Longe
das mãos peludas, a história da filosofia é uma outra história (II).
Em
postagem anterior (I), encimada pelo mesmo título, intentei apresentar um
painel da contribuição do olhar feminino, inovador e refrescante, na releitura dos
grandes filósofos, graças à sua incomparável acuidade para as diferenças, as sutilezas,
as dobras, as reentrâncias, os desvãos registrados nas suas obras; para a desatenção
a um pelo dos cílios preso na lapela dos grandes sistemas, sem que seus
formuladores se tenham dado conta do escorregão na etiqueta. Na esteira de
Hipatia, Simone Weil, Hanna Arendt. Andrea Nye e Bárbara Cassin, entre outras, tem-se
também Isabelle Stengers, filósofa belga, especialista na história dos modelos
de ciência, ou epistemologia.
Stengers
retoma a temática geral do igual e do diferente, da coexistência conflitante e
solidária da continuidade e da descontinuidade numa mesma unidade contextual.
Ou seja, Stengers mostra os escolhos implicados na escamoteação masculina nos
fenômenos de transformação (processo, mudança, metamorfose, desenvolvimento,
gravidez), que é o mata-burro filosófico e científico em que tropeçam os
modelos funcionalistas, prevalecentes na Academia, por força de sua devoção
religiosa, de caráter excludente, à lógica e à matemática. O olhar feminino
traz como contribuição à epistemologia a evidência de que a realidade, além de
lógica e racional, é também intuitiva, como o sabem os matemáticos, embora
disso se esqueçam quando se põem a construir modelos. É a proposta doo retorno
ao esprit de coeur, de Pascal, em contraposição complementar ao seu espírito
geométrico.
Trata-se aqui de divisar a passagem — e
somente a dimensão feminina da existência disso tem sido capaz — entre dois
escolhos igualmente ruinosos pelo seu reducionismo, ambos masculinos: (1) a
ilusão da ciência autossuficiente, que se crê capaz de avançar somente mediante
critérios e razões de ordem interna, como alguém que julgasse poder crescer
puxando para cima os próprios cabelos, já que os fatores externos teriam um
papel subordinado; e (2) a ilusão simétrica de uma produção científica
desprovida de autonomia, cuja evolução seria explicável mecanicamente por
fatores sociais e econômicos, já que os fatores internos teriam um papel
subordinado. Observe-se em ambos os escolhos o modelo de Platão, das
hierarquias fixas, denunciadas pela crítica de Aristóteles à sua República,
obra na qual, a pretexto de organizar a cidade, Platão dela remove o seu
caráter democrático, ao eleger para a sua condução os filósofos, aos quais
confia a prerrogativa exclusiva de mando.
No primeiro caso, da
história “interna” das ciências, à qual está associado o nome de Alexandre
Koyré, tem-se como referência mais conhecida a obra “A estrutura das revoluções
científicas”, do historiador Thomas Kuhn. Segundo Kuhn, o cientista já não é a
encarnação da gloriosa representação do espírito crítico nem da racionalidade,
nas quais alguns filósofos identificaram a natureza da atividade científica, e
sim um sujeito que faz o que aprendeu a fazer, diz Stengers. Ocupa-se dos
fenômenos que encontra na sua disciplina, com a mesma desenvoltura com que uma
dona-de-casa se movimenta em meio às peças de seu mobiliário. Nada aí lhe é
totalmente estranho: eis o seu paradigma, um modelo ao mesmo tempo prático e
teórico, que se lhe impõe com a espontaneidade de uma evidência. É a essa
submissão do cientista ao paradigma de sua comunidade que se deveria atribuir o
progresso científico, ou seja, o processo cumulativo graças ao qual um número
sempre maior de fenômenos se torna inteligível. Chegará um momento, no entanto,
em que a dona-de-casa, de tanto mover os móveis de um lado para outro, no seu
empenho em abrir espaço para acomodar as novas peças, se dará conta de que já
não é capaz de contê-los na mesma ordem em que se espelhava a ordem familiar
que via neles. Mudará de casa ou de móveis — tem-se, então, uma mudança de paradigma.
Há,
porém, uma grande diferença entre um e outra no modo de proceder. Na
dona-de-casa, a ideia da mudança advém-lhe como resultado da interação entre o
registro das observações que colhe na rua quando pensa nos móveis e o registro
das observações que colhe nos móveis quando pensa em retornar à rua. Já no
cientista de Kuhn a ideia de mudança somente pode advir-lhe da contemplação do
umbigo comunitário de sua confraria, que não sai à rua pelo receio de se deixar
contaminar pela opinião ou pela crença. A comunidade científica de Kuhn é uma
colônia de minhocas que se autofecundam.
A
leitura da evolução da ciência proposta por Kuhn, diz-nos Stengers, busca
justificar, pois, uma radical separação entre comunidade científica, gerada
pela própria história da disciplina, e o contexto no qual ela se insere e a
envolve, na condição de uma de suas interfaces. Por força dessa separação
artificial, o cientista, no âmbito de seu trabalho, não estaria sujeito a
nenhuma interação com influências de outra natureza que lhe retirem, mediante a
imposição de outras questões, as “boas” questões de sua comunidade. Toda
possibilidade de interação entre a comunidade científica e o seu entorno, que
Kuhn enxerga como ameaça, poderia comprometer a sua autonomia, matando a galinha
dos ovos de ouro, o seu paradigma, ou a condição de possibilidade do progresso
científico. Assim, mediante o seu suposto auto isolamento, o cientista nega a
quem quer que seja o direito de pedir contas de suas escolhas e de suas
prioridades. Reconheça-se que Kuhn, adverte Stengers, não foi o criador dessa
torre de marfim; apenas buscou explicar, sem consegui-lo, como a torre continua
de pé, em que pese a remoção e a reconstrução recorrentes de seus fundamentos,
a cada mudança de paradigma.
