segunda-feira, 20 de maio de 2024

Conceitos historia dos conceitos teoria politica e social bbb

Conceitos historia dos conceitos teoria politica e social bbb https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/4dYpr4yn8SwrGcxRsZm6g7r/?format=html&lang=pt O presente artigo discute, de forma sucinta, algumas das principais questões em torno das quais vem se dando o debate acerca do fazer história do pensamento político e social nas últimas três décadas. Importa esclarecer, comparando, limites e possibilidades teóricas e metodológicas das duas vertentes mais produtivas no campo hoje: o contextualismo lingüístico de Quentin Skinner e a história dos conceitos (Begriffsgeschichte) desenvolvida por Reinhart Koselleck. Pretende-se, com isso, organizar minimamente a pauta de questões em discussão e estabelecer pontos interessantes para a pesquisa das relações da teoria política e social com a sua história. Palavras-chave: Quentin Skinner; Reinhart Koselleck; História dos conceitos; Teoria política e social. ABSTRACT The present article briefly discusses some of the main issues around which there has been debate on the making of the history of social and political thinking for the last three decades. It is important to clarify, by comparison, both the limits and theoretical and methodological possibilities of the two most productive branches in the field today: the linguistic contextualism of Quentin Skinner and the concepts (Begriffsgeschichte) developed by Reinhart Koselleck. We intend, in doing so, to minimally organize the guidelines of matters in discussion and establish interesting points on the relations of social and political theory with its history. Keywords: Quentin Skinner; Reinhart Koselleck; History of concepts; Social and political theory. RÉSUMÉ Cet article aborde, de forme succincte, certaines des principales questions à propos du débat sur la formation de l'histoire de la pensée politique et sociale au cours des trois dernières décennies. Il est important d'expliquer, tout en les comparant, les limites et les possibilités théoriques et méthodologiques des deux courants les plus productifs actuellement: le contexte linguistique de Quentin Skinner et l'histoire des concepts (Begriffsgeschichte) développé par Reinhart Koselleck. Nous proposons, ainsi, d'organiser les questions qui sont à l'ordre du jour, ainsi que d'établir les points intéressants pour la recherche des relations de la théorie politique et sociale avec leur histoire. Mots-clés: Quentin Skinner; Reinhart Koselleck; Histoire des concepts; Théorie politique et sociale. O presente artigo discute, de forma sucinta, algumas das principais questões em torno das quais vem se dando o debate acerca do fazer história do pensamento político e social nas últimas três décadas. Importa esclarecer, comparando, limites e possibilidades teóricas e metodológicas das duas vertentes mais produtivas no campo hoje: o contextualismo lingüístico de Quentin Skinner e a história dos conceitos (Begriffsgeschichte) desenvolvida por Reinhart Koselleck. Pretende-se, com isso, organizar minimamente a pauta de questões em discussão. I O debate acerca do que seriam as formas válidas da história do pensamento para o âmbito da teoria política e social ganhou enorme impulso com a publicação, em 1969, na revista History and Theory, do ensaio metodológico de Quentin Skinner, intitulado "Meaning and understanding in the history of ideas". Neste ensaio, que ampliava argumentos inicialmente expostos por Dunn (1972) e por Pocock (1969) na esteira das pesquisas de Peter Laslett (1965), Skinner endereçou uma crítica violenta contra várias tradições da história das idéias políticas, acusando-as principalmente de incorrerem no erro comum do anacronismo, ou seja, de imputarem a autores e obras intenções e significados que jamais tiveram, nem poderiam ter tido, em seus contextos originais de produção. O resultado básico dessas histórias criticadas seria a produção de um conjunto de mitologias históricas que terminavam por narrar pensamentos que ninguém pensou, portanto, não-histórias. Em geral, afirmava Skinner, as interpretações contemporâneas acerca das idéias do passado tomavam conceitos e