domingo, 2 de outubro de 2022

cidadania resignificação Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais

Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais Maria da Glória GohnSOBRE O AUTOR Resumos Text Datas de Publicação Histórico Resumos A partir da apresentação de alguns conceitos que tem sido utilizados no debate contemporâneo sobre a participação da sociedade civil em esferas públicas, este texto objetiva analisar as formas organizacionais, as possibilidades e as tendências dessa participação, na relação sociedade/estado, destacando o espaço dos conselhos. Como não é possível entender o papel dos diferentes tipos de conselhos que existem no Brasil na atualidade, se não entendermos a reforma do Estado, o texto aborda também as Organizações Sociais (OSs) e as - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Uma das principais conclusões apresentadas na análise do protagonismo civil nas políticas sociais é: a participação da sociedade civil na esfera pública - via conselhos e outras formas institucionalizadas - não é para substituir o Estado, mas para lutar para que este cumpra seu dever: propiciar educação, saúde e demais serviços sociais com qualidade, e para todos. Protagonismo civil; Participação da sociedade civil; Políticas públicas sociais; Movimentos sociais; Conselhos de Gestão; Participação na esfera pública This article aims to analyze organizational forms, possibilities and tendencies of community participation, in the relation society/government, emphasizing the role of Councils. Since it is impossible to understand the different types of Councils that exist nowadays in Brazil, the text discusses the Social Organizations (OSs) and the Civil Society´s Organizations of Public Interest (OSCIPs). One of the main conclusions presented is that the councils and other forms of community participations do not exist to substitute government, but to fight for community´s rights: education, health and services of good quality. Community participation; public social policies; social movements; councils Empoderamento e participação da comunidade em políticas sociais Empowerment and community participation in social policies Maria da Glória Gohn Profa Dra UNINOVE,Profa Titular UNICAMP e Pesquisadora CNPq E-mail: mgohn@uol.com.br RESUMO A partir da apresentação de alguns conceitos que tem sido utilizados no debate contemporâneo sobre a participação da sociedade civil em esferas públicas, este texto objetiva analisar as formas organizacionais, as possibilidades e as tendências dessa participação, na relação sociedade/estado, destacando o espaço dos conselhos. Como não é possível entender o papel dos diferentes tipos de conselhos que existem no Brasil na atualidade, se não entendermos a reforma do Estado, o texto aborda também as Organizações Sociais (OSs) e as - Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Uma das principais conclusões apresentadas na análise do protagonismo civil nas políticas sociais é: a participação da sociedade civil na esfera pública - via conselhos e outras formas institucionalizadas - não é para substituir o Estado, mas para lutar para que este cumpra seu dever: propiciar educação, saúde e demais serviços sociais com qualidade, e para todos. Palavras-chave: Protagonismo civil; Participação da sociedade civil; Políticas públicas sociais; Movimentos sociais; Conselhos de Gestão; Participação na esfera pública. ABSTRACT This article aims to analyze organizational forms, possibilities and tendencies of community participation, in the relation society/government, emphasizing the role of Councils. Since it is impossible to understand the different types of Councils that exist nowadays in Brazil, the text discusses the Social Organizations (OSs) and the Civil Society´s Organizations of Public Interest (OSCIPs). One of the main conclusions presented is that the councils and other forms of community participations do not exist to substitute government, but to fight for community´s rights: education, health and services of good quality. Key Words: Community participation; public social policies; social movements; councils. Localizando os Conceitos Objetivando fundamentar o universo referencial teórico da problemática em tela - a participação da sociedade civil em esferas públicas -, pontuaremos algumas considerações sobre alguns conceitos (ou categorias, já que alguns deles ainda não adquiriram o status teórico de um conceito). Eles são: sociedade civil e esfera pública, empoderamento, capital social e participação. O conceito de sociedade civil já passou por várias concepções e significados, no Brasil e na América Latina. Ele vem sofrendo reformulações que seguem, em linhas gerais, momentos da conjuntura política nacional e a trajetória das lutas políticas e sociais do país. De uma forma geral, ele surge no período denominado trajetória das transições democráticas. O final dos anos 1970 destaca-se nesta trajetória porque foi quando o termo foi definitivamente introduzido no vocabulário político corrente e passou a ser objeto de elaboração teórica. Na linguagem política corrente, ele se tornou sinônimo de participação e organização da população civil do país na luta contra o regime militar. Este fato significou a construção de um outro referencial para o imaginário político nacional, fundado na crença de que a sociedade civil deveria se mobilizar e se organizar para alterar o status quo no plano estatal, dominado pelos militares e por um regime não democrático com políticas públicas que privilegiavam o grande capital, considerando apenas as demandas de parcelas das camadas médias e altas da população que alavancavam o processo de acumulação das emergentes indústrias filiais das empresas multinacionais. Este cenário estimulou o surgimento de inúmeras práticas coletivas no interior da sociedade civil, voltadas para a reivindicação de bens, serviços e direitos sociopolíticos, negados pelo regime político vigente. Um dos principais eixos articuladores da sociedade civil, naquele período, foi dado pela noção de autonomia: tratava-se de organizar-se independentemente do estado (na maioria das vezes de costas para o mesmo). Na realidade, a autonomia também era um discurso estratégico para evitar alianças consideradas espúrias, para que o perfil de certos grupos da sociedade civil fosse configurado segundo alguns princípios, para que não houvesse reprodução de práticas autoritárias estatais e nem práticas consideradas como superadas, como as baseadas no centralismo democrático das correntes de esquerda mais radicais ou mais tradicionais.O princípio da auto-determinação, componente fundamental num processo de autonomia, era exercitado de forma contraditória: frente à sociedade mais geral e ao estado, os movimentos, especialmente os populares, apresentavam-se como entes autônomos, com auto-determinação. Mas, internamente, havia diferenças entre as lideranças, suas bases e as assessorias externas que os apoiavam, de forma que a autonomia era relativa e dependente das assessorias (embora as assembléias fossem um elemento importante para construir ou referendar as agendas e pautas de luta). A democracia direta e participativa, exercitada de forma autônoma, nos locais de moradia, trabalho, estudo etc. era tida como o modelo ideal para a construção de uma contra hegemonia ao poder dominante. Participar das práticas de organização da sociedade civil significava um ato de desobediência civil e de resistência ao regime político predominante. Neste período, como bem analisou Sader (1988), novos atores entraram em cena, destacando-se os movimentos sociais populares urbanos reivindicatórios de bens e serviços públicos e por terra e moradia, assim como parcelas dos então chamados novos movimentos sociais, em luta pelo reconhecimento de direitos sociais e culturais modernos: raça, gênero, sexo, qualidade de vida, meio ambiente, segurança, direitos humanos etc. O pólo de identificação destes diferentes atores sociais era a reivindicação de mais liberdade e justiça social. O campo dos novos atores ampliou o leque dos sujeitos históricos em luta pois não se tratava mais de lutas concentradas nos sindicatos ou nos partidos políticos. Houve, portanto, uma ampliação e uma pluralização dos grupos organizados que redundaram na criação de movimentos, associações, instituições e Organizações não governamentais (ONGs). Com a saída dos militares do poder, a partir de 1985, começa a se alterar o significado atribuído à sociedade civil. Com a progressiva abertura de canais de participação e de representação política, a partir das pressões populares, promovida pelos novos governantes, os movimentos sociais (especialmente os populares) perderam paulatinamente a centralidade que tinham nos discursos sobre a participação da sociedade civil. Passa a haver uma fragmentação do que denominou-se como "sujeito social histórico", centrado nos setores populares, fruto de uma aliança movimento sindical + movimento popular de bairro (trabalhadores e moradores), até então tidos como relevantes para o processo de mudança e transformação social. Surge uma pluralidade de novos atores, decorrentes de novas formas de associativismos que emergem na cena política. A autonomia dos membros da sociedade civil deixa de ser um eixo estruturante fundamental para a construção de uma sociedade democrática porque, com a saída dos militares e o retorno dos processos eleitorais democráticos, a sociedade política, traduzida por parcelas do poder institucionalizado no Estado e seus aparelhos, passa a ser objeto de desejo das forças políticas organizadas. Novos e antigos atores sociais fixarão suas metas de lutas e conquistas na sociedade política, especialmente nas políticas públicas. Portanto, ao longo dos anos 1990 o campo da sociedade civil ampliou-se, na prática e nos discursos a seu respeito. O descentramento do sujeito e a emergência de uma pluralidade de atores conferiram a um outro conceito o de cidadania, a mesma relevância que tinha o conceito de autonomia nos anos 1980. A questão da cidadania - já estava posta nos anos 1980, tanto nas lutas pela redemocratização que levaram ao movimento Diretas Já, à Constituinte e à nova Carta Constitucional de 1988, destacando a questão dos direitos civis e políticos; como nas lutas populares por melhorias na qualidade de vida urbana.Nela a cidadania ganha novo contorno - como cidadania coletiva - e extrapola a demanda pelos direitos civis para incluir outros direitos, como os direitos sociais básicos, elementares, de primeira geração, já equacionados desde a Revolução Francesa, contidos nas demandas por casa, abrigo e comida; como direitos sociais modernos, relativos a condições de trabalho, educação, saúde etc. A cidadania nos anos 1990 foi incorporada nos discursos oficiais e ressignificada na direção próxima à idéia de participação civil, de exercício da civilidade, de responsabilidade social dos cidadãos como um todo, porque ela trata não apenas dos direitos, mas também de deveres, ela homogeneiza os atores. Estes deveres envolvem a tentativa de responsabilização dos cidadãos em arenas públicas, via parcerias nas políticas sociais governamentais. De um lado, isso é um ganho: significa o reconhecimento de novos atores em cena. De outro, é um risco, com o qual as lideranças progressistas da sociedade civil devem estar alerta: o de assumirem o papel que deve ser exercido pelo poder público estatal pois para tal ele é eleito, ou indicado, e os cidadãos pagam impostos. No novo cenário, a sociedade civil se amplia para entrelaçar-se com a sociedade política, colaborando para o novo caráter contraditório e fragmentado que o Estado passa a ter nos anos 1990. Desenvolve-se o novo espaço público, denominado público não estatal, onde irão situar-se conselhos, fóruns, redes e articulações entre a sociedade civil e representantes do poder público para a gestão de parcelas da coisa pública que dizem respeito ao atendimento das demandas sociais. Essas demandas passam a ser tratadas como parte da "Questão Social" do país. O "empoderamento" da comunidade, para que ela seja protagonista de sua própria história tem sido um termo que entrou para o jargão das políticas públicas e dos analistas, neste novo milênio. Trata-se de processos que tenham a capacidade de gerar processos de desenvolvimento auto-sustentável, com a mediação de agentes externos - os novos educadores sociais – atores fundamentais na organização e o desenvolvimento dos projetos. O novo processo tem ocorrido, predominantemente, sem articulações políticas mais amplas, principalmente com partidos políticos ou sindicatos. Cumpre destacar que o significado da categoria "empowerment" ou empoderamento como tem sido traduzida no Brasil, não tem um caráter universal. Tanto poderá estar referindo-se ao processo de mobilizações e práticas destinadas a promover e impulsionar grupos e comunidades - no sentido de seu crescimento, autonomia, melhora gradual e progressiva de suas vidas (material e como seres humanos dotados de uma visão crítica da realidade social); como poderá referir-se a ações destinadas a promover simplesmente a pura integração dos excluídos, carentes e demandatários de bens elementares à sobrevivência, serviços públicos, atenção pessoal etc., em sistemas precários, que não contribuem para organizá-los – porque os atendem individualmente, numa ciranda interminável de projetos de ações sociais assistenciais. Vários fatores determinam a diferenciação dos dois tipos de processos e seus resultados, mas o principal deles é a natureza, o caráter e o sentido do projeto social da (s) instituição (s) que promove (m) o processo de intervenção social. Estamos falando dos mediadores, das ONGse do terceiro setor de uma forma geral, das entidades que organizam os projetos, buscam os financiamentos, fazem as parcerias - com o governos, com outras entidades e organizações do terceiro setor da sociedade civil, com os organismos da cooperação internacional, e com os movimentos sociais. Esse último item é fundamental porque, dado os rumos que os movimentos tiveram nos anos 1980, principalmente os de caráter popular, e seus desdobramentos nos anos 1990 (alguns entrando em crise e desmobilizando-se, outros crescendo no rastro da crise por saber aproveitar as oportunidades políticas do momento), aliar-se ou fazer parceria com um movimento social, popular ou não, já é um indicador da natureza do projeto da entidade. Um outro indicador é o tipo de movimento (ou mais precisamente, qual movimento). Esse indicador pode ser captado segundo a trajetória histórica do movimento: origem, composição social, entidades articuladoras, redes sociais a que pertence, lutas que desenvolveu, projetos que elaborou, sucessos, perdas etc. Robert Putnam tornou-se autor referencial nos estudos sobre a sociedade civil, ao final do século XX e início deste. Ele desenvolveu vários conceitos que são básicos para entender a questão do empoderamento, tais como comunidades cívicas e capital social. O conceito de comunidades cívicas foi caracterizado como "cidadãos atuantes e imbuídos de espírito público, por relações políticas igualitárias, por uma estrutura social firmada na confiança e na colaboração" (Putnam, 1993, p. 31). Putnam diz que os hábitos democráticos derivam de relações horizontais, espírito de reciprocidade e cooperação. Entretanto, a sua grande contribuição foi articular estas formulações com um outro conceito, que ganhou nova significação nos anos 1990: o de "capital social". Para ele, o conceito de comunidade é impregnado de individualismo e o de capital social firmou-se nos círculos intelectuais americanos para substituí-lo. Para Putman, capital social deve ser analisado por analogia com as noções de capital físico e capital humano, ferramentas e treinamento para intensificar a produtividade individual o cerne da idéia da teoria do capital social é que as redes têm valor...