O AGRO É OGRO
ARTIGO NO LE MONDE DIPLOMATIQUE
O agronegócio, antítese do desenvolvimento nacional
Acervo Online | Brasil
por Raimundo Silva
10 de maio de 2022
Esse modo de produção denominado de agronegócio desde os anos 1970 passou de uma dinâmica interna (industrialização promovendo a internacionalização de produtos agrícolas e agroindustriais, com repartição de atividades entre multinacionais, empresas estatais e empreendedores nacionais) para uma dinâmica externa, coordenada pelo capital global, de reprimarização e desindustrialização, por meio de processos de: (i) reorganização e distribuição dos complexos agroindustriais, no caso de grãos e suprimento de insumos, as cadeias produtivas globais foram dispersas alhures na economia mundo e; (ii) processos de fusões e aquisições (centralização de ativos) no caso das manufaturas intensivas de bens naturais (açúcar, celulose, carnes, laranja e café) alicerçados pelo capital financeiro global.
Nessa transição os complexos agroindustriais se estabeleceram muito além da fronteira do Estado nacional. O país se transformou em exportador e importador de commodities.
A trajetória de acumulação recente se firma no crescimento econômico liderado pelas exportações de commodities agrícolas – redes verticais de comércio externo, que no caso de grãos de ração (soja e milho), foram capitaneadas por empresas transnacionais, por exemplo, as empresas conhecidas como grupo ABCD: Archer Daniels Midland (ADM), Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company. Juntas elas são conhecidas como ABCD, sendo que as três primeiras são norte-americanas e a Louis Dreyfus holandesa. Em 2019, elas foram as principais exportadores de grãos de ração no país, e a Cargill liderou o comércio externo de soja e milho com embarques somados de 17 milhões de toneladas, seguida pela Bunge que acumulou quase 15 milhões. Essas empresas oligopolizadas centralizam o comércio externo agrícola (controlam de 60% a 70% da produção nacional), com capacidade de estipular os preços de produção e manipular a oferta (quantidade e preços) numa dimensão transnacional, como também estão interessadas nas flutuações rentistas das commodities, inclusive com estrutura financeira correspondente.
Na manufatura de bens intensivos de recursos naturais (agroindústrias de açúcar/álcool, papel/celulose, suco e carne, entre outras), houve uma transformação do perfil de gestão, tanto com a presença de capitais estrangeiros no controle da cadeia de valor, como com a internacionalização de ativos nacionais, por meio de fusões e aquisições comandadas por bancos e outras instituições financeiras. No caso da agroindústria canavieira, por exemplo, houve entrada de capital externo – a Raízen surgiu como uma joint venture entre a Cosan e a Shell do Brasil. Noutra perspectiva, o setor do processamento da carne se internalizou: a Brasil Foods (BRF) expandiu-se para a Argentina, no Oriente Médio e na Tailândia; a JBS comprou a Swift, a Pilgrim’s Pride e parte da Smithfield Foods, as três maiores produtoras de carne dos Estados Unidos; e a Marfrig comprou a também norte-americana National Beef Packing.
A recente dinâmica do agronegócio também se assevera na dependência externa de insumos agrícolas (fertilizantes, agrotóxicos, máquinas e equipamentos, e sementes) que, por sua vez, são commodities produzidas em diversas regiões do mundo e controladas por poucos grupos internacionais.
O agrotóxico, nos últimos anos, advém de empresas internacionais, como Syngenta, Bayer, Basf e DuPont. Essas empresas adotaram como estratégia de importações o conceito matriz-filial, realizando somente a formulação no território nacional. A participação de empresas nacionais resume-se em produtos formulados (sem ocorrência de reações químicas, sendo submissas de importação).
Na mesma toada, cerca de 80% dos fertilizantes provêm de importações. O mercado brasileiro está hegemonizado pelas empresas Yara (líder mundial de fornecimento de fertilizantes minerais, do grupo industrial norueguês Norsk Hydro) e Mosaic (maior produtora mundial de fosfatos, de capital norte-americano).
No caso das sementes, com a recente onda de fusões e aquisições, o grupo das chamadas “big six” (Monsanto, Bayer, Basf, Syngenta, Dow e DuPont) ficou reduzido a quatro: Bayer, Syngenta (ChemChina), Basf e Corteva (Dow/DuPont). Esses conglomerados controlam cerca de 60% do mercado global de semente, pois administram a comercialização de quase todas as plantas geneticamente modificadas e a maioria das patentes e direitos de propriedade intelectual relacionados a plantas.
O setor de máquinas e implementos agrícolas no Brasil apresenta duas configurações diferentes. O primeiro, com maior complexidade tecnológica e investimentos em P&D (como tratores e colheitadeiras automotrizes), é altamente concentrado: três companhias globais responderam por mais de 90% das vendas do mercado brasileiro (a corporação estadunidense Deere & Company, líder do mercado e detentora da marca John Deere; a CNH Industrial, pertencente ao grupo Fiat e que detém entre suas marcas a Case, New Holland, Steyr, Magirus e Iveco; e a AGCO, dos Estados Unidos, com a marcas Gleaner, Deutz-Fahr, Fendt e Massey Ferguson). Já o setor de implementos agrícolas, com equipamentos de menor complexidade tecnológica, possui dezenas de empresas atuando no mercado brasileiro.
