salarial permanente e indiferente à economia que afecta as pessoas.
Além disso, esperar que a União financie a saída do euro ou que os mercados financeiros mantenham uma atitude de neutralidade perante a nova moeda é ingénuo.
Tudo vai da aposta: um governo de direita que fizesse esta operação com o intuito de provocar uma redução acentuada e permanente dos rendimentos dos trabalhadores poderia obter algum apoio da finança internacional, mas é duvidoso que este se mantivesse perante as medidas drásticas que, neste contexto, se tornam necessárias.
Vamos então ver como se aplicaria a saída do euro, e convocar agora os sectores de esquerda que devem defender a sua proposta a partir de um ponto de vista que considere a vida dos trabalhadores.
Comecemos pelo princípio, pela decisão de criar uma nova moeda, vamos chamar-lhe escudo. O governo, perante as dificuldades económicas, decide sair do euro e passar a usar o escudo como moeda nacional (ou, o que é o mesmo para os efeitos económicos e sociais, é expulso do euro). Manda então imprimir em segredo as notas e prepara-se para anunciar a grande novidade, numa sexta à noite, à hora do telejornal, quando os bancos já estão fechados. Nesse fim-de-semana, todos os bancos fazem horas extraordinárias para distribuir as notas por todos os multibancos, para que a nova moeda possa estar em circulação na segunda-feira.
O problema é que esta operação envolve milhares de pessoas, que transportam e distribuem as notas, e eles vão contar às suas famílias. E, de qualquer modo, toda a gente assistiu nas semanas anteriores a declarações dos ministros a explicar que isto vai muito mal e precisamos de decisões muito corajosas para salvar a Pátria em perigo. Em resumo, toda a gente percebeu o que vai acontecer.
O que farão então as pessoas? Não é preciso adivinhar: vão a correr aos bancos levantar todas as suas contas e guardar as notas de euros. Se não o fizerem, todas as suas contas e poupanças vão ser transformadas em escudos, a um valor nominal que cairá com a forte desvalorização que, afinal, é o objectivo desta operação. Ou seja, as poupanças vão ser tão desvalorizadas como a moeda em que passam a estar registadas.
Ora, os bancos não querem pagar aos clientes todos os seus saldos e poupanças, porque esta corrida irá arruiná-los. Não querem nem podem, pois simplesmente não têm o dinheiro para isso – nem há notas suficientes para cobrir toda a massa monetária líquida que existe em Portugal (a massa monetária é a soma das notas e moedas em circulação com os depósitos nos bancos, e os bancos não guardam esse dinheiro, porque o emprestam). Os bancos vão por isso fechar as portas quando se generalizar o alarme, e o governo vai chamar o exército para guardar os edifícios. Foi assim na Argentina, foi assim em todos os casos em que se anunciaram desvalorizações brutais (e nem se tratava de sair de uma moeda e criar outra, o que nunca aconteceu na história da União Europeia).
A esquerda que defendeu a saída do euro começa então a ter a primeira dificuldade. É que vai defender o exército e os bancos contra a população. E vai ter de fazer a sua primeira vítima, os depositantes nos bancos. Contas certas: se a desvalorização for de 50% (Ferreira do Amaral calcula em 40%, outros em bastante mais), as poupanças e depósitos dos trabalhadores vão perder metade do seu valor.
Passou assim o primeiro choque. Mas vem aí mais, e pior. O escudo desvalorizou-se então 50% em relação ao euro. O governo e a esquerda nacionalista esperam que o efeito benéfico seja o seguinte: as exportações aumentam porque se tornam mais baratas (porque os seus preços em moeda estrangeira ficam mais baratos, além da redução dos salários), enquanto as importações diminuem porque se tornam mais caras em escudos. Assim, haverá uma deslocação de capital para as indústrias e serviços exportadores, e uma redução do consumo e das importações. Tudo melhora substancialmente a balança de pagamentos. A regra é esta: se a vida melhorar para o Amorim, o dono da maior multinacional industrial portuguesa, melhorará também para toda a economia.
Parece conveniente, mas é um problema. É que, com a desvalorização, o preço dos produtos importados aumenta no mesmo dia. O combustível passou a custar uma vez e meia o seu preço anterior (e todo o sistema de transportes também), e o mesmo aconteceu com os alimentos importados. Como dois terços do rendimento dos portugueses é para o consumo, imagina-se o efeito imediato destes dois aumentos de preços. Já por este efeito, o salário passou a valer ainda menos.
Quanto às exportações, sim, vão aumentar, desde que os compradores no estrangeiro queiram comprar mais em função da redução do preço (e desde que não haja recessão no estrangeiro, e que os produtos portugueses correspondam a mercados com procura crescente, e que as suas características acompanhem as exigências dos consumidores estrangeiros, etc.). Aumentam, mas devagar: as receitas das vendas só entram quando se fizerem as vendas, e é preciso esperar o tempo da produção e até do aumento da capacidade produtiva. Depois, o que exportamos inclui o custo da matéria-prima e outros produtos que são importados, que são mais de metade do valor das exportações, e que ficaram mais caros. Por isso, as receitas das exportações aumentam pouco, devagar e mais tarde.