[..] Enquanto capital físico refere-se a objetos físicos e capital humano refere-se a propriedades dos indivíduos, capital social refere-se à conexão entre indivíduos, redes sociais e às normas de reciprocidade e lealdade que nascem deles. Neste sentido, capital social é claramente relatado como algo chamado "virtude cívica". A diferença é que "capital social" chama atenção para o fato de que a virtude cívica é mais poderosa quando imersa numa densa rede de relações sociais recíprocas. Uma sociedade de muitos indivíduos virtuosos, mas isolados, não é necessariamente rica em capital social " (Putnam, 2000, p. 18-19). Neste cenário, de novos temas, problemas e conceitos (ou de ressignificações disso tudo), resulta que, com as mudanças da conjuntura política na economia globalizada, o perfil e caráter da formação dos agentes mediadores ou educadores (as) sociais se alterou. Ser apenas "ativista", ter um largo currículo de militância ou de compromisso com certas lutas sociais, não é mais suficiente para qualificá-lo para o desempenho de suas tarefas. O novo educador deve ter outras qualificações além da militância. Para poder conhecer seus educandos, suas culturas, linguagens, valores e expectativas na vida, ele deve conhecer também a comunidade onde atua, ser sensível aos seus problemas. Para isso ele tem que dominar alguns conhecimentos. O educador tem que se formar e ser informado, não apenas na relação dialógica, mas em cursos de formação específica, combinados com cursos de formação geral (por isto os programas de pós-graduação estão repletos de educadores advindos das ONGs. Para concluirmos nosso primeiro tópico, sobre os conceitos, seguem algumas considerações sobre a participação propriamente dita, a categoria mais abrangente. Os pressupostos gerais que sustentam nossas afirmações sobre a participação são: a. Uma sociedade democrática só é possível via o caminho da participação dos indivíduos e grupos sociais organizados. b. Não se muda a sociedade apenas com a participação no plano local, micro, mas é a partir do plano micro que se dá o processo de mudança e transformação na sociedade. c. É no plano local, especialmente num dado território, que se concentram as energias e forças sociais da comunidade, constituindo o poder local daquela região; no local onde ocorrem as experiências, ele é a fonte do verdadeiro capital social, aquele que nasce e se alimenta da solidariedade como valor humano. O local gera capital social quando gera autoconfiança nos indivíduos de uma localidade, para que superem suas dificuldades. Gera, junto com a solidariedade, coesão social, forças emancipatórias, fontes para mudanças e transformação social. d. É no território local que se localizam instituições importantes no cotidiano de vida da população, como as escolas, os postos de saúde etc. Mas o poder local de uma comunidade não existe a priori, tem que ser organizado, adensado em função de objetivos que respeitem as culturas e diversidades locais, que criem laços de pertencimento e identidade socio-cultural e política. Existem, também algumas premissas básicas relativas à participação da sociedade civil das quais se destaca a participação da sociedade civil na esfera pública - via conselhos e outras formas institucionalizadas - não é para substituir o Estado, mas para lutar para que este cumpra seu dever: propiciar educação, saúde e demais serviços sociais com QUALIDADE, e para todos. Essa participação deve ser ativa e considerar a experiência de cada cidadão que nela se insere e não tratá-los como corpos amorfos a serem enquadrados em estruturas prévias, num modelo pragmatista. Dewey já dizia: Só é experiência o que refletimos, o que aprendemos. O que se sedimenta na memória. É aquilo que vem alimentar o sonho, a utopia, a esperança, a ilusão. Rudá Ricci, em exposição em Belo Horizonte (2003) afirmou: " o mundo da experiência é o da memória coletiva, da solidariedade, aquela solidariedade que gera identidade". Neste mundo há ética, moral, valores. O pragmatismo não gera experiência porque refere-se a ações tópicas, imediatistas, sem profundidade, sem reflexão. O pragmatismo se alimenta de índices estatísticos e não da experiência, alimenta-se de táticas imediatistas e busca do lucro e não da experiência acumulada via processos participativos. O pragmatismo não leva à construção de alternativas porque ele é imobilizador, não apresenta saídas. A única saída é a espera: que façam por nós. Ele não preconiza a participação, congela- a. Em síntese, estamos vivendo um novo momento na trajetória do associativismo brasileiro. Não podemos perder de vista que essas novas redes associativistas também estão contribuindo para o empowerment (empoderamento) dos setores populares em nossa sociedade, ainda que de forma muito pontual por trabalharem com projetos focalizados e tratarem os demandatários excluídos como clientes de serviços sociais. Mas os problemas sociais são graves e necessitam respostas urgentes. Por isso o terceiro setor de perfil mais corporativo, estruturado com o apoio de grandes grupos ou companhias empresariais, atuando nas franjas da nova economia social, segundo as regras da economia de mercado, tende a predominar sobre os movimentos e as ONGsque trabalham de forma processual, com ênfase na capacidade da sociedade se organizar e defender seus interesses, na construção de novos atores sociais que representam distintos interesses e que atuam em defesa da cidadania. Um dos problemas dessas instituições com perfil democrático e participativo é que seu impacto na realidade é lento. É preciso dinamizá-las. Disso tudo resulta um cenário contraditório, no qual convivem entidades que buscam a mera integração dos excluídos por meio da participação comunitária em políticas sociais exclusivamente compensatórias; com entidades, redes e fóruns sociais que buscam a transformação social por meio da mudança do modelo de desenvolvimento que impera no País, inspirados num novo modelo civilizatório no qual a cidadania, a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários e inegociáveis. A importância da participação da sociedade civil se faz neste contexto não apenas para ocupar espaços antes dominados por representantes de interesses econômicos, encravados no Estado e seus aparelhos. A importância se faz para democratizar a gestão da coisa pública, para inverter as prioridades das administrações no sentido de políticas que atendam não apenas as questões emergências, a partir do espólio de recursos miseráveis destinados às áreas sociais. O protagonismo de alguns atores da sociedade civil no que se refere às políticas públicas: Os Movimentos Sociais e as Organizações não governamentais a partir dos anos 1990 Creio que é interessante voltarmos um pouco na História e dividirmos a questão do protagonismo dos movimentos sociais no Brasil, a partir dos anos 1990, quando houve uma perda de sua visibilidade política no urbano, em três momentos: de 1990 a 1995; de 1995 a 2000; e do início deste novo século até os dias atuais. Vários analistas diagnosticaram que houve crise nos movimentos sociais populares urbanos, nos primeiros cinco anos dos anos 1990, no sentido que eles tiveram reduzida, naqueles anos, parte do poder de pressão direta que haviam conquistado nos anos 1980. Isso se deu em função de vários fatos novos, que explicam as alterações que ocorreram em suas dinâmicas cotidianas. É bom lembrar que o país saía de uma etapa de conquista de novos direitos constitucionais, a maioria dos quais precisava ser regulamentada. A volta das eleições diretas em todos os níveis governamentais também alterou a dinâmica das lutas sociais porque tratava-se agora de democratizar os espaços públicos estatais. A necessidade de atuação no plano institucional e governamental, aumentou, não apenas nos locais que passaram a ser administrados por governos populares, fundamentalmente, no plano federal, locus de debate e encaminhamento das conquistas obtidas na Carta de 88, para que viessem a ser implantadas. E todos nós sabemos que o governo federal, naquele mesmo período, passou a implementar ou a aprofundar, em todos os níveis, as políticas neoliberais. Para complicar mais ainda o cenário, essas políticas geraram desemprego, aumento da pobreza e da violência, urbana e rural. Houve até quem preconizasse, naqueles anos, que a fase das mobilizações nas ruas estava ultrapassada. Correspondia a uma etapa já superada, pois o regime militar havia caído e se tratava agora de atuar apenas no plano institucional. A educação popular e o trabalho de base junto a grupos populares também passou a receber críticas, seria algo também já superado, justificável apenas na década anterior, naquele momento a página teria que ser virada. Conseqüentemente, a visibilidade externa dos movimentos populares urbanos, na mídia e na sociedade como um todo, refluiu naquele período. Ao mesmo tempo, um outro sujeito sociopolítico, advindo dos movimentos sociais populares do campo, ganhava força: os sem-terra, especialmente o MST. Portanto, quando se falava de "crise dos movimentos sociais urbanos", nos primeiros anos da década de 1990, não significava o desaparecimento deles, e nem o seu enfraquecimento enquanto atores sociopolíticos relevantes, mas sim uma rearticulação, interna e externa, de seu papel na sociedade. As mudanças na conjuntura política levaram também à emergência, ou ao fortalecimento, de outros atores sociais relevantes na sociedade civil, tais como as ONGs e outras entidades do Terceiro Setor. Os movimentos populares passaram a ter outros aliados, e/ou competidores, na disputa entre os grupos organizados para demandar as necessidades sociais ao poder público, ou organizar trabalhos coletivos para resolver estas demandas entre os próprios necessitados. Para finalizar as observações sobre o cenário dos movimentos populares, nos primeiros anos da década de 1990, não podemos deixar de registrar que houve tensões entre as lideranças na condução dos movimentos urbanos, principalmente em relação a questões como: institucionalização, participação ou não em conselhos propostos ou criados pelo poder público, participação em programas governamentais, etc. O fato de várias lideranças ascenderem a cargos no poder público, ou ao parlamento, também teve alguma influência na nova dinâmica dos movimentos. Este novo cenário gerou a necessidade de articulações e a maioria dos movimentos, rurais ou urbanos, passaram a atuar em redes e a construir agendas anuais de congressos e manifestações públicas, como o Grito dos Excluídos, por exemplo. Em suma, no interior dos movimentos expressava-se uma crise maior, que não era deles mas refletia-se no seu cotidiano, que o país atravessava: o desmonte de políticas sociais pelas políticas neoliberais e sua substituição por outras políticas, em parceria com ONGse outras entidades do Terceiro Setor; a fragmentação da sociedade pela desorganização ou flexibilização do mercado de trabalho levando ao crescimento do setor informal; a defasagem na qualificação do mercado de trabalho face a era da tecnologia, comunicações e informação, levando a novas exigências no campo da educação, formal e não formal, face ao mundo globalizado etc. Portanto, a crise expressava os novos arranjos na busca de renovação, de adaptação à nova conjuntura e às mudanças no mundo do trabalho, de reposicionamento frente às novas políticas públicas. Na segunda metade dos anos 1990, novos ingredientes foram acrescentados, alterando ainda mais a dinâmica dos movimentos sociais em geral, e dos populares em particular. Começo citando as crises econômicas internas, em movimentos populares e ONGscidadãs, que os levaram a repensar seu planos, planejamentos de ação, estratégias e forma de atuar, elaboração de planejamentos estratégicos etc. Algumas entidades de apoio aos movimentos até fecharam suas portas, outras fizeram enxugamentos