O indivíduo
autônomo de Kant: um ideal ainda esperado
Márcia Junges
É preciso atentar
para a contraposição entre uma “sociedade organizada à luz de imperativos
morais do tipo kantiano” e outra cujos imperativos egoístas são seu modelo,
ressalta o filósofo e psicanalista Mario Fleig. Delírio de autonomia surge do
imperativo de gozar sem limite
Mario Fleig: “A
inversão da prevalência do amor de Deus, afirmado na tradição cristã, em amor
de si, é o pressuposto do que resultará no que denominamos de delírio de
autonomia”
“O indivíduo
egoísta coloca em primeiro lugar a satisfação de suas pulsões a qualquer preço,
ao passo que o individuo autônomo, propugnado por Kant, quer antes de tudo ser
capaz de deliberar sobre as coerções de suas pulsões para, então, poder ter a
liberdade de refreá-las ou assumi-las de uma forma simbólica viável”. A análise
é do filósofo e psicanalista Mario Fleig, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. “Aquele indivíduo sonhado e anunciado
como ideal a partir das formulações de Kant é o que ainda esperamos”,
acrescenta. Esse indivíduo é um ideal ainda não alcançado, “e mais do que
restrito ao contexto em que Kant viveu, eu o entendo como uma releitura dos
ideais de relação consigo e com o outro em vista da realização da felicidade
propugnados pelas grandes narrativas ocidentais”.
Fleig acentua que a
autonomia do ser humano “significa a capacidade de se autogovenar e o direito
de um indivíduo tomar decisões livremente, no âmbito moral e intelectual, ou
seja, a autonomia da vontade remete ao princípio segundo o qual a vontade
expressa livremente por pessoa capaz, e dentro das normas legais, deve ser
considerada soberana”. Liberdade e autonomia estão imbricadas e são necessárias
para que o homem se efetive como um ser moral. “Entende-se então por que o
imperativo moral deve ser postulado de modo autônomo, quer dizer, não ser
condicionado pela vontade de outros, mas ser puro (ou seja, livre,
independente, autônomo e incondicionado)”.
Graduado em
Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, e
em Psicologia pela Unisinos, Mario Fleig é mestre e doutor em
Filosofia. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em metafísica. Como
psicanalista, é membro da Association Lacanienne Internationale e da Escola de
Estudos Psicanalíticos. Com Jean-Pierre Lebrun organizou O mal-estar na
subjetivação (Porto Alegre: CMC Editora, 2010) e O desejo
perverso (Porto Alegre: CMC Editora, 2008).
Confira a
entrevista.
IHU On-Line – O
imperativo categórico é um expediente plausível numa sociedade na qual a
autonomia é compreendida, muitas vezes, como individualismo?
Mario Fleig – Nós já abordamos a temática da
autonomia do agente moral na Modernidade e Pós-modernidade, nos modos da
autoconsciência e da autodeterminação, em um artigo publicado em 2007 . Nele
trabalhávamos com a hipótese de que a pós-modernidade se caracterizaria pela
emergência de novos ideais que propugnam uma sociedade de indivíduos que reúne
meros sujeitos de direitos, comandos por imperativos de gozar a qualquer preço
e do que convier, sem depender de ninguém e de nada e sem limites.
Denominávamos esse fenômeno emergente de delírio de autonomia. Contudo,
percebemos a necessidade de introduzir uma distinção na noção de indivíduo com
que trabalhávamos naquele artigo: a distinção entre o indivíduo que a
modernidade espera alcançar e o indivíduo que visa prioritariamente a si mesmo,
na forma do egoísmo. Aquele indivíduo sonhado e anunciado como ideal a partir
das formulações de Kant é o que ainda esperamos. Positivamente, este indivíduo
estaria centrado na autonomia de sua vontade que, segundo Kant (1980), com base
na noção de liberdade proposta por Rousseau , obedece à lei que ele mesmo se
prescreve, ou seja, a capacidade apresentada pela vontade humana de se
autodeterminar segundo uma legislação moral por ela mesma estabelecida, livre
de qualquer fator estranho ou exógeno.