argumentos sem a devida consideração de seus significados originais, transformando os antigos em parceiros de um debate do qual jamais poderiam ter participado. Se para o âmbito genérico da história da filosofia o anacronismo já seria anátema,1 em relação à teoria política o erro estaria amplificado na medida em que, diferentemente de formas mais abstratas da elaboração filosófica – os tratados de lógica são o caso mais extremo –, os trabalhos da filosofia política seriam elaborados como atos de fala (cf. Austin, 1962) de atores particulares, em resposta a conflitos também particulares, em contextos políticos específicos e no interior de linguagens próprias ao tempo de sua formulação. Cada autor, ao publicar uma obra de teoria política, estaria portanto ingressando num contexto polêmico para definir a superioridade de determinadas concepções, produzindo alianças e adversários, e buscando a realização prática de suas idéias. Nesta chave interpretativa, sendo a elaboração de um tratado de filosofia política e social uma ação, a questão do seu significado deveria se confundir com aquela da sua intenção, sendo esta apreendida no ato de fazer (in doing) a própria obra ou asserção. Daí a reivindicação metodológica mínima conformada na noção de que, de um autor não se pode afirmar que fez ou quis fazer, que disse ou quis dizer, algo que ele próprio não aceitaria como uma descrição razoável do que disse ou fez (Skinner, 1969, p. 28).2 Disso resulta que a correta compreensão de uma idéia ou teoria só poderia se dar pela sua apreensão no interior do contexto em que foram produzidas. Resulta também que o objeto da análise historiográfica é deslocado da idéia para o autor, do conteúdo abstrato da doutrina para a ação ou performance concreta do ator num jogo de linguagem historicamente dado. Se tal perspectiva correspondia genericamente à concepção historiográfica da compreensão tal como formulada no programa cognitivo de Robin George Collingwood, a quem Skinner presta a sua homenagem (ver, por exemplo, Skinner, 1969, p. 50; 2001), e poderia ser aproximada de outras abordagens contextualistas da primeira metade do século XX – como as propostas, por exemplo, pela noção de utensilagem mental de Lucien Febvre ou da "sociologia do conhecimento" de Karl Mannheim –, ela trazia consigo um conjunto de novas aquisições extraídas da filosofias da linguagem de Wittgenstein e da linguagem ordinária de John Austin. O principal veio produtivo foi estabelecido a partir das noções de que o significado de uma proposição é o seu uso na linguagem e que, portanto, a sua elucidação deve orientar-se para o seu portador (Wittgenstein, 1984, par. 43), e de que neste uso são reconhecíveis forças ilocucionárias e perlocucionárias não disponíveis à análise orientada para o caráter descritivo ou constatativo da linguagem (Austin, 1962, especialmente a VIII Conferência). Para Skinner, como para Austin, a análise da sentença cede lugar "à análise do ato de fala, do uso da linguagem em um determinado contexto, com uma determinada finalidade e de acordo com certas normas e convenções" (Marcondes de Souza, 1990, p. 11). Nessa direção, Skinner especificava a noção de contexto, qualificando como lingüístico ou de linguagem aquele que importaria reconstruir historicamente para dar sentido às proposições da teoria política e social no tempo. Uma tal especificação resultava, simultaneamente, na crítica da tendência reificadora de noções de contexto usuais em diversas perspectivas sociais da historiografia. A partir desse programa básico, uma sofisticada elaboração metodológica e conceitual acerca do fazer história das idéias (ou dos discursos, dos atos de fala, da linguagem política e social etc.), das noções de significado e de intenção e dos limites da historiografia do pensamento político e social, assim como uma pujante produção historiográfica com freqüência identificada com o rótulo "escola de Cambridge" e com a coleção "Ideas in Context", se desenvolveram, provocando reações diversas que constituíram um profícuo debate metodológico internacional entre historiadores, filósofos, cientistas políticos e críticos literários.3 Para o propósito introdutório deste artigo, importa