segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Longe das mãos peludas, a história da filosofia é uma outra história (II).

 

Longe das mãos peludas, a história da filosofia é uma outra história (II).

  Nivaldo T. Manzano

Em postagem anterior (I), encimada pelo mesmo título, intentei apresentar um painel da contribuição do olhar feminino, inovador e refrescante, na releitura dos grandes filósofos, graças à sua incomparável acuidade para as diferenças, as sutilezas, as dobras, as reentrâncias, os desvãos registrados nas suas obras; para a desatenção a um pelo dos cílios preso na lapela dos grandes sistemas, sem que seus formuladores se tenham dado conta do escorregão na etiqueta. Na esteira de Hipatia, Simone Weil, Hanna Arendt. Andrea Nye e Bárbara Cassin, entre outras, tem-se também Isabelle Stengers, filósofa belga, especialista na história dos modelos de ciência, ou epistemologia.  

Stengers retoma a temática geral do igual e do diferente, da coexistência conflitante e solidária da continuidade e da descontinuidade numa mesma unidade contextual. Ou seja, Stengers mostra os escolhos implicados na escamoteação masculina nos fenômenos de transformação (processo, mudança, metamorfose, desenvolvimento, gravidez), que é o mata-burro filosófico e científico em que tropeçam os modelos funcionalistas, prevalecentes na Academia, por força de sua devoção religiosa, de caráter excludente, à lógica e à matemática. O olhar feminino traz como contribuição à epistemologia a evidência de que a realidade, além de lógica e racional, é também intuitiva, como o sabem os matemáticos, embora disso se esqueçam quando se põem a construir modelos. É a proposta doo retorno ao esprit de coeur, de Pascal, em contraposição complementar ao seu espírito geométrico.  

 Trata-se aqui de divisar a passagem — e somente a dimensão feminina da existência disso tem sido capaz — entre dois escolhos igualmente ruinosos pelo seu reducionismo, ambos masculinos: (1) a ilusão da ciência autossuficiente, que se crê capaz de avançar somente mediante critérios e razões de ordem interna, como alguém que julgasse poder crescer puxando para cima os próprios cabelos, já que os fatores externos teriam um papel subordinado; e (2) a ilusão simétrica de uma produção científica desprovida de autonomia, cuja evolução seria explicável mecanicamente por fatores sociais e econômicos, já que os fatores internos teriam um papel subordinado. Observe-se em ambos os escolhos o modelo de Platão, das hierarquias fixas, denunciadas pela crítica de Aristóteles à sua República, obra na qual, a pretexto de organizar a cidade, Platão dela remove o seu caráter democrático, ao eleger para a sua condução os filósofos, aos quais confia a prerrogativa exclusiva de mando. 

No primeiro caso, da história “interna” das ciências, à qual está associado o nome de Alexandre Koyré, tem-se como referência mais conhecida a obra “A estrutura das revoluções científicas”, do historiador Thomas Kuhn. Segundo Kuhn, o cientista já não é a encarnação da gloriosa representação do espírito crítico nem da racionalidade, nas quais alguns filósofos identificaram a natureza da atividade científica, e sim um sujeito que faz o que aprendeu a fazer, diz Stengers. Ocupa-se dos fenômenos que encontra na sua disciplina, com a mesma desenvoltura com que uma dona-de-casa se movimenta em meio às peças de seu mobiliário. Nada aí lhe é totalmente estranho: eis o seu paradigma, um modelo ao mesmo tempo prático e teórico, que se lhe impõe com a espontaneidade de uma evidência. É a essa submissão do cientista ao paradigma de sua comunidade que se deveria atribuir o progresso científico, ou seja, o processo cumulativo graças ao qual um número sempre maior de fenômenos se torna inteligível. Chegará um momento, no entanto, em que a dona-de-casa, de tanto mover os móveis de um lado para outro, no seu empenho em abrir espaço para acomodar as novas peças, se dará conta de que já não é capaz de contê-los na mesma ordem em que se espelhava a ordem familiar que via neles. Mudará de casa ou de móveis — tem-se, então, uma mudança de paradigma. 

Há, porém, uma grande diferença entre um e outra no modo de proceder. Na dona-de-casa, a ideia da mudança advém-lhe como resultado da interação entre o registro das observações que colhe na rua quando pensa nos móveis e o registro das observações que colhe nos móveis quando pensa em retornar à rua. Já no cientista de Kuhn a ideia de mudança somente pode advir-lhe da contemplação do umbigo comunitário de sua confraria, que não sai à rua pelo receio de se deixar contaminar pela opinião ou pela crença. A comunidade científica de Kuhn é uma colônia de minhocas que se autofecundam.

A leitura da evolução da ciência proposta por Kuhn, diz-nos Stengers, busca justificar, pois, uma radical separação entre comunidade científica, gerada pela própria história da disciplina, e o contexto no qual ela se insere e a envolve, na condição de uma de suas interfaces. Por força dessa separação artificial, o cientista, no âmbito de seu trabalho, não estaria sujeito a nenhuma interação com influências de outra natureza que lhe retirem, mediante a imposição de outras questões, as “boas” questões de sua comunidade. Toda possibilidade de interação entre a comunidade científica e o seu entorno, que Kuhn enxerga como ameaça, poderia comprometer a sua autonomia, matando a galinha dos ovos de ouro, o seu paradigma, ou a condição de possibilidade do progresso científico. Assim, mediante o seu suposto auto isolamento, o cientista nega a quem quer que seja o direito de pedir contas de suas escolhas e de suas prioridades. Reconheça-se que Kuhn, adverte Stengers, não foi o criador dessa torre de marfim; apenas buscou explicar, sem consegui-lo, como a torre continua de pé, em que pese a remoção e a reconstrução recorrentes de seus fundamentos, a cada mudança de paradigma.

No oposto simétrico desse escolho, tem-se a ausência de autonomia no espaço da produção científica, ou seja, a sua descaracterização na absorção pelas explicações causais e mecânicas dos fatores sociais e econômicos. Agarradas nesse escolho encontram-se as obras de J. D. Bernal, entre outros, aí compreendidos os adeptos do marxismo vulgar. Assim, Bernal anunciava em 1939, no seu “The Social Function of Science”, que produção científica e interesses sociais e econômicos apresentavam-se no socialismo de Estado como solidários de fato e de direito e concluía pela necessidade de uma reorganização da ciência que a tornasse capaz de responder às autênticas necessidades sociais, um fato que já estaria ocorrendo na União Soviética, segundo lhe assegurava Bucarin. Assim fazendo, Bernal espevita a sanha dos liberais que, depois da guerra, entrincheiraram-se mais ainda no polo oposto, o da autossuficiência da ciência sem contexto.

Registre-se que a visão feminina da evolução das ciências mantém-se atenta à ocorrência de continuidade, enquanto a visão masculina atém‑se à descontinuidade, na passagem da crença para a ciência, da opinião para a certeza, do velho para o novo, da ignorância para a sabedoria. Se se elimina masculinamente uma das dimensões, como o faz Gaston Bachelard, ou a sua concomitância logicamente insustentável, suprime-se a singularidade do fenômeno que a investigação se propõe elucidar, a saber, a passagem, o drama, o lugar sofístico, no qual se exercita a tagarelice dos falantes, cientistas e não-cientistas, cada um ancorado na sua perspectiva, sem que seja possível reduzi-las a uma só, à objetividade científica, de curso linear, sem surpresas e sem riscos, à moda da cidade na República de Platão, que pretendeu escamotear a sua dimensão humana — leia-se: política —, ao conferir-lhe foros normativos transcendentais de Verdade ou de Bem, valores que colocou sob a guarda exclusiva dos filósofos.

A supressão do momento da passagem — ou metamorfose — encontra sua justificação ideológica na separação clássica entre sujeito e objeto, um sujeito que não se deixa contaminar pelo objeto e um objeto que não se deixa contaminar pelo sujeito. A separação radical entre sujeito e objeto, como relembra Stengers, pressupõe a naturalização ideológica do poder hierárquico, o do sujeito sobre o objeto, ou o do sujeito capaz de convocar o objeto ao tribunal onde se discutirá a sua causa, sem que lhe seja concedido o direito à palavra a partir de sua perspectiva singular e irredutível. Nesse tribunal - ou no laboratório onde se definem as condições do testemunho do objeto e em que este é posto à prova -, afirma Stengers, o convocado é ouvido, não segundo as suas próprias categorias, mas segundo as categorias dos jurados, aos quais compete emitir o juízo. Assim, o “tribunal experimental” seria o lugar onde a distinção clássica entre o sujeito e o objeto se cristalizou na estabilidade paradigmática de Kuhn. Na ótica feminina da epistemologia, o laboratório experimental apresenta-se, pois, como o lugar ideológico da remoção do caráter necessariamente político e ético da ação humana, graças à qual torna-se possível reafirmar a ilusão da existência sem risco, o mundo binário do sim x não, sem passagem conflitante e solidária.