O controle das tecnologias de informação e comunicação (TICs), digitalização e automação, como internet das coisas (IoT), inteligência artificial, analytics e big data, além de dispositivos de sensoriamento e rastreabilidade utilizadas no circuito do agronegócio, está se concentrando nas mãos de poucas empresas, abrindo mercados para empresas agrotech, joint ventures e aquisições. A AGCO e a produtora de agrotóxicos DuPont anunciaram, por exemplo, que trabalhariam juntas na transmissão de informações digitais; a CNH e a Monsanto assinaram um contrato para desenvolver tecnologias de plantio de precisão; e a CNH introduziu tratores que se auto conduzem. A operadora Claro e a John Deere, umas das maiores empresas de máquinas agrícolas do mundo, fecharam uma parceria para levar conectividade a 15 milhões de hectares de lavouras no Brasil.
Relatório da Unctad (2021)[1] observa que a dependência de commodities é um empecilho para indústria. Tal fato, aqui no Brasil, está comprovado nos dados sobre o PIB do agronegócio calculados pelo Cepea (engloba a cadeia produtiva: insumos, produção agrícola, agroindústria e serviços): de 1996 para 2021 houve um declínio da participação do ramo industrial no PIB do agronegócio de 34,7% para 22,6%.
Por outro lado, a dependência de commodities intensifica o crescimento da produtividade do trabalho (graças, praticamente, à inovação e ao progresso técnico externo do setor de insumos), caracterizada por uma desestruturação do emprego no setor agrícola. Apesar do agronegócio ter gerado mais renda com aumento de produtividade houve uma redução significativa de postos de trabalho nas atividades conhecidas como “dentro da porteira”. Desconsiderando-se os anos de 2020 e 2021, por serem atípicos por causa da Covid, entre 2012 a 2019, 17,2% da população ocupada, cerca de 1,8 milhão de pessoas deixaram suas atividades. Como também 812 mil que trabalhavam por conta própria (maioria camponeses). E ainda, houve a precarização do trabalho, acentuada com a reforma trabalhista de 2017 – Lei 14467/2017. A informalidade, que vinha em queda até 2014, voltou a crescer desde então, com os trabalhadores do setor privado sem carteira passando de 18% do total do setor agropecuário no terceiro trimestre daquele ano para 23% em igual período de 2019.
Nessa transformação recente do agronegócio também ocorreu a sua subordinação à especulação financeira global. As commodities passaram a ser um ativo negociado nas bolsas de valores, como também a propriedade da terra. Sob auspícios da renda financerizada, o agronegócio, impulsionado por títulos, vem se configurando como a forma fictícia e abstrata de capital, ganhando característica virtual, o que o integra de forma plena ao circuito financeiro enquanto geração de riqueza. O agronegócio, submetido a essa lógica, transita para uma inserção de submissão aos desígnios do capital rentista da terra e da produção.
A velocidade das inovações técnicas, fusões, fragmentações das cadeias produtivas e concentrações de capital nesse recente agronegócio global excedeu a capacidade de regulação dos países. O fato é que os produtos agrícolas, como outras commodities, não estão subordinados a regras nacionais e nem por mecanismos de mercado, havendo um vazio regulatório em detrimento da autorregulação do setor.
A estratégia de transição para esse novo momento histórico do agronegócio ocorreu por dentro do aparelho de Estado, estimulando uma reorganização do setor rumo às vantagens comparativas naturais. A ação estatal orientou o capital agrário para a demanda global por meio de uma política primário-exportadora, com o uso do fundo público (crédito rural e benefícios e inações fiscais). Isso resultou na participação débil das empresas nacionais nos mercados internos e externos de produtos e insumos agrícolas (a burguesia agrária associou-se como parceira menor do capital externo); na especialização das atividades produtivas em função do mercado mundial, na subordinação da economia nacional à flutuação dos preços de commodities; na expansão do progresso técnico via importação; na acumulação de capital por meio da produção de bens intensivos em recursos naturais e não mais da inovação técnica. O Estado foi um plexo condensador da reprodução do capital e das exigibilidades do processo de acumulação, envolvendo uma complexa trama entre o Executivo, o Parlamento e o agronegócio, em conluio com a mídia.
Neste contexto, de associação público-privada, vem também se construindo garantias e requerimentos para manter a hegemonia da concentração fundiária tanto para remota captura das vantagens comparativas dos bens naturais e a renda da terra como para promover a integração do mercado de terras com os mercados financeiros globais (fundos de investimentos, por exemplo) e da propriedade da terra com os mercados de ações.
Do ponto de vista territorial, os frutos do agronegócio associado ao grande capital global não levam ao desenvolvimento rural, quer dizer, ao acesso da população aos benefícios dos incrementos na produtividade do trabalho, como propunha Celso Furtado;[2] pelo contrário, servem para concentrar a terra e a renda, espoliar os recursos naturais, acentuar o desemprego e comprometer a reprodução de outras formas de produção (alimentos básicos, arroz e feijão, por exemplo).
O agronegócio emprega pouco e tem uma capacidade muito restrita de difundir impacto sobre as outras áreas da economia porque eles importam muito, como disse o professor Luiz Gonzaga Belluzzo.
Questões que reacendem os traços estruturais da questão agrária nacional.
Isto posto, para se retomar o cenário de desenvolvimento deve-se ter em conta o que o Keynes recomendou em Bretton Woods: commody control,[3] e o que Celso Furtado sugeriu: preservar a identidade cultural nacional no desenvolvimento, pois os desafios atuais de superação do subdesenvolvimento e da dependência do agronegócio são de caráter agrário, econômico, social e político.
Raimundo Silva, engenheiro agrônomo e doutor em desenvolvimento territorial, é membro da Cátedra Celso Furtado/FESPSP, diretor da Associação da Reforma Agrária (Abra) e ativista das questões agrárias ambientais e de soberania alimentar.