em termos de regiões de atuação, se fundiram com outras, ou ainda deslocaram suas áreas de atuação para setores específicos, dentro do leque dos programas sociais institucionalizados, governamentais ou de apoio advindo da cooperação internacional. Novas pautas foram introduzidas, tais como a de se trabalhar com os excluídos sobre questões de gênero, etnia, idades etc. As dificuldades de apoios para manter estruturas mínimas, ou a necessidade de re-orientar suas ações, em função de novas diretrizes e regras da cooperação internacional, não deixavam sobra de tempo para as lideranças se articularem com a população. Os novos tempos, de desemprego e aumento da violência urbana, assim como o crescimento de redes de poder paralelo nas regiões pobres, ligados ao narcotráfico de drogas e outros, também colaboraram, e muito, para desmotivar a população necessitada para participar de reuniões ou outras atividades dos movimentos. Registre-se ainda que a nova política de distribuição e gestão dos fundos públicos, em parceria com a sociedade organizada, focalizados não em áreas sociais (como moradia, saúde, educação etc.), mas em projetos pontualizados, como crianças, jovens, mulheres etc., contribuiu para desorganizar as antigas formas dos movimentos fazerem suas demandas e reivindicações. A palavra de ordem destes projetos e programas passaram a ser: ser propositivo e não apenas reivindicativo, ser ativo e não apenas um passivo reivindicante. Muitos movimentos se transformaram em ONGsou se incorporaram às ONGsque já os apoiavam. A atuação por projetos exige resultados e tem prazos. Criou-se uma nova gramática na qual mobilizar deixou de ser para o desenvolvimento de uma consciência crítica ou para protestar nas ruas. Mobilizar passou a ser sinônimo de arregimentar e organizar a população para participar de programas e projetos sociais, a maioria dos quais já vinha totalmente pronta e atendia a pequenas parcelas da população. O militante foi se transformando no ativista organizador das clientelas usuárias dos serviços sociais. De uma certa forma, programas como o Saúde da Família (PSF) podem ser utilizados como exemplos deste novo perfil de atuação da sociedade civil organizada via a mediação das ONGse outras instituições. Em 2003, o PSF mantinha 15 mil equipes em todo o Brasil sendo 690 só na cidade de São Paulo, onde havia 3 544 agentes comunitários. Exige-se deste novo ativista uma atuação integrada a uma equipe médica e, ao mesmo tempo, um trabalho prévio de cadastramento da população e suas necessidades locais. Para o agente, trata-se de um espaço de trabalho e renda, ainda que por certo período, dependendo de seu contrato com uma ONGsque o selecionou. A maioria destes agentes não tem experiência associativa anterior e nem cursos de formação ou de capacitação sobre como poderá ser uma participação cidadã. Quanto ao serviço público prestado à população, via essa nova modalidade de prestação de serviços a população, observa-se um movimento contraditório: de um lado, um avanço pelo fato de se ter contatos diretos com agentes comunitários que conhecem a realidade dos problemas locais, de se ter a possibilidade de um "atendimento personalizado" De outro lado, esse atendimento se inscreve num cenário de escassez de recursos humanos e material, e o que deveria ser um acréscimo, de fato, é uma subtração porque estes agentes têm que realizar outras tarefas nos postos de atendimento - para suprir pessoal que deveria estar trabalhando como funcionários regulares. Faltam aos agentes comunitários formação e informação e a socialização das informações,em geral, é muito difícil. Na formação não bastam aspectos biológicos, relativos às doenças, deve-se ter uma prática que os capacite a fazer uma leitura mínima do mundo, da vida e seus problemas, do entendimento de seu papel no processo. Para agir segundo um pretenso modelo que criou os agentes comunitários, eles deveriam entender certos códigos de conduta e de linguagem, estar articulados em redes de formação. Eles não podem ser um agente comunitário "institucionalizado", que perdeu a identidade com seu território de origem, que não tem laços de pertencimento locais, que só se preocupa com a rotina do trabalho segundo seu vínculo empregatício. Crevelim (2004) faz um trabalho minucioso a este respeito; ela concluiu que há limites no processo de participação dado não apenas pela falta de infra-estrutura, mas falta também uma cultura de participação, assim como falta vontade política para que a cidadania de fato seja exercida. A questão dos Conselhos Não é possível entender o papel dos diferentes tipos de conselhos que existem no Brasil, na atualidade, se não entendermos a reforma do Estado e, para isso, é preciso entender o que são as Organizações Sociais (OSs) e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). As Organizações Sociais foram criadas por lei em maio de 1998 para reestruturarem o aparelho do Estado em todos os níveis. No nível Federal, parcelas do próprio Estado poderão deixar de fazer parte do aparelho estatal e se tornar prestadoras de serviços públicos, ou parte das atividades do Estado passarão a fazer parcerias com entidades do chamado Terceiro Setor (leia-se: ONGs organizações e associações comunitárias ou filantrópicas, e outras entidades sem fins lucrativos). Não é toda e qualquer ONGs que pode ser considerada como parte do Terceiro Setor, mas sim aquelas com o perfil do novo associativismo civil dos anos 1990. Um perfil diferente das antigas ONGs dos anos 1980, que tinham fortes características reivindicativas, participativas e militantes. O novo perfil desenha um tipo de entidade mais voltada para a prestação de serviços, atuando segundo projetos, dentro de planejamentos estratégicos, buscando parcerias com o Estado e empresas da sociedade civil. A forma de realização das parcerias são via as OSs - Organizações Sociais e as OSCIPs- Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. A Reforma do Estado elaborada pelo ex-Ministro Bresser Pereira, no MARE, durante a gestão do Presidente Fernando Henrique Cardoso, previa que as políticas públicas para as áreas de Cultura, Educação, Lazer, Esporte, Ciência e Tecnologia viessem a ser apenas gerenciadas e não mais executadas pelo Estado. As OSs e as OSCIPs são parte de um modelo político e de uma orientação filosófica nos quais o Estado é responsável apenas pelo gerenciamento e controle das políticas públicas e não pela execução das mesmas. O Estado deixa de lado o papel de executor, ou prestador direto de serviços, e passa a ter função de promotor e regulador. Quem vai executar estas políticas serão justamente as OSs e as OSCIPs, que se constituem e se qualificam como tal - através de um contrato de gestão, no caso das OSs, firmado entre o Terceiro Setor e o poder público; ou através de um desmembramento de parte do próprio poder público, via parcerias com as OSCIPs . As OSs e as OSCIPs fazem parte de um novo modelo de gestão pública e, a longo prazo, a reforma do estado prevê que toda a área social deve adotar essas nova lógica e forma de operar na administração pública propriamente dita. As OSs, por exemplo, se inserem no marco legal das associações sem fins lucrativos, cuja lei foi regulamentada e promulgada em 1999. Elas são pessoas jurídicas de direito privado, estando portanto fora do âmbito dos órgãos públicos. Seus funcionários poderão vir de estatais, mas na OS eles não estarão mais sob o Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos, não serão mais, portanto, funcionários públicos no sentido lato do termo. Mas as OSs recebem recursos públicos consignados no Orçamento da União ou do respectivo estado, constituindo receita própria. A alocação destes recursos e a execução orçamentária das OSs não estão submetidas aos ditames da execução orçamentária, financeira e contábil, como os demais órgãos públicos, que têm de submeter-se a um controle processualístico. Seu controle se dá pelos seus resultados, por meio da avaliação das metas que elas estabeleceram. Além disso, as OSs recebem toda a infra-estrutura montada, que antes servia de base a um órgão estatal na prestação do serviço. Registre-se ainda que as OSs ou OSCIPs têm que se qualificar para se constituírem como operantes das novas orientações políticas. Na prática, são ONGs e organizações do Terceiro Setor que estão se qualificando. Segundo Traldi (2003), até Julho de 2002, 1068 entidades não-governamentais entraram com o processo de qualificação como OSCIP; destas, apenas 563 foram deferidas, e 505 (quase a metade), foram indeferidas. Se analisarmos a área de atuação das 563 entidades deferidas observa-se que o maior número atua na área assistencial (187), seguida pela ambiental (107). Em terceiro lugar tem-se as creditícias (82) e em quarto as educacionais (66, correspondendo a 13% do universo total). As outras áreas são: cultura (43), pesquisa (36),saúde (32) e jurídica (10). Um dado que causa espanto é o fato das OSs se qualificarem a partir de um simples pedido ao Ministério do Planejamento que, uma vez aprovado, remete ao Ministério da Justiça. O contrato de gestão não passa pelo Legislativo, fica no âmbito do Executivo. Houve um grande debate que identificou este processo como uma privatização, ou terceirização do Estado, e parte fundamental das reformas neoliberais, com seus defensores e críticos. Dentro dos objetivos deste artigo, não entraremos neste debate, mas resta assinalar que, a Reforma do Estado, ao final dos anos 1990, não incluiu os Conselhos Gestores no processo de contratação das OSs constituídas para gerirem os serviços públicos e as atividades publicizadas; ou da qualificação de uma OS. Os Conselhos gestores, mesmo os que têm poder deliberativo, irão analisar o resultado de um processo - quando forem avaliar uma OS, por exemplo, do qual eles não participaram no início, na própria constituição da OS. Mas, por que isto é importante? Por que deixamos a discussão dos conselhos de lado e enveredamos pelo tema das Organizações Sociais? Porque, a médio prazo, os serviços na área social que saírem da órbita de execução direta pelo Estado deverão ser de responsabilidade das OSs e dos Conselhos de Gestão que estas precisam instalar. Os contratos de gestão firmados por um determinado período também teriam um Conselho relacionado com o Conselho do Município, na área social correspondente. Uma nova modalidade de gestão do que é público surge desta articulação e desta rede de formas de representação e participação, que são muito mais complexas do que outras formas implantadas no passado, na relação povo-governo, na administração pública. Conceitos novos estão sendo criados para expressarem as novas formas, tais como o de governança (local, regional, nacional, global). Apesar de todos os obstáculos, acreditamos firmemente que a interlocução e o exercício da vida política/cultural, na esfera pública, contribui para o desenvolvimento de uma nova CULTURA POLÍTICA PÚBLICA no país, construída a partir de critérios do campo dos direitos (sociais, econômicos, políticos e culturais), uma nova cultura ética com civilidade e respeito ao outro. Essa nova cultura política se contrapõe à tradição autoritária que desconhece a existência de esferas públicas, assim como se contrapõe, também, às práticas clientelistas ou corporativas de grupos patrimonialistas, oligárquicos, ou modernos/privatistas. Trata-se de uma cultura política gerada por processos nos quais os diferentes interesses são reconhecidos, representados e negociados, via mediações sociopolíticas e culturais. Os conselheiros devem ter formação e consciência crítica, para terem como meta o entendimento do processo onde se inserem; entenderem, por exemplo, a questão dos fundos financeiros públicos e os critérios que deveriam pautar seu uso para a eliminação da pobreza e das desigualdades sociais, para o atendimento das necessidades da população, segundo escalas de urgências e emergências. Os mecanismos de competição do mercado não irão resolver as desigualdades sociais, serão políticas públicas democráticas, não excludentes, formuladas a partir de modelos que não se alicercem no lucro, que poderão minorar os problemas sociais. A esfera pública deve ser, também, um espaço para os cidadãos organizados exercerem fiscalização e vigilância sobre os poderes públicos constituídos via eleições, concursos ou critérios consuetudinários. Por isso, as Promotorias Públicas e o Ministério Público ganharam força para se expressarem, nos últimos anos. Eles são a instância para que se recorra no caso de não observância das ações públicas. A ampliação da esfera pública contribui para a formação de consensos alcançados argumentativamente, numa gestão social compartilhada, gestada a partir de exercícios públicos deliberativos. A temática da esfera pública auxilia-nos a entender a importância da sociedade civil organizada, pois ela é um dos atores fundamentais do Poder Local. A esfera pública adentra nos espaços públicos, dialogando com os seus grupos organizados e realizando parcerias em ações conjuntas com os mesmos. Certamente que, se os atores participantes dos pactos e parcerias na esfera pública advirem de sujeitos políticos organizados nos espaços públicos da sociedade civil, com pouca representatividade, fracos laços de pertencimento social, projetos, valores e visões de mundo não cidadãos, voltados para coletivos organizados apenas como grupos de interesses, grupos de pressão, ou grupos focais que atuam segundo regras exclusivas do mercado, seus resultados e impactos, não pode-se esperar avanços na democratização das relações povo-governo e nem mudanças sociais significativas em direção a projetos emancipatórios, que contemplem a justiça, a igualdade etc. Esta forma de atuação tem como objetivo alterar, progressivamente, a subordinação (ou apatia) da sociedade civil frente ao Estado. Altera, também, a cultura de