Chega depois o segundo choque. Metade das famílias portuguesas tem uma longa dívida ao banco, que lhe emprestou dinheiro para comprar a casa. Emprestou em euros. E das duas, uma: ou, no dia da saída do euro, o governo aceita o que os bancos querem (que esta dívida seja considerada ao seu valor real, que é o do escudo desvalorizado), ou decreta, para proteger os devedores, que a dívida é transformada em escudos ao valor anterior à desvalorização.
No primeiro caso, os devedores multiplicam a sua dívida. Imaginemos quem tinha 50 mil euros de dívida, convertidos, ao escudo desvalorizado, numa dívida de 15 mil contos. Se o seu salário era de 1000 euros (na nova moeda, 200 contos… que valem só 500 euros) e se usava metade para pagar ao banco, precisava antes de 100 meses inteiros, com a corda ao pescoço, para pagar a dívida. Agora, precisará de 150 meses com as mesmas dificuldades, dando metade do seu salário ao banco. Perdeu cinco anos de vida.
No segundo caso, em que o governo defende os devedores, quem tinha uma dívida de 50 mil euros passa a ter uma dívida de 10 mil contos… que valem 25 mil euros. O banco perdeu metade. O problema é que o banco vai à falência, porque criou um buraco gigantesco no seu balanço. É por isso que os defensores da saída do euro explicam, honestamente, que será necessário nacionalizar todos os bancos, não tanto para socializar o capital financeiro, mas antes para o salvar. E salvar um banco pode custar muito caro, como já sabemos pelo caso BPN. Porque, quando se nacionaliza um banco, fica-se com as suas dívidas, que são dívidas a quem nele depositou e dívidas a quem lhe emprestou dinheiro, normalmente a banca estrangeira. Ora, essa dívida está em euros, mas o banco, falido e nacionalizado, vai receber as suas receitas e depósitos em escudos desvalorizados, para continuar a fazer pagamentos em euros. A sua dívida ao exterior subiu 50% do dia para a noite. Salvar os bancos tem um custo, e não é pequeno.
Aqui temos a esquerda nacionalista a defender a banca e a pedir aumento de impostos para financiar a banca internacional. O trabalhador, cuja dívida foi protegida, tem de pagar por outra via (novos impostos). Claro, os porta-vozes desta esquerda nacionalista podem dizer-me o governo deve simplesmente declarar que não paga as dívidas internacionais dos bancos que nacionalizou. Mas, desculpem, de que governo concreto é que estamos a falar? Não era de Portugal, 2011? Alguém acha que se pode impor a nacionalização dos bancos, que colapsaram com a desvalorização; depois apresentar como solução o corte com os credores externos; e esperar ao mesmo tempo ter um mercado aberto para as exportações que vão salvar a economia? Ou seja, a socialização do capital e ao mesmo tempo a aliança com projectos exportadores bem acolhidos pelo capital em todo o mundo?
Faço aqui um parêntesis para tornar clara a minha opinião numa questão ideológica: sim, estou certo de que a nacionalização do sistema financeiro é uma necessidade estratégica para a política socialista, porque o sistema de crédito deve ser um bem público. E estou também certo de que um governo de esquerda terá de enfrentar a resistência do capital financeiro, que é o seu principal adversário, e pode por isso ser forçado a um imperativo realista mesmo que inconveniente de nacionalização em condições que não sejam as desejáveis para o seu sucesso. Mas não deixo de pensar que deve fazer tudo o possível para construir sempre as melhores condições para a sua acção. Como toda a experiência histórica demonstra, o não isolamento internacional é uma questão de vida ou de morte para um governo socialista, que precisa de ganhar apoios na Europa e no mundo para a sua luta.
Em todo o caso, para vencer é preciso ter a força necessária e, para que seja possível ter um sistema de crédito público que funcione, é preciso um tempo certo para uma política vencedora contra os especuladores. Ora, entendamo-nos bem, nenhuma das actuais discussões sobre a saída do euro é acerca de um hipotético governo de esquerda e desse tipo de situação. Por isso mesmo, o que importa agora são as relações de forças concretas, as que existem agora e as que podemos criar no contexto de uma resposta social muito mais forte contra a ditadura da dívida. É o que podemos fazer e o que vamos fazer, não um romance de ficção política. Fim de parêntesis.
