quarta-feira, 21 de abril de 2021

Por um Programa de Garantia de Empregos no Brasil

 

Por um Programa de Garantia de Empregos no Brasil

Por: Caio Vilella, Daniel Conceição, David Deccache e Fabiano Dalto

* Texto originalmente publicado para o Le Monde Diplomatique em 21/07/2020 e republicado com a autorização dos autores. Original disponível aqui

Em meio à pandemia, a prefeitura do munícipio de Três Pontas (MG) identificou a aglomeração de pessoas como um problema a ser combatido. Em resposta, contratou cem pessoas desempregadas para fazer o trabalho de monitoramento de pontos de aglomeração ao custo de um salário mínimo. E se outras prefeituras pudessem contratar desempregados com salários pagos pela União para combater seus próprios problemas? Em outras palavras: e se o governo atuasse como Garantidor de Empregos de Última Instância como forma de combater a pandemia e suas consequências econômicas devastadoras?

No Brasil, os dados da Pnad Contínua, pesquisa domiciliar feita pelo IBGE por amostras, referentes ao período pré-pandêmico, mostram que cerca de 16,7 milhões de domicílios viviam com até dois salários mínimos. Ao final de 2019, das mais de 106 milhões pessoas dispostas a trabalhar, cerca de 16,2 milhões de pessoas não conseguiam encontrar uma posição no mercado de trabalho ou já tinham desistido de procurar emprego. Das que estavam empregadas, aproximadamente 29% recebiam até um salário mínimo. Essa situação certamente será fortemente agravada pela pandemia e suas consequências depressivas sobre a economia brasileira.

Das que estavam empregadas, aproximadamente 29% recebiam até um salário mínimo.

Segundo os dados da mesma Pnad Contínua, menos da metade da população em idade ativa estava ocupada no mês de maio. Por causa da pandemia, com as pessoas impedidas de procurar emprego por questões sanitárias, essa taxa reflete o aumento do nível da taxa desemprego que está por vir, quando muitos trabalhadores começarem a procurar emprego. O desperdício de recursos e os danos sociais associados ao aumento explosivo do desemprego terão impacto estrutural de proporções devastadoras para a economia brasileira.

Precisamos considerar o custo humano e econômico do desemprego em massa e do aumento da pobreza, bem como os problemas de saúde pública, desestruturação familiar, aumento da violência e todas as mazelas trazidas pelo desemprego, que acabam afetando as minorias representativas de maneira desproporcional. Comparado a todos estes custos econômicos, um programa de garantia de emprego não seria relativamente caro.

O programa de garantia de empregos é uma proposta de política econômica que vem sendo discutida por economistas desde os anos 1940 e poderia nos ajudar a lidar com a crise econômica no pós-quarentena, ajudando a mitigar seus danos sociais e econômicos. De fato, o pleno emprego organizou a sociedade após a tragédia material e humanitária da Segunda Guerra Mundial. Na base dos programas sociais de Estado de bem-estar estavam as políticas de pleno emprego para provisão de bens públicos universais. O pleno emprego inclusive entrou nas cláusulas dos direitos humanos universais (Artigo XXIII).

O pleno emprego inclusive entrou nas cláusulas dos direitos humanos universais (Artigo XXIII).

O proponente mais famoso desta política foi Hyman Minsky, autor que ficou mundialmente conhecido em 2008 graças ao sucesso explicativo – quase profético – da sua Hipótese da Instabilidade Financeira como descrição do tipo de crise financeira e econômica que implodiu o mercado de hipotecas subprime nos Estados Unidos e depois as economias ao redor do mundo. Segundo Minsky, uma das ferramentas capazes de atenuar a dinâmica cíclica de economias capitalistas, além de efetivamente eliminar a pobreza, seria a oferta pelo governo de empregos para todos os trabalhadores dispostos a trabalhar por um salário nominal por ele fixado.

A experiência mais próxima dessa proposta foi o New Deal do governo Roosevelt em resposta à Grande Depressão dos anos 1930. De forma parcial, experiências mais tímidas foram verificadas no programa Jefes de Hogar, colocado em prática no início deste século na Argentina. Neste caso, o governo federal se responsabilizou pelo pagamento do salário de apenas um(a) chefe(a) por família. Outro exemplo é o programa de emprego rural da Índia (National Rural Employment Guarantee Act, ou NREGA), introduzido em 2005 e até hoje em vigor, atendendo cerca de 128 milhões de pessoas. Vale notar que regiões do território chinês e a República de Gana possuem experiências similares.

Mais do que combater um problema econômico, o programa visa enfrentar uma questão social. O fato de uma pessoa disposta e apta a trabalhar por salário, às vezes até menor que o mínimo, não conseguir encontrar emprego representa uma tragédia individual e, muitas vezes, familiar. Afinal, espera-se que um(a) chefe(a) de família seja capaz de dar sustento digno a si e à sua família com o salário recebido em troca da sua mão de obra. Não conseguir trabalhar e receber salário significa, para a grande maioria das pessoas, não sobreviver com dignidade.