participação da sociedade civil, no sentido dos grupos progressistas priorizarem pautas coletivas, deixando de lado "picuinhas" e divergências em torno de interesses particulares e corporativistas. Ser representante das demandas e interesses da sociedade implica em realizar mediações e intermediações. Decisões políticas democráticas envolvem mudanças no campo estatal como da própria sociedade civil, desde que certos princípios democráticos não sejam abandonados, mas sejam marcos referenciais, quais sejam: justiça, liberdade, solidariedade e igualdade com respeito às diferenças. Tudo isso pode ser resumido na expressão: PARTICIPAÇÃO CIDADÃ, aquela que redefine laços entre o espaço institucional e as práticas da sociedade civil organizada, de forma que não haja nem a recusa à participação da sociedade civil organizada, nem a participação movida pela polaridade do antagonismo a priori, e nem sua absorção pela máquina estatal, porque o Estado reconhece a existência dos conflitos na sociedade e as divergências nas formas de equacionamento e resolução das questões sociais, entre os diferentes grupos, e participa da arena de negociação entre eles. Os Conselhos são uma das modalidades para o exercício da cidadania. Cumpre destacar, entretanto, que a participação da sociedade civil não pode, nunca, se resumir à participação nos espaços dos conselhos ou outros criados na esfera pública. Até para que essa participação seja qualificada - no sentido exposto acima - ela deverá advir de estruturas participativas organizadas autonomamente na sociedade civil. O chamado trabalho de base é fundamental para alimentar e fortalecer a representação coletiva nos colegiados da esfera pública. Essa esfera pública não pode ser vista como um degrau superior, que surgiu para eliminar ou superar formas e níveis de mobilização e organização que existiram na sociedade brasileira nos anos 1970/80, pois esta é uma visão etapista, linear e evolutiva. Recebido em: 03/05/2004 Aprovado em: 08/06/2004 ARAÚJO, H. C. S. Contribuição à epidemiologia e prophylaxia da lepra no Norte do Brasil. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v. 27, n. 3, p.165, 1933. AVELLEIRA, J. C. R.; NERY, J. A. O tratamento da hanseníase. Rio Dermatológico, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 2-3, 1998. BASSEWITZ, E. V. A questão da lepra no Rio Grande do Sul. Arquivos Riograndenses de Medicina, Porto Alegre, v. 6, n.1, p.10-12, 1927. BÍBLIA Sagrada. 82. ed. São Paulo: Editora Ave Maria, 1992. BRASIL. Ministério da Saúde. 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Av. dr. Arnaldo, 715, Prédio da Biblioteca, 2º andar sala 2, 01246-904 São Paulo - SP - Brasil, Tel./Fax: +55 11 3061-7880 - São Paulo - SP - Brazil E-mail: saudesoc@usp.br

william James sobre Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James

https://www.scielo.br/j/pcp/a/HqhKSMHmFwpH48rXwRCrP8t/?lang=pt&format=pdf Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James Resumo: Neste artigo, temos por objetivo investigar os fundamentos e as bases do pensamento fenomenológico e existencial advindos da Psicologia de William James no que diz respeito à noção de consciência, método e prática clínica. Para tanto, analisamos algumas obras de James e dividimos as suas propostas em três momentos distintos: pragmatismo, funcionalismo e empirismo. Por meio das elaborações em cada um desses momentos, tentamos esclarecer os pontos de encontro e os pontos de desencontro com os pensamentos fenomenológico e existencial. Concluímos que o ponto de encontro diz respeito à tentativa de não objetivação da consciência. Quanto ao desencontro, consideramos que James ainda toma a consciência como objeto da Psicologia e que a fenomenologia e as perspectivas existenciais se afastam da ideia de objeto, uma vez que não consideram a consciência contraposta ao mundo. Outro desencontro apresenta-se na acentuada divergência entre James e o pensamento fenomenológico e existencial no que se refere ao método e à prática bem como aos objetivos da clínica. Palavras-chave: James (William). Fenomenologia existencial. Psicologia e Filosofia. Consciência. O título Psicologia: Fundamentos e Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial diz respeito a uma disciplina do curso de graduação de Psicologia Clínica da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de cuja ementa constam conteúdos referentes ao pensamento de William James, Henry Bergson, Wilhem Dilthey, Franz Brentano, Sören Kierkegaard, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre. Acreditamos que, ao compor esse ementário, o corpo docente original desse curso via nesses estudiosos a espinha dorsal que sustenta a temática principal da perspectiva fenomenológicoexistencial em Psicologia. Isso conduz hoje à seguinte questão: por que buscar em James, Bergson e Dilthey fundamentos da perspectiva fenomenológica e existencial? Por que não retroceder, iniciando por Brentano, já que – como nos lembra Boris (2011) – é esse pensador o precursor inquestionável das perspectivas fenomenológicas, existenciais e humanistas em Psicologia? Para responder a essas questões, primeiramente, precisamos esclarecer algo mais fundamental: o que há em comum em todos esses estudiosos que é de especial interesse para a Psicologia com bases fenomenológicas e existenciais? De forma resumida, pode-se dizer que todos esses estudiosos, a sua maneira, estudaram a consciência, mesmo que com diferentes Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 842 James, e mais especificamente no seu pragmatismo, que a orientação funcionalista ganha força” (2010, p.77). Já Tourinho (2009), ao abordar os fundamentos epistemológicos da Psicologia, confirma a importância de James, referindo-se a ele como brilhante psicólogo da corrente da consciência e finaliza chamando a atenção para a polêmica provocada pelo autor, com as suas dúvidas acerca da existência da consciência. Parece, então, que Tourinho também identifica pelo menos outro momento em que o psicólogo funcionalista não mais reconhece a entidade consciência. Como vimos James, em seus escritos, abre um espaço rico, intenso e disperso repertório de discussões. E, embora não tenha sido o precursor de nenhuma escola em Psicologia, tais como foram Rogers e Freud, entre outros, ainda podemos constatar um ou outro estudioso dessa área de estudo situar alguns fundamentos de sua perspectiva em James (Maslow, 1968; Frankl, 1978; Rogers, 1974). Parece que tais vinculações se tornam facilmente reconhecidas quando nos referimos às funções adaptativas da emoção, da percepção, enfim, da consciência. No entanto, como relacionar os elementos presentes nas obras jamesianas com as filosofias fenomenológicas e existenciais, que tentam afastar-se do aspecto psicológico da consciência ou que até mesmo criticam a Psicologia em sua positividade ou negam o psiquismo com veemência? É justamente na busca desses elementos em comum entre o pensamento de James e o fenomenológico e existencial que nos deteremos a seguir. Iniciaremos, entretanto, apresentando as diferentes perspectivas do pensamento de James. As diferentes fases do pensamento de William James Como já dissemos, Tripicchio refere-se a dois momentos distintos nas obras de James: o dos escritos psicológicos e o dos posicionamentos e denominações e até mesmo defendendo a sua negatividade, colocando-se a favor ou contra ao modo como a consciência vinha até então sendo estudada e considerada. E alguns poucos, também, apostavam em outros métodos para conduzir seus estudos sobre o fenômeno da consciência. Todos, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, tentam deslocar-se dos estudos epistemológicos sobre a consciência, que pressupõem a consciência (sujeito) apartada do mundo (objeto), e assim tentam resolver o problema do conhecimento, da verdade e de seu acesso. E é contra essa tese que todos esses autores se posicionaram. A consciência, com as suas diferentes denominações (eu, sujeito e subjetividade, dentre outras), passa, graças a esses pensadores, por sérias revisões e formulações. Sem dúvida, na medida em que a concepção de eu sofre modificações, toda a Psicologia, tanto em suas teses como em suas práticas, inclusive a clínica, também se reformula. Para esclarecer as questões aqui anunciadas, deter-nos-emos apenas nos possíveis legados de William James à Psicologia com bases fenomenológicas e existenciais. Essa tarefa, nada fácil, exige que nos debrucemos sobre algumas de suas obras para procurar seus fundamentos e desdobramentos afins com a fenomenologia e a filosofia da existência. Alguns estudiosos desse tema posicionamse de formas totalmente divergentes ao tentarem organizar as temáticas jamesianas. Tripicchio (2007) identifica dois momentos distintos e até mesmo contraditórios em James: o filosófico e o psicológico. Já Gutman (2008) considera que a filosofia e a psicologia de James formam uma unidade. Ferreira e Arruda compartilham desse posicionamento ao afirmarem que o pragmatismo jamesiano está intimamente vinculado à Psicologia funcionalista. Os autores ressaltam que “é na filosofia de Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 843 filosóficos. Tripicchio (2007) identifica as obras psicológicas nos temas acerca das dicotomias: interno e externo, pensamento e afeto, conhecimento e emoção, ideias e sentimentos. A teoria das emoções jamesianas, com base nas teses darwinistas, revela a tentativa de James de transformar a Psicologia em uma ciência natural. James filósofo é aquele que sofre uma influência direta do pragmatismo de Peirce. James, pragmatista, em suas concepções sobre a verdade, nega a verdade representacional e defende a ideia de que a verdade se encontra intimamente relacionada às ações humanas. Para esse estudioso, o verdadeiro é o útil, que facilita a vida em seu cotidiano. Na mesma linha de Tripicchio, sustentamos que a amplitude atingida pelos escritos de James nos permite identificar três vertentes presentes nas suas obras. Aliás, assim precisamos caminhar para poder, então, estabelecer os encontros e os desencontros entre os estudos de James e os da fenomenologia e da filosofia da existência. Ao estudar as obras de William James, identificamos três grandes ramificações do pensamento desse estudioso. Em um desses momentos, suas discussões em muito se aproximam de uma postura epistemológica, em que ele tenta encontrar uma posição solucionadora do interminável debate entre os racionalistas e os empiristas, com relação ao espaço onde podemos encontrar a verdade. Em outra ramificação, identificamos que sua preocupação se dirige à Psicologia de modo a estabelecer o seu status de ciência natural e totalmente autônoma. Por fim, James, em um texto de 1904, em que trata do empirismo em sua máxima radicalização, reaproxima-se da Filosofia, não mais com preocupações acerca do espaço onde se encontra a verdade, mas compartilhando das discussões, muito presentes em sua época, que questionam a existência da consciência. O pragmatismo de James Ao posicionarmos o pragmatismo como uma das modalidades do pensamento de James, utilizamo-nos das referências encontradas em Hessen (1926/1987). Esse estudioso denomina teoria do conhecimento ou epistemologia aquela área de estudo que trata do comportamento teórico, seja a teoria do conhecimento científico, seja a da ciência. A epistemologia interessa-se pelo questionamento acerca da verdade do conhecimento, expressa na concordância entre o pensamento e o objeto bem como na sua origem. Hessen, em seus estudos sobre a teoria do conhecimento, mostra, de forma sintética, como a epistemologia aparece no cenário da Filosofia na Idade Moderna. Segundo ele, a discussão acerca do conhecimento surge com John Locke, que, em Ensaio sobre o Entendimento Humano, em 1690, trata das questões sobre a origem, a essência e a certeza do conhecimento humano. Leibnitz, em Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, em 1765, refuta as ideias de Locke. Outros filósofos da teoria do conhecimento foram George Berkeley, que publicou, em 1710, o Tratado dos Princípios do Conhecimento Humano, e David Hume, que, em 1748, publicou Investigação sobre o Entendimento Humano. Emmanuel Kant, em 1781, demarca seu lugar na epistemologia com A Crítica da Razão Pura, no qual tenta dar uma fundamentação crítica do conhecimento científico da natureza. Kant pretende buscar a validade lógica do conhecimento, questionando se é possível conhecer, sobre que bases se conhece e em que pressupostos se assenta o conhecimento (Hessen, 1926/1987). Hessen dá prosseguimento a sua investigação acerca das diferentes posições das teorias do conhecimento, utilizando-se do método fenomenológico. Esse autor destaca que Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 844 fenomenologia é método, e não teoria, e que a teoria do conhecimento tem como objetivo explicar e interpretar filosoficamente o problema do conhecimento; já a fenomenologia descreve o fenômeno do conhecimento. Com relação ao conhecimento, Hessen afirma que cabe à fenomenologia esclarecer a concepção natural do ato de conhecer, sem jamais decidir sobre a sua veracidade: “A descrição fenomenológica pode e deve descobrir os problemas que se apresentam no fenômeno do conhecimento e fazer com que tomemos consciência deles” (Hessen, 1926/1987, p. 34). Trata-se apenas de uma preparação que nos conduz ao problema. Assim, Hessen nos diz que são cinco os problemas apontados pela descrição fenomenológica: o primeiro refere-se à possibilidade do conhecimento que implica sempre uma relação sujeito e objeto, em contato mútuo em que o sujeito apreende o objeto. Está em jogo aí a concepção de consciência natural, cabendo perguntar acerca da possibilidade do conhecimento: “Pode o sujeito apreender realmente o objeto?” (Hessen, 1926/1987, p. 35). Hessen coloca nesses posicionamentos as seguintes perspectivas: dogmatismo, cepticismo, subjetivismo e relativismo, pragmatismo e criticismo. O segundo problema refere-se à origem do conhecimento. Está em jogo nessa modalidade a posição dualista, que, considerando a estrutura do sujeito cognoscente e o fato de o homem ser espiritual (razão) e sensível (experiência), pergunta pela origem do conhecimento humano. E as respostas aparecem nos seguintes segmentos: racionalismo, empirismo, intelectualismo e apriorismo. O terceiro elemento encontrado fenomenologicamente diz respeito à essência e à determinação do conhecimento humano na relação sujeito e objeto, para o qual o problema central da teoria do conhecimento se encontra na relação sujeito e objeto, logo, é o sujeito que determina o objeto ou é o objeto que determina o sujeito? A quarta perspectiva encontrada refere-se às formas do conhecimento humano: racional e intuitiva. Por fim, a quinta modalidade epistemológica diz respeito ao critério da verdade, em que se pergunta qual é o critério que estabelece se o conhecimento é ou não verdadeiro. Com base nessas considerações de Hessen é que consideramos James um teórico do conhecimento ao assumir um posicionamento denominado pragmatismo, que diz respeito à possibilidade de conhecer e ao critério de verdade. Em sua segunda conferência, intitulada O que Significa o Pragmatismo, James (1912/1976) sugere que o método pragmático seria aquele que põe fim à disputa interminável entre os diferentes epistemólogos, e assim define o método pragmático como aquele que visa às consequências práticas. Kinouchi (2007) refere-se a três modulações do pragmatismo. A primeira é a de Charles Sandero Peirce, o primeiro a utilizar-se dessa denominação. Ele considera o pragmático em seu caráter normativo, como um modelo intelectualista, que conduz à prática racional. Para William James, o pragmático é tomado em seu sentido utilitarista, totalmente associado ao praticalismo. John Dewey, principal figura do pragmatismo do século XX, entrelaça as duas modalidades de pragmatismo em uma perspectiva antropológica. Kinouchi conclui que nos três há uma tentativa de lidar com o problema da verdade, tal como o faz Hessen. Este afirma que o pragmatismo constitui uma teoria do conhecimento que se opõe ao ceticismo. Embora em ambas ocorra um afastamento da concepção de verdade como representação ou correspondência entre a realidade e o ser, o ceticismo nega toda e qualquer possibilidade do conhecimento e verdade, enquanto o pragmatismo argumenta “A descrição fenomenológica pode e deve descobrir os problemas que se apresentam no fenômeno do conhecimento e fazer com que tomemos consciência deles” (Hessen, 1926/1987, p. 34). Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 845 que verdadeiro é aquilo que tem uma utilidade, e que o homem é eminentemente prático. Logo, no pragmatismo, a vontade, a ação e os motivos humanos são soberanos. A razão e o pensamento, como um valor derivado, são apenas elementos de orientação do homem frente à realidade. Hessen reconhece William James como o fundador do pragmatismo moderno, e aponta Schiller como seguidor dessa corrente epistemológica. James esclarece que a palavra pragmatismo foi encontrada por ele, pela primeira vez, em um artigo de Charles Peirce, de 1878, no qual este sustentava que as crenças são regras da ação. James, por sua vez, não se preocupa com as regras, e sim, com o caráter utilitarista a que se destinam as ações humanas. Kinouchi salienta que “o pragmatismo de James às vezes parece soar como uma espécie de existencialismo utilitarista” (2007, p. 220). Rossi afirma que James foi o protagonista da união do pragmatismo com o humanismo: James fue, ante todo, un humanista que encontró en el movimiento pragmatista un espacio propicio para exponer sus concepciones generales respecto de las múltiples relaciones entre el hombre y su entorno. Y si como pragmatista se reconoce que James supo vislumbrar y enfatizar la importancia de los conceptos de acción, creencia y voluntad; como humanista, es claro que supo cómo privilegiar las nociones de sentimiento, cambio e energía, entre otras (Rossi, 2008, p. 77) Conclui Rossi que o pragmatismo de James se destaca por criticar a dicotomia cartesiana com ênfase no sujeito cognoscente, passando a valorizar a dimensão prática do conhecimento. James critica a Filosofia em seu caráter de contemplação, e adota uma posição que se aproxima de um empirismo, que coloca a Filosofia como uma atividade utilitária a serviço do homem. A Psicologia como ciência natural No final do século XIX, Wundt (1832-1920) e William James (1842-1910) inauguram a Psicologia em um viés de projeto científico, que receberá a denominação de Psicologia moderna, distinguindo-a de um projeto metafísico, em que a Psicologia consistia no estudo da alma. Para Abib (2009), a Psicologia moderna, como projeto de Psicologia científica, nasce de uma reflexão epistemológica com fins a uma epistemologia unitária. No entanto, ocorre com Wundt e James o mesmo que acontece em toda a história da Psicologia: seus iniciadores partem de concepções diferentes, decorrendo daí variadas e multifacetadas psicologias. Abib chama a atenção para a elaboração da ciência psicológica como conhecimento plural; resulta daí que a Psicologia acaba por constituir-se em meio a uma epistemologia pluralizada. O movimento pragmatista de James vai receber, na Psicologia moderna, a denominação de funcionalismo, em oposição ao estruturalismo de Wundt. Tilquin marca bem essa distinção ao afirmar que “... o estruturalismo é como a anatomia do espírito, enquanto o funcionalismo é como a fisiologia” (1950 como citado em Tourinho, 2009, p. 31). Abib (2009) ressalta que a psicologia de Wundt se constitui como uma ciência empírica, e que a psicologia de James se aproxima de uma ciência natural. Wundt pretende fazer uma ciência psicológica, buscando as leis da causalidade presentes no psiquismo. O esforço de James, na tentativa de tornar a Psicologia uma ciência natural, consiste em estudar os fatos mentais em relação com o ambiente físico. Nas definições dos conceitos de pensamento, hábito, atenção, emoção e consciência com os quais James vai trabalhar, a preocupação incidia sobre as funções do organismo, e não sobre as suas propriedades. É na perspectiva de função é que ele trata dos diferentes temas da Psicologia. Com relação ao pensamento, James afirmava que esse era fluxo contínuo, e as referências de tempo e espaço eram constituídas em função das ações para as quais o pensamento se destinava. Sobre os hábitos, ele dizia que eram aprendidos pela força adaptativa do organismo. Ao estudar as emoções, inverte a tese que sustentava que um estímulo emotivo suscitava toda uma reação orgânica. Esse psicólogo funcionalista explica que ocorre o contrário: primeiro há a reação do organismo, e é esta que desencadeia a emoção (Ferreira & Gutman, 2008). Em 1890, James escreve seu livro clássico acerca da Psicologia, intitulado Principles of Psychology, adotando uma perspectiva totalmente funcionalista com a seguinte tese: “os mecanismos psicológicos existem porque são úteis e auxiliam os indivíduos a sobreviver e a realizar atividades importantes para a adaptação às exigências do meio” (James, 1890 como citado em Tourinho, 2009, p. 30). Nesse sentido, o funcionalismo encontra-se presente, uma vez que o psiquismo humano se constitui por um mecanismo que visa sempre a consequências práticas; logo, a determinação psíquica se dá teleologicamente. Importa, então, ao investigador do fenômeno psíquico, as operações das atividades mentais ao buscar as metas futuras e a escolha dos meios para alcançá-las em circunstâncias reais. O pensar, o sentir e os motivos vão paulatinamente modelando-se para atender às exigências utilitárias advindas do mundo, até se adaptarem ao meio e se tornarem autônomos. Com o conhecimento, por parte dos psicólogos modernos, dessas funções do psiquismo, poderiam eles prever e controlar as ações humanas e, assim, ensinar aos homens como deveriam agir de modo a resolver seus problemas. Esse caráter naturalista do funcionalismo parece aproximar-se em muito da perspectiva empírica, que, na Psicologia, é radicalmente assumida pelo behaviorismo. Mas o que diz James acerca disso? James (1912/1976) afirma que, embora o pragmatismo se aproxime da proposta empirista, ambas apresentam uma acentuada diferença. O pragmatismo encontra-se totalmente apartado da preocupação empirista de estabelecer abstrações e princípios, alcançando, assim, o elemento mais original e a verdade absoluta. A perspectiva pragmática é apenas um método, uma orientação que pretende alcançar o valor do prático na experiência com a qual se encontram os caminhos passíveis para modificação das realidades. Trata-se muito mais de instrumentos do que de teorias. Os instrumentos são ferramentas, meios para atingir fins determinados. O pragmatismo consiste, em um sentido amplo, em uma teoria da verdade na medida em que desenvolve procedimentos que visam a conduzir as experiências de modo satisfatório, simplificando e economizando trabalho. Trata-se da verdade como instrumental, e não como teoria. É nesse aspecto que, no pragmatismo jamesiano, encontramos as bases para o que, em Psicologia, se denominou funcionalismo. Nessa ênfase, destacam-se alguns escritos de James, como Principles of Psychology (1890/1952), um verdadeiro tratado de Psicologia com cerca de 800 páginas. Com o funcionalismo dos Principles of Psychology, temos o que consideramos o segundo momento do pensamento jamesiano, em que James pretende que a Psicologia se torne uma ciência natural, conquistando total independência da metafísica. A Psicologia, como ciência da natureza, aproximar-seia muito mais da Biologia. Assim, ele tece consideráveis críticas à concepção de eu com sentidos e determinações dados em si mesmo e, portanto, substancializado, tal como foram tomados pelas filosofias da subjetividade, desde Descartes, passando por Kant até Hegel. Por outro lado, também rejeita a ideia que defende a inexistência do Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 847 eu, ficando esse, então, reduzido a um feixe de sensações. Segundo Abib: “Tem-se então que Wundt e James lançam os fundamentos da Psicologia moderna com base em uma teoria do sujeito concebido como devir, e não como ser” (2009, p. 203). James (1890 como citado em Abib, 2009, p. 203) diz ainda que “a consciência é um órgão, uma perfeição superadicionada pela evolução, com a função de adaptar as pessoas aos ambientes, com a função, portanto, de ajudálas a sobreviver”. Logo, nessa perspectiva, à Psicologia funcionalista, caberia o estudo das funções cerebrais e dos fenômenos cognitivos, volitivos e perceptivos, para oferecer resultados práticos por meio de suas ações terapêuticas. Ainda em Principles of Psychology, James propõe-se a estudar a mente a partir dela mesma, e não como vinha acontecendo na Psicologia, que a estudava a partir das sensações. Para James, o pensamento significa toda a forma de consciência, e o autor lista cinco características que apontam o modo como o pensamento acontece em uma consciência pessoal: é sempre parte da consciência, está em constante mudança, é sensivelmente contínua, lida sempre com objetos independentes, focase em partes dos objetos e exclui outras partes. No entanto, a ideia de consciência como algo que se encontra em um dos polos vai paulatinamente desaparecendo no funcionalismo de James. Segundo Heidbreder (1933/1981), James, após a publicação dos princípios em Psicologia, foi desinteressandose pela Psicologia e acreditando que as respostas para as suas indagações só pudessem ser encontradas na Filosofia, até que, em 1904, ele escreve o primeiro capítulo em seu livro Essays in Radical Empiricism, que tem o seguinte título: Does Consciousness Exist? A filosofia empírica em James Temos, então, o que denominamos de terceiro momento jamesiano, em que ele se reaproxima da Filosofia; agora encontrandose em uma posição que ele mesmo considera empírica, chega a afirmar que concebe a consciência como função de conhecer da própria experiência, e nada mais. Heidbreder (1933/1981, p. 139) observa que “a psicologia de James é a transição: mostra os sinais da metafísica, porém é um movimento orientado para a ciência”. Apostaríamos então dizer que, em James, encontramos outra radical e imprescindível transição, que é de uma Psicologia como ciência natural, que se dedica ao estudo do estado da consciência, de seus fenômenos e seus fundamentos biológicos (condições) a uma Psicologia que prescinde de um psiquismo. Assim, ao questionar a existência da consciência, ele refere-se, em seu texto A Consciência Existe? (James, 1904), a diferentes estudiosos que já tinham abandonado tal noção, e apresenta os argumentos a favor de sua inexistência. Em 1904, James decide, então, defender publicamente a ideia de que a consciência deveria ser descartada, restando apenas a sua função, que é a de conhecer. Ele substitui a noção de consciência pelo seu equivalente pragmático: realidades da experiência, que sempre se dão em uma exterioridade, e, com isso, tenta romper a dicotomia consciência e mundo, afirmando que, ao considerar a experiência absoluta, acaba por prescindir totalmente de dita polaridade. James acrescenta que a relação desses dois termos é a própria experiência, e que um dos seus termos é o “sujeito que conhece”, e que o outro é o “objeto conhecido”; “Ela tem dois papéis diferentes, sendo gedanke e gedachtes, o pensamento-de-um-objeto e o objetopensado, ambos em um” (James, 1904, p.108). Os legados de James à fenomenologia e à filosofia da existência Ao retomarmos as três modalidades presentes nos estudos de James (a epistemológica, a James (1890 como citado em Abib, 2009, p. 203) diz ainda que “a consciência é um órgão, uma perfeição superadicionada pela evolução, com a função de adaptar as pessoas aos ambientes, com a função, portanto, de ajudá-las a sobreviver”. Logo, nessa perspectiva, à Psicologia funcionalista, caberia o estudo das funções cerebrais e dos fenômenos cognitivos, volitivos e perceptivos, para oferecer resultados práticos por meio de suas ações terapêuticas. Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 848 psicológica e a filosófica), poderemos então estabelecer os encontros e os desencontros no que diz respeito à posição epistemológica, à elaboração acerca da consciência e à valorização da experiência em detrimento do aspecto lógico do pensamento. Iniciaremos por buscar as aproximações entre James e Husserl por dois motivos. Sendo ambos contemporâneos, provavelmente encontravam-se imersos no mesmo âmbito de discussão das problemáticas acerca do conhecimento; em segundo lugar, em ambos existe uma preocupação em demarcar o espaço onde a consciência aparece. Epistemologia refere-se a um segmento da Filosofia moderna que mantém um diálogo afinado com o projeto científico. Como Filosofia do conhecimento, pretende discutir a origem do conhecimento, o lugar da verdade e o seu acesso (método). Para tanto, a epistemologia precisa manter a dicotomia sujeito e objeto e assim estabelecer em qual deles se encontra a verdade, essência de tudo que há. Para alcançar a verdade, é preciso saber como acessá-la. Essa questão gerou intermináveis discussões entre os empiristas e os idealistas. Os primeiros diziam que a verdade se encontrava no real, empírico, e que daí nós poderíamos estabelecer todas as leis de tudo o que há. O acesso a essa verdade e às suas leis dar-se-ia pela experimentação, comprovação e corroboração das hipóteses. Já os segundos afirmavam que a verdade se encontrava na razão, no pensamento, e que, pelas leis do pensar e suas faculdades, poderíamos acessar toda a verdade sobre as coisas. Acessá-la seria um exercício do pensamento. Tanto James quanto a fenomenologia husserliana e a filosofia da existência de Kierkegaard, Heidegger e Sartre opõemse às teorias do conhecimento, embora por caminhos diferentes. James propõe que abandonemos essas discussões de ordem teórica e busquemos a verdade na vida prática, na ação. Nisso consiste sua perspectiva pragmática. Para Hessen (1926/1987), essa tese jamesiana ainda é epistemológica, pois guarda na sua essência uma dicotomia com relação ao fato de que a ação ainda deriva da vontade do homem. A vontade ainda é uma faculdade, e, como tal, encontra-se no polo da subjetividade. Husserl (1901/2007a), com sua fenomenologia, também pretende deslocar-se das discussões epistemológicas, que precisam partir da dicotomia homem e mundo, para então posicionar a verdade. Husserl propõe a ideia de que o acesso à verdade não é alcançado desprezando ou minimizando a importância de um dos polos, pois a verdade encontrase no espaço cooriginário ao sujeito e ao objeto: a intencionalidade. Por isso, afirma que todo o objeto é para a consciência como a consciência é para o objeto. Sem dúvida, Husserl mantém-se em uma filosofia que pressupõe a subjetividade, mesmo que não lhe confira o lugar de posicionadora. Vemos, assim, que a discussão acerca da verdade, tanto com relação à tentativa de afastar-se das vertentes epistemológicas como no que diz respeito à relação que ainda mantém com essa vertente filosófica, parece ser um ponto de encontro entre esses dois pensadores. Holanda defende a aproximação da noção de consciência entre James e Husserl da seguinte forma: “mesmo negando o caráter substancial da consciência, James – ao afirmála como função – finda por posicioná-la como um ente, como uma realidade, na acepção fenomenológica, sendo, portanto, um objeto suscetível de investigação” (2012). Campos (1945 como citado em Holanda, 2012) também argumenta a favor dessa proximidade, ao dizer que James, ao opor-se ao atomismo, adota uma “atitude fenomenológica, o que o torna precursor das ideias de Husserl” (Campos, 1945, p. 37, como citado em Holanda, 2012). Concluindo, atentemos ao que nos lembra Holanda: “Ademais, o próprio Husserl afirmara a importância do valor do Principles of Psychology para o campo da Psicologia descritiva”(2012). Mas, e o ponto de discórdia, qual seria? Husserl (1910/2007b) é um crítico fervoroso das psicologias que se estabeleceram até o início do século XX, e ponderava, em A Filosofia como Ciência Rigorosa, que a Psicologia clássica se preocupava com os estudos sobre a alma, suas disposições e seus afetos. Partindo desse a priori, postulava que a Psicologia havia acabado por desconsiderar totalmente a natureza intencional dos fenômenos psíquicos. Já a Psicologia moderna, mesmo que com um projeto de ciência natural, havia desconsiderado completamente a natureza dos fenômenos psíquicos em suas investigações e formulações, apenas substituindo a denominação alma por conceitos tais como subjetividade, atividade subjetiva, eu, self e personalidade, dentre outros. Mantendo-se no naturalismo, ela toma o psiquismo como fenômeno natural, e, como tal, busca encontrar sempre um por que de seu acontecer (Feijoo, 2011). Essa consideração de Husserl revela uma crítica ao projeto de Psicologia presente em James. Vamos agora buscar o que compõe a noção de consciência em James e assim tentar apontar os elementos de consciência comuns nesses dois pensadores. Para James, a consciência é ação, fluxo e pensamento. Para Husserl, a consciência é intencionalidade; logo, também é fluxo temporal, sínteses de vivências intencionais. Husserl afirma veementemente que a intencionalidade deveria ser considerada o fenômeno psíquico por excelência. Por intencionalidade, Husserl entende o fato de toda consciência já ser sempre consciência de..., assim, os fenômenos psíquicos são estruturados de modo não posicionadores. Nossa consciência já está sempre aberta, e é esse caráter de abertura que a marca. Em consequência, uma psicologia que se pretenda fenomenológica deve considerar a intencionalidade um fenômeno psíquico, e, como tal, afastar-se de qualquer perspectiva causal, mesmo que teleológica. Assim, Husserl não compartilha os pressupostos funcionalistas, cuja ação sempre está destinada a um fim posicionado pela consciência. Em uma Psicologia clínica com bases funcionalistas, o que está em questão é de que modo podemos alcançar a ação correta para atingir os fins que conduzam ao bem viver. Nas clínicas fenomenológicas, a pretensão é desfazer as aglomerações, que estão presentes na síntese do fluxo incessante que constitui a consciência, para que, dessa forma, as recordações, as expectativas e as percepções não formem um bloco de aglomerados, de modo que aquilo que é questão acabe por desaparecer. A disciplina Psicologia: Fundamentos e Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em sua denominação e em sua ementa aponta ainda, em James, a base das psicologias da existência. Para pensarmos acerca dessas psicologias, primeiramente, cabe trazer à discussão as filosofias que as fundamentam. As filosofias da existência caracterizam-se por resgatar aquilo que nas filosofias da subjetividade havia sido abandonado, ou seja, o caráter sensível da existência, sem recair na empiria, que posiciona o sensível como mera experiência. Assim, também essas filosofias pretendem ser críticas tanto com relação ao empirismo quanto ao idealismo; assumem a posição da existência como espaço do acontecimento, saindo assim da ideia de subjetividade tal como foi incorporado pelas psicologias do eu. Como se sabe, o conceito heideggeriano de existência, ao contrário do que pode parecer, nada tem a ver com o ato de ser, de estar fativelmente presente. A existência, como existir, significa ek-sistir, ser-arremessado-para-fora-de-si, jogado em direção ao horizonte histórico-mundano de Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 850 realização de si. A clínica existencial consiste em um espaço compartilhado no qual se pretende proporcionar possivelmente, e não necessariamente, transformações existenciais. O clínico não intervém; acompanha. Ele não provoca; participa; enfim, compartilha do espaço que se abre para uma possível transformação. Ao buscar as aproximações de James com a perspectiva existencial em Psicologia, deparamo-nos com o texto de James (1904) que questiona se realmente a consciência existe. Nesses questionamentos, embora James assuma uma posição empírica, encontramos uma aproximação com a máxima das filosofias existenciais que defendem a indeterminação e o caráter de negatividade da existência. Ambos, ao extinguir a consciência, pretendem eliminar definitivamente todas as formas de dualismo. Considerações finais Podemos pensar, em um primeiro momento, que, com as considerações de James acerca da consciência, do método e de prática psicológica em seus diferentes posicionamentos, encontraríamos a gênese das fundamentações da fenomenologia e das filosofias da existência; porém, em uma análise mais detalhada, concluímos que há muito mais aspectos divergentes do que convergências entre James, em seus três momentos aqui postulados, a fenomenologia de Husserl e a filosofia existencial. James, em seu posicionamento acerca da consciência, apresenta um deslocamento tanto do idealismo quanto do empirismo, do mesmo modo que Husserl, pela fenomenologia, pretende suspender as hipostasias idealistas e realistas. Mesmo a consciência em James sendo fluida, ele ainda mantém a ideia de que é a ação do homem que posiciona o mundo. Em Husserl, a consciência é uma síntese incessante também em fluxo vivencial; no entanto, mundo e homem são cooriginários. Com relação ao método empregado em suas análises, afirmam Bertoni e Pinto (2007) que James pretende imprimir à sua investigação um tratamento empírico com ênfase na experiência concreta, por entender como fenômeno psicológico aquilo que pode ser descrito sem nenhuma especulação metafísica. No projeto fenomenológico de Husserl, a atitude fenomenológica frente ao fenômeno consiste em uma atitude antinatural com a qual Husserl nos convida a irmos ao fenômeno tal como ele se mostra à consciência, portanto, não empiricamente. E ainda ressaltamos a questão da intencionalidade como espaço de realização das vivências, que a noção de experiência em James não contempla. Em James, o funcionalismo diz respeito ao pressuposto de que a experiência serve a uma função que é adaptativa, logo, tem bases em uma causalidade teleológica. Husserl, ao considerar a cooriginalidade consciência e objeto, suprime qualquer intervalo espaçotemporal e, em consequência, a relação de causalidade. Mesmo a conclusão de James acerca da inexistência da consciência é insuficiente para abarcar o caráter de negatividade do existir demarcado pelas filosofias da existência e do qual emergem a angústia, o desespero e o tédio como marcas dessa própria negatividade e anúncio da abertura às possibilidades. Ainda com relação à clínica psicológica – que em James conduziria ao bem-estar, à adaptação e à superação –, na perspectiva existencial, a clínica não levaria a nenhuma positividade, ao contrário, abre espaço, ou, pelo menos, não impede tal abertura, para que o negativo se anuncie como tal para que transformações possíveis se apresentem como tais. Bases do Pensamento Fenomenológico e Existencial em William James PSICOLOGIA: CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2013, 33 (4), 840-851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 851 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Doutora em Psicoterapias Atuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e docente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ – Brasil. E-mail: ana.maria.feijoo@gmail.com Endereço para envio de correspondência: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia. Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã. CEP: 20550-013. Rio de Janeiro, RJ. Recebido 30/08/2012, Aprovado 11/04/2013. Abib, J. A. D. (2009). Epistemologia pluralizada e história da psicologia. Scientiae Studia, 7(2), 195-208. doi: http://dx.doi. org/10.1590/S1678-31662009000200002 Bertoni, P. G., & Pinto, D. C. (2007). Mudança e continuidade: a formulação jamesiana de pensamento como fluxo. 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Espinosa Coerência e comunidade em Espinosa