Do esforço feminino de sacudir os emplastros mentais resulta o reconhecimento do equívoco de se acreditar na autossuficiência dos papéis (interfaces, processos). Estes, isoladamente, não são a chave explicativa de sua própria evolução e, por isso, não dispõem do poder demiúrgico de se comportarem como um motor da história. Assim, por exemplo, ao advento do moinho d´água, como um meio tecnológico de produção, não se poderia atribuir a causa da servidão. Ao se proceder dessa maneira, passa-se por cima do fato de que a entrada do papel do moinho na história é uma ocorrência singular, entre outras, e que, portanto, na condição de estí­mulo do contexto no qual se insere - contribuindo para mudá-lo e sujeito a ser mudado —, somente pode ser explicado a partir de suas interações nesse contexto, como uma de suas interfaces. A unidade conceitual explicativa e valorativa é, portanto, o contexto (= integração entre visão feminina e masculina).

Bachelard, G., A formação do espírito científico, Rio, Contraponto, 1996.

Bernal, J., D., The social function of Science, Routlege, 1939.

Khun, T., A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 209.

Koyré, A., Estudios de história del pensamiemento científico, Tres Cantos, 1978.

Stengers, I., As políticas da razão, Lisboa, Edições 70, 1993

 

 

 

Carta a meu filho

Carta a meu filho

Nivaldo T. Manzano

Meu filho,

Você pede-me que o oriente, e também a seus amigos, na seleção de alguns livros que exacerbem ainda mais em vocês os comichões libertários. Sinto-me gratificado pela confiança que deposita em mim, sabendo que uma diferença de geração de trinta e cinco anos nos separa um do outro. De fato, é muito tempo, e também pouco ou talvez nenhum. Se sentimos a existência, não como um caminho já aberto a percorrer, mas como um modo de viajar, ou de se estar no mundo seduzido pelo desejo de se comprazer nele, então a distância que nos separa é também a que nos aproxima.

Todos os que se deixam levar nessa aventura compartilham o sentimento comum de estar sendo conduzidos pelos encantos da paisagem e das sensações novas que experimentam, ao mesmo tempo que o realizam cada um a seu modo — de modo singular. Entre os encantamentos da existência está o mistério de, sendo a experiência pessoal intransferível, nos compreendermos uns aos outros. Não é possível a você, e a ninguém, colocar-se em meu lugar para senti-la da maneira como eu a sinto — ainda assim, quando conversamos sobre o que experimentamos, estamos seguros de que não nos enganamos sobre o que estamos sentindo.

Isso leva-me a evocar a ideia intuitiva de que a existência, em razão de estar embebida na comunicação, transcorre, não segundo o princípio da identidade (A = A), mas segundo o princípio da equivalência. Somos iguais e diferentes, a um só tempo. Iguais, porque nos reconhecemos um no outro; diferentes, porque sabemos que um não é o outro: é na presença, ou na evocação, de outrem que cada um se reconhece a si mesmo. Entre mim e outrem existe, pois, uma continuidade e uma descontinuidade, dimensões ao mesmo tempo conflitantes na sua inconsistência e solidárias na diversidade que as une, sem que se possa torná-las idênticas. Ambas as dimensões coexistem também em cada um de nós.

O fato de eu ser pai e você filho tanto nos separa quanto nos aproxima. Além de filho, você é aluno, colega, amigo, vizinho, primo, neto, compositor... — papéis distintos que não se confundem entre si e que, no entanto, são desempenhados por uma pessoa que é a mesma enquanto muda, na variação no modo de desempenhá-los. Tivéssemos ambos os olhos bem abertos para a realidade, veríamos, a cada vez que nos encontramos, que você não é o mesmo filho nem eu o mesmo pai, tratando-se, no entanto, do mesmo filho e do mesmo pai.

Cada vez que executa a mesma música na guitarra, você sente — e também quem o ouve — que o faz de modo diferente. Dois gestos não se repetem. Perceber a diferença é estar atento à mudança — e a mudança é o estado em que cada um de nós se encontra, a cada momento, na existência. Estamos em mudança: você já não é o que era e ainda não é o que será. Essa sensação de unidade na diversidade dos modos de ser — ou, melhor, de estar — desperta em nós o sentimento e fortalece a convicção de que tudo é revogável e de que nada é definitivo. Somos seres de mudança; no plano da sociedade, seres de mudança de caráter cultural. Algo semelhante ocorre também às plantas e aos animais. Eles também praticam a equivalência, a diversidade na unidade: na ausência do calor das cinzas do fogão a lenha, o gato converte a caixa de metal do modem da TV a cabo no seu borralho. À maneira do poeta com as suas analogias e metáforas, nosso gato “Gatozé” também escande a sua vida no modo da equivalência, assim como procedem as plantas, que retiram do solo os minerais de que precisam para o seu desenvolvimento; no caso de solos empobrecidos, reconhecem a equivalência mineral em derivados do petróleo, ou fertilizantes químicos, como o nitrogênio.

É graças também ao pressentimento da equivalência que fruímos, com prazer no estranhamento, as diferenças culturais entre povos, etnias ou civilizações. No estudo da história, comprazemo-nos na ambiguidade entre o prazer de estar lá, para onde ela nos transporta, e o de estarmos cá, onde ela já não nos alcança. Gostamos de viajar desde que possamos retornar à casa. Gostamos de desempenhar um papel desde que nos sintamos livres para poder desempenhar um outro. Entregamo-nos, no cinema e na leitura, a viagens interplanetárias, seguros de poder retornar ao nosso mundo.

De onde vem a ambiguidade desse prazer que é também receio? – pergunta-se o filósofo George Santayana. E responde: De provar novas experiências sem abrir mão das antigas. Desejo viver tudo a um só tempo e desejo viver sempre mais tudo. Assim, instalamos a existência no modo do gozo exponencial: um novo modo de enxergar a realidade leva-nos não somente a divisar novos mundos, mas também a sentir diversamente — de modo novo — o mundo que sentíamos, para dele fruir novamente. Queremos a um só tempo a permanência e a mudança — o que foi e o que será. Sem deixar de ser passado, o passado retorna para revelar-se em alguma de suas dobras, até então não reconhecidas, e testemunhar a autenticidade do novo sabor do presente. Para isso servem as pálpebras, ou a noite: protegidos por elas, fazemos descansar no recolhimento a nossa visão de mundo, para sermos despertados por uma outra, que instiga em nós outra vez o desejo de nos comprazermos na existência, diferentemente.

Entre Newton e Molière – a ciência preditiva no tribunal da comédia

 

Entre Newton e Molière – a ciência preditiva no tribunal da comédia 

Nivaldo T. Manzano

 

Depois de passar o dia a produzir a sua ciência do desencantamento, Isaac Newton, o criador da Física, acorria à noite ao teatro londrino, para desfrutar da nova temporada, na qual o comediante francês Molière se apresentava. Era o ano de 1669.

A comédia, que Newton apreciava, removia as coisas do lugar onde ele as colocava, desarranjando o mundo ordenado pela sua ciência. No palco, a peça de Molière, lançando mão de situações da vida quotidiana, jogava areia nas trajetórias certeiras da Mecânica clássica, pelo prazer irreverente de ver o pensamento linear sair dos trilhos, como ocorre na realidade. É como se de dia Newton fizesse comédia no laboratório, ao afirmar que se pode prever com certeza as consequências de se segurar um gato pelo rabo, e de noite Molière fizesse ciência contextual no palco, segurando o gato pelo rabo e provando que a certeza está em que não se sabe o que poderá ocorrer. Tanto deu certo a troca imaginária de papéis que ambos se consagraram como gênios. A sua genialidade consiste em terem sido ao mesmo tempo grandes cientistas e grandes comediantes, a despeito da ideia que faziam de si mesmos.