ressaltar algumas das linhas de crítica à perspectiva skinneriana que conformariam o que me parece ser o quadro mais significativo do debate contemporâneo acerca da história do pensamento político e social. Em primeiro lugar,4 a linha de acusações acerca do antiquarismo ou da inutilidade desse tipo de historiografia contextualista para a elaboração teórica, com freqüência operando a partir da noção de que o programa rankeano de saber com precisão o que se passou seria, senão totalmente inútil, irrelevante para a tarefa da teoria cuja vocação estaria no enfrentamento dos problemas contemporâneos. Nessa direção, se os significados dos conceitos anteriores não são transponíveis para o presente senão por mecanismos ilegítimos de atualização, porque produtores de deformação dos sentidos originais, melhor seria, ou deixá-los a si e partir para uma elaboração da teoria sem referência histórica às idéias, ou assumir como inevitável a traição da tradução para o contemporâneo e operar como se (a título de ficção heurística) os autores do passado fossem parceiros nos temas do debate contemporâneo.5 A resposta skinneriana a esse tipo de argüição segue, em geral, a noção de que o investimento historicista no não-familiar dos conceitos do passado e, conseqüentemente, no estranhamento dele derivado, serve à desnaturalização ou desestabilização dos conceitos da teoria contemporânea, fomentando a imaginação conceitual com alternativas enriquecidas por significados e alteridades que a pesquisa erudita da história pode encontrar. Um caso notório seria o da análise que o próprio Skinner faz da idéia republicana de liberdade em Maquiavel: o reconhecimento da complementaridade necessária e da convivência pacífica das dimensões positiva e negativa da liberdade na teoria política de Maquiavel poria em xeque a naturalização operada pelo pensamento liberal, desde o século XIX – leia-se aqui Benjamin Constant, Jeremy Bentham e Isaiah Berlin –, da oposição entre essas duas dimensões (Skinner, 1984). Nesse sentido, a variante apresentada pela perspectiva metodológica de John Pocock, no contexto da mesma escola, ganha relevância. Em primeiro lugar porque, embora também opere com a análise de obras e de autores, o centro de sua reflexão metodológica desloca-se para a relação entre as várias linguagens políticas que, no seu confronto sincrônico, conformam a tessitura lingüística (langue) na qual as diversas performances (parole) se tornam possíveis e inteligíveis. Também em Pocock, o esforço de desnaturalização da conceituação e dos horizontes teóricos contemporâneos se faz presente. Para dar um exemplo, ao chamar a atenção do leitor para a heterogeneidade dos discursos produzidos no século XVIII inglês, baseados ora nos direitos, ora nas virtudes ou nos costumes (manners), sublinha que ali tais possibilidades devem ser apreendidas, pelo intérprete, como alternativas numa disputa que desconhece o que nós, hoje, conhecemos – os seus resultados, isto é, aquilo que, a posteriori, tornou-se hegemônico: o liberalismo, a linguagem dos direitos individuais e a noção de liberdade como não-obstrução. Ao mesmo tempo, a mobilização e o estudo detalhado das categorias inscritas no registro do humanismo cívico (ou do republicanismo clássico, como preferem outros intérpretes) permitiria reconstruir lógicas teóricas derrotadas na luta política dos últimos séculos, mas não por isso racionalmente inferiores ou desprezíveis. Além disso, a verificação do caráter necessariamente poliglota da linguagem política, com os vários idiomas que em disputa a integram num determinado período histórico, aponta para os riscos da incompreensão (misunderstanding) que o analista corre quando tenta apreender os modos de desenvolvimento do pensamento alheio a partir de concepções estáveis e historicamente desinformadas daquilo que lhe parece ser um domínio próprio da política ou da moral. O risco do anacronismo estaria não apenas na incapacidade de compreender o que está em jogo na emissão desta ou daquela proposição (de seu significado), mas também na imputação de caráter contraditório a elaborações teóricas que, em seu contexto de enunciação, eram plenamente legítimas e racionais. Neste registro, as