Artigos, ensaios, pesquisas de interesse geral - política, cultura, sociedade, economia, filosofia, epistemologia - que merecem registro
sexta-feira, 14 de março de 2025
O QUE TEM A VER O CONSUMIDOR BRASILEIRO DE OVOS COM A DOENÇA AVIÁRIA NOS EUA?
A geopolítica da globalização neoliberal rompe indiscriminadamente fronteiras, ao desconsiderar a paridade no poder de compra, singular para cada Estado Nacional. Assim, o preço dos ovos no Brasil aumenta para o consumidor brasileiro como resultado do impacto da crise de oferta no mercado de ovos nos EUA por causa da febre aviária, ao dizimar os planteis estadunidenses. O pressuposto ideológico é que o mercado mundial de PRODUTOS, expressos em dólar, é de vasos comunicantes, à diferença não reconhecida que a RENDA DOS CONSUMIDORES não o é. À uniformização universal dos preços, os praticantes do LIVRE mercado e os seus manuais da Economia neoclássica chamam de racionalidade, sob os critérios de eficiência, eficácia e produtividade, conceitos praticados por conveniência ideológica fora de contexto.
É estapafúrdio e indignante que uma tal agressão ao mais elementar bom senso continue a prevalecer nas escolas superiores de Economia e nas avaliações dos mercadistas há dois SÉCULOS no mundo ocidental. E la nave và.
Indaga-se: Como assegurar uma política de SEGURANÇA ALIMIMENTAR, sob tais pressupostos? Impossível, pois uma política de segurança alimentar implica a adoção de mecanismos de ESTABILIADADE dos preços, que a política governamental não contempla. A proposta de controle tarifário sobre as exportações agrícolas do agronegócio, de modo a reter parte do sobrelucro, no caso da exportação de ovos, por exemplo, induziria ao aumento de sua disponibilidade no mercado interno e "pour cause", ao recuo de seus preços, motivo por que deixaria de fazer sentido mantê-los vinculados à sua paridade dólar no mercado internacional. É o que deveria ocorrer também no caso do preço da gasolina e do diesel, que continua reajustado na paridade dólar, outro contrassenso, ou disparate, pois, associado ao preço do combustível fóssil importado, paga-se o preço do frete, do seguro e de outros custos aduaneiros e de internalização, sem que tenhamos de importá-lo: Há petróleo extraído e refinado no País em quantidade tal que o seu excedente tem sido exportado.
Em conclusão: o governo é responsável em parte pelo aumento da inflação, que busca combater, mediante a contenção de gastos em áreas prioritárias num país em desenvolvimento. Estão aí algumas considerações que submeto, modestamente, ao Ministério da Fazenda com a sua política assentada na fé do LIVRE MERCADO. Nivaldo Manzano
MEU MACHADO DE ASSIS
MEU MACHADO DE ASSIS
Há muitas portas de acesso ao pensamento e à obra de um mesmo autor. Na leitura de Machado de Assis, atenho-me a uma delas, sem desconsideração para com as demais: ao filósofo do diálogo, ou da intersubjetividade. A questão do valor fundante do diálogo na reflexão autônoma no Ocidente emerge com Platão, com os seus Diálogos, mas a enxergo, para além do plano especulativo, no livro "A política" de Aristóteles, no qual o filósofo assume o diálogo como postulado fundante da democracia, na sua referência ética, que é indissociável da política, por ser humana. Essa é a mais estigmática das lições que colho na leitura de Machado de Assis(MA).
A ideia é retomada como inovadora no ambiente intelectual de sua época na Europa. E um leitor atento de MA dá-se conta de que ele não o faz movido somente pelo prazer da dissimulação buliçosa de suas caracterizações. Ele o faz deliberadamente como proposta de autor, porque lhe apraz praticar filosofia nas entrelinhas de sua ficção. Confirmam-no os seus biógrafos, ao revelar que ele frequentava com assiduidade também os filósofos: Já nos últimos anos de vida ativa, dedicou-se ao aprendizado do idioma alemão, para ler Nietzsche no original.
O diálogo, ou a intersubjetividade, como forma de representação da realidade, ou como modelo de reflexão, que caracteriza a espécie humana, volta a ser defendido por um contemporâneo de MA, o sociólgo francês Gabriel Tarde (1843 - 1904), pioneiro no estudo das redes sociais, em seu livro “A opinião e as massas” ("L'opinion et la foule"), publicado em 1900, oito ano antes de MA falecer. Gabriel Tarde pelejava com Émile Durkheim, considerado como o pai da sociologia francesa, e o quiproquó vinha da diferença entre um e outro quanto ao estatuto conferido ao sujeito, ao papel da subjetividade na ação humana, ou comportamento, em sociedade. Para Gabriel Tarde, o sujeito é o protagonista, enquanto para Durkheim o sujeito é o objeto da ação social -, do FATO SOCIAL, abstrato, em seus termos -, no sentido da física de Newton: um produto da força impositiva da coesão social, assim como são os hábitos, por exemplo. Para Durkheim, seria o fato social que move o sujeito, como um êmbolo. Essa ideia mecanicista, linear, causalista, dos antecedentes e consequentes, de extração linguística da lógica e matematica, predominava em todas as ciências, físicas e humanas, de então, desde Descartes (1596 - 1650).