Voltemos agora aos problemas que a nossa esquerda nacionalista está a viver no apoio ao governo que decidiu a saída do euro. Já tem contra si quem vai pagar mais impostos ou viu multiplicar as suas dívidas, e paga mais pelos alimentos e pelos transportes, ou perdeu parte das suas poupanças. Com tudo isto, os trabalhadores depressa perceberão que perderam parte do seu salário (ou da sua pensão), e que o esforço orçamental não diminuiu (pelo contrário, agravou-se, pois a dívida vai ser paga em euros mas os impostos são recebidos pelo Estado em escudos), e a saúde e a educação têm novos cortes. Por tudo isso, o trabalhador vai lutar por recuperar o seu salário.
Ora, isso pode deitar tudo a perder, dirá o governo. As exportações são mais baratas porque o escudo vale menos, as mercadorias ficaram mais baratas, e porque as empresas pagam os salários mais baixos em escudos. Se os salários subirem, a competitividade é de novo prejudicada. Que vai fazer a nossa esquerda nacionalista perante o protesto justo dos trabalhadores?
A resposta é simples: não há problema, argumenta um dos arautos da esquerda nacionalista, basta um milagre, reúne-se a concertação social e convencemos os patrões a aumentarem os salários, compensando assim os trabalhadores pelo que perderam com a desvalorização. Imagine-se essa reunião da concertação: o país em alvoroço, motins à porta dos bancos, impostos e preços a subir, inflação de novo, salários a descer, e os patrões oferecem-se para sacrificar os seus lucros em favor do trabalho. A hipótese é tão interessante que dispensa argumentação.
Por outras palavras, a esquerda nacionalista que defende a saída do euro meteu-se numa alhada. Queria impedir a continuação da austeridade e nisso tinha toda a razão, mas propõe um sistema de mais austeridade, toda orientada para o benefício de um sector social, a burguesia exportadora, e aceitando a queda dos salários com a desvalorização do escudo. Não resolveu nenhum problema e criou novas dificuldades. E perdeu a capacidade de uma orientação socialista, porque não pode ser sequer compreendida pelos trabalhadores que está a prejudicar.
A política socialista tem um critério que é o da defesa da classe trabalhadora. Essa política é a que defende o salário e se bate por ele, e não a que sacrifica o salário. A solução autoritária de saída do euro é uma proposta de mais austeridade.
3. O europeísmo de esquerda é a referência da política socialista
Rejeito por isso estas duas propostas, o federalismo do Estado Europeu e o nacionalismo da saída do euro. Ambas procuram responder ao agravamento vertiginoso da crise mas conduzem a políticas autoritárias e austeritárias, que agravam a crise. Ora, porque a crise se precipita mesmo, isso não dispensa a análise e a correcção da nossa política.
Sugiro que a nossa reflexão sobre a resposta necessária comece pelo princípio, pela natureza da crise que enfrentamos.
3.1. Depois de trinta anos de crescimento medíocre
A Segunda Guerra Mundial foi um momento culminante do século XX. Gerou massacres horrendos, de Auschwitz a Hiroxima. Mas, do ponto de vista da economia, foi também um processo de destruição radical de forças produtivas, trabalhadores e capital. E foi essa destruição que abriu as portas à reconfiguração do capitalismo moderno, a uma nova organização das potências, à estruturação de uma nova ordem monetária assente no dólar e, nos países mais desenvolvidos, à promoção do consumo de massas assente na generalização da produção em série. Foi somente com essa destruição gigantesca e com a reorganização que se lhe seguiu que se encerrou a grande crise de 1929.
Vale a pena, então, registar um dado sobre esta crise: a recuperação da economia já então dominante, a dos Estados Unidos, demorou 25 anos – só em 1954 é que as Bolsas voltaram aos seus níveis anteriores ao crash. E foi precisa uma guerra e a definição de um novo mundo para que tal recuperação fosse possível. A chave da recuperação foi precisamente essa destruição massiva de forças produtivas e a configuração de um novo mundo para a acumulação de capital.
Foi assim possível criar novos sectores industriais de crescimento rápido, novos mercados financeiros, novas multinacionais. Já assim acontecera no passado: o capitalismo industrial moderno tem-se desenvolvido por ondas longas, umas de crescimento e outras de crise, que duram décadas, e que definem a pulsação do processo de acumulação. Nos períodos longos de crescimento (como 1945-1974), as crises são raras, breves e superficiais, enquanto nos períodos longos de crise são frequente, duradouras e intensas (1974 até hoje).
Em cada uma destas épocas do capitalismo a sua estrutura adapta-se. O impulso que a electrificação tinha dado à indústria e o papel motor da siderurgia, desde o final do século XIX, deu lugar ao novo impulso da motorização, dos derivados de petróleo e da química fina no período posterior à 2ª Guerra Mundial. Esse novo modelo produtivo constitui-se no quadro de novas relações sociais, de um novo contrato entre o trabalho e o capital, com regras que faziam do salário dos trabalhadores uma parte importante do consumo dirigido às empresas. Às constelações de novas tecnologias de produção em massa correspondia, na Europa e na América do Norte, um arranjo institucional com o contrato de trabalho e um salário indirecto importante, através do acesso à segurança social e à saúde. Foi pelo crescimento da procura que se criaram os mercados de massas em que cresceu a economia capitalista durante os Trinta Anos Gloriosos do pós-guerra.