relações entre, por um lado, a gramática que permite as várias construções lingüísticas (idiomas ou sublinguagens) num determinado período e, por outro, as performances específicas – por vezes subversivas da própria gramática – desempenhadas em seu interior, constituiria o locus privilegiado da análise pocockiana do discurso político (cf., por exemplo, Pocock, 1985).6 Vale notar que a reivindicação de um programa rigorosamente historicista que recusa a existência de "problemas filosóficos perenes" e que paga o preço da redução drástica do alcance das "lições" do passado, dado que a história só lidaria com respostas particulares a problemas epocais particulares, tem como contraparte a "liberação" da elaboração teórica contemporânea para criar respostas novas (e particulares) para os problemas novos (e também particulares) do presente (Skinner, 1969, p. 53). Nesse sentido, é no mínimo curioso perceber que uma reivindicação tão erudita e historicista em relação ao fazer história, e que resulta na afirmação da impossibilidade de transposição dos conceitos antigos para o presente sem anacronismo, funciona, na outra ponta, a da teoria contemporânea, como uma espécie de carta de alforria para a imaginação que deve deixar ao passado os seus termos e partir para uma inovação conceitual adequada aos problemas "locais" do tempo presente. Na frase de Skinner, "Demandar da história do pensamento uma solução para os nossos próprios problemas imediatos é perpetrar não só uma falácia metodológica, mas também algo como um erro moral" (Idem, p. 67). O debate também é promissor e produtivo numa segunda via de inquirição que traz, em geral, embora não necessariamente, a marca da hermenêutica das ciências humanas de referência gadameriana e que duvida da própria empreitada científica de apreensão das intenções e dos significados originais dos atos de fala do passado, na medida em que a cognição é ela mesma prisioneira de sua historicidade. O que implica dizer, radicalizando ao caso limite, que o significado original em si é inapreensível e que é apenas no interior de uma fusão de horizontes interpretativos que se dá a compreensão dos significados desde logo marcados pela teia da comunidade de intérpretes contemporâneos. Na concepção de Gadamer: [...] cada época entende um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto constitui parte do conjunto de uma tradição pela qual cada época tem um interesse objetivo e na qual tenta compreender a si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta a seu intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e o seu público originário. Ou, pelo menos, não se esgota nisso. Pois este sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete e, por conseqüência, pela totalidade do processo histórico (Gadamer, 1997, p. 366). A cognição, sendo ela mesma produtiva e produtora de significados a partir da tradição em que se inscreve, transforma-se em recepção, tornando essencial que idéias e conceitos sejam apreendidos em seus efeitos. Daí a proposição de uma história dos efeitos caracterizada por aquilo que a recepção contemporânea consegue determinar, a partir de seu horizonte de expectativas, das diversas mutações sofridas pelos conceitos ou idéias no tempo. Se a historicidade dos significados das idéias é inescapável, a dos sujeitos que os conhecem também o é, transformando as condições de possibilidade do conhecimento dos conceitos do passado numa aventura interpretativa, por definição contemporânea, e não passível de determinação científica. Teoricamente, o caráter hermenêutico e lingüístico da operação do conhecimento das idéias não seria apenas epistemológico, mas ontológico, o que, no limite, tornaria sem efeito a própria noção de uma história científica. Segue-se daqui que o trabalho da teoria política e social se confundiria com aquele da história da teoria, sendo ambas, história da teoria e teoria, formas da hermenêutica interpretativa dos conceitos. Se a primeira linha de crítica acima referida denunciava a inutilidade ou a inocuidade políticas do programa rankeano do contextualismo lingüístico, a crítica hermenêutica mais radical afirma a sua inviabilidade cognitiva. Há duas respostas