segunda-feira, 15 de julho de 2024

Prudencia fronesis em Arist

https://www.youtube.com/watch?v=2ZFW42RHIjI bbb Phronesis: the moral comprehension specificity NADJA HERMANN*–––––––––––––––––––––––––––– ––––––––––––––––––––––––––– RESUMO – Este artigo retoma o conceito aristotélico da phronesis, conforme propõe Hans-Georg Gadamer, em Verdade e método (1960), com vistas a enfrentar a oposição entre o caráter universal dos princípios morais abstratos e a particularidade dos contextos históricos e da autocriação do eu. O interesse específico é utilizar a revalorização da phronesis, a deliberação prudente, enquanto compreensão prática, que pode auxiliar no enfrentamento da tensão gerada no processo educativo entre a criação do eu singular e a integração na comunidade (ethos comum). Descritores – Ética; phronesis; educação ético-estética; autocriação do eu. Este artigo retoma o conceito aristotélico de phronesis, conforme propõe Hans-Georg Gadamer em Verdade e método (1960), com vistas a enfrentar a oposição entre o caráter universal dos princípios morais abstratos e a particularidade dos contextos históricos e da autocriação do eu. O interesse específico é utilizar a revalorização da phronesis, a deliberação prudente, enquanto compreensão prática, que pode auxiliar no enfrentamento da tensão gerada no processo educativo entre a criação do eu singular e a integração na comunidade (ethos comum). * Nadja Hermann é Professora de Filosofia da Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação/PUCRS, Porto Alegre/RS, e pesquisadora do CNPq. E-mail: nadja.hermann@pucrs.br Artigo recebido em: março/2007. Aprovado em: maio/2007. Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007366 Nadja Hermann A hermenêutica de Gadamer, reabilitadora da filosofia prática, recupera na tradição grega o sentido ético do saber humano, através do desempenho adequado da razão no agir moral, no sentido de esclarecer, para a própria consciência moral, as especificidades de uma situação concreta à luz de exigências éticas. A phronesis, não sendo um saber privado, mas público e social, apresenta condições de: (a) minimizar as exacerbações de uma autocriação do eu, centrada apenas na dimensão reduzida da estetização da ética,1 que na perspectiva de tornar a vida uma obra de arte coloca sob suspeição princípios universais; e (b) preservar, enquanto sabedoria prática, a universalidade dos valores éticos, sociais e estéticos que atuam no processo formativo. Considerando que a educação produz a individualidade e a socialização, pretende-se demonstrar que a phronesis atende às contingências dos contextos e as singularidades do eu como algo que não é irreconciliável com as normas universais. Assim pode ser dissolvida a oposição entre formar o eu (individualização) e integrá-lo numa comunidade (socialização), criando espaço para o discernimento compreensivo da situação do outro. 1. PHRONESIS: ESCLARECIMENTO CONCEITUAL O termo phronesis não tem uma tradução que expresse, de forma satisfatória, o espectro semântico que possuía para o mundo grego. Habitualmente traduzido por prudência, o uso do termo descolou-se do contexto de origem e perdeu seu enraizamento ético. Neste artigo, a phronesis será empregada no sentido aristotélico de excelência do intelecto prático ou sabedoria prática, pois oferece a possibilidade de articulação com o núcleo do problema de uma educação ético-estética,2 ou seja, a abertura de horizontes com significados comuns que faça frente ao individualismo exacerbado. Assim, o problema aqui em questão se situa no âmbito das relações entre o universal e o particular. A recuperação da phronesis por Gadamer, conforme é proposta por Aristóteles na Ética a Nicômaco, se deve justamente à possibilidade de articular a relação entre o universal e o particular, ou, ainda, a aplicação de princípios gerais em casos particulares.Inserido no mundo, o comportamento ético interpõe a individualidade de um eu entretecido em formas históricas de vida, com um ethos comum. Assim, o agir moral não está voltado para um bem transcendente, mas realizado em ações concretas. Aristóteles critica a idéia platônica de Bem, naquilo que ela contém de generalidade vazia, para contrapor o bem do homem que vive os princípios em acontecimentos singulares e contextos particulares. Não é necessária uma metafísica do Bem, tampouco de um conhecimento hierarquizado para alcançá-lo, como queria a teoria platônica, mas