Para além da tragédia individual, o desemprego também representa uma tragédia social e econômica. O desemprego é potencial produtivo da sociedade que está sendo desperdiçado. O gráfico abaixo, elaborado com estimativas conservadoras, dá uma ideia do quanto do potencial produtivo brasileiro tem se perdido (em termos de produto que deixou de ser produzido) em razão do desemprego desde 2012.

Assumimos duas hipóteses para estimar o produto potencial que o Brasil vem desperdiçando desde 2012 em virtude do desemprego: (a) que a taxa de participação por todo o período poderia ter se mantido igual à maior taxa de participação da força de trabalho (62,12% em outubro de 2019); e (b) que a taxa de ocupação ao longo do período poderia ter se mantido em 93,8%, a mais elevada da série (em dezembro de 2013). Dessa forma, calculamos o produto que poderia ter sido obtido se nossos gestores macroeconômicos tivessem sido capazes de manter o nível de ocupação no seu nível mais elevado já alcançado, supondo que os desempregados (se fossem contratados) tivessem produtividade 50% ou 30% menor que a dos trabalhadores empregados. O resultado é uma perda mensal média de produto da ordem de 2,7% a 3,8% do PIB (algo perto de R$ 1,5 trilhão no período analisado). De março a maio de 2020, por efeito da pandemia e da falta de políticas econômicas adequadas para enfrentá-la, a perda de produto por causa do desemprego já chega à ordem de R$ 111 bilhões a 156 bilhões, a depender da hipótese de produtividade do trabalhador.

Fonte: Calculado pelos autores a partir de informações do IPEADATA

Outros custos econômicos são amplamente reconhecidos. Quanto mais longo o tempo de desemprego mais depreciada fica a força de trabalho do trabalhador. Os conhecimentos profissionais dos trabalhadores ficam defasados, seu condicionamento para o trabalho se reduz. A literatura acadêmica aponta que maiores taxas de crescimento do produto, provocadas por aumentos da demanda agregada para combater o desemprego, seriam compatíveis com taxas crescentes de produtividade. O desemprego está, também, associado com várias mazelas sociais como abuso de drogas, distúrbios psicológicos e, mesmo, suicídio. Os custos sociais do desemprego, em geral, superam sobremaneira seus eventuais benefícios.

Os custos sociais do desemprego, em geral, superam sobremaneira seus eventuais benefícios.

Não obstante, a Declaração Internacional de Direitos Humanos da ONU em seu artigo 23 parágrafo I afirma: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. Felizmente, não há motivo para que o governo brasileiro não promova o pleno emprego verdadeiro através de uma política de garantia de emprego. Afinal, o governo brasileiro goza de soberania monetária e pode, portanto, gastar tanto quanto for necessário para que a economia deixe de desperdiçar sua força de trabalho.

O programa de garantia de empregos é usualmente comparado com o de renda básica universal, mas há algumas diferenças a se considerar. Primeiro, é importante destacar que ambos coexistiriam em um mundo ideal, onde aqueles que não possam ou não queiram trabalhar, receberiam uma renda que lhes garantisse os direitos básicos. Já para aqueles que estivessem aptos e desejando trabalhar, mas não encontrassem oportunidades de emprego oferecidas pelo setor privado, o programa aqui sugerido teria vantagens de cunho econômico e social.

Do ponto de vista social, oferecer uma atividade remunerada para um ser humano que está acostumado a ser rejeitado pelo mercado de trabalho possui um caráter importante para o bem-estar do trabalhador, que deixa de enxergar a renda como uma caridade. Do ponto de vista econômico, manter a força de trabalho ao nível do pleno emprego evita o desperdício de habilidades que vem com o afastamento da mão de obra do mercado de trabalho, além de aumentar a produtividade via programas de treinamento no trabalho. Finalmente, a geração de empregos e o crescimento das rendas do trabalho são os principais responsáveis pela redução da pobreza e da desigualdade.

O programa de garantia de empregos deve ser usado num amplo plano de superação de insuficiências da estrutura econômica e social brasileira: desde a construção de infraestrutura de transportes, saneamento e comunicações, passando pela preservação do meio ambiente até a provisão de serviços públicos universais (saúde, educação e cultura). Um plano amplo de empregos dignos, sustentáveis e socialmente orientados é o mínimo que precisamos para sair dessa crise monumental. Mais do que oferecer uma renda básica para ajudar na recuperação econômica do país, o programa de garantia de empregos é uma ferramenta de justiça social e de manutenção da dignidade do trabalhador através de seu emprego para além da atual crise, atendendo aos direitos humanos que lhe foram prometidos.

Sobre os autores:

Caio Vilella é doutorando do PPGE na UFRJ.

Daniel Negreiros Conceição é professor do IPPUR na UFRJ.

David Deccache é economista e assessor técnico na Câmara dos Deputados.

Fabiano Abranches Silva Dalto é professor de Economia na UFPR.