básicas de Skinner para este tipo de linha de argumentação, embora não haja um enfrentamento direto com as proposições gadamerianas em si. A primeira delas distingue entre os vários tipos de significado que uma proposição pode ter: o significado das palavras enunciadas na frase; o significado da proposição para mim ou para a comunidade contemporânea de intérpretes à qual pertenço; e o significado da proposição como o ato de fala daquele que a proferiu. É para a apreensão deste último sentido que a metodologia skinneriana se elaborou, e só para ele (cf. Skinner, 2002a). Skinner reconhece que há intenções e significados que, por ausência de informação contextual, não podem ser recuperados. No entanto, se as intenções a serem recuperadas pelo historiador são aquelas que, por estarem expressas num ato de comunicação bem-sucedido, foram legíveis publicamente, as chances de estabelecê-las é grande. Não se trata, portanto, de exercício de empatia ou de busca do que havia oculto na mente de alguém, mas de reconhecer, no conjunto das convenções lingüísticas publicamente reconhecíveis de uma determinada época, a intenção que se infere do "lance" promovido por um determinado jogador (Skinner, 1988, pp. 279-280). A segunda linha de resposta ameniza o caráter científico da certeza do método proposto. Mesmo quando há muita informação contextual, o que se obtém com a pesquisa histórica são hipóteses plausíveis que devem se sustentar na erudição disponível, sem a pretensão de resultados últimos que alcancem "verdades finais, auto-evidentes e indubitáveis" (Idem, p. 280). Embora reconhecendo que "sempre nos aproximamos do passado à luz de paradigmas e pressupostos contemporâneos", para Skinner um grau (bastante) elevado de erudição e consciência históricas é capaz de controlar a imputação de intenções que são, em última análise, tais hipóteses, "inferências a partir da melhor evidência disponível para nós" (Idem, p. 281). II A segunda corrente relevante para a construção do nosso quadro do debate acerca das perspectivas teórico-metodológicas do fazer história do pensamento político e social constitui-se na história conceitual alemã tal como desenvolvida por Reinhart Koselleck. Divulgada tardiamente no mundo anglo-saxão, embora seus desenvolvimentos iniciais fossem anteriores aos da perspectiva skinneriana, essa outra forma da história associada à teoria política e aos conceitos sociais conquistou espaços cada vez maiores na discussão internacional das ultimas duas décadas.7 Como diz o nome, a Begriffsgeschichte é uma história de conceitos, e proliferou como um modo particular de história reflexiva da filosofia e do pensamento político e social, tendo se desenvolvido a partir das tradições da filologia, da história da filosofia e da hermenêutica. A história dos conceitos tal como a conhecemos hoje foi inicialmente desenvolvida pelo historiador austríaco Otto Brunner na sua crítica à historiografia jurídica e liberal alemã, em particular ao modo como esta transpunha para a realidade medieval lógicas conceituais derivadas do liberalismo posterior como, por exemplo, a separação entre a economia e a política e a oposição entre o público e o privado.8 Em sua versão contemporânea, concomitantemente a uma pujante discussão teórica e metodológica, produziu volumosos dicionários de conceitos.9 O projeto que aqui importa, o da história dos conceitos políticos e sociais fundamentais que resultou no Geschichtliche Grundbegriffe, justificou-se pela percepção, experimentada por historiadores nas décadas de 1950 e 1960, da insuficiência da história do espírito (Geistesgeschichte) de corte hegeliano e da história das idéias (Ideengeschichte) tal como explorada por Dilthey e seus seguidores. Os principais pontos atacados pela crítica desta então nova historiografia estavam na baixa contextualização de idéias e conceitos utilizados no passado, no anacronismo daí derivado e na insistência metafísica da essencialidade das idéias. Na fala de Koselleck, a atual Begriffsgeschichte surgiu do duplo impulso crítico referido "à transferência descuidada para o passado de expressões modernas, contextualmente determinadas, do argumento constitucional" e à "prática da história das