Este sistema funcionou sem dificuldades de maior durante essas três décadas. Depois, esgotou-se, sendo o seu fim marcado pela segunda recessão generalizada do século, a de 1973-4. A partir daí, perdeu-se esta conjugação fácil entre o modo de funcionamento da produção e as suas instituições sociais, o impulso tecnológico esgotou-se, a margem de lucro fora reduzida sistematicamente e a acumulação e o investimento foram por isso postos em causa. Seguiram-se algumas décadas de crescimento medíocre, financiado pelo crédito e pelo endividamento, com recessões intensas e frequentes (1973-4, 1981, 1993, 2003, 2008-9), exactamente como nas longas décadas de crise depois de 1929. A rentabilidade do capital recuperou muito lentamente, mas a acumulação manteve-se a níveis excepcionalmente baixos.
Essa é a situação actual. A criação de enormes mercados financeiros é a característica desta nova época do capitalismo – a que se tem chamado de “capitalismo tardio” – e em que os capitais disponíveis são colocados na especulação e não no investimento, gerando um sempre crescente “capital fictício”, como lhe chamava Marx, e que procura rentabilidades garantidas. É isso que explica tudo o que temos conhecido, desde a especulação imobiliária até às privatizações da segurança social e às parcerias público-privado.
Para relançar o crescimento, a burguesia procura criar uma nova economia com um novo regime social: a precarização da relação do trabalho, ou seja, o fim do contrato, para se adequar ao uso pleno dos novos sistemas de tecnologias de produção sofisticada com trabalho barato, o aumento da mais-valia absoluta (mais tempo de trabalho e menos salário) e a diminuição do salário indirecto (custo dos serviços públicos essenciais). O novo regime requer por isso um desgaste social que produza os efeitos das grandes desvalorizações do trabalho e de capital que confluíram na Segunda Guerra Mundial. Mas o movimento popular, apesar de muito atacado por um prolongadíssimo desemprego estrutural, ainda tem capacidade de combate.
É nele que nos apoiamos, ele é a nossa política realista. Está tudo em jogo. Bem sei que, como dizia Warren Buffet, o segundo homem mais rico do planeta, “há uma luta de classes, e é a nossa classe que está a ganhar”: os 1% que dominam as economias recebiam 40% dos lucros e dividendos há dez anos, 60% há cinco e 70% agora. A concentração de capital é imensa. Mas a nova sociedade ainda está a ser definida, e verdadeiramente o que mais surpreende, do ponto de vista histórico, não é tanto o seu avanço mas sim a extraordinária dificuldade que tem tido em se impor. Os 1% que dominam as economias não conseguiram esmagar os outros 99% porque estes, quando a convocam, têm a força da democracia.
Como os 1% têm mais poder, é contra eles que se deve dirigir o combate: a política da direita e da burguesia é desvalorizar o salário, a dos trabalhadores é desvalorizar o capital e defender o salário. O nosso confronto é com a finança, que é a dona da dívidadura. É verdade, é um combate de época. E é por isso que não precisamos de ideias que dividam a frente da luta popular e criem confusão. Precisamos de clareza e mobilização. Precisamos agora, e não amanhã, de uma aliança grande para a luta pelo salário.
3.2. Europeísmo de esquerda e a luta contra a dividadura
Neste quadro, o que é que devemos fazer? Não podemos, ou não devemos, na minha opinião, alimentar o sonho de um Estado Europeu – antes devemos combatê-lo – e não podemos nem devemos favorecer as ilusões nacionalistas de uma solução autárcica, que devemos recusar. Pelo contrário, devemos combater por soluções europeias, que não desistam do que é essencial: uma aliança europeia de esquerdas políticas e sociais para a luta contra a austeridade. E devemos definir onde colocamos as nossas forças para a mais ampla luta pelo salário.
Começo pela Europa. Bem sei que, desde o definhamento dos Fóruns Sociais Europeus, não se tem conseguido refazer um dispositivo mínimo de resposta. O Partido da Esquerda Europeia é muitíssimo limitado, como outras redes em que participamos; nunca conseguimos concretizar a nossa proposta de um grande congresso dos movimentos sociais e políticos europeus; e os partidos de esquerda do Norte da Europa receiam os efeitos eleitorais da defesa do povo grego contra o estrangulamento da dívida e nem querem ouvir falar de uma greve europeia.