Indivíduo egoísta x
indivíduo autônomo
Negativamente, a
autonomia da vontade se define pelo repúdio de qualquer heteronomia no campo da
norma moral, ou seja, que o indivíduo possa agir guiado por princípios que a
própria razão se autodetermina e livre de qualquer determinação alheia, tal
como uma paixão e uma inclinação afetiva incoercível (subjetivamente) ou um
imperativo (objetivamente) vindo de uma ordem divina ou da tradição. Assim, a
autonomia do ser humano significa a capacidade de se autogovernar e o direito
de um indivíduo tomar decisões livremente, no âmbito moral e intelectual, ou
seja, a autonomia da vontade remete ao princípio segundo o qual a vontade
expressa livremente por pessoa capaz, e dentro das normas legais, deve ser
considerada soberana.
Ora, este é o
indivíduo ideal e que jamais se disseminou efetivamente no mundo ocidental. Em
contrapartida, aquilo que se costuma denominar de excesso de individualismo
consistiria de fato em um egoísmo exacerbado. O indivíduo egoísta coloca em
primeiro lugar a satisfação de suas pulsões a qualquer preço, ao passo que o
individuo autônomo, propugnado por Kant, quer antes de tudo ser capaz de
deliberar sobre as coerções de suas pulsões para, então, poder ter a liberdade
de refreá-las ou assumi-las de uma forma simbólica viável. Desse modo, face ao
individualismo egoísta crescente, hoje temos carência deste indivíduo kantiano
que pensa e age por si mesmo, levando sempre em consideração os outros
indivíduos que também agem e pensam por si mesmos. Assim, nos parece que a
questão mais interessante em relação à autonomia surgiria da explicitação da
contraposição de um modelo de sociedade organizada à luz de imperativos morais
do tipo kantiano a um modelo de sociedade organizada à luz de imperativos
egoístas.
Economia neoliberal
e autonomia
Encontramos tal
contraposição em modelos de fundamentação da moral contemporâneos a Kant, como
o modelo sadeano, mesmo que utópico (a máxima universal de Sade : “Tenho o
direito de gozar de teu corpo, sem nenhuma limitação”), ou o modelo oriundo do
iluminismo inglês, visível na concepção liberal de Adam Smith .
Quanto à
fundamentação das normas morais, que diferença há entre a concepção de Kant e
Smith? Em duas palavras: Kant jamais abre mão da prioridade dada ao altruísmo e
à restrição ao egoísmo. Em contrapartida, em Smith se destaca a afirmação da
absoluta prevalência do egoísmo privado. E sabemos que é a segunda posição que
resultará dominante no que se denomina de pós-modernidade. Então, se nossa
sociedade se organiza à luz de uma economia neoliberal na qual a autonomia é
compreendida segundo o modelo do individualismo egoísta, torna-se evidente que
o imperativo categórico kantiano já não seja mais um expediente
plausível.
Os dois termos que
empregamos, egoísmo e altruísmo, fazem referência à tensão constante entre a
autopreservação e a preservação do grupo, presente nas grandes narrativas que
fundam o Ocidente: tanto na tradição judaico-cristã quanto na tradição
greco-romana encontramos a condenação do egoísmo e a afirmação do altruísmo
como única direção viável para a existência da vida em comum. Não podemos
refazer aqui este longo e interessante conflito que perpassa cada momento de
nossa história. Não é, por exemplo, o conflito entre os sofistas e Sócrates ?
Agostinho opõe a cidade de Deus à cidade dos pagãos, prevendo em A cidade de
Deus (XIV, 28, 1) que a terra dos homens seria para todo sempre o lugar de
afrontamento entre o reino guiado pelo amor de Deus até o desprezo de si e o
reino guiado pelo amor de si até o desprezo de Deus. A inversão da prevalência
do amor de Deus, afirmado na tradição cristã, em amor de si, é o pressuposto do
que resultará no que denominamos de delírio de autonomia.
Inversão do
imperativo categórico
Vejamos como Kant
continua partidário da posição agostiniana. A primeira formulação do imperativo
categórico (“Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo
querer que ela se torne lei universal”) pode facilmente ser criticada como
genérica e abstrata, assim como expressão de um interesse egoísta do tipo: “não
faça ao outro o que não gostarias que ele te fizesse”. Contudo, a segunda
formulação do imperativo categórico kantiano é indispensável para nos
apercebermos da radical recusa do egoísmo como fundamento da moral: “Age de tal
maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer
outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. Ora,
a inversão deste imperativo categórico, de que jamais deveríamos tomar a pessoa
como meio, mas somente como fim, é o que se observa nas novas patologias que
atingem os indivíduos e o laço social na pós-modernidade.