É dizer que, ao questionar a legitimidade da objetividade desacompanhada da subjetividade como critério de cientificidade do fato social, Gabriel Tarde, sem dizê-lo, evoca no plano do comportamento (Pragmática, em Aristóteles) a noção de contextualidade. Assim, por exemplo, na ausência do sujeito interessado não é possível saber o significado do símbolo de igualdade (igual a), já que não é unívoco. Na aritmética significa identidade; na geometria, proporcionalidade e na álgebra, equivalência. É necessária a presença do sujeito para reconhecer-lhe o CONTEXTO, a partir de cuja referência o símbolo do igual será operado.
Assim ocorre na ficção de MA, que assumo como o filósofo da contextualidade. As palavras, que se nos apresentam como espelho da realidade, na verdade elas se realizam e se frustram, ao mesmmo tempo, nesse intento, pois a realidade, esquiva, não se entrega nem deixa de se entregar. O seu significado, quando não se trata de lógica ou de matemática, que são linguagens formais, é necessariamente ambíguo: depende, ao mesmo tempo, de quem as enuncia e de quem as ouve. Tem-se, assim, não uma monossemia, mas uma polissemia, que nos lança diante de um caleidoscópio de significados, um mundo de infinitas dobras, que remetem umas às outras, de modo exponencial. É como se as palavras, uma vez proferidas e ouvidas, ganhassem vida própria no ato de quem as acolhe como sentido da ação. A ambiguidade que disso resulta embebe o diálogo e a ação dramática de que ele se constitui, a trama da história vivida por seus os interlocutores.
Dito de outro modo: as coisas, os fatos, o dito e o ouvido, o gesto na obra de MA, por opção deliberada do autor, não têm significado determinado, intrinseco, único, objetivo, ao contrário do que professa o credo das ontologias, de verdades absolutas. As palavras em MA trazem consigo, num altiplano de gênio, a um só tempo a expressão inteira dos interlocutores, nas suas dimensões ética, estética, sentimental, intuitiva e racional, distintas umas das outras, porém, inseparáveis. Longe de serem inocentes, neutras, planas, transparentes, como sugere o dicionário, as palavras já vêm com viés ideológico no seu enunciado, comprometem e engajam.
Daí o reconhecimento de que o diálogo é de caráter conflitivo por definição, FELIZMENTE. São duas visões de mundo que se enriquecem no seu entrechoque intransponível, ao vincar a diferença e não o consenso, que é uniforme, homogêneo, racional, redutor, esterilizante, que nada acrescenta, ao contrário, à benfazeja diversidade dos pontos de vista. Ninguém vai ao encontro de outrem à custa de renunciar ao seu próprio interesse, mas para afirmá-lo ainda mais, e é assim, na diversidade dos pleitos que ambos reforçam o interesse comum na defesa do interesse individual. Assume-se como postulado que, embora necessarimente diversos, os interesses conflitivos são ao mesmo tempo solidários sob a referência da comum humanidade. Admita-se que deva ser assim, pois, outramente, ter-se-ia como modelo da existência o acoplamento mecânico entre a chave e a fechadura, como pretendido na atualidade pelo neoliberalismo, do pensamento único, o "mercado".
Uma metáfora emblemática de Machado de Assis sobre o caráter fundante do diálogo como expressão adequada da realidade, humana e cósmica, eu a reconheço presente, de modo enfático, na opereta de MA sobre a Criação a quatro mãos, uma Criação que brota do diálogo, e não do monólogo divino que inspira o autor do Gênesis. Na opereta, a criação do mundo não assenta sobre um fundamento ONTOLÓGICO, que é indissociável da cultura monoteísta, da verdade única. Não há Deus, isoladamente nem Diabo, isoladamente, mas sim Deus e Diabo juntos, uma solução machadiana que oferece a vantagem de eliminar a disputa recorrente e aborrecida entre ambos pela primazia da Obra. Não que MA pretenda com isso eliminar o CONFLITO. Ao contrário, o que ele faz é reintroduzir o conflito (inclusivo) como irremovível e intrínseco à existência social (Não há outra), assim como ocorre nos desportos. Na opereta, MA os vê entretidos num jogo algébrico, a quatro mãos, um jogo que consiste em criar regras de criação de regras de criação do mundo. Um põe e outro dispõe, alternando-se as posições sobre um tabuleiro que nunca é o mesmo. Livram-se, dessa maneira, do fastio de uma eternidade sem surpresas: incerteza necessariamente, prazer e risco ao mesmo tempo.
A experiência de meu Machado de Assis tem-me servido para:
- Reconhecer que nada é DEFINITIVO; tudo é REVOGÁVEL;
- Reconhecer que "A norma para o ser humano é a capacidade de mudar de norma" (Georges Canguilhem): e
- Reconhecer que "Não há mal que a razão não possa defender racionalmente. A razão, assim como o burro atrelado aos varais, puxa todo tipo de carga que se lhe ponha em cima. Com a mesma eficiência e pelo caminho mais curto, ela nos leva tanto para o céu quanto para o inferno. Quem decide não é ela e sim o carroceiro" (citado de memória, de um apólogo de Machado de Assis). Nivaldo Manzano
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