Devemos por isso explorar, com os nossos aliados, a ideia de recuperar o Fórum Social – ou de abrir as portas a uma nova forma de rede global –, talvez de o reunir em Espanha, com os movimentos dos Indignados, para lançar uma agenda europeia para a luta contra a austeridade. E, com eles, manter os objectivos essenciais que definem o europeísmo de esquerda que temos vindo a defender:
• A obrigação do BCE de certificar e de comprar dívida soberana de cada Estado,
• O lançamento de obrigações europeias mutualizando parte da dívida,
• A desvalorização do euro para aliviar as economias,
• A tributação do capital e o fim dos offshores, em particular o de Londres e do Luxemburgo,
• A criação de uma agência europeia de notação para os títulos privados,
• O reforço do orçamento europeu para um plano de criação de emprego,
• A criação de regras fiscais comuns como uma taxa mínima para o IRC, para evitar a concorrência fiscal entre Estados,
• A reestruturação profunda da dívida da Grécia, em prejuízo dos bancos credores.
Finalmente, a proposta da refundação da Europa é o centro do europeísmo de esquerda. Deve ser concretizada. Devemos trabalhar mais na sua explicitação, propondo por exemplo um novo Tratado que crie duas câmaras, um parlamento eleito directamente e uma câmara que represente em igualdade todos os Estados, para mobilizar as duas dimensões da Europa, ou uma única câmara com representação que evite a marginalização dos países pequenos e médios.
Não será fácil criar movimento com estes objectivos políticos. Mas, hoje, as possibilidades são maiores do que há um mês atrás. São essas possibilidades que nos interessam e acho que devemos levar muito a sério, dedicando esforços sérios para que esta orientação se concretize. Não tenho dúvidas de que podemos e temos de fazer mais neste sentido.
Mas o que dizemos sobre a Europa, para ser realista e como sugeri atrás, é proposta, é convite e aproximação a outras esquerdas, mas não é certamente onde temos a maior capacidade de confronto político. Onde temos mais força é no que depende de nós. Se for possível ter um fórum europeu de algum tipo, que junte movimentos e que crie agenda política, então avançaremos para um patamar novo, como queremos. Em todo o caso, essa perspectiva não diminui a nossa disputa taco-a-taco com o governo e o plano da troika, a dívidadura.
E é nela que temos de acertar posições.
Em primeiro lugar, rejeitamos a ideia de que não existem alternativas ao plano da troika. E devemos tomar a contra-ofensiva nesse campo. Já é possível fazê-lo porque a vertigem da mudança da percepção popular é estimulada por esta violência orçamental do corte dos subsídios de férias e de Natal. Depois do 15 de Outubro e da convocação da greve geral CGTP-UGT, a situação começa a mudar. Exige-se por isso mais ofensiva, sacudir a letargia social, ganhar iniciativa. Assim, o nosso argumento deve ser:
• Portugal precisa de vencer o plano da troika, porque ele significa empobrecimento e desemprego para no fim ter mais dívida (o maior aumento da dívida desde sempre, 125% do PIB em 2014, diz o Banco de Portugal). O fim da submissão à austeridade é a condição para a democracia poder decidir. É ela que define todo o nosso quadro de diálogos, convites e alianças.
• Devemos apresentar um plano para o emprego, indicando os sectores em que é possível desenvolver a economia: criar emprego a partir de uma política industrial baseada em novos sectores estratégicos, investimento público, reduzir em meia-hora o horário de trabalho em vez de o aumentar, proibir os despedimentos em empresas com resultados, etc.
• A alternativa imediata para recuperar a economia é a criação de moeda, e o Estado pode fazê-lo através do banco público, da capitalização da CGD e do efeito multiplicador que pode ter uma injecção de liquidez em investimento para o emprego, criação de novas indústrias, exportações e sobretudo substituição de importações.
Essa liquidez não deve ser usada em crédito ao consumo ou à habitação, porque assim se criaria mais dívida, e devia ser gerida por um banco da CGD para o fomento industrial. Esse é o estrangulamento imediato da economia portuguesa e é assim que se pode vencer a crise, com a criação de emprego.
Uma palavra mais sobre a criação de moeda. Esta é uma alternativa concreta à saída do euro e à desvalorização do escudo, e tem a enorme vantagem de não atingir os salários e rendimentos do trabalho, permitindo pelo contrário o aumento da actividade económica com custos de crédito mais baratos, orientados para a produção e portanto com mais possibilidade de equilibrar a balança externa.
• Defendemos, como sempre, uma revolução fiscal que se baseie na tributação do capital e do dos valores elevados de património.
• Mas podemos e devemos levar mais longe essa recuperação económica pela devolução do capital, impondo regras anti-especulativas à banca: controlo das transferências internacionais de capital, proibição de investimento bancário em fundos de risco, separação entre a banca comercial e a banca de aplicações especulativas.