O que se passa com
A. Smith, contemporâneo de Kant? Aqui temos que confessar ao leitor que
havíamos feito uma leitura parcial, e por isso equivocada, da fundamentação da
moral segundo Smith. Baseados em Teoria dos sentimentos morais , encontramos
uma fundamentação não transcendente da moral, ou seja, baseada em experiências,
a partir do sentimento de simpatia oriundo da capacidade de acompanhar
afetivamente aos outros. Tratar-se-ia então da capacidade de se transportar na
imaginação para o lugar e a situação dos outros, a começar pelos mais próximos
afetivamente, e assim procurar ver e sentir as coisas como supomos que os
outros estão vendo e sentindo, na posição do espectador imparcial. Contudo, a
radicalidade da afirmação do princípio do egoísmo como fundamento da vida em
comum e da moral aparece translúcida em sua obra capital : “Não é a bondade do
açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas
da consideração em que eles têm o seu próprio interesse. Apelamos não para a
sua humanidade, mas para o seu egoísmo, e nunca lhes falamos das nossas
necessidades, mas das vantagens deles” (p. 94) .
Nova economia
psíquica
O princípio da
defesa dos próprios interesses, ou seja, da prioridade do egoísmo, é o
fundamento não transcedente da vida em comum e da relação com o semelhante
propugnado por Smith ao longo de sua obra capital. As consequências da renúncia
do princípio do altruísmo em prol do princípio do egoísmo são pesadas, visto
que transforma todas as relações com o outro em relações comerciais e devemos
então agir como comerciantes, sempre em busca do lucro, colocando um preço em
tudo. O imperativo categórico kantiano impede que a sociedade seja reduzida ao
comércio, visto que postula uma categoria de bens que não pode ser objeto de
posse ou alienado (a justiça, a vida, o amor, a amizade, o desejo, enfim,
aquilo que constitui a dignidade), diferente dos bens que têm um preço e por
isso podem ser comercializados.
Desse modo, para
reconstruir a história do surgimento da nova economia psíquica de nossos dias,
correlata da economia neoliberal vigente, seria indispensável aprofundar o
entendimento do surgimento da prevalência do princípio do egoísmo em detrimento
da consistência do outro no modelo de autonomia formulado no iluminismo inglês
do século XVIII.
IHU On-Line – Nesse
sentido, como percebe a relação entre a ética pós-moderna e o individualismo?
Mario Fleig – Como indicamos acima, os ideais e
imperativos sociais prevalentes na pós-modernidade, na forma do que denominamos
de delírio de autonomia, propugnam um individualismo sem outrem, ou seja, um
individualismo egoísta.
IHU On-Line – As
ações autônomas no sentido kantiano não seriam demasiado otimistas, devendo ser
compreendidas dentro do contexto da Prússia do século XVIII, quando
surgiram?
Mario Fleig – Sim, o sujeito autônomo
kantiano é um ideal ainda não alcançado, e mais do que restrito ao contexto em
que Kant viveu, eu o entendo como uma releitura dos ideais de relação consigo e
com o outro em vista da realização da felicidade propugnados pelas grandes
narrativas ocidentais.
IHU On-Line – O que
é ser esclarecido e autônomo para Kant? Qual é a relação entre ambos?
Mario Fleig – Para Kant, o esclarecimento é a
passagem da minoridade para a maioridade, ou seja, da heteronomia para a
autonomia, como processo de emancipação intelectual que se dá pela superação da
ignorância e abandono da preguiça de pensar por conta própria: sapere aude é o
lema latino referido por Kant em O que é Esclarecimento? Ousa saber, e para
isso se requer a liberdade, pressuposto então da autonomia. Se não houver
liberdade e autonomia não há como o homem se efetivar com um ser moral.
Entende-se então por que o imperativo moral deve ser postulado de modo
autônomo, quer dizer, não ser condicionado pela vontade de outros, mas ser puro
(ou seja, livre, independente, autônomo e incondicionado). Desse modo, o
conceito kantiano de autonomia está intimamente vinculado à capacidade de autodeterminação
do sujeito racional como sujeito de si mesmo e de seus atos, excluindo as
inclinações determinadas por interesses externos à sua vontade enquanto pensar
e agir de modo autônomo. E é apenas por meio do esclarecimento que o ser humano
pode alcançar a plenitude da humanidade, tornando-se emancipado. Em decorrência
disso, alcança-se a dignidade em razão da qual o ser humano nunca deve ser
utilizado como um meio, mas deve ser sempre o seu próprio fim.
IHU On-Line – Em
entrevista concedida à nossa revista em 2007, o senhor afirmou que “o delírio
de autonomia poderia ser descrito como a dissolução dos fundamentos da moral” .