idéias de tratá-las como constantes, articuladas em figuras históricas diferentes, mas elas mesmas fundamentalmente imutáveis" (Koselleck, 1985a, p. 80). Daí que a reivindicação metodológica mínima possa ser resumida nos seguintes termos: os conflitos políticos e sociais do passado devem ser descobertos e interpretados através do horizonte conceitual que lhes é coetâneo e em termos dos usos lingüísticos, mutuamente compartilhados e desempenhados pelos atores que participaram desses conflitos. Desse modo, o trabalho de explicação conceitual quer precisar as proposições passadas em seus termos próprios, tornando mais claras as "circunstâncias intencionais contemporâneas" em que foram formuladas (Idem, p. 79). É esta direção contextualista da história dos conceitos que permite uma aproximação teórico-metodológica com as perspectivas desposadas por Skinner e Pocock.10 Poderíamos então dizer, em termos simplificadores, embora não empiricamente falsos, que, se o projeto original de Skinner teve como principais adversárias as concepções das idéias atemporais e dos problemas filosóficos perenes, tal como julgava encontrar em trabalhos como os de Leo Strauss e de Arthur Lovejoy, o projeto de Koselleck dirigiu-se contra a história das idéias imutáveis tal como desenvolvida, por exemplo, por Friedrich Meinecke em seu livro sobre a razão de Estado.11 Nessa dimensão, por assim dizer sincrônica, da história do pensamento, a aproximação entre o contextualismo lingüístico e esta forma da história dos conceitos não é supérflua. Como reconhece Koselleck, "a história dos conceitos lida com o uso de linguagem específica em situações específicas, nas quais os conceitos são elaborados e usados por falantes específicos" (Koselleck, 1996, p. 62). Por isso a necessidade de se estabelecer os conceitos que constituem os vocabulários – campos semânticos ou domínios lingüísticos – dessa ou daquela linguagem política e social, relacionando o seu uso na discussão política, social e econômica com os grupos que os sustentam ou os contestam.12 No entanto, há uma outra dimensão intrínseca à história dos conceitos que me parece ultrapassar o caráter basicamente sincrônico do historicismo metodológico skinneriano e trazer outras possibilidades para a elaboração da teoria política e social contemporânea na sua relação com a história. Pois, se os atos de fala são únicos e os conceitos – não mais concebidos como substâncias capazes de vida própria – também são dependentes da experiência que os formulou, a recepção desses atos (ou de seus efeitos) se dá ao longo do tempo, constituindo diacronicamente uma tradição interpretativa. Sem dúvida, a história conceitual mantém a noção da "não convertibilidade do que foi articulado pela linguagem" numa determinada época, afirmando a necessidade metodológica de um historicismo rigoroso para a compreensão dos usos conceituais particulares (Idem, p. 62). Nesse sentido, por exemplo, o conceito aristotélico de politeia não pode ser apreendido sem referência aos usos e às práticas da cidadania nas poleis gregas, assim como a compreensão da res publica de Cícero depende da ordem política da Roma do primeiro século. Mas a história conceitual não pára aí, pois está interessada nos modos pelos quais as gerações e os intérpretes posteriores leram, alterando os seus significados, essas proposições políticas do passado. Neste registro é possível afirmar, rigorosamente, que os conceitos em si não têm história; mas também é possível afirmar, com rigor, que a sua recepção tem. Aliás, é da própria condição de unicidade dos atos de fala ou dos conceitos articulados numa linguagem local que a história conceitual deriva a necessidade de uma história da recepção, já que parte justamente da aposta de que os significados não se mantiveram no tempo e que foram alterados. "O registro de como os seus usos foram subseqüentemente mantidos, alterados, ou transformados pode, propriamente, ser chamado de história dos conceitos" (Idem, pp. 62-63). Afinal, é disso que se trata quando mobilizamos, hoje, termos como sociedade civil, república ou democracia. Nessa perspectiva, a compreensão das alterações, dos desvios, das ocultações etc., conscientes ou não, mas