Em segundo lugar, e porque a apresentação de alternativas deve conduzir ao confronto social, é na luta contra a dívida que nos devemos concentrar. Assim, sugiro a seguinte orientação:
• A ideia da renegociação da dívida deve assumir uma forma mais concreta: reestruturação. Ou seja, anulação de uma parte da dívida. A proposta, que tinha razão e ganhou força, é até cada vez mais apoiada por economistas diferentes, e mesmo por políticos de outras opiniões. Mas já está em segundo plano, porque respeita mais ao argumento do que ao movimento.
• No movimento social e na disputa directa, o centro deve ser a auditoria à dívida. E toda a clareza: a auditoria faz-se para recusar toda a dívida abusiva. Isso mesmo, serve para recusar pagar a dívida abusiva. Esse é o “não pagamos” que tem coerência. Atacar os credores onde eles são mais fracos, porque culpados. Exemplos:
o Nas últimas emissões de dívida, foram cobrados juros acima dos custos reais, em função de taxas punitivas e especulativas. Recusamos essa dívida, que serão alguns milhares de milhões de euros, e não pagamos.
o As contrapartidas de material militar foram anuladas pelo credor, que era o Estado português. São quase 3 mil milhões de euros que foram perdidos sem caso judicial.
o A dívida dos 78 mil milhões paga 30 mil milhões de juros. Quase 20 mil milhões são juros abusivos. Etc.
Um novo parêntesis: a “suspensão” do pagamento da dívida é uma solução envergonhada e um disfarce de uma proposta que não se apresenta – como explicou a FER recentemente em reunião interna do Bloco, é uma forma de dizer “saída do euro”, mas sem pinga de coragem. A “suspensão” é, por outro lado, uma imitação mal pensada das alternativas latino-americanas: a Argentina suspendeu o pagamento da dívida e fez muito bem, porque pagava uma dívida excessiva a credores que já não lhe emprestavam há mais de um ano. Mas esse não é o caso português. Na realidade, o Estado português não está agora a pagar dívida – é o plano da troika que paga a dívida toda, e só dentro de uns anos Portugal começa a pagar essa dívida reciclada. Por isso, a “suspensão” não suspende nada e tem medo de dizer o que é preciso, que há uma dívida que não deve ser paga. A “suspensão” uma resposta direitista que devemos recusar. Fim de parêntesis.
Volto à dívida. O nosso ponto mais forte é atacar os principais devedores. Leste bem, os devedores: temos de virar o debate sobre a dívida. E falar da maior das dívidas. É o mais difícil, mas é o mais importante, porque aponta o alvo que importa, o capital financeiro. Falamos por isso do que eles nos devem, o que o capital deve aos contribuintes, aos trabalhadores, ao povo:
o O que levaram nas privatizações abusivas dos monopólios naturais e bens públicos,
o O que transferiram para offshores sem pagar imposto (6,6 milhões por dia este ano),
o Os dividendos e lucros que se fizeram pagar quando eram financiados pelo Estado,
o O desvio fiscal criado pelo aumento dos impostos sobre o trabalho e o consumo, ao mesmo tempo que se reduzia o imposto efectivo sobre os lucros,
o Os impostos por pagar, particularmente da banca, e o que os outros contribuintes financiaram desses impostos não pagos (provisões, isenções e outros benefícios),
o O que gastaram nos submarinos e outras despesas injustificadas,
o O que querem receber das parcerias público-privado, a grande fatia da dívida escondida do Estado.
Vejam esta dívida: o acréscimo nas parcerias público privado de mais de 4 mil milhões, ou seja, quatro anos de confisco de subsídios de Natal e de férias, a que já me referi atrás. O rendimento máximo garantido do capital financeiro, que são as parcerias, é o centro do nosso ataque. Se nos perguntam por alternativa para a consolidação orçamental, aqui está uma prioridade.
Essa dívida não pode sair do nosso discurso, ela é o centro da luta contra a dívidadura. O financiamento da criação de emprego e das contas externas só pode vir de quem nos ficou a dever, o capital financeiro.
Esta orientação tem uma ideia nuclear: sim, chama-se resistência. Mas, se a única alternativa à resistência que quer criar movimento social é procurar uma fantasia – o nacionalismo, o capital exportador, ou o federalismo de António José Seguro – então é preferível mesmo fazer resistência. Como sempre, empenhamo-nos na resistência com uma perspectiva europeia e procuramos pontes para que ela seja luta europeia. E, no plano nacional, não aceitamos o acantonamento de resistência de trincheira, porque queremos que seja alternativa de governo, proposta de liderança para o país, luta global, acção imediata, presença de rua.