https://philarchive.org/archive/OLICEC Oliveira, Fernando Bonadia de. Coerência e comunidade em Espinosa. 2015. 267f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. Este trabalho desenvolve uma investigação sobre as noções de coerência e comunidade nas obras de Bento de Espinosa (1632-1677), em especial na Ética demonstrada em ordem geométrica. A noção de coerência, entendida como modo pelo qual as partes da natureza se relacionam para compor o todo do universo, é um problema central em toda a história da filosofia. Espinosa também se posicionou em relação a essa questão, formulando uma teoria que procura explicar a relação entre as partes do universo sem recorrer a nenhuma causa exterior a ele, configurando assim uma filosofia da imanência. Nessa perspectiva, o objetivo da pesquisa consiste em mostrar como o problema da coerência apareceu em diferentes campos da obra espinosana, sendo sempre solucionado através de uma mesma explicação imanente da natureza, que se estabeleceu definitivamente com a introdução da noção de comum na cadeia dedutiva da Ética. Para isso, partimos de uma perspectiva histórica e examinamos inicialmente algumas cartas de Espinosa, verificando como a pergunta sobre a coerência da natureza foi ali respondida. Posteriormente, ao analisar a Ética, apresentamos como, em cada de uma de suas cinco partes, a ideia de comunidade se faz presente, emergindo tanto no campo especulativo quanto no campo prático. O problema da relação entre as partes e o todo atravessa a história da filosofia. As filosofias que se colocaram sob a perspectiva da transcendência tiveram de solucionar o problema da relação entre as partes e o todo da natureza mediante o recurso a uma causa exterior, um Deus ou certa entidade que, de fora do mundo, cria o mundo e todas as coisas que nele habitam. O modo pelo qual esse ser ordena e coordena cada parte do todo discrepa em cada forma transcendente de pensamento a mobilizar intermináveis debates. Já as doutrinas que pretendem se colocar sob a perspectiva da imanência não podem recorrer a uma causa exterior; precisam, ao contrário, de um fundamento interno, de uma lógica intrínseca ao próprio real que opere de maneira autorregulada, sem carecer da ação de algo a intervir de fora. O filósofo Bento de Espinosa, no século XVII, decidiu-se pela segunda alternativa e, por isso, foi associado com muita razão por Yirmiyahu Yovel ao passado pré-socrático ou pré-cristão da filosofia, tempo em que as concepções de mundo buscavam se afastar da mitificação da natureza. De acordo com o comentador, Espinosa retomou a ideia de imanência abandonada desde Platão, dando a ela uma renovada fundamentação1 . A polêmica em torno da relação entre parte e todo da natureza – o que será chamado, ao longo deste trabalho, de “problema da coerência” – acompanhou toda a produção de Espinosa, entendida como produção de uma filosofia da imanência. O objetivo do trabalho ora proposto consiste em mostrar como o problema da coerência apareceu em diferentes domínios da obra espinosana, sendo sempre solucionado através de uma mesma explicação imanente da natureza, que se consolidou com a introdução da ideia de comunidade na cadeia dedutiva da Ética. “Coerência” não deve, pois, ser compreendida aqui em registro lógico, como indicador de certa teoria da verdade, nem como vínculo que une sujeito e predicado em dado raciocínio2 . Do mesmo modo, 1 Yovel, Y. Marx's ontology and Spinoza's philosophy of immanence. Studia Spinozana – an international and interdisciplinary series. Würzburg: Königshausen & Neumann, vol. 9, 1993, p. 218. 2 O trabalho não discute, por consequência, temáticas relativas ao afastamento ou à aproximação da epistemologia espinosana de uma teoria coerentista da verdade. Tal matéria, já estudada entre alguns comentadores de Espinosa, não será aqui posta em questão (sobre esse ponto, cf. Gleizer, M. Ideia adequada, holismo semântico e verdade como coerência em Espinosa. In: Revista Analytica, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, 2009, p. 65-85). Igualmente, a noção de coerência não será tomada especificamente na acepção da palavra que remete à relação entre sujeito e predicado; em certa passagem do TEI sobre natureza das ficções (§62; 10 “comunidade” não designa, em especial, algum tipo de coletivo humano ou sociedade comum de homens3 , mas o ser comum das coisas, que emerge no espinosismo em diversos contextos, sempre pondo em relação as partes de um todo4 . Ao situar o pensamento espinosano na breve história da imanência, Yovel nos convenceu a atentar aos primeiros passos da filosofia, e a repor as teorias mais antigas da coerência, tendo por objetivo descobrir como o autor da Ética se posiciona em relação a esse debate original. Para tanto, foi necessário revelar como as críticas de Sócrates e de Aristóteles combateram as explicações imanentes dos primeiros filósofos, e de que forma, ao desqualificá-los, deram origem à necessidade de um transcendente capaz de explicar todos os nexos do mundo. Anaxágoras ofereceu a ação liberadora da Inteligência (Nous) como instrumento imanente de explicação para a articulação entre os infinitos elementos existentes na natureza. Platão e Aristóteles, porém, encontraram dificuldades na doutrina de Anaxágoras; em todas as críticas que lhe fizeram, denunciaram a ausência de algum princípio moral ou finalista na ação da Inteligência, e a condenaram como fenômeno meramente mecânico, aleatório e indeterminado. De nossa parte, ao recolocar o pensamento espinosano na tradição da filosofia antiga não tivemos em mira empreender um longo desvio de cunho simplesmente comparativo, apontando possíveis marcas da tradição pré-socrática em Espinosa, mas detectar qual é o nervo central da “nova e poderosa sistematização” que o filósofo, no século XVII, conferiu à imanência. A fim de não incorrer em nenhuma negligência metodológica, sobretudo o anacronismo, é importante reconhecer que a consideração da filosofia espinosana no nível da filosofia pré-socrática não significa tomá-la fora de seu próprio tempo. Ao invés disso, considerando Espinosa em seu tempo, o mostraremos em busca de um sistema que, protegido das críticas dos defensores maiores da transcendência, viesse a produzir um saber blindado contra toda forma de ignorância. GII, 24), o próprio filósofo emprega o nome “coerência” nesse sentido. Ele escreve: “(...) se falamos, por acaso, de homens que repentinamente são transformados em animais, isso é dito de modo muito geral, de maneira que não se apresenta em nossa mente nenhum conceito, isto é, nenhuma ideia ou coerência entre sujeito e predicado (idea, sive cohaerentia subjecti et praedicati)”. 3 A esse tipo de comunidade se refere Alexander Matheron na quarta parte do livro Individu et communauté chez Spinoza (Paris: Minuit, 1969). 4 A noção de comunidade, dada sua generalidade, abraça a multiplicidade de maneiras pelas quais o ser comum das coisas é tomado nas deduções da Ética; veja-se, por exemplo, as expressões algo em comum, noção comum, direito comum, consenso comum etc. frequentemente empregadas pelo filósofo. 11 Como este trabalho se inicia com a análise dessa problemática, o primeiro capítulo do texto possui um acento marcadamente histórico. A pertinência da discussão sobre a coerência na Antiguidade para os fins deste estudo é explicitada no decorrer do capítulo em pontos que dão a conhecer como o nome de Espinosa foi lançado pela crítica de sua época, especialmente por Leibniz, ao universo das investigações pré-socráticas. Se Leibniz, como veremos, relegou Espinosa ao grupo dos partidários do puro mecanicismo e o identificou, negativamente, ao naturalismo neo-estoico, Nietzsche apresentou-nos uma leitura positiva da cosmologia de Anaxágoras5 , muito mais valiosa para o intento de situar o pensamento espinosano na tradição filosófica antiga. Segundo ele, o Nous é um exemplar precioso do mais profundo espírito trágico, afinal nele se anuncia a busca da negação da ordem moral do mundo, que patrocinaria, posteriormente, “um milênio e meio de cultura transcendente”. Espinosa, como o próprio Nietzsche admitiu, também se recusou a introduzir a moral na ordem da natureza e, por conseguinte, conforme demonstraremos, pode ser pensado na vizinhança dos pré-socráticos. Além de se aproximar da tradição pré-socrática, Espinosa tirou proveito das escolas helenísticas formadas no momento em que as mentalidades se recompuseram do “desenlace sufocado” dado por Aristóteles à filosofia6 . O primeiro sinal disso é a leitura das cartas trocadas entre ele e Henry Oldenburg, o Secretário da Royal Society de Londres. A correspondência que travaram atravessou todo o período de composição da Ética; embora tenha sido intermitente, foi sempre acompanhada, em algum nível, da discussão a respeito da coerência. Objeto por excelência do segundo capítulo, esse especialíssimo trânsito de cartas entre Holanda e Inglaterra, enleado a notícias científicas e trocas de informações políticas, contém um número enorme de passagens em que Espinosa se reporta a raciocínios similares aos da filosofia do jardim e da filosofia do pórtico. Da primeira à última carta, os correspondentes avançaram da discussão metafísica em torno das primeiras páginas da 5 Essa mudança de perspectiva em relação ao período pré-socrático é bem compreensível e já foi notada por diversos historiadores. O conhecimento da filosofia pré-socrática no tempo de Espinosa e Leibniz era muito diferente daquele que os historiadores (e filósofos como Hegel e Nietzsche) passaram a ter na segunda metade do século XIX, quando os escritos do período grego “trágico” começaram a ganhar uma armadura filológica mais rigorosa e completa. 6 Marx, na primeira linha de sua tese de doutorado, escreve: “Parece acontecer à filosofia grega o que não se deve suceder numa boa tragédia: apresentar um desenlace sufocado. Com Aristóteles, o Alexandre Magno da filosofia grega, parece findar na Grécia a história objetiva da filosofia” (Marx, K. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. Tradução: E. Bini & A. Venâncio. São Paulo: Global, 1985, p. 17). Ética em composição à discussão das principais polêmicas disseminadas pelo Tratado Teológico-Político. Em todas as etapas desse diálogo, a coerência da natureza foi problematizada em vários campos do conhecimento: a metafísica, a física, a política, a biologia e a ética. Examinamos, com foco voltado à noção de coerência, as críticas de Oldenburg às primeiras linhas da Ética e as objeções de Espinosa ao ensaio publicado por Robert Boyle. Em seguida, empenhamo-nos em compreender a definição de cohaerentia dada na famosa Carta 32 de maneira muito próxima à noção de convenientia. Feita essa problematização inicial, os capítulos restantes envolvem o estudo da noção de comunidade no corpo da obra maior de Espinosa. Na terceira etapa do trabalho, partindo da constatação de que a Ética é também um todo composto de cinco partes, procuramos evidenciar como se ligam os termos conveniência e comércio no pensamento espinosano, e também como ambos favorecem o entendimento da gênese da expressão “ter algo em comum” na ordenação geométrica do livro. Os dois capítulos finais exploram o lugar das expressões associadas à ideia de comunidade, tanto nas primeiras quanto nas últimas partes da Ética. O escopo dessa parte da tese consiste em demonstrar como a mesma ordenação de nomes, conceitos e argumentos disposta por Espinosa no plano da metafísica é utilizada identicamente no plano da política, e como é possível compreender o processo de elaboração de seu pensamento sem as rupturas que os comentadores frequentemente enxergam quando ponderam a construção de seu projeto filosófico. O trabalho vai gradualmente se deslocando dos problemas descortinados pelo pensamento antigo para incidir em uma temática profundamente contemporânea, concernente ao significado atribuído à noção espinosana de “comum” por filósofos políticos cuja produção bibliográfica vem aumentando nos últimos quinze anos. Esse significado se deve fundamentalmente à resposta dada pelo filósofo para a pergunta sobre a coerência e por sua defesa racional da imanência. Ao fim, pretendemos ter esclarecido, entre outras coisas, que na filosofia de Espinosa coerência e comunidade não são conceitos estáticos a descrever unicamente regras ou leis de concordância natural entre as coisas, mas o fundamento do que definiremos mais adiante como produção de totalidade, produção que se faz tanto mais 13 intensa para os homens em toda a natureza, quanto mais eles instituem direitos comuns na política. 14 CAPÍTULO 1: UM PROBLEMA DE COERÊNCIA Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e, para mais m’espantar, os maus vi sempre nadar em mar de contentamentos. Cuidando alcançar assim o bem tão mal ordenado, fui mau, mas fui castigado. Assim que, só para mim, anda o mundo concertado. (Camões) 1.1. O problema O desconcerto do mundo, cantado pelo poeta Luís de Camões, coloca em questão a desconformidade dos acontecimentos da vida. Os bons, merecedores da mais alta tranquilidade da alma, enfrentam graves turbulências; os maus, indignos da felicidade, nadam contentes nos mares da vida. Sinal maior de que a existência reina em desacerto foi o destino do próprio poeta: ciente do desconcerto, ele escolheu ser mau e alçar assim o bem mundano “tão mal ordenado”. Tendo sido mau e punido, amargou a pena de viver um mundo que só para ele foi imprevisivelmente justo. O desarranjo reinante, capturado pelo verso camoniano, contempla, do ponto de vista moral, a desafortunada ordenação entre as partes da natureza. Os versos não fazem alusão à autoridade de quem as ordenou tão mal, apenas lamentam. Voltaire, no Poema sobre o desastre de Lisboa7 , não só manifesta o desajuste do mundo, como também escancara sua face mais cruel e sagrada. As vítimas do abalo ocorrido coincidentemente no dia de Todos os Santos, com seus “membros dispersos”, entre mulheres e infantes “uns nos outros amontoados”, foram todas submetidas a um extremo sofrimento, uma calamidade total8 . A Igreja, representada por membros da Companhia de Jesus, afirmou que o tremor na capital era uma punição de Deus não só pelos pecados cometidos no reino português, mas também em virtude da rala devoção dos 7 A referência é ao horripilante terremoto seguido de tsunami que abateu a capital portuguesa em 1755, deixando aproximadamente quinze mil mortos, e mais de vinte mil construções em ruínas. 8 Voltaire. Poème sur le désastre de Lisbonne. In : Mélanges. Ed. Jacques van den Heuvel. Paris: Gallimard, 1961, p. 304. 15 governantes. Um grande líder dos jesuítas, Gabriel Malagrida, afamado no Brasil e em Portugal, condenou severamente aqueles que construíam abrigos para os desamparados e recomendou a todos, com ênfase, fazer penitências e procissões. Pombal, contra a Companhia, defendeu a bandeira da superação da tragédia e preferiu aproveitar a oportunidade e reconstruir a cidade de acordo com o espírito intelectual e econômico da época. O primeiro-ministro do rei D. João propalou, afinado ao discurso iluminista, que tudo se devia apenas a causas naturais, e mais nada9 . Voltaire e Rousseau discutiram com a maior profundidade (e para além da mera lamentação) a questão teológica e filosófica da providência envolvida nesse caso específico. Rousseau se empenhou em livrar da culpa o divino: atribuiu o terremoto a razões naturais, ajuntando a elas a responsabilidade dos próprios cidadãos que, ao construírem casas em um local tão geologicamente desfavorável, nada diferente podiam esperar10 . Voltaire pergunta se acaso a destruição da cidade foi obra de um “Deus livre e bom” que, do alto de sua bondade, punia os maus. Também contra a Companhia, ele indaga: haveria mais vícios em Lisboa do que em Londres e Paris? “O Universo inteiro, sem este abismo infernal, sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?”