O comediante alimentava secretamente, quem sabe, a expectativa de que Newton fizesse retornar a seu mundo não o movimento abstrato, que já lá estava, mas a mudança real, o imprevisto, a novidade, sem o que não haveria como exercitar a criatividade. Em vão. Newton, refestelado numa das poltronas do camarote real, ria a mais não poder e, pensando que ria dos outros, aplaudia quem ria da certeza absoluta de sua ciência.

Assim como Newton promove uma revolução no pensamento, criando a ciência determinista, Molière promove uma revolução no teatro, dela fazendo mofa. Antes de Newton e dos novos teóricos do caos ou da complexidade, como já o sabiam as crianças, não era possível prever a trajetória do ioiô depois que se desprendesse das mãos do menino que estava a brincar com ele na rua. Antes de Molière, imperava no teatro o gênero trágico e não o gênero cômico, que retorna no século XVII.

Eram dois mundos contrastantes na sua contemporaneidade. Se, antes, na ciência não era possível prever a trajetória do ioiô, em compensação no teatro era possível prever a trajetória do herói trágico. No momento ­seguinte, o contraste retorna com sinal invertido: conhece-se agora antecipadamente a trajetória do ioiô, desde que seja retirado das mãos da criança; em contrapartida, já não é possível conhecer a trajetória que o novo herói irá percorrer no teatro. Por exigência da plateia, o herói trágico tivera de ceder seu lugar ao herói tragicômico; e este, uma vez no palco, tropeça num ­obstáculo qualquer, imprimindo na queda imprevista um rumo inesperado na história, para escândalo da ciência determinista, com suas trajetórias ­predefinidas.  

No gênero trágico, o comportamento do herói é previsível. O herói ­trágico está dissociado das contingências contextuais, Ele cumpre um destino que a plateia sabe antecipadamente qual é, da mesma forma como se conhecem antecipadamente as trajetórias da Mecânica clássica. Nada o faz desviar-se de seu caminho, na distância hierática que mantém do público. É como se ele fosse do outro mundo, não estando sujeito às premências contingentes do desejo e aos estímulos da realidade em mudança à sua volta. Cumpre uma sina inelutável. Ele está acima, abaixo, além ou aquém da realidade contextualizada dos espectadores. Assim como o objeto da ciência de Newton, o herói trágico apresenta-se fora do contexto de todas as épocas. A des­peito de si mesmo, ouvimos a sua palavra do fundo dos tempos e de lugar nenhum, como se fosse a voz da eternidade. É nisso que consiste a eficácia da catarse na tragédia: ela não nos atinge no presente. É no momento em que Molière encena no tetro londrino a sua comédia “Tartufo” que Newton assoma ao palco da ciência para anunciar uma nova física, que seria capaz de capturar o futuro com a mesma facilidade com que se conhece antecipadamente o destino do herói trágico. Os objetos científicos com que trabalha movem-se por trajetórias matematicamente reversíveis, como projéteis que pudessem retornar para dentro do cano da espingarda depois de terem sido disparados. Realizam uma tal proeza porque estão desprendidos de suas contingências contextuais, ausentes de um mundo que não é o nosso. Neste,­ no mundo da comédia de Molière, as trajetórias imprevisíveis que percorre o nosso destino parecem-se com as de um bêbado a caminho de casa, depois de uma noite de esbórnia.

Ao intuir que Newton e outros faziam migrar a visão trágica do palco para a ciência, Molière, que vinha tentando sem sucesso vencer no teatro como autor e ator de tragédias, muda de ideia. Adota o gênero tragicômico e cobre o novo herói com as vestes de que a nova ciência o despojava. Molière cuida de devolver ao mundo o encantamento que Newton lhe ­retira. O comediante leva para o palco, para divertir o povo, o ioiô que Newton havia retirado das mãos da criança para levá-lo para o quarto, na ilusão de poder tirar prazer do gozo solitário. A solidão é indissociável do exercício do poder hierárquico, implícito na vocação absolutista da nova ciência. Pois o seu ideal e a sua bandeira são o controle da realidade, como se não fosse a realidade em mudança, da qual somos parte, que nos controla e descontrola a nossa ilusão de controle.

Mas se observe que a diferença entre o cientista a fazer ciência e o comediante a fazer arte, é menor do que parece. Ainda que a contragosto, Newton é também artista, ao retirar da praça a abstração com que faz ciência, como é cientista Molière ao transferir da rua para o palco a representação teatral da vida quotidiana. A diferença é que a visão de Molière, motivada e enriquecida pelo mexerico do público, é includente; o humor com que entretém a plateia consiste em mostrar-lhe que a realidade pode ser percebida de mais de um ponto de vista. A comédia ou o riso é pluralista; afirma-se, contra o preconceito, no reconhecimento da diferença. Já a visão de Newton, empobrecida no isolamento de seu monólogo, é excludente: o humor, que desperta a contragosto na plateia, está em não admitir mais de um ponto de vista, porque a verdade de sua ciência, assim como a do poder que a viu nascer, é de vocação absolutista. A visão linear das ideologias é preconceituosa e intolerante; afirma-se, contra a diversidade, na exclusão.

Para Molière, é tão cômico um caçador nunca errar o alvo como nunca acertá-lo. O espaço público de sua realidade é o de todos os possíveis; a exatidão de sua ciência está no que lhe diz a imaginação, enquanto o espaço privativo de Newton é o do impossível. Newton, no empenho em sobrepor-se à realidade, cria o equilíbrio, que não se encontra em parte alguma na realidade. Molière remove a ilusão do equilíbrio, levando a plateia a rir e a chorar diante de um mundo real desequilibrado, tal qual é, pela nossa própria criatividade, para lembrar a todos de que tanto a verdade do teatro quanto a da ciência é humana.

Newton é artista no sentido de que também apela à sua própria imaginação, ao escolher a simetria com que constrói o seu mundo mecanicamente regulado. Para isso, utiliza a intuição de que se serve igualmente o artista, que também organiza a representação da realidade de acordo com a simetria de sua abstração. Ambos renovam a proeza do pintor da caverna, que arranca do espectador uma interjeição embevecida, ante o resultado criativo de seu engenho.

A diferença é que Newton, autoritário de temperamento e doutrina, ao contrário de Molière, invoca a autoridade de Deus, para dizer que a arte do Altíssimo é reprodução fiel de sua obra. Confere assim a seu trabalho contingente as propriedades da perfeição e da necessidade transcendentais, para que ninguém ouse desarranjá-lo, com o propósito de recriá-lo, de modo a reduzir a diferença entre o modelo e a realidade, para aperfeiçoá-lo. Com Newton e a partir de Newton a normativi­dade axiológica e supostamente soberana da quantidade irá impor-se com vezo de normalidade à existência, como se esta devesse medir-se pelo critério humano da métrica.

Trata-se, pois, da mais ambiciosa cruzada contra a criatividade. No frontispício da racionalidade como único instrumento e critério de verdade está escrito “ É proibido sonhar”, como se os próprios paradigmas da ciência não fossem fruto da imagi­nação. Se depois de Newton a ciência ainda assim evolui, é a contragosto de si mesma. Corroborando o ciúme e a vaidade do artista Newton, Einstein dirá mais tarde que Deus não joga dados. Einstein e Newton contra­riam a si mesmos, as crianças e os poetas, que gostam de jogar dados e de brincar com as palavras e com as representações do mundo, de imitar o Criador, criando também.

Newton permite-se a si mesmo o que não concede aos outros, como se coubesse ao cientista criar, e a Deus recomendar a leitura de sua obra. Sendo a sua verdade de caráter divino, não poderia haver mais de um ponto de vista sobre a mesma realidade. É, pois, como o Deus cristão, artista criador de uma obra só, única, total e acabada. Quanto ao mais, é tirar-lhe as conse­quências, que as premissas teriam sido postas de uma vez por todas. Da mesma forma que a Bíblia, a ciência das inferências é revelação.