No oposto simétrico desse
escolho, tem-se a ausência de autonomia no espaço da produção científica, ou
seja, a sua descaracterização na absorção pelas explicações causais e mecânicas
dos fatores sociais e econômicos. Agarradas nesse escolho encontram-se as obras
de J. D. Bernal, entre outros, aí compreendidos os adeptos do marxismo vulgar.
Assim, Bernal anunciava em 1939, no seu “The Social Function of Science”, que
produção científica e interesses sociais e econômicos apresentavam-se no
socialismo de Estado como solidários de fato e de direito e concluía pela
necessidade de uma reorganização da ciência que a tornasse capaz de responder
às autênticas necessidades sociais, um fato que já estaria ocorrendo na União
Soviética, segundo lhe assegurava Bucarin. Assim fazendo, Bernal espevita a
sanha dos liberais que, depois da guerra, entrincheiraram-se mais ainda no polo
oposto, o da autossuficiência da ciência sem contexto.
Registre-se
que a visão feminina da evolução das ciências mantém-se atenta à ocorrência de
continuidade, enquanto a visão masculina atém‑se à descontinuidade, na passagem
da crença para a ciência, da opinião para a certeza, do velho para o novo, da
ignorância para a sabedoria. Se se elimina masculinamente uma das dimensões, como
o faz Gaston Bachelard, ou a sua concomitância logicamente insustentável,
suprime-se a singularidade do fenômeno que a investigação se propõe elucidar, a
saber, a passagem, o drama, o lugar sofístico, no qual se exercita a tagarelice
dos falantes, cientistas e não-cientistas, cada um ancorado na sua perspectiva,
sem que seja possível reduzi-las a uma só, à objetividade científica, de curso
linear, sem surpresas e sem riscos, à moda da cidade na República de Platão, que
pretendeu escamotear a sua dimensão humana — leia-se: política —, ao
conferir-lhe foros normativos transcendentais de Verdade ou de Bem, valores que
colocou sob a guarda exclusiva dos filósofos.
A supressão do momento da
passagem — ou metamorfose — encontra sua justificação ideológica na separação clássica entre sujeito e objeto, um sujeito que não se deixa contaminar pelo
objeto e um objeto que não se deixa contaminar pelo sujeito. A separação
radical entre sujeito e objeto, como relembra Stengers, pressupõe a
naturalização ideológica do poder hierárquico, o do sujeito sobre o objeto, ou
o do sujeito capaz de convocar o objeto ao tribunal onde se discutirá a sua
causa, sem que lhe seja concedido o direito à palavra a partir de sua
perspectiva singular e irredutível. Nesse tribunal - ou no laboratório onde se
definem as condições do testemunho do objeto e em que este é posto à prova -,
afirma Stengers, o convocado é ouvido, não segundo as suas próprias categorias,
mas segundo as categorias dos jurados, aos quais compete emitir o juízo. Assim,
o “tribunal experimental” seria o lugar onde a distinção clássica entre o
sujeito e o objeto se cristalizou na estabilidade paradigmática de Kuhn. Na
ótica feminina da epistemologia, o laboratório experimental apresenta-se, pois,
como o lugar ideológico da remoção do caráter necessariamente político e ético
da ação humana, graças à qual torna-se possível reafirmar a ilusão da
existência sem risco, o mundo binário do sim x não, sem passagem conflitante e
solidária.
Do
esforço feminino de sacudir os emplastros mentais resulta o reconhecimento do equívoco
de se acreditar na autossuficiência dos papéis (interfaces, processos). Estes,
isoladamente, não são a chave explicativa de sua própria evolução e, por isso,
não dispõem do poder demiúrgico de se comportarem como um motor da história.
Assim, por exemplo, ao advento do moinho d´água, como um meio tecnológico de produção,
não se poderia atribuir a causa da servidão. Ao se proceder dessa maneira,
passa-se por cima do fato de que a entrada do papel do moinho na história é uma
ocorrência singular, entre outras, e que, portanto, na condição de estímulo do
contexto no qual se insere - contribuindo para mudá-lo e sujeito a ser mudado
—, somente pode ser explicado a partir de suas interações nesse contexto, como
uma de suas interfaces. A unidade conceitual explicativa e valorativa é,
portanto, o contexto (= integração entre visão feminina e masculina).
Bachelard,
G., A formação do espírito científico, Rio, Contraponto, 1996.
Bernal,
J., D., The social function of Science, Routlege, 1939.
Khun,
T., A estrutura das revoluções científicas, São Paulo, Perspectiva, 209.
Koyré,
A., Estudios de história del pensamiemento científico, Tres Cantos, 1978.
Stengers,
I., As políticas da razão, Lisboa, Edições 70, 1993