articulados na linguagem, é um caminho historiográfico privilegiado para apreender com maior precisão os significados próprios e as funções normativas de um conceito contemporâneo formulado numa teoria também contemporânea. Aqui, a perspectiva da mudança conceitual adquire traços diacrônicos de dinamismo histórico e acentos claramente hermenêuticos que estão ausentes, ou são muito tênues, nas proposições fundadoras do contextualismo lingüístico de Cambridge.13 Para a história conceitual koselleckiana, continuidades e mudanças conceituais tornam-se temas centrais. No entanto, esta mesma história recusa limitar a investigação às linguagens articuladas pelos atores do passado na medida em que estas revelam apenas parte do que é relevante conhecer. Em primeiro lugar porque há elementos pré-lingüísticos que condicionam a história, tanto acontecimento como discurso, e que uma antropologia histórica convencida da finitude humana deve reconhecer. São "condições, às quais a humanidade compartilha com os animais e que são, nesta medida, pré- ou extralingüísticas, 'metahistóricas'" (Koselleck, 1989, p. 650). Exemplos inescapáveis, segundo Koselleck, são os "três conjuntos de contrários sem os quais nenhuma história é possível": antes/depois, dentro/fora e em cima/embaixo. É certo que tais precondições são, freqüentemente, articuladas pelas linguagens de comunidades locais e mobilizadas em usos conceituais determinados: religiosos, políticos, econômicos etc. Mas mesmo quando não o são, integram assim mesmo a história dessas comunidades.14 Em segundo lugar, há boa parte do histórico acontecido que não recebe articulação na linguagem local, seja porque se trata de fenômenos desconhecidos para a consciência dos atores históricos daquele momento, seja porque a linguagem não consegue exprimir satisfatoriamente os eventos, como no caso dos alemães, em 1945, incapazes de encontrar expressões verbais adequadas ao extermínio em massa, fazendo com que uma memória estável por intermédio da linguagem fosse bem posterior (Idem, p. 652). Nesse sentido, a exigência de separação entre linguagem e história social é ativada e, com ela, a necessidade metodológica de associar mudança lingüística à história dos eventos. Numa definição sucinta, e para aproveitar a recepção norte-americana desta perspectiva, trata-se de pensar "as relações recíprocas entre as continuidades, as mudanças e as inovações nos significados e nas aplicações dos conceitos políticos e sociais de um lado, e as transformações estruturais de larga escala no governo, na sociedade e na economia de outro" (Richter, 1986, p. 610). Trata-se de pôr os conceitos políticos e sociais em relação com a continuidade ou a descontinuidade das estruturas políticas, econômicas e sociais, o que resulta em ter como tema favorito a elaboração conceitual produzida em tempos de mudança rápida (cf. Koselleck, 1994, 1997a). Em termos esquemáticos, podemos recorrer à fórmula proposta por Koselleck numa conferência de 1991, que elabora um modelo de Heiner Schultz apresentado em 1979, e que observa o problema da mudança do ponto de vista das relações mais "brutas" entre conceitos e realidades. Supondo que de um lado haja um estado de coisas, e de outro um conceito deste estado de coisas, quatro situações são possíveis: 1) o estado de coisas e o conceito permanecem ambos estáveis ao longo de um período de tempo; 2) o conceito e a realidade transformam-se simultaneamente; 3) os conceitos mudam sem que haja uma mudança concomitante da realidade, ou seja, a mesma realidade é conceituada de modo diverso; 4) o estado de coisas muda, mas o conceito permanece o mesmo (Koselleck, 1994).15 Se olhamos para a obra de Koselleck, é notório o caráter heurístico e didático deste esquema, dada a relação bem mais complexa entre linguagem e história. Antes de mais nada porque a relação entre conceito e realidade social e política, entre "dogmata" e "pragmata", não é de simples separação e oposição. Prevalece a opinião de que, [...] enquanto os conceitos têm capacidades políticas e sociais, sua função e performance semânticas não são unicamente derivadas das circunstâncias sociais e políticas às quais eles se referem. Um conceito não é