considerar um conjunto de fatos e circunstâncias contingentes que conduzem a um bem humano, não a um bem absoluto. Para Aristóteles, o bem não é uma realidade única: “a palavra ‘bem’ se emprega em tantos sentidos quanto a palavra ‘ser’” (EN, 1096a). Os valores que constituem a vida boa são plurais e incomensuráveis e, na ação moral, os casos particulares precedem as normas universais. A virtude (areté) moral não está identificada com o lógos, mas com a capacidade de agir de acordo com a razão (orthós lógos); não é conhecimento, mas discernimento, deliberação. A sabedoria prática, diz Aristóteles, “versa sobre as coisas humanas, e coisas que podem ser objeto de deliberação; pois dizemos que essa é acima de tudo a obra do homem dotado de sabedoria prática: deliberar bem” (EN, 1141b). Esse discernimento é uma determinação do ser ético, pois a moralidade humana, distinta da natureza, depende do esforço, de uma atitude firme, de um bem viver. O saber moral deve compreender aquilo que é exigido em cada situação concreta à luz dos princípios gerais. Por não ser um conhecimento exato ou puramente teórico, como ocorre com o saber das matemáticas e das ciências, Gadamer retoma a distinção aristotélica entre o saber moral ou sabedoria prática da phronesis, o saber teórico da epistéme e o saber fazer da techné. Essa distinção é iluminadora do tipo de sabedoria que é requerida pelo agir moral e delimita com precisão o apelo à phronesis para interpretar o sentido ético da educação, sobretudo naquilo que ela possui de impulso ético para compreender a si mesmo e ao outro. A techné se orienta pelo saber fazer, envolve arte e habilidade como o artesão que sabe fazer determinados produtos. A epistéme, ou conhecimento teórico, é o conhecimento das dimensões universais do ser. Mas a phronesis não é nem techné nem epistéme. Com a phronesis é diferente, pois como lembra Gadamer “o homem não dispõe de si mesmo como o artesão dispõe da matéria com que trabalha” (VMI, p.387). De acordo com Aristóteles, este é um saber para si, um saber do indivíduo (EN, 1141b), cuja finalidade é aplicar o saber numa tarefa humana particular. A phronesis é uma sabedoria prática porque diz respeito à ação que envolve os casos particulares, por isso as ações humanas não podem ser pensadas com os conceitos da ciência teórica.Trata-se de um conhecimento que nos envolve, que estamos desde já implicados. Uma techné se ensina; entretanto, a phronesis não é ensinável,3 pois não se pode, a priori, determinar quais os meios morais mais adequados para determinados fins. Ou seja, não é Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007368 Nadja Hermann possível alguém possuir um conhecimento antecipado, que lhe assegure como agir em cada situação, devido às singularidades e exigências imanentes à própria situação, mas apenas um conhecimento mais profundo das características da vida humana. Quem toma uma decisão moral, delibera a partir de algo que aprendeu e para agir moralmente também escolhe meios adequados aos fins. Nessa perspectiva, o agir moral deve estar orientado reflexivamente tanto quanto a ação do artesão. Mas em que consiste, então, a diferença entre phronesis e techné? Gadamer retoma a interpretação dos conceitos aristotélicos e aponta a diferença, indicando que o saber moral não se possui de tal forma que primeiro se obtenha [o saber] e logo se aplique a uma situação concreta. As imagens que o homem tem sobre o que deve ser, seus conceitos de justo e injusto, de decência, valor, dignidade, solidariedade, etc. [...] são, de certo modo, imagens diretrizes pelas quais se guia. Mas há uma diferença fundamental entre elas e a imagem diretriz que representa, [...] para um artesão, o desenho do objeto que pretende fabricar. Por exemplo, o que é justo, não se determina por inteiro com independência da situação que pede justiça, enquanto que o eidos do que quer fabricar o artesão está inteiramente determinado pelo uso através qual se determina (GADAMER, VMI, p.389). Embora o que é justo esteja determinado pelas leis e regras de comportamento moral, prossegue Gadamer, esse tipo de saber não é uma aplicação como o saber da techné, porque nesta apenas se adaptam os dados concretos, renunciando à execução do plano projetado quando se percebem problemas, de forma a melhorar a execução. Mas no caso da aplicação do que é justo, encontramos uma posição diferente, pois numa situação concreta aquele que julga fará