Quanto à sua exigência de perfeição, que proíbe ao atirador errar o alvo, não se pode dizer que a genialidade de Newton tenha sido inovadora, por mais que tenha inovado. O modelo de sua ciência pode ter sido colhido em outra parte, quem sabe na pretensão racionalista de secularizar o dogma cristão ou na metafísica platônica, que tem a sua chave de abóbada no ­firmamento de suas Ideias fixas, onde os projéteis não se extraviam e os axiomas não se definem pelo contexto humano, em mudança. A moral do Bem e do Mal, em cuja busca o filósofo Platão, com vistas ao domínio sobre a Cidade, empenhou a sua carreira, procede de maneira idêntica: promove a organização simétrica de uma ordem abstrata, que identifica com a própria realidade. Da mesma forma, a religião dogmática viria a promover com a Inquisição a organização do terror.

Um tal paralelo, ao confundir deliberadamente os papéis de Newton e Molière, convida ao reconhecimento de que a unidade da realidade, ou do ser humano, é indivisível

É o que nos fizeram enxergar também as bruxas, ao demonstrarem, com o descrédito lançado sobre a Inquisição, que é impossível refrear a realidade em mudança, separando o bem do mal, retirando-os do contexto. Com elas, aprendemos que o contexto é a exibição dessa opereta — recriada na literatura por Machado de Assis, que nos fala do conluio entre Deus e o Diabo —, cujo libreto teria sido escrito em dueto a quatro mãos. Pois uma ordenação divina que não pudesse ser desorde­nada pelo Diabo faria Deus bocejar de aborrecimento por toda a eterni­dade, atitude indigna do criador da criatividade. Estaria talvez aí a explicação por que em Homero, que não era monoteísta, a deusa Atena não ­ordena, mas limita-se a sugerir, de maneira cortês e cavalheiresca. Res­peita assim em Aquiles a capacidade humana de reformar a própria decisão



Longe das mãos­­­­­­ peludas, a história da Filosofia é uma outra história (I)

 

Longe das mãos­­­­­­ peludas, a história da Filosofia é uma outra história (I)

Nivaldo T. Manzano

Tornou-se clichê dizer que o olhar masculino ocidental separa o que o olhar feminino junta. O olhar masculino criou o modelo analítico, assim como procedia Jack Estripador; e o olhar feminino criou o modelo de rede, que interliga os nós na comunicação. Atualizo aqui esse clichê na história da filosofia, ressaltando a sua contribuição original, ao chamar atenção para pormenores, reentrâncias, desvãos, sutilezas no pensamento de filósofos, que durante séculos passaram despercebidos ao olhar masculino dos hermeneutas.

Na esteira de Hipatia (370-415), Simone Weil e Hanna Arendt, entre outras, da segunda metade do século passado, especialmente, aos dias de hoje, uma plêiade de mulheres ensaístas, historiadoras da filosofia e da epistemologia das ciências, estudiosas da educação, da condição feminina e da ética se tem empenhado em localizar na cultura o desconforto gerado pelo excesso de macheza na atualidade. Com esse propósito, elas têm feito uma releitura refrescante e original de obras esquadrinhadas supostamente à exaustão pelo olhar masculino ocidental, como é o caso em especial de Platão e Aristóteles.

O resultado, nos casos bem-sucedidos, é que o leitor, à luz do olhar feminino, acaba descobrindo em quase todos os chamados grandes pensadores, à exceção de uma meia dúzia, um Bacamarte – personagem tragicômico de Machado de Assis, considerado um advogado do pensamento único, binário, dicotômico, maniqueísta, autoritário, que, em busca da uniformid­­­ade, debate-se em dificuldades contorcionistas para conciliá-la na Filosofia Política com a diversidade, ou a pluralidade de pontos de vista. As preciosidades hermenêuticas garimpadas nessa releitura parecem indicar que a dimensão feminina da existência tem sabido identificar as interações recorrentes entre abstração e realidade com mais habilidade do que os que têm mãos peludas. É dizer que, fascinada pelos instrumentos de que se serve, a dimensão masculina tem-se revelado cada vez menos capaz de responder à indagação sobre a real extensão de sua contribuição, ainda que dela não se duvide.

Nessa empreitada ensaística, observa-se, não o propósito velado de trazer de volta as bruxas, ou a irracionalidade, de que eram acusadas tradicionalmente as mulheres, e sim o de remover a pretensão absolutista da racionalidade, de se apresentar como o único intérprete legítimo da realidade. Graças à participação crescente das mulheres - ou melhor, da dimensão feminina da existência -, nesses estudos, os machos se veem instados a temperar o seu ímpeto de açougueiro (partes extra partes), para reconhecer, mediante a combinação entre razão e intuição, a complexidade, o contexto, que a visão analítica exclui. Aprende-se, com o olhar feminino sobre a realidade, que a racionalidade é um valor entre outros, todos igualmente legítimos, como o são a intuição, os sentimentos, a ética e a estética. É com certeza graças à reflexão feminina que de agora em diante não mais se dirá que a não-racionalidade é necessariamente o contrário da racionalidade.

O caso mais eloquente de hermenêutica na história da filosofia talvez seja o da francesa Bárbara Cassin (1947 - ), autora, entre outros trabalhos, de “Ensaios sofísticos” e “Aristóteles e o logos -contos da fenomenologia comum”. Eis o que ela nos revela como absoluta novidade:

Ao eleger Aristóteles como ponto de aplicação de sua acuidade, Cassin nos mostra um filósofo que pretende rejeitar tanto a solução dada pelos sofistas para o problema político da exigência de unidade na diversidade, quanto a solução contrária à diversidade, de Platão, de quem foi discípulo. Os sofistas, que ganhavam dinheiro ensinando retórica a quem pretendia fazer da política uma profissão, defendiam em geral a ideia de que a verdade, ou a objetividade, que se buscava na filosofia e na ética, tinha a sua matriz na política - um acordo de ocasião entre pontos de vistas conflitantes, revogável de forma recorrente, quando da mudança de um contexto para outro. Platão, que buscava uma verdade com fundamentos tão sólidos como os axiomas da matemática, para ele de origem divina, chegou a admitir a diversidade sob a condição de que esta pudesse ser estruturada em hierarquias fixas.

Insatisfeito com ambos os tipos de resposta, Aristóteles acreditou em poder desbravar um novo caminho, que redesenhou à sua maneira genial, embora se tenha mantido na ambiguidade, entre um e outro tipo de solução. Assim, graças à leitura que Cassin faz de Aristóteles e dos sofistas, aprendemos a reconhecer então como hoje a premência de um mesmo problema na Política, nas ciências e na cultura: a dificuldade de se reconhecer a diversidade na unidade, evitando-se o pensamento único, ou a intolerância. À medida em que se afasta de Platão, Aristóteles, que construíra a mais poderosa máquina de moer sofistas, em razão de sua rejeição frontal ao caráter de compromisso da verdade deles, apoia-se mais tarde em sua reflexão na eficácia desse compromisso quando volta as suas baterias contra Platão, para lhe desmanchar as hierarquias.

Ao contrário de pensadores como Platão que fazem da abstração um duplo da realidade na forma de pensamento transcendental, os sofistas veem na reflexão expressão de humanidade, ao conceber a verdade como resultado de um processo coletivo e prático de construção recorrente. Dessa forma, a sofística destitui da fala humana o dom demiúrgico de enunciar adequadamente a verdade das coisas, da natureza e da cidade para todo o sempre, a partir da verdade vista do Olimpo. “O homem é a medida de todas as coisas”, afirma o sofista Protágoras, para estupefação de Platão, que põe na boca de Sócrates a sua desaprovação, ao perguntar por que, em vez do homem, a medida não poderia ser o porco ou o cinocéfalo. Uma objeção a que os sofistas haviam respondido previamente: a verdade somente poderia ser colhida no espaço do discurso, um espaço disputado por falantes, a partir de perspectivas divergentes, que é preciso juntar na solidariedade de um acordo, sem o qual não é possível a vida cidadã, sujeita ao juramento de concordância, provisória, embora a referência última seja sempre a mesma, o desejo de se comprazer na existência, sem que para isso seja necessário eliminar o desejo de outrem.