E, se é política a sério, discutamos que interessa na política: as alianças. O federalismo serviria para nos juntarmos ao PS. Mas, com franqueza, que diferença haveria então entre essa esquerda e as imposições autoritárias da Merkel com o “semestre europeu”? Como poderíamos, com tal linha política, recusar a submissão dos orçamentos nacionais à inspecção e decisão de Berlim, que afinal é o modelo desejado do Estado federal? Quanto ao nacionalismo, juntar-nos-ia com o PCP, que por agora ainda mal balbucia a ideia da saída do euro, com pés de lã, porque sabe o temor que isso provoca entre os trabalhadores, escaldados de desvalorizações e inflações. Os principais beneficiários dessa estratégia, o capital exportador, fogem certamente da ideia como o diabo da cruz. Isto é, não serve para nada senão para dar voz ao desespero.
Em contrapartida, uma plataforma de luta contra as medidas de austeridade permite falar com a maioria destes sectores, junta todos, de franjas do PS ao PCP, ao movimento sindical, aos indignados da rua, aos desempregados e precárias. É nessa luta, e só nela, que se pode erguer o nosso objectivo estratégico: punir o capital, defender o salário.
A greve geral que foi hoje convocada é uma boa prova provada desta política. Ela não tem como objectivo qualquer sonho do Estado Europeu, nem muito menos a exigência da saída do euro. Nem podia, pois não? Tem a plataforma correcta que junta mais gente, a da rejeição dos cortes dos subsídios ou dos aumentos dos impostos, a defesa do salário e de uma política de emprego. Chama-se resistência e responde pelo país – é a luta pela hegemonia e cria acção social.
É nessa acção que se aprende e que se erguem alternativas. Como dizia alguém, é sempre da prática que vêm as ideias justas. Vamos à luta.
Francisco Louçã, 17 de Outubro de 2011

El segundo saqueo de América Latina

Entrevista al periodista Oriol Malló, autor de “El Cártel español. Historia crítica de la reconquista de México y América Latina (1898-2008)”
El segundo saqueo de América Latina



Cinco siglos después del primer asalto, un cártel de empresas españolas capitaneado por el poder político emprenden la reconquista de América Latina. Codician sobre todo los servicios públicos privatizados y los recursos naturales. El periodista catalán Oriol Malló reconstruye en “El cártel español. Historia Crítica de la Reconquista de México y América Latina (1898-2008)” (Ed. Akal) el proceso que arranca con la pérdida de las últimas colonias del imperio español (1898) y concluye un siglo después, cuando la gran banca española ya consigue extraer buena parte de sus beneficios de América Latina. Oriol Malló obtuvo el Premio Nacional de Periodismo de Cataluña en 1992 por sus reportajes sobre la guerra de Yugoslavia y hoy reside en Ciudad de México donde colabora con diferentes medios de comunicación europeos. ¿Dónde sitúas las raíces del cártel español que se expansiona por Latinoamérica?
Todas las multinacionales españolas presentes en América Latina son, en última instancia, hijas del triunfo de la insurrección fascista en España de 1936. El BBVA, el Banco de Santander, Abengoa, Iberdrola o Unión Fenosa comparten este elemento fundacional. El ciudadano medio apenas imagina que la mayoría de consorcios que dominan la economía española surgen del triunfo franquista en la guerra civil. Y que la esencia del franquismo fue volver al siglo de oro de la burguesía (el siglo XIX), que en el ámbito mundial volvió por sus fueros a partir de 1980, con la contrarrevolución anglosajona y el llamado neoliberalismo.
¿Qué entiendes, en líneas generales, por la reconquista económica española de América Latina?
Consiste en el desembarco corporativo de las multinacionales de servicios públicos y sus hermanas hoteleras en Latinoamérica. La primera piedra del desembarco hispánico tiene una fecha: el 18 y 19 de julio de 1991, cuando se celebra en Guadalajara (Jalisco) la I Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado y de Gobierno, con la presidencia del rey Juan Carlos y la presencia de los dos mandatarios más poderosos del área, Carlos Salinas de Gortari y Felipe González. Tras esta representación teatral, pocos meses después se inicia la reconquista con la privatización masiva de las empresas públicas argentinas. Y con un mecanismo básico: el canje de deuda externa por inversiones privadas. Un año después continúa el teatro con los Juegos Olímpicos de Barcelona, la Exposición Universal de Sevilla y la II Cumbre Iberoamericana de Madrid.
Mencionas en tu libro la Declaración de Guadalajara, como proclama ideológica de la reconquista
En efecto. La Declaración de Guadalajara recoge todos los preceptos del Consenso de Washington: disciplina fiscal, reducción del gasto público, reforma impositiva con rebajas a los ricos e imposición indirecta, apertura a la entrada de Inversiones Extranjeras Directas (IED), privatización, desregulación y garantía jurídica de los derechos de propiedad. Ello aderezado con un incremento de las ayudas al desarrollo en el marco de una estrategia de imperialismo manso. Hay un personaje, Felipe González, estadista de moda, que desempeña un rol esencial en este proceso. Es quien desde mediados de la década de los 70 establece contactos con las elites políticas latinoamericanas, con el panameño Omar Torrijos, el venezolano Carlos Andrés Pérez y el mexicano Luis Echeverría.