simplesmente indicativo das relações que ele cobre; é também um fator dentro delas. Cada conceito estabelece um horizonte particular para a experiência potencial e a teoria concebível e, nesse sentido, estabelece um limite (Koselleck, 1985a, p. 84). Aqui podemos perceber a relação de filiação tensa e de simultâneo afastamento entre as proposições de Koselleck e a versão ontológica da Begriffsgeschichte, pois o historiador quer negar a fusão entre linguagem e história: Toda linguagem é historicamente condicionada, e toda história é lingüisticamente condicionada. Quem desejaria negar que todas as experiências concretas que temos só se tornam experiências pela mediação da linguagem? É justamente isto o que faz a história possível. Mas, ao mesmo tempo, quero insistir que linguagem e história permaneçam separadas analiticamente, pois nenhuma das duas pode ser, na sua inteireza, relacionada à outra (Koselleck, 1989, pp. 649-650). Em outras palavras, a ciência histórica de Koselleck mantém a exigência de referencialidade ao postular os aspectos extralingüísticos da vida histórica e afirmar que mudanças estruturais de longo prazo não podem ser identificadas, descritas ou explicadas por teorias do discurso que excluam a referência a algo externo ao sistema de signos constitutivos da linguagem. Por isso torna-se imprescindível separar "as circunstâncias que foram, num certo momento, articuladas na linguagem" e aquelas outras "circunstâncias que não foram previamente articuladas na linguagem mas que, com a ajuda de hipóteses e métodos, ele [o historiador] é capaz de extrair dos vestígios" (Koselleck, 1985b, pp. 267-268). Assim, produz-se um segundo afastamento em relação a Gadamer, pois se repõe o espaço negado pela hermenêutica filosófica à discussão sobre o método e a teoria da história (Historik). Quando Gadamer busca uma teoria da verdade baseada na estrutura ontológica da compreensão humana como tal, nega, simultaneamente, validade à discussão metodológica no campo das ciências humanas, incluindo-se aí a historiografia e o estudo daquilo que o conhecimento histórico é. Por isso mesmo, a reposição da distinção entre história e linguagem vem acompanhada das discussões de método e de teoria da história em Koselleck.16 Cabe, no entanto, notar que permanece ativa a "influência" de Gadamer na história conceitual proposta por Koselleck, uma vez que esta diz querer cobrir justamente "a zona de convergência ocupada por conceitos passados e presentes", embora reivindique uma "teoria" para tornar possível a compreensão dos "modos de contato e de separação no tempo", teoria que estabelece as condições de possibilidade da produção de histórias a partir das "aporias da finitude do homem em sua temporalidade" (Koselleck, 1997b, p. 68 ss.) e que se encontra condensada na distinção entre "espaço de experiências" e "horizonte de expectativas" (Koselleck, 1985b). Na relação complexa entre conceitos e realidade, entre dogmata e pragmata, a separação entre linguagem e história não implica a recusa tout court do caráter lingüístico constitutivo da realidade social e política, mas a busca de um modelo teórico no qual os significados lingüísticos simultaneamente criam e limitam as possibilidades da experiência política e social. Notas BIBLIOGRAFIA Artigo recebido em novembro/2004 Aprovado em janeiro/2005 Marcelo Gantus Jasmin, historiador e doutor em ciência política, é professor de Teoria da História na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC) e de Teoria Política e História das Idéias no Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro (IUPERJ). Além de artigos dedicados à teoria política e sua história, publicou os livros Alexis de Tocqueville: a historiografia como ciência da política (Rio de Janeiro, Access, 1997) e Racionalidade e história na teoria política (Belo Horizonte, Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 1998). Atualmente é diretor executivo da Fundação Casa de Rui Barbosa. E-mail: jasmin@iuperj.br. AUSTIN, John L. (1962), How to do things with words Oxford, Clarendon Press. BALL, Terence; Farr, J. & Hanson, R. L. (orgs.). (1989), Political innovation and conceptual change Cambridge, Cambridge University Press.