Assim, enquanto Platão em sua República configura a cidade política segundo um modelo de diferenças hierárquicas e funcionais, definidas de uma vez por todas, para afugentar o risco da sedição, os sofistas, ao olhar feminino, enxergam o espaço da política como um processo - ou um estado de mudança para o melhor ou para o pior –, no qual tanto pode ocorrer a sedição do poder por parte dos ricos quanto a sua remoção por parte de quem se sente injustiçado pela sua ambição desmedida. Ao contrário do que ocorre na geometria ou na aritmética, graças aos seus postulados e axiomas, aqui não há certezas, fundamentos ou garantias prévias, transcendentais e indiscutíveis, senão a evidência intuitiva de que se deseja viver com prazer, ainda que ao preço da incerteza e do risco, razão por que o sofista buscará mediante a retomada da conversa ampliar tanto quanto possível o espaço da negociação.

Para o sofista, a justa medida, ou o ideal da justiça não está, portanto, inscrito em algum céu metafísico, no qual se poderia identificar com absoluta clareza a distinção entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A realização do ideal da justiça, sempre precária, é de ordem prática; resulta da retomada de um procedimento, semelhante ao do discípulo, que somente mediante o exercício migra do estado de ignorância para o estado de sabedoria; ou ao do doente, que migra da doença para a saúde, sem garantias de que em outro contexto o seu estado atual não se vá se reverter: o risco é sempre possível, não existindo imunidade contra ele. O futuro está aberto: tudo vai depender do que resultar do entrechoque retórico entre os falantes que, embora divirjam entre si, dizem pretender a mesma coisa - assegurar mediante a explicitação do conflito a possibilidade da concordância, para que a vida da cidade possa prosseguir em harmonia - o que não quer dizer “em uníssono”.

Ao advogar contra Platão que a política na cidade se define como uma polifonia de vozes, a partir de cujas diferenças obtém-se um efeito harmônico, diferentemente do que ocorre na homofonia platônica, Aristóteles toma o partido dos sofistas, mostra-nos Cassin. Aqui, a grande novidade de sua hermenêutica: Em Aristóteles, a política não somente é sofística na escolha do logos (razão, no sentido grego e não atual do termo), como traço distintivo da condição política do homem, mas é também sofística a sua maneira de articular a pluralidade das diferenças, ou dos pontos de vista, na unidade plural da cidade; mas é antissofística na interpretação que o filósofo dá do lógos, ao subordinar normativamente a retórica – que apela tanto para a razão quanto para o sentimento -, à lógica, incapaz de se movimentar fora do estreito espaço de possibilidades assegurado pelos princípios da identidade e da não-contradição, princípios masculinos por excelência.

Em outras palavras, Barbara Cassin nos faz ver Aristóteles a destituir a pretensão de Platão, de entregar unicamente aos filósofos o comando da Política, e o confia aos cidadãos, aos quais cabe construir a unidade sem no entanto destituir como ilegítima a diversidade dos pontos de vista.

Cá de meu olhar masculino não consigo enxergar uma roda de mulheres em que não falem todas ao mesmo tempo.

Um salve! para as historiadoras da Filosofia.


Simone de Beauvoir, um feminismo de mãos peludas.

Simone de Beauvoir, um feminismo de mãos peludas.

Nivaldo T. Manzano

A filósofa Andrea Nye (1939 -), estudiosa das teorias feministas, mostra em seu livro “Teoria feministas e as filosofias do Homem", os descaminhos do binarismo (,sim x não, zero x um), no qual incorre boa parte dessas teorias. Em geral, tais propostas falecem ante as próprias pretensões teóricas de recuperar a dimensão feminina da existência, ao se construírem como simétricas ao seu oposto, que as exclui. Essas teorias fazem-nos ver sem disso se darem conta que, se não se encontram pelos nas mãos de quem as elabora, em contrapartida lá está indicado, na forma de ausência, o lugar de sua presença. Seriam igualmente modelos masculinos a serviço da teorização do feminino.

Assim, por exemplo, em Simone de Beauvoir o feminismo caracteriza-se (1) pelo não reconhecimento de uma especificidade feminina e (2) pela não rejeição dos modelos masculinos. Ao enfatizar a igualdade e a semelhança entre os seres humanos, Beauvoir esquece-se da diferença, que os singulariza, adverte Nye. Segundo Beauvoir, o que haveria de socialmente inaceitável na condição feminina é apenas o fato de as mulheres terem sido vistas sempre como escravas e os homens, sempre como senhores. Remova-se a mão masculina proprietária - a penetração do macho ativo no ato sexual, “no sentido de seu próprio prazer” -, e ela se dará para si mesma o prazer, sendo também ativa. Para que isso ocorra, basta que ambos se encarem como “semelhantes”. Uma vez que a mulher seja vista “como” um homem - ou seja, como um sujeito - então será possível a reciprocidade no ato sexual. São, portanto, dois sujeitos iguais que se defrontam, desfrutando um do outro.

Modelo abstrato de oposição binária, no qual é possível reconhecer, não o prazer na solidariedade, mas a fricção no isolamento mútuo, enganosamente prazeroso e supostamente sem risco, já que nenhum dos dois reconhece no espaço de sua singularidade a presença necessariamente constitutiva de outrem. Por isso, Nye propõe uma nova direção para o pensamento feminista que, ao deixar de ser uma imagem espelhada do pensamento masculinista do igual, busque caracterizar a sua diferença. Afinal, o estado de escravidão, a que alude Beauvoir, não caracteriza o gênero: tanto o sexo feminino quanto o masculino estão sujeitos, ainda que historicamente em graus diferentes, a serem tratados como objeto.

Observe que o movimento pelo reconhecimento universal da igualdade de direitos estimula com igual intensidade o movimento pelo reconhecimento das diferenças. É como se a igualdade, uma vez reconhecida, lançasse luz sobre o risco do igualitarismo que, ao ameaçar asfixiar a diversidade, exacerba a afirmação das diferenças. É o que parece ter ocorrido ao movimento feminista, em sua recente trajetória.

As marinheiras norte-americanas, que a esse papel chegaram na coroação da luta feminista pela igualdade de direitos, uma vez embarcadas no projeto de novos submarinos, recusavam-se, no tratamento recebido, a ser iguais aos marinheiros, depois de estes terem apoiado democraticamente, em nome da igualdade, a remoção da discriminação contra a mulher no trabalho. Postados ambos os grupos diante da abstração objetiva de sua igualdade, agora reconhecida, avultou a diferença entre um e outro, que é preciso respeitar. Como o almirantado, em nome das exigências da guerra, não quis admiti-lo, instalou-se o problema.

A história é a seguinte: o projeto dos novos submarinos não reserva espaço suficiente para a construção de dependências sanitárias distintas para homem e para mulher, em razão de na sua distribuição ter-se dado prioridade ao armamento. Com tantos mísseis democráticos e igualitários a bordo, restou pouco espaço para acomodar as diferenças. Elas batiam o pé diante do almirantado, exigindo em nome da privacidade banheiros exclusivamente femininos, enquanto os marinheiros, em defesa de si mesmos, tratavam de apoiá-las sob o argumento de que homem nenhum é de ferro. Em resposta, o almirantado dizia que não se pode confundir as lidas da guerra com as coisas do amor. Se vence o amor, corre-se o risco de perder a guerra.

O episódio é emblemático da fragilidade de abstrações tais como a igualdade de direitos individuais, quando confrontadas com a realidade, que é ao mesmo tempo igual e diferente, por ser unitária. As abstrações da democracia igualitária ou da luta feminista não dão conta de toda a realidade, que acreditam abarcar. Observe-se, adverte Andrea Nye, que as feministas tiveram de se render ao feminino - à diferença -, para poderem conferir legitimidade ao seu movimento.

 

A ilusão da fuga no olhar do próprio umbigo

A ilusão da fuga no olhar do próprio umbigo

 Nivaldo T. Manzano

Como compreender a apatia social das classes médias frente às barbaridades praticadas pelo bando de milicianos no Poder? Não tenho resposta cabal para a indagação. Limito-me a registrar um aspecto apenas dessa realidade, que é o contraste paradoxal entre a apatia e o entusiasmo pelo coaching e as demais artes da reclusão majestática do ego na sociedade brasileira.

O coaching insere-se num universo ideológico mais amplo – o da subjetivação do comportamento social, como estratégia individual defensiva, em resposta a uma situação generalizada de profundo desconforto difuso, que perpassa toda a sociedade. Na mesma constelação semântica observou-se, nos últimos anos, uma expansão vertiginosa das academias de modelagem corporal e da venda de livros de autoajuda, associados a uma miríade de negócios para-religiosos de técnicas corporais e espirituais, ritos e dietas que acenam para uma existência menos desconfortável.