concessões em relação à lei, “não porque não seja possível fazer as coisas melhor, mas porque de outro modo não seria justo” (GADAMER,VMI, p.389). Do mesmo modo, o sujeito que se autoconstitui e cria seu próprio eu, necessita na ação moral de “imagens diretrizes”, de orientações normativas nas quais fomos educados e que presidem a ordem da vida social, de um saber que ultrapassa seus interesses e que só se concretiza na situação específica em que atua. Não se trata de buscar princípios morais absolutos, mas de encontrar neles as orientações que sirvam como ponto de reflexão para a aplicação prudente. Existe uma tradição ética que herdamos e que tem força para estabelecer nossas imagens de mundo que são consideradas em cada ação moral. Nesta especificidade do saber moral é que consiste a Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007Phronesis: a especificidade da compreensão ... 369 sabedoria prática da phronesis, por isso não tem sentido distinguir, nesse âmbito, saber e experiência, como ocorre no caso da techné. O saber da ação moral – que se refere a si mesmo de um modo muito particular – é o que Gadamer destaca como sendo compreensão. Compreensão e ação moral têm a mesma estrutura de aplicação.O conhecimento humano do bem não é algo arbitrário, violador da tradição, mas algo que nos permite participar da universalidade, ao proceder uma deliberação e agir. A phronesis é uma especificidade da compreensão moral, porque “o sentido que se trata de compreender só se concretiza e se completa na interpretação” (VMI, p. 405). Ou seja, o universal só é compreendido a partir do horizonte particular do intérprete. A moral e as instituições, que criam usos e valores e os seguem, mediam lógos e ethos, pois não atuam no âmbito da imutabilidade e são profundamente questionadas pelo caráter histórico e contingente de nossa existência. Nesse sentido, podemos dizer com Gadamer que, ao discutir ética, não se está descrevendo normas vigentes, mas se “aspira fundamentar sua validade e a introdução de normas mais justas” (VMII, p.296).4 Pela phronesis, o bem não é objeto de conhecimento moral como a ciência trata um objeto científico, mas algo que devemos realizar, que nos remete para temas fundamentais da experiência humana.Trata-se assim de uma razão que envolve responsabilidade; uma racionalidade, diz Gadamer, que supera a tentação dogmática que está contida em todo o hipotético saber e que inclui o esforço para levar adiante a própria ação, que, por sua vez, tem como base os fatos de nossa existência finita (cf. GADAMER, 1993b, p. 65). Os fatos aqui remetem à facticidade de nossas convicções, costumes, valores “compreendidos, comuns e compartilhados” por todos nós, formando um pano de fundo que permite a própria vida. A esse conjunto os gregos chamavam ethos, que, segundo a interpretação de Gadamer da ética aristotélica, nada tem de adestramento ou acomodação à má consciência, mas implica em phronesis, em racionalidade responsável. 2. RELAÇÃO ENTRE PHRONESIS, PRINCÍPIOS UNIVERSAIS E AUTOCRIAÇÃO DO EU Creio que a concepção ética complexa de Aristóteles, revalorizada pela hermenêutica filosófica de Gadamer – a phronesis como um momento específico da compreensão moral – tem um potencial explicativo para o problema da educação que não pode abandonar nem fins universalizáveis, nem deixar de abrir espaço para a autocriação do eu e das regras morais. Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007370 Nadja Hermann A phronesis é um dos elementos decisivos na formação ética, como contraponto a um eu que se inventa a si mesmo, como sugerem as éticas estetizadas. Se a autocriação permite uma relação mais frouxa e flexível em relação às regras de conduta, deixando um espaço aberto para a imaginação criativa, o inesperado e a contingência, o que tem sentido diante da radical finitude da vida humana; é preciso questionar se é possível manter um ethos que já rompeu com o universalismo. Mas não são desejáveis a criação de regras e o uso da imaginação que nos permitem uma constante recriação do eu? Faz-se necessário esclarecer que uma tal autocriação, quando se volta inteiramente para si numa estilização estética, gera uma espécie de confusão entre autocriação do eu inteiramente nova e a autonomia de se recriar baseada em fórmulas já reconhecidas e válidas socialmente. Quando se estabelece essa confusão, o caráter excessivamente privado do eu acaba por divergir de um ethos