Essa é uma tendência de nossa época em termos globais?
Mario Fleig – Se entendemos a moral como a busca de
princípio que orientem as relações entre os seres humanos e a relação destes
com o universo de modo a se alcançar a realização do que somos, parece que o
delírio de autonomia, como o caracterizamos, tem produzido efeitos sociais e
subjetivos inquietantes, corroendo de modo radical os fundamentos da vida em
comum. O imperativo de gozar sem limite e a qualquer preço, orientado pela
abolição da dimensão do impossível, livre de qualquer restrição, tende a
multiplicar os efeitos deletérios da pulsão de morte. Não se trata de fazermos
uma descrição apocalíptica de nossos tempos, mas refletirmos sobre os
determinantes, por exemplo, da violência cotidiana como corrosão do convívio na
polis, quando o outro já não conta como uma das referências que orientariam a
vontade na busca do que seria bom para o próprio sujeito em seu convívio com o
semelhante.
IHU On-Line – Como
podemos compreender o delírio de autonomia ao qual o senhor se refere face ao
desaparecimento da consistência da alteridade, do grande Outro? O que isso
representa em termos das relações interpessoais?
Mario Fleig – O desaparecimento da
consistência da alteridade, que nas grandes tradições figurava nas divindades,
desde o Deus do monoteísmo até os deuses das florestas de nossos aborígenes, é
o correlato da prevalência do princípio do individualismo egoísta subjacente à
economia globalizada hodierna. Lacan nos indica que as leis que poderiam
reger e regular a vida em comum não seriam diferentes das leis que utilizamos
para falar de modo apropriado com o outro. Se nos submetermos a falar de modo
adequado com nosso semelhante estaríamos no mesmo caminho propugnado pelas
grandes tradições morais que encontramos na história. Aceitar nos submetermos
às leis da linguagem cotidiana é reconhecer que há um Outro que se põe em jogo quando
conversamos de modo próprio com nosso semelhante. Este Outro se faz presente no
reconhecimento da dívida que temos com nossos ancestrais próximos e distantes,
assim como pelo reconhecimento da diferença que nosso semelhante nos impõe. Não
é por nada que o princípio do egoísmo subjacente ao sistema sadeano combate em
primeiro lugar a diferença em sua forma mais radical: a diferença posta pelo
feminino.
O desaparecimento
da consistência da alteridade se manifesta na dessubjetivação progressiva das
relações, no anonimato, na impessoalização, na instrumentalização de si e do
outro, na anulação da diferença sexual e no voto de morte ao feminino, enfim, a
promessa de um mundo sem limites e sem impossível. Estes são traços que já
haviam sido identificados por Freud e Lacan no que denominam de perversão .
Leia mais...
>> Mario
Fleig já concedeu outras entrevistas à IHU On-Line. Confira.
• O desaparecimento
da família tradicional. Entrevista publicada na IHU On-Line 359, de 02-05-2011,
disponível em http://bit.ly/im40MS
• O pedófilo:
vítima de seu desejo e perversão. Entrevista publicada na IHU On-Line 326, de
26-04-2010, disponível em http://bit.ly/eadHUI
• O direito ao gozo
e à violência. Entrevista publicada na IHU On-Line 298, de 22-06-2009, disponível
em http://migre.me/4mMU6
• Não cedas do teu
desejo: é preciso sustentarmos o que falamos com voz própria. Entrevista
publicada na IHU On-Line 295, de 01-06-2009, disponível em
http://bit.ly/aQxiu4
• “Querer fazer o
mal parece algo inerente à condição humana”. Entrevista publicada na IHU
On-Line 265, de 21-07-2008, disponível em http://bit.ly/j9ZqeL
• O delírio de
autonomia e a dissolução dos fundamentos da moral. Entrevista publicada na IHU
On-Line 220, de 21-05-2007, disponível em http://bit.ly/mTwkK1
• O declínio da
responsabilidade. Entrevista publicada na IHU On-Line 185, de 19-06-2006,
disponível em http://bit.ly/bp5jvr
• Freud e a
descoberta do mal-estar do sujeito na civilização. Entrevista publicada na IHU
On-Line 179, de 08-05-2006, disponível em http://bit.ly/kpHGA8
• As modificações
da estrutura familiar clássica não significam o fim da família. Entrevista
publicada na IHU On-Line 150, de 08-08-2005, disponível em http://bit.ly/iYmk6n
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