O coaching traz-me a ideia de que a vítima já não suporta a si mesma, motivo por que procura um estranho – especialista – supostamente capaz de fazê-la reerguer-se da prostração e devolver-lhe a sensação de caminhar sobre os próprios pés. Em que momento de sua vida isso ocorre? Quando o mau cheiro moral aspirado da "sociedade de mercado" acaba sendo expirado por suas próprias narinas. Ou quando o esvaziamento de sua vida interior se torna insuportável como resultado paradoxal do "fortalecimento" do ego pela propaganda, mediante a sua despersonalização serial.

Formalmente, o coaching define-se como “um processo de desenvolvimento que envolve orientação e modificação de comportamentos com o objetivo de ampliar os resultados que a pessoa atinge em dimensões específicas da vida e gerar autonomia, entendida como a capacidade de se autoavaliar; avaliar o seu contexto e tomar a decisão sobre os caminhos a percorrer para alterar tanto o seu comportamento quanto o contexto no qual ele ocorre” (Felipe Dias, psicólogo, MBA em pessoas pela FGV e mestre em Psicologia).

Como é sabido, trata-se de um mercado florescente e próspero, que compreende uma ampla gama de especialidades e ganha a dimensão de torcidas de futebol, segundo afirma Dias: “ O padrão é uma imagem com muitas pessoas em um auditório com um pastor, ou melhor, um instrutor engravatado lá na frente. Geralmente o instrutor conta cases de sucesso, como se fossem testemunhos de que sua técnica é eficaz e trabalha na fragilidade das pessoas, mostrando a elas que podem ser diferentes. A estrutura do discurso é religiosa. ‘Você está nessa situação agora e pode ir para uma situação muito melhor basta seguir os ensinamentos de Fulano’. Obviamente, a pessoa se identifica com o discurso: ‘É disso que estou precisando!’”

E para atender aos que “estão precisando”, acorrem, em meio à acirrada concorrência, as modalidades hierárquicas do genérico “personal coaching”, tais como “executive coaching”, depois o “business coaching”, “power coaching”, “extreme coaching”, “master ultra power leader coaching”. Assim como se passa nas pirâmides financeiras, no topo está o espertalhão, que é o coach do coach dos coachs. Na verdade, há sempre o que aprender sobre si mesmo, não é? Tanto mais que no adestramento o aprendiz é rendido à evidência de que “não estou pronto ainda”.

Muitos são os sociólogos e psicólogos que estudam o caráter mórbido do problema, que reconduz a vítima ao enfeudamento do ego, quem diria!, o self made man, o meritocrata que acredita em crescer puxando para cima os próprios cabelos, o libertário da vertente neoliberal! Dirijo, pois, as observações para uma outra direção. Refiro-me ao fato de que não é nova na história cultural do Ocidente a subjetivação massal do comportamento; a reclusão para dentro de si mesmo, como resposta à insegurança e dúvida quanto à própria capacidade de fazer frente ao desafio na arena de Circo Romano em que foi convertida a vida na “sociedade de mercado”.

Assim, por exemplo, como resultado da decadência da civilização e da cultura greco-romana, que se seguiu à morte em 322 A.C. de Alexandre o Grande, a reflexão dos sábios recuou da praça – onde debatiam filósofos, políticos e charlatães - para dentro de casa e lá se enfeudou nos séculos seguintes. A atmosfera intelectual de então sugere que a crise econômica e social, provocada pela decadência interna, associada a invasões e guerras, desestruturou os estratos em que se organizara a sociedade, levando à insegurança política e social generalizada. O especialista diria que “esse é o momento na história cultural em que a consciência individual e o Estado, ou o ideal e o real, começam a se separar por um abismo” (Max Horkheimer* - 1895 - 1973). Nesse contexto, a reflexão sobre a existência pende para uma busca individual de consolo, mediante exercícios profiláticos, que conduzam a harmonias interiores, ao abrigo do infortúnio, à fuga do sofrimento. Tem-se, então, a dissociação entre o indivíduo e a comunidade – convertida esta em palavra vazia.

Na tentativa de rejeitar o repulsivo, joga-se fora a criança com a água suja do banho: Renuncia-se à prerrogativa de enxergar a realidade no seu todo, submetendo-se, por implicação, à tirania. “À medida em que se retira da participação dos assuntos políticos, o ser humano tende a regredir à lei da selva, que esmaga todos os vestígios da individualidade”, observa Horkheimer.

Ou seja, no empenho equivocado em evitar de cair no buraco, o sujeito se lança de corpo inteiro para dentro dele.

*Horkheimer, M., Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2003. 

A diferença entre a realidade e o realejo

A diferença entre a realidade e o realejo

Nivaldo T. Manzano

Nada na existência ou na natureza encaixa-se no modelo da estrutura & função, como representação abstrata da realidade, embora seja esse o modelo de pesquisa que prevalece ainda hoje, de maneira quase absoluta, na Academia. Trata-se de uma representação tão distante da realidade quanto o é um realejo da música nova.

O modelo de estrutura & função responde à exigência positivista, ou funcionalista, de se produzir um resultado de validade universal, que esteja sujeito ao fracionamento, à análise das partes e à sua manipulação, assim como procedia Jack Estripador no esquartejamento de suas vítimas. Mediante o procedimento analítico, despoja- se a realidade das circunstâncias de tempo e lugar, de modo a tornar o objeto de estudo manejável, com o objetivo de se proceder ao controle da realidade.

Tais circunstâncias são indissociáveis da realidade concreta, que o modelo pretende representar, como um seu equivalente intelectual, realidade concreta que na verdade não se desprende de seu aqui e agora. “O homem é o homem e a sua circunstância”, de Ortega y Gasset (1883 – 1955) é uma expressão que deve ser aqui tomado ao pé da letra. É dizer que não se representa adequadamente a realidade se dela se exclui o contexto. O contexto pode ser descrito como a representação da realidade no seu aqui e agora, razão por que o contexto é necessariamente único, singular, irrepetível. Implica isso dizer que não se pode fazer ciência de alcance universal? Não implica, pois é possível empreender-se a representação da realidade mediante a noção de processo, que permite enxergar o seu caráter contextual e ao mesmo tempo o seu caráter universal, aqui entendido o ser humano como ponto de indução, sede e referência última de todos os contextos, pois não há contexto na ausência da humanidade, assim como não há objeto que possa ser definido fora da interação sujeito-objeto.

O sujeito está necessariamente embebido na apreensão do objeto e vice-versa, apreensão que é obra sua, e o objeto é parte constituinte do sujeito, como correlato da interface que lhe corresponde (pai, filho, por exemplo), interface que, associada às demais interfaces, constitui o sujeito, aqui assumido como um conjunto de interfaces, orientado por uma referência, que lhe dá o caráter unitário, o seu contexto individual. É nesse sentido que se pode compreender o que diz Terêncio: “Nada do que é humano me é estranho”.

Para assumir a sua pretensão à universalidade, o modelo de estrutura & função precisa prescindir do meio, que é justamente o que, na diversidade de suas interações com o sujeito, permite enxergar a sua contextualidade.

Na ecologia, a descrição do nicho de um pássaro é a descrição da lista do que ele come; do material de que se utiliza para construir o seu ninho e do local escolhido; do tempo que despende em diferentes partes da árvore ou no solo para colher o seu alimento, do modo como faz a corte a seu companheiro e se acasala etc. Ou seja, o nicho do pássaro é descrito em termos de sua atividade em interação prática com o meio e não como consequência mecânica das forças atuantes no meio, como o pretenderam Charles Darwin e Auguste Comte. O meio do pássaro é inseparável do pássaro e não existe sem a atividade do pássaro e vice-versa, compondo ambos uma única realidade cujas partes não preexistem a ele, o seu contexto. O meio é constituído inventivamente pelo pássaro, e este, pelo meio, sob a condição de que as suas interfaces (do contexto do meio, do contexto do pássaro e do contexto interativo entre ambos) estejam livres (não determinadas ou sobredeterminadas), para que a criatividade, via acaso, delimitado pela necessidade contextual do meio, possa exercer-se.