comum, de valores compartilhados que orientam a vida social, deixando um vazio de sentido para a formação. É nessa tensão que se pode compreender o papel da phronesis, como aquela sabedoria responsável que esclarece, para o próprio eu, o limite de uma autocriação puramente original e solicita a aplicação justa de um saber que requer o reconhecimento de “fins comuns que são válidos para todos” (GADAMER, 1993b, p. 66). A phronesis é assim uma espécie de moralidade encarnada, que se ajusta à complexidade e particularidade da ação moral. Na obra La fragilidad del bien, Nussbaum oferece uma interpretação da prudência aristotélica esclarecedora do modo como essa categoria pode contribuir para uma educação ético-estética. No cotidiano surgem situações novas que podem nos surpreender, pois são distintas das situações anteriores. Não temos para elas um saber geral que dê conta de todas as particularidades do mundo prático, pois não se trata de deduzir a ação de princípios gerais. A prudência não é epistéme, que nos prepara para as novas situações a partir de um sistema de universais. Tal condição não deixa de ser um limite à prática do bem viver. Para encontrar a excelência do agir, Aristóteles propõe utilizar as regras da razão (orthós logos), as regras justas (cf. EN, 1103b32-3, 1119a20, 1114b29). O que significam essas regras e como se faz uso delas? Segundo a interpretação oferecida por Nussbaum (p. 382ss.), as regras e os princípios universais servem como “resumos” de decisões particulares, utilizados para facilitar na identificação de características mais importantes de cada caso particular. Ou seja, resumos descritivos de bons juízos, que Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007Phronesis: a especificidade da compreensão ... 371 apresentam orientações para ação, conforme foram realizadas por pessoas prudentes. Desse modo, as regras e os princípios gerais teriam um caráter normativo e pedagógico, porque “transmitem com economia de meios, a força normativa das decisões concretas boas de pessoas prudentes e porque, por várias razões, desejamos nos guiar pelas escolhas dessas pessoas” (NUSSBAUM, 1995, p. 384). Esse entendimento da regra pode preservar as características contingentes de cada situação, reclamadas por uma educação ético-estética, justamente porque princípios abstratos são impotentes diante da complexidade da ação moral. Mesmo que isso contenha a possibilidade de nos deixar à mercê da thyché (fortuna), não perde seu sentido, porque permite espaço para repensar as regras à luz de contextos, com suas exigências éticas e estéticas. Nas palavras de Nussbaum, “algo novo, inesperado, único inclusive, pode obrigar a modificar a regra, pois esta, para ser correta, deve descrever devidamente os casos. Assim, há espaço, não só para surpresas, mas também para a insegurança cognitiva e a vulnerabilidade” (1995, p.384). O elemento novo e inesperado, que a sabedoria prática reconhece, vem ao encontro dos elementos trazidos pela dimensão estética na apreciação do juízo moral, conforme é analisado na discussão contemporânea da ética em sua relação com a estética,5 Quando princípios excessivamente abstratos não mais se articulam com o mundo sensível, o estético emerge forçando a abertura de nossos sentidos e de nossas mentes para a compreensão do agir moral. Embora os processos de estetização do mundo da vida não se identifiquem de forma direta com a aisthesis aristotélica, cabe destacar que há um ponto de convergência entre as éticas contemporâneas e a ética aristotélica no que se refere à valorização da esfera sensível na decisão moral. Ou seja, ambas protestam contra a pouca efetividade de uma moral afastada da vida sensível. A afirmação da autocriação individual promovida pela estética e as diferentes conexões que nos mantém unidos em sociedade, comungando considerações de moralidade em comum, permitem apontar a aproximação entre experiência estética e phronesis. Tal hipótese é também defendida por Ingram, que afirma “haver uma afinidade entre racionalidade estética e phronesis – não apenas a importância óbvia do gosto exercido com prudência, mas também a orientação do sentido da vida boa na sua plenitude. Tanto o eticista como o artista projetam, pelo menos implicitamente, uma vida na sua integridade. A esse respeito a arte autêntica e a axiologia compartilham uma estrutura comum com a interpretação, de modo geral – a saber, a projeção antecipatória da perfeição e integridade de sentido” (INGRAM, 1993, p. 237). Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007372 Nadja Hermann Na interpretação de Nussbaum, a deliberação ou o juízo moral radica naquilo que Aristóteles chama aisthesis (percepção). A deliberação não é determinada unicamente pelo raciocínio ou pura atividade cognoscitiva, mas relacionada com a captação dos casos particulares, e “quem decide é a percepção” (ARISTÓTELES, EN, 1109b). Isso porque os princípios “não captam os finos detalhes do particular concreto, objeto da escolha ética. Isto se aprende em relação à própria situação. [...] As regras gerais são aqui criticadas por sua falta de concretude e flexibilidade. A ‘percepção’ pode levar em conta os matizes, adaptando seus juízos ao que encontra diante de si” (NUSSBAUM, 1995, p. 385). Para adensar seu argumento em favor da flexibilidade da sabedoria prática no seu modo de articulação com o universal, Nussbaum refere os atributos do ‘prático’: mutabilidade, indeterminação e particularidade. Tais características também requerem o uso da imaginação no enfrentamento das peculiaridades do novo e do surpreendente. Esse modo singular da phronesis se adequa a uma educação em que o bem viver leva em consideração o estético no sentido de aisthesis. Do mesmo modo que a phronesis não é dedutível de um saber técnico ou científico, nossa experiência estética não é compreensível por critérios científicos ou exclusivamente racionais, tampouco pode ser subsumida por uma faculdade humana tomada isoladamente. E é justamente essa possibilidade contida no estético que confere novos modos de relação com a ética e amplia nossas condições compreensivas sobre a situação que exige decisão. O debate contemporâneo sobre a relação entre o ético e o estético (cf. WELSCH, FRÜCHTL, RORTY, NUSSBAUM, SHUSTERMAN) argumenta que os elementos estéticos são decisivos para o juízo moral, pelo que trazem de inovador. As tentativas de romper as barreiras existentes contra a experiência sensível criam as condições para que nossas idéias sobre o bem viver também passem a considerar a fusão do sensível com o espiritual. Desse modo, inicia-se um processo em que a imaginação, os sentimentos e mesmo a paixão podem dar um acesso ao conhecimento moral. Porém, como destaca Nussbaum (1995, p. 390-391), o caso particular seria irracional e ininteligível sem o guia de uma capacidade classificadora do universal (nem sequer podemos amar os indivíduos particulares no sentido aristotélico, sem amar os compromissos e valores repetíveis que exemplificam suas vidas). Tampouco o juízo particular possui as raízes e a focalização necessárias para a bondade do caráter sem um núcleo de compromissos com uma concepção geral (concepção, contudo, em permanente evolução, flexível e preparada para a surpresa). Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007Phronesis: a especificidade da compreensão ... 373 Assim, uma educação ético-estética apoiada na sabedoria prática pode, como anunciado no início desse texto, esclarecer a relação recíproca entre o universal e o particular. Evita uma orientação puramente abstrata, uma vez que a educação pressupõe um processo de inserção num mundo compartilhado de valores e crenças, sem o qual qualquer dialética entre individualização e socialização estaria conduzida ao fracasso prévio. E atua como limite a uma estética de si mesmo que, centrada apenas em critérios individuais, pode estimular a indiferença, o egoísmo e a frivolidade. A formação ética requer, então, a superação do interesse privado, pois a própria singularidade do eu não é possível sem ingressar num mundo compartilhado de significados comuns. O saber da phronesis, sempre exposto à revisão, permite àqueles que se educam o esclarecimento para si mesmo (enquanto um saber de si) das condições de seu próprio agir e a consideração do outro que está implicado na decisão. O caráter de aplicação requer o reconhecimento da situação do outro: “[...] o homem compreensivo não sabe nem julga a partir de uma situação externa e não afetada, mas a partir de uma pertença específica que o une ao outro, de modo que é afetado com ele e pensa com ele” (GADAMER, VMI, p.395). A phronesis, enquanto aplicação compreensiva, não permite se subtrair às exigências do outro. O que é justo ou injusto, por exemplo, não pode ser afirmado de forma abstrata, mas depende da situação ética em que nos encontramos. Nessa perspectiva, a