¿Define el proceso de reconquista al estado español como una potencia imperial?
No exactamente. El reino de España se convierte, más bien, en cabeza de puente europea en América Latina. El Mercado Común delegó el despacho de los asuntos latinoamericanos al Estado español. La Internacional Socialista también convirtió a Felipe González en portavoz e interlocutor preferencial para el subcontinente. En otros términos, el Estado español se convierte realmente en tesorero, capataz y secretario de dos hacendados absentistas, Europa y Estados Unidos. En empleado de estos dos grandes patrones. Es ésta realmente la hipótesis de la que nace el libro. El desahucio del capitalismo productivo español y su completa subordinación a los intereses europeos y estadounidenses, de los cuales actúa como gestor. Con este supuesto de partida, se impulsa la reconquista.
¿Cómo se forma el cártel y qué empresas lo componen?
Un hito clave es el ingreso del Estado español en la Unión Europea, en 1986, y la creación después del Mercado Único Europeo en 1993. Tras las sucesivas etapas de desregulación y privatización del sector público español, las nuevas empresas que se han hecho con estos servicios privatizados y la gran banca española se lanzan a la segunda conquista de América Latina. La estrategia de ataque es realmente una respuesta defensiva: sobrevivir en América o morir en Europa. Las compañías españolas tenían que competir en el mercado más exigente del mundo, el europeo, y protegerse de adquisiciones hostiles de gigantes empresariales. A inicios de 1992, con las primeras privatizaciones en Argentina, se crea el lobby español, formado por Telefónica, Iberdrola, Gas Natural, Repsol, Iberia y Mapfre.
¿Cómo se desarrolla el cártel? ¿Puedes poner algún ejemplo?
Las privatizaciones argentinas produjeron tal rentabilidad y costaron tan poco que financiaron la política de compras del cártel por toda América Latina. La ingeniería financiera y el presunto uso de sobornos para ganar licitaciones eran habituales. Con la acumulación original de recursos argentinos, más bien una gigantesca requisa, Iberdrola hizo sus primeras adquisiciones en Brasil. Hoy la compañía se ha convertido, tras diez años de implantación, en la primera distribuidora de electricidad del nordeste de Brasil, donde suministra energía eléctrica a más de 8 millones de hogares e industrias en tres estados. Después del crack argentino, la reconquista se abate sobre dos nuevos frentes, Brasil y México.
Cuentas que Felipe González iba país por país de la mano de los empresarios para abrir mercados. ¿Ocurrió lo mismo con Aznar?
En la época de Aznar decae sustancialmente la expansión del cártel español, con la excepción de las operaciones de Telefónica y la influencia en México. Desaparece el apoyo del gobierno español y se prefiere orientar las inversiones a los países de la Europa del Este. Aznar vinculó su carrera a la de Bush y esto fue una pesadilla recurrente para el cártel. Por ejemplo, su afinidad a las doctrinas de Miami le enfrentó con el lobby hotelero y sus intereses en Cuba. La consecuencia es que a partir del año 2000 no hay inversiones serias. En cuanto a Rodríguez Zapatero, lo cierto es que el cártel español lo admira porque su diplomacia suave ha evitado que pasen a mayores algunos pleitos abiertos en la era Aznar.
Subrayas el papel de las ONG y el mundo de la cooperación en esta reconquista imperialista
Esto es así a partir de la década de los 80 del siglo XX. Felipe González y su ministro de Asuntos Exteriores, Fernández Ordóñez, ofrecen su apoyo a Estados Unidos y a los contrarrevolucionarios de Nicaragua, El Salvador y Guatemala. A cambio de ello, las empresas españolas pueden actuar sin cortapisas en la región. En este contexto, las ONG contribuyeron a extender la influencia del modelo español en todos los países del continente. Como nuevas misiones, estas nuevas camadas cuyo epicentro fue Centroamérica retomaron el papel que la iglesia había tenido durante siglos como vanguardia de la hispanidad.
Por último, ¿la expansión imperialista se limita al campo económico?
Hay también una dominación cultural. Para comprobarlo no hay más que observar la labor del Instituto Cervantes. O, más aún, de la industria del libro española. La mayoría de escritores latinoamericanos publican, o lo intentan, en editoriales ibéricas. Una parte sustantiva de la intelectualidad lee o colabora en el complejo cultural del grupo PRISA, sea en los libros de texto de Editorial Santillana, en las páginas de El País o en sus cadenas de radio. El grupo PRISA moldea el pensamiento de las clases medias y marca la pauta derechista y corporativa. Cabe agregar el éxito de la revista Hola o de las series Cuéntame y Los Serrano, entre otras muchas. Ahora bien, el primer producto de exportación española fue eminentemente político: la Transición, el Consenso y los Pactos de la Moncloa.
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