Em síntese: a singularidade do organismo influencia a sua própria evolução, na condição ao mesmo tempo de objeto da seleção natural e sujeito criador das condições dessa seleção. O organismo participa da criação de seu próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento é precondição para o estado seguinte. Isso não quer dizer que o estado anterior é determinante na transição para o estado seguinte, pois o estado seguinte depende do modo como o organismo, na condição de sujeito contextualizado, intervém criativamente em cada um desses estados, estimulando a sua mudança. Além de meio, o organismo é também interface que participa da formação de seu próprio meio, que não é senão a expressão de sua individuação, ou a individuação de sua expressão.

A “obra” da evolução das espécies, como um pássaro, ou como a singularidade de Santos, é produto de sua interação criativa com o meio; é a sua criatividade que dá a direção da mudança, não o meio externo ou interno, isoladamente ou em conjunto, sem a mediação interativa do organismo. “O mesmo genótipo dá origem a muitos organismos diferentes e o mesmo organismo corresponde a muitos genótipos diferentes. Isso não quer dizer que o organismo seja infinitamente plástico ou que a cada genótipo cor­responda um fenótipo. As respostas normativas de cada organismo para cada genótipo são diferentes, e é a normatividade das respostas que se constituem em objeto de estudo dos biólogos do desenvolvimento, e não algum orga­nismo ideal supostamente susceptível de ser produzido de maneira determinista pelos genes” (LEVINS, R. & LEWONTIN. R. - 1985).

Esta crônica foi inspirada na leitura de:

Levins, R., Lewontin, R., The dialectical biologist, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1985.

Sobrinho, F. G.,, Processo – a máquina contextual nos negócios, Campinas (SP), Editora Mundo em Processo, 2002.

Arisca e soberana, a realidade não se deixa controlar

Arisca e soberana, a realidade não se deixa controlar

Nivaldo T. Manzano 

Como nasce a democracia na Grécia Antiga:

Hesíodo (entre 750 e 650 A.C.) observa que toda rivalidade supõe relações de igualdade: a concorrência jamais pode existir senão entre iguais (Os trabalhos e os dias, 25-6).

“Esse espirito igualitário é um dos traços que marca a mentalidade da aristocracia guerreira da Grécia e que contribui para dar à noção de poder um conteúdo novo. A política converte-se numa disputa oratória, um combate de argumentos cujo teatro é a praça pública, lugar de reunião antes de ser um mercado. Trata-se de uma prova de forças, palavra contra palavra num torneio sujeito a regras, comparável ao que põe em combate os atletas no curso dos Jogos. Assim, o comando não poderia mais ser a propriedade exclusiva de quem quer que seja. O Estado é precisamente o que se despojou de todo caráter privado, particular, que, escapando à alçada das famílias guerreiras, aparece como a questão de todos (...).

“Tornando-se elementos de uma cultura comum, os conhecimentos, os valores e as técnicas mentais são levados à praça pública, sujeitos à crítica e à controvérsia. Não são mais conservados como garantia de poder, no recesso das tradições familiares; sua publicação motivará exegeses, interpretações diversas, oposições, debates apaixonados. A discussão, a argumentação e a polêmica tornam-se as regras do jogo intelectual e do jogo político, decidido pelo controle que a comunidade exerce sobre as criações do espírito e sobre a magistratura (...).

“Surge a exigência da redação das leis. Ao escrevê-las, busca-se assegurar-lhes a permanência e a fixidez, subtraindo-as da autoridade privada do sacerdote, cuja função era “dizer” o direito. Agora, tornam-se bem comum, regra geral, susceptível de ser aplicada a todos da mesma maneira. Nesse momento, a cidade passa a rejeitar as atitudes tradicionais da aristocracia guerreira, tendentes a exaltar o prestígio, a reforçar o poder dos indivíduos e das famílias guerreiras, e elevá-la acima do comum. São assim condenados como descomedimento o furor guerreiro e a busca no combate de uma glória particular, a ostentação da riqueza, o luxo das vestimentas, a suntuosidade dos funerais, as manifestações excessivas da dor no caso do luto, um comportamento muito ostensivo das mulheres ou o comportamento demasiado seguro e audacioso da juventude nobre. Essas práticas são rejeitadas porque, acusando as desigualdades sociais e o sentimento de distância entre os indivíduos, criam dissonâncias no grupo, põem em perigo seu equilíbrio, sua unidade, dividindo a cidade contra si mesma” (Vernant, J-P.,1973)

Em Esparta — rival de Atenas —, essa tendência, levada ao extremo, dará origem à mentalidade hierárquica e funcionalista, segundo a qual se buscam eliminar na aparência as diferenças em nome do igual. O espartano é treinado para marchar em ordem, lançar-se com passos iguais contra o inimigo, cuidar, no meio da peleja, de não deixar seu posto. A virtude guerreira consiste num completo domínio sobre si, num constante controle para submeter-se a uma disciplina comum. A falange faz do hoplita (cidadão proprietário de arma) — como a cidade liberal faz do cidadão —, uma unidade permutável, um elemento semelhante a todos os outros e cujo valor individual não deve jamais manifestar-se senão no quadro imposto pela manobra de conjunto, pelo efeito de massa. Como resultado, a cidade fecha-se sobre si mesma, rompe o intercâmbio com o exterior, permanece fora das grandes correntes intelectuais e artísticas da época, não deixa como herança do pensamento grego nenhuma filosofia digna de menção. O Estado espartano é dominado pelas preocupações utilitaristas. Em vez da controvérsia retórica, tem-se a prática dos combates. Em vez da persuasão, tem-se o poder que curva todos os cidadãos à obediência. A palavra tem a eficácia de um oráculo sentencioso e definitivo. Assim é o reino da lei, da cidade espartana.

Atenas, ao contrário, tenderá a manter a diversidade na unidade. A cidade política assenta sobre o conflito, um conflito de caráter inclusivo, sempre em busca da harmonia jamais acabada. Caberá à classe média flutuante desempenhar o papel moderador na cidade, estabelecendo um equilíbrio precário entre os dois extremos: a minoria dos ricos, que querem tudo conservar, e a multidão dos pobres, que querem tudo obter. A classe média encarna os valores cívicos novos, contra os ricos, que são vistos como a ¬perdição da cidade. Os mesoi (as pessoas do meio) impõem um equilíbrio às forças contrárias, estabelecendo um acordo entre elementos rivais (Calasso, R., 1990).

A arbitragem supõe um juiz que, para aplicar sua decisão, ou para impô-la se necessário, refere-se a uma lei superior às partes, que deve ser igual para todos. É para preservar o reino dessa lei comum a todos que o legislador ateniense Sólon recusa a tirania, que lhe é oferecida. A sabedoria de Sólon está em que ele uniu a Violência e a Justiça, os dois velhos acólitos de Zeus, que não deviam afastar-se um instante de seu trono, porque personificavam o que o poder do soberano comporta de absoluto, e passam

agora a personificar a Lei, uma tentativa racional de estabilizar o conflito, equilibrar as forças sociais antagônicas, ajustar atitudes humanas opostas. Está-se a operar num plano estritamente humano. “A justiça aparece como uma ordem natural que por si mesma se regulamenta, da mesma forma que a maldade dos homens, sua sede insaciável de riqueza, produz naturalmente a desordem, segundo o processo seguinte: a injustiça engendra a escravidão do povo e este provoca a sedição” (Vernant, J-P., 1973).

Esta crônica inspirou-se na leitura de:

Calasso, R., As núpcias de Cadmo e Harmonia, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.

Vernant, J-P., Mito e pensamento entre os gregos, São Paulo, Difusão Europeia-USP, 1973.


Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (II)

 

Rumo à desencarnação progressiva da humanidade? (II)

Nivaldo T. Manzano

Resumo da parte (I) : A linguagem de Homero na Ilíada e na Odisseia reluta em autorizar a realidade a desprender-se, na operação abstrativa, de suas circunstâncias adverbiais, uma vez que sem elas se perderia o caráter único e irrepetível do ato, em seu contexto. O exercício da abstração, que prescinde do particular na afirmação da universalidade, ainda não chegara à maturidade. Daí que Ilíada e Odisseia sejam ricas em expressões imersas no concreto, no sensível e no singular.