ética de Gadamer defende um saber prático que considera o outro e a comunidade, um “comportar-se e agir solidariamente. Solidariedade é a condição decisiva e a base de toda a razão social” (1987, p.228). O empenho em analisar a relação entre o particular e o universal no que se refere à questão ética, provém da luta contra as exacerbações do idealismo, do qual a educação sempre teve dificuldades de se desvencilhar ou, ao menos, mantém um insuficiente esclarecimento. O limite do idealismo foi apontado pela crítica desde o século XIX. O diagnóstico de Nietzsche sobre a experiência educativa da tragédia já apontava que o idealismo, com sua visão otimista, mata a tragédia. A experiência estética contida na tragédia, que abria o abismo profundo do mundo e colocava o herói a sentir o peso da decisão foi substituída por um tipo de filosofar que pretende domesticar a natureza, através de conceitos abstratos. O idealismo fez eco na educação na busca abstrata de um bem. Quando os ideais entram em cena, corre-se o risco de acionar armadilhas. A educação, em especial a pedagogia, viu-se sempre atraída por aquilo que constitui a idealidade – a formação do ser racional e da mais Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 2007374 Nadja Hermann alta consciência moral – e, para efetivar tal demanda, de modo geral, adotou duas posições: numa interpretação quase dogmática dos ideais, baseou a ação pedagógica em distintas formas de repressão que garantissem a interiorização da consciência moral, adotando um modo não refletido de regras e princípios universais, que não se articulam com a sensibilidade. Num movimento de oposição, na tentativa de livrar-se do peso da idealidade e das obrigações, muitas vezes adotou os perigos da não intervenção, o que resultou em desresponsabilização. Sem compreender a genealogia e a historicidade desses fundamentos, a educação corre o risco, seja por adesão ou por oposição, de cair em armadilhas acionadas pelo caráter devastador de uma interpretação equivocada da exigência ética. Uma dessas armadilhas é subverter a criação do eu, remetendo-se exclusivamente a regras e padrões próprios, numa auto-estiliza lta consciência moral – e, para efetivar tal demanda, de modo geral, adotou duas posições: numa interpretação quase dogmática dos ideais, baseou a ação pedagógica em distintas formas de repressão que garantissem a interiorização da consciência moral, adotando um modo não refletido de regras e princípios universais, que não se articulam com a sensibilidade. Num movimento de oposição, na tentativa de livrar-se do peso da idealidade e das obrigações, muitas vezes adotou os perigos da não intervenção, o que resultou em desresponsabilização. Sem compreender a genealogia e a historicidade desses fundamentos, a educação corre o risco, seja por adesão ou por oposição, de cair em armadilhas acionadas pelo caráter devastador de uma interpretação equivocada da exigência ética. Uma dessas armadilhas é subverter a criação do eu, remetendo-se exclusivamente a regras e padrões próprios, numa auto-estilização estética. Uma ação moral voltada apenas para a autocriação do eu, apesar de tudo o que ela possa ter de sedução no discurso pedagógico, que luta contra as formas niveladoras e contra aquilo que Nietzsche chamou de moral de rebanho, corre o risco de cair numa impossibilidade de constituir um ethos comum. A defesa da autonomia da criação do eu como se fosse a autonomia da criação artística – que não tem nenhuma finalidade exceto ela mesma resulta em um processo de estetização que projeta um ideal de vida, mas que exclui a relação com o outro. A possibilidade de reconhecer do outro pela sabedoria prática decorre da phronesis ser uma aplicação na situação do patrimônio herdado, que constitui nosso ser histórico. Isso nos possibilita uma interpretação interminável das experiências individuais com um horizonte comum que compartilhamos. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Referida nas citações por EN) ______. Ética a Nicômaco. Trad. e notas de Julio Pallí Bonet. Madrid: Editorial Gredos, 1985. CANTO-SPERBER, Monique (Org.). Dicionário de ética e filosofia moral. Trad. de Ana Maria Ribeiro-Althoff e outros. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2003. v. 2. FRÜCHTL, Josef. Ästhetische Erfahrung und moralisches Urteil.Frankfrurt am Main: Suhrkamp, 1996. Educação Porto Alegre/RS, ano XXX, n. 2 (62), p. 365-376, maio/ago. 200