Vinte séculos depois de Homero, Espinosa (1632-1677) retornaria aos advérbios circunstancias, atribuindo-lhes uma posição central na sua filosofia. Em lugar do nome, do substantivo, do “isso”, da “coisa”, isolados de seu contexto, ele irá propor que se adote o advérbio de modo, que se reconcilie na filosofia e na existência, indissociáveis para ele, o modo de olhar com o sujeito que olha. Assim como ocorre no amor, restabelecer-se-ia a singularidade, e com ela a intensidade na aproximação infinita da realidade a conhecer, perspectiva que desconhece limites, valoriza o instante e a fruição no êxtase, em meio à incerteza e ao risco. Dir-se-ia que para Espinosa a operação racional, que ele não deixa de valorizar, é de natureza digital, enquanto a realidade sobre a qual opera, é ao mesmo tempo analógica (Tanto pior para a lógica).

Daí que o filosofo cuidará de recomendar cautela diante do conhecimento enlatado e definitivo, que se obteria por meio de prestidigitações reducionistas. Não que se devesse atirá-lo no lixo. A serventia do estoque, das definições, do hardware, do fotograma é preciosa como testemunha da diferença entre abstração de que se constituem e a realidade que creem apreender, o que incita à busca de mais e mais diferenças. Sob esse aspecto, o valor instrumental da racionalidade contribui para que nos demos conta de que ela, isoladamente, não conduz à realidade imediata e singular = contextual.

À chegada da Modernidade, do otimismo iluminista, que anunciaria o progresso automático, hoje movido pelos algoritmos, Espinosa ousou denunciar-lhe a tautologia, segundo a qual o que veio antes deve ser utilizado para explicar o que veio depois, e o que veio depois, para explicar o que veio antes. Tudo tornava-se logicamente necessário e racionalmente transparente, como se a existência, reduzida a um silogismo, devesse ser destituída da estranheza e do encantamento que proporciona um advérbio de modo. Foi a gota d’água que bastou para que, já excomungado pela sinagoga, fosse banido pela Igreja Católica, pelo Protestantismo e pela comunidade dos cientistas, convertendo-se no intelectual mais censurado e mais perseguido de todos os tempos na história cultura do Ocidente, como atesta a pesquisa exaustiva de Jonathan Israel*

Então, já se haviam aberto as portas para a recuperação platônica da objetividade não circunstancial. O seu retorno triunfal dá-se com Francis Bacon (1561-1626) com a separação irreconciliável entre sujeito e objeto, agora convertidos em entidades reciprocamente estranhas. Em lugar do olhar adverbial de Homero, tem-se agora, com a objetividade, um olho mecânico que reflete o objeto visto, estranhamente um perfeito acoplamento entre chave e fechadura. Estranhamente, porque esse mesmo Prometeu, agora encarregado de dominar a natureza, assume-a como rebelde às suas investidas, ele também igualmente estranho a ela.

Em que pese a estranheza mútua, ou graças a ela, com Bacon o saber científico assoma à condição de um herói demiúrgico, cujos passos serão cadenciados pela grandiosidade suarenta do Gênesis. Competirá ao novo Prometeu assumir vicariamente o lugar do Criador, a separar novamente a luz das trevas, não deixando no rastro de seus passos nesga alguma de lusco-fusco que denuncie o caráter humano da empreitada. Tão somente um olho mecânico que reflete o objetivo visto. E não haveria por que questionar a pertinência de tal propósito: Não seria a razão humana uma centelha da razão divina? A realidade da Criação seria regida pelas leis da Física: Newton prestou-se apenas a ser o escriba encarregado por Deus de dar-lhes forma humana. Eis aí o perfil ideológico que inspirou Machado de Assis a criar em sua novela "O alienista" o médico Simão Bacamarte, protagonista tragicômico, uma metáfora do pensamento positivista, que na sua época predominava no Rio, de Janeiro, então capital intelectual do Pais.

*ISRAEL, J., Iluminismo radical, São Paulo, Madras, 2009.

 

 

Um leão de papel pode produzir mais estragos do que um leão de verdade

Um leão de papel pode produzir mais estragos do que um leão de verdade


Nivaldo Tetilla Manzano (28/09/20)

 

Com frequência, as metáforas, que se utilizam necessariamente para expressar o pensamento, costumam aderir na mente como emplastros ideológicos e assim grudadas passam a infectar toda a cultura de determinada época, como mostra o filósofo francês Michel Foucault, em seu livro “As palavras e as coisas”*. Machado de Assis oferece um exemplo da resiliência das metáforas no cotidiano, ao descrever as suas impressões ao viajar em um bonde elétrico, introduzido no Rio de Janeiro em 8 de outubro de 1892. Em uma de suas crômicas, ele relata:

Inicialmente, “as pessoas resistiam a viajar no novo veículo, a ponto de a Light mandar pintar nos espaldares dos bancos os dizeres: ‘Senhores passageiros, a corrente elétrica não oferece nenhum perigo’”. Ele acrescenta que, algum tempo depois, as pessoas ainda o rodeavam à procura dos animais, que costumavam puxá-lo. Do mesmo modo, na Grã-Bretanha os engenheiros da Revolução Industrial, ao projetarem pontes de ferro, recorriam aos mesmos cálculos utilizados anteriormente para a construção de pontes de madeira, sem se dar conta da diferença de resistência entre um material e outro, relata o historiador francês Pierre Francastel** (1900 – 1970)

Um exemplo emblemático de emplastro mental é Dom Quixote, que persegue a coincidência plena entre o mundo real, que tem à sua frente, e o mundo de sua fantasia cavalheiresca que já não existe. A abstração fixa que traz no bestunto deve corresponder à realidade em mudança na sua época. Ele o faz de maneira racional, ao juntar num todo coerente com pertinácia e perspicácia todos os pormenores e todos os fragmentos da realidade que olha à sua volta, escreve Michel Foucault (1926 - 1984). “A façanha de Dom Quixote consiste não em reconhecer uma novidade, mas em confirmar na realidade à sua frente a fantasia inscrita nos livros. Cada novo lance de sua aventura consiste, não numa nova aventura, mas na coleta de provas adicionais, que confirmem a adequação entre o mundo real e o seu delírio. A nova aventura será tão familiar à continuidade delirante, que se aloja na sua cabeça, quanto mais firmemente conseguir enxergar como estranha a descontinuidade que o desconcerta no mundo real. Esta não lhe desperta interesse em si mesma; serve apenas como suporte para confirmar que o verdadeiro mundo real não passa de fantasia”.

 

Entre o mundo projetado por Dom Quixote e o mundo real não pode haver diferença alguma. Assim, os riscos, os tropeços, os perigos e os descaminhos fantasiosos, nos quais se perde, representam para ele apenas um percurso abstrato em direção ao reencontro da própria identidade, como se nada tivesse ocorrido de verdade. Formalmente, Dom Quixote ao percorrer a sua realidade delirante apresenta-se como precursor do turista da era globalizada: sempre o mesmo aeroporto, as mesmas grifes, o mesmo frankenfood, o mesmo relógio, os mesmos hotéis, o mesmo conjunto de malas – tudo ordenado e previsto de tal maneira que não existe possibilidade de ocorrência de qualquer novidade, a despertá-lo para a sensação de que não morreu. Vive a ilusão satisfeita de ter dado a volta ao mundo, quando na verdade não saiu de casa; não saiu da projeção de sua fantasia.

 

A metáfora de Dom Quixote é reencenada na ficção de Machado de Assis, em sua novela “O alienista”, que tem como protagonista tragicômico o médico alienista Simão Bacamarte. Bacamarte, ao perseguir os habitantes da Vila de Itaguaí, no intuito obsessivo de separar-lhes a razão da loucura, percorre a realidade com os olhos de seu modelo. Ocorre que o modelo, ou a metáfora, é sempre mais pobre do que a realidade. Enquanto o modelo é fixo, a realidade é comportamento. Ao disso não se dar conta, Bacamarte frustra-se e se rende em seu intento ante o reconhecimento de sua incapacidade de remover de cada mente dos moradores das Vila alguma nesga de loucura que nela havia projetado. Ao final, dá-se conta de que o louco é ele e se encarcera de espontânea vontade no manicômio que criara.

A propósito do poder invasivo e da vocação totalitária da metáfora, o sociólogo francês Roland Barthes escreve em um de seus livros que um leão de papel pode ser mais ameaçador e produzir mais estragos do que um leão de verdade.

*Foucault, M., As palavras e as coisas, Lisboa, Portugália, 1967.

**Francastel, P., La realidad figurativa, Barcelona, Paidos,1988.