. O autor evidencia sua indignação relativamente à ideia de um Deus justo que, por meio de uma “benévola escolha”, tudo determina e, apesar disso, não impede que uma catástrofe aconteça: todo o poema repele, com veemência, o dito dos filósofos segundo o qual “tudo está bem” e “tudo é necessário”11. Seu foco mais evidente – a teoria do otimismo – recai naturalmente sobre Leibniz. Leibniz nunca me ensina por quais nós invisíveis, No mais bem ordenado dos universos possíveis, Uma desordem eterna, um caos de infelicidades, Aos nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades, Nem por que é que o inocente, tal como o culpado, Sofre do mesmo modo este mal desgraçado12 . 9 Marques, J. The paths of providence: Voltaire and Rousseau on the Lisbon earthquake. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas-SP, v. 15, jan/jun 2005, p. 34-35. 10 Rousseau, J.-J. Carta sobre a providência. In: Escritos sobre a religião e a moral. Tradução J. Oscar de Almeida Marques. Campinas-SP: IFCH-UNICAMP. Cadernos de Tradução, n. 2, agosto de 2002, pp. 7-22. 11 Voltaire, op. cit., p. 309. 12 Idem, p. 308. 16 As amarras leibnizianas do universo mais bem ordenado possível tecem a realidade como “uma desordem eterna”, um autêntico “caos de infelicidades” e misturam dores de verdade a prazeres inúteis. Os “nós invisíveis” que atam as partes todas do mundo fazem do culpado e do inocente o mesmo alvo de uma idêntica sentença, igualmente desgraçada para ambos. Os argumentos de Leibniz para a sustentação da tese do melhor dos mundos são bem conhecidos: Da perfeição suprema de Deus depreende-se que, ao produzir o universo, Ele terá escolhido o melhor plano possível, onde haja a maior variedade com a maior ordem, com o melhor ordenamento do terreno, do lugar e do tempo (...). A sabedoria suprema de Deus levou-O a escolher, sobretudo, as leis do movimento mais bem ajustadas e mais convenientes às razões abstratas e metafísicas (...). Tudo nas coisas está ordenado de uma vez por todas com tanta ordem e consonância quanto é possível, porque a suprema sabedoria e bondade só pode agir com uma harmonia perfeita (...)13 . Na concepção leibniziana, todos os mundos possíveis, concorrendo no intelecto de Deus, pretendiam à existência cada um mediante as potencialidades de suas perfeições14; como é sumamente perfeito, Deus escolheu o mundo que apresentou a maior variedade e a melhor ordenação, optando pelas leis mecânicas mais convenientes e adequadas à melhor harmonia possível. Como acreditar – inquire Voltaire – que a melhor harmonia possível presente no intelecto de um Deus perfeitíssimo seja de tal maneira cruel que Lisboa esteja em ruínas, mas se dance em Paris?15 O terremoto de Lisboa retrata uma situação exemplar para se problematizar a coerência entre partes e todo, afinal, esse episódio coloca em pauta, a um só tempo, a determinação da ordem física e a instituição da ordem moral do mundo: um sismo, todos sabem, é um confrontar-se de partes de placas rochosas subterrâneas que, seguindo certas leis de movimento naturalmente dadas, chocam-se umas com as outras; igualmente, implica um problema moral, na medida em que resulta em inúmeras mortes de inocentes e promove toda sorte de dores tanto aos bons quanto aos maus, indiferentemente. 13 Leibniz, G. Princípios da Natureza e da Graça fundados na Razão (§§10-11; §13). In: Obras escolhidas. Tradução: A. Borges Coelho. Lisboa: Horizonte, s/d., p. 9-10. 14 Leibniz, Princípios da Natureza..., op. cit, p. 9. 15 Voltaire, op. cit., p. 302. 1 O desastre que se eternizou na memória dos europeus no século XVIII mobiliza, pois, o problema da coerência tanto no plano físico quanto no plano moral. A coerência ou a falta de coerência da natureza assaltou os homens em todos os tempos históricos, de modo que desde as primeiras especulações dos filósofos pré-socráticos, ou mesmo antes deles, com as explicações mitológicas para a origem do universo, o problema da relação entre parte e todo foi profundamente discutido. 1.2. Um modelo pré-socrático16 Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, ao constatar que “a sabedoria é uma ciência a respeito de certos princípios e causas”, regressa a Hesíodo e à base de sua cosmogonia que propunha a terra como “o primeiro corpo que veio a ser”17. No início, segundo o poeta, só havia Caos; depois, conformando uma primeira ordem ao mundo, surgiu Terra18 . Quando, porém, como explica Aristóteles, os homens passaram a se admirar de sua ignorância a respeito da natureza e do universo, eles foram aprimorando suas questões 16 Doravante serão feitas citações de pensadores pré-socráticos, Platão e Aristóteles. Para a citação dos pré-socráticos utilizaremos as diversas traduções oferecidas pela coleção Os Pensadores (Pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1999). Em um único caso, que será pontualmente assinalado, empregaremos a tradução preparada por Gerd Bornheim (Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1998). Em todas as citações, informaremos a paginação da consagrada edição Diels-Kranz, sinalizada por “DK”. Para as citações de Platão e Aristóteles que remetem aos pré-socráticos também ofereceremos a numeração de página da edição Diels-Kranz (antecedida pela mesma sigla). Neste capítulo, sempre que houver a indicação “Os Pensadores”, seguida de número de página, estaremos nos referindo ao volume sobre os pré-socráticos. As obras de Platão citadas serão as seguintes: Apologia de Sócrates (Tradução: S. Regino. São Paulo: Martin Claret, 2009; edição bilíngue), Sofista (Tradução: J. Paleikat & J. Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1983), Crátilo (Tradução: L. Souza. In: Souza, L. Crátilo de Platão – estudo e tradução. 2010. Dissertação [Mestrado em Letras]. Universidade de São Paulo, São Paulo), Protágoras (Tradução: A. Lobo Vilela. Lisboa: Inquérito, s/d), Fédon (Tradução: C. Alberto Nunes. Belém: Editora da UFPA, 2011). Finalmente, listamos as edições de Aristóteles empregadas: Metafísica I, II e III (Tradução: L. Angioni. Campinas-SP: IFCH/Unicamp, 2008; Col. Cadernos de Tradução, n. 15); Metafísica XII (Tradução: L. Angioni. In: Cadernos de História e Filosofia da Ciência. Campinas-SP, v. 15, jan./jun. 2005); Física I e II (Tradução: L. Angioni. Campinas-SP: IFCH/Unicamp, 2008; Col. Cadernos de Tradução, n. 1); Física III e IV (Física. Traducción: G. Echandía. Madrid: Gredos Editorial, 1995); Sobre a geração e corrupção (On the generation and corruption. Translation: H. Joachim. In: Barnes, J. The complete works of Aristotle , vol. 1. Princeton: Princeton University Press, 1984); Ética a Nicômaco (Tradução: L. Vallandro & G. Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1973); e Retórica (Tradução: M. Alexandre Júnior, P. Alberto & A. Pena. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2005). 17 Aristóteles, Metafísica I, 8, 989 a 10. 18 Os versos da Teogonia que inspiraram a afirmação de Aristóteles são precisamente os seguintes: “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também / Terra de amplo seio (...)” (cf. Hesíodo, Teogonia. Tradução: J. Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 91). 18 quanto à cosmogonia, e começaram a investigar impasses sobre dificuldades maiores, “sobre as afecções da lua, do sol e dos astros, e sobre a geração do todo”19 . Os pensadores anteriores a Sócrates e Platão se dedicaram, de fato, a meditar sobre o princípio material do mundo. De acordo com Aristóteles20, os primeiros homens que viveram unicamente voltados ao ócio e ao lazer, dispondo de tempo para pensar, atribuíram a causa de todo o cosmos ou a um único elemento, ou a um conjunto de elementos. Assim, ele relembra que Tales propôs a água como princípio; Anaxímenes e Diógenes o ar; Hipaso e Heráclito, o fogo; Anaximandro o ilimitado (apeiron); Pitágoras, o número; Parmênides, o fogo e a terra; Empédocles os quatro elementos: água, ar, fogo e terra (mais amizade e discórdia, formando um total de seis princípios)21 . Os pré-socráticos tardios – os que se aproximam mais dos tempos da Grécia clássica – tiveram como bagagem estas concepções cosmológicas que estavam sendo produzidas nas cidades gregas de Mileto, Samos, Éfeso, Eleia e Agrigento por volta do século VI antes da era cristã. Ainda que tais pensadores e muitos outros compusessem a imagem da mais pura sabedoria, absorvida dos povos antigos (egípcios, babilônicos, mesopotâmicos, caldeus etc.), duas teorias se digladiavam e colocavam, em conformidade com a tradição, os problemas fundamentais com os quais toda a filosofia posterior teve de lidar: de um lado, o que se chamou de doutrina imobilista (geralmente referida a Parmênides e aos eleatas), e de outro a doutrina mobilista (frequentemente referida a Heráclito). Conquanto estudos recentes mostrem que entre as filosofias de Parmênides e Heráclito não há necessariamente a contraposição radical que até hoje domina os manuais de filosofia22, colocava-se para o século V, sob este prisma, o delicado impasse de fazer convergirem as duas concepções sem que se perdesse, de cada uma, a sua natureza fundamental. Ao lado dos eleatas, era necessário manter a tese fundamental do ser uno, isto é, a concepção segundo a qual o ser é e o não ser não é. Ao lado de Heráclito, era necessário explicar a multiplicidade dos seres e do vir a ser de cada coisa, ou seja, dar conta 19 Aristóteles, Metafísica I, 2, 982 b 15-16. 20 Cf. Aristóteles, Metafísica I, 3, 983 b 33 a 984 a 4. 21 Aristóteles, Sobre a geração e corrupção I, 1, 314 a 17-19. Na Metafísica, Aristóteles explica que o número era para os pitagóricos um fundamento material; era, pois, “matéria dos entes” (Metafísica I, 5, 986 a 15-16). Também o ilimitado de Anaximandro parece possuir o estatuto de matéria ou elemento, como no dizer de Nietzsche, um “elemento primordial” (cf. Nietzsche, F. A Filosofia na idade trágica dos gregos. Tradução: M. Inês de Andrade. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 35). 22 Cf. Bocayuva, I. “Parmênides e Heráclito: diferença e sintonia”. Kriterion. Belo Horizonte-MG, n. 112, dez. 2010, p. 399-410. 19 do múltiplo, não como mera aparência, tal como reivindicavam Parmênides e Melisso, mas do múltiplo, não como mera aparência, tal como reivindicavam Parmênides e Melisso, mas como uma realidade. Esse debate entre mobilismo e imobilismo, como vulgarmente se costumou chamar, acompanhou a filosofia posterior, e envolveu, igualmente, as conjecturas em torno da noção de conhecimento, para além da dimensão meramente física. Sócrates, no final do Crátilo, incita uma crítica ao mobilismo extremo que, ao negar qualquer fixidez aos objetos da natureza, impede a própria formação do conhecimento23. Como se nota, as duas teorias, postas como diametralmente contrárias, deveriam ser conciliadas. É justamente no entrechoque dessas duas tendências que as filosofias de Anaxágoras de Clazômena e Demócrito de Abdera se formaram no século V; ambas tiveram que dar conta dos impasses impostos entre o ser e o vir a ser. O atomismo de Leucipo e Demócrito foi discutido no século XVII dentro do círculo científico ao qual Espinosa pertencia e será analisado, portanto, mais adiante. Anaxágoras ocupa um lugar essencial na história da filosofia não só pelas circunstâncias históricas e geográficas que vivenciou, mas também pela pluralidade de interpretações que sua cosmologia disseminou ao longo dos séculos; sua doutrina cultiva um vocabulário muito similar (senão idêntico) ao vocabulário filosófico disposto por Espinosa e pelo século XVII no que tange à questão da coerência: é com Anaxágoras que os termos “união”, “separação”, “necessidade” e “acidente/acaso”, “semelhança” e “dessemelhança”, “identidade” e “diferença”, “todo” e “parte” são pela primeira vez colocados de uma forma complexa. Embora de Clazômena (nascido em 500 a.C.), Anaxágoras fez fama em Atenas, onde chegou com cerca de vinte anos. De imediato, começou a participar de grandes círculos intelectuais da cidade, frequentando os mesmos espaços que Temistócles, responsável por ampliar de maneira significativa o conhecimento grego sobre os mares. Atraindo a atenção de todos por ser jovem e muito sábio, ele se destacou como professor de Péricles e como autor de tratados de filosofia natural24; foi um dos grandes responsáveis por 23 “Mas nem é possível falar de conhecer, Crátilo, se todas as coisas mudam de forma e nada permanece” (Crátilo, 440a). 24 Gershenson, D. & Greenberg, D. Anaxagoras and the birth of scientific method. N. York, Toronto & London: Blaisdell, 1964, p. 1, 3-4. 20 trazer toda a tradição dos debates cosmológicos para Atenas, a cidade que se tornava então, graças a Péricles, uma liderança política25 . Anaxágoras, com sua cosmogonia, situa-se entre os primeiros a teorizar a relação entre as partes do universo, avançando em relação às explicações que se restringiam a oferecer o princípio material do mundo. À luz da física, manteve a observação atenta e cuidadosa dos fenômenos como base de seu método: nada escapava de sua percepção capciosa, nem as estrelas durante a noite, nem o sol durante o dia; tempestades e terremotos foram por ele estudados, bem como a totalidade do mundo orgânico e inorgânico26. Somada ao pensamento dos atomistas, a filosofia de Anaxágoras representa o ponto mais elevado deste modo de inquirir a natureza e refletir sobre causas e princípios. Não há como negar que Heráclito, alguns pitagóricos e vários pensadores alinhados aos eleatas também tenham indagado sobre a coerência da natureza; no entanto, é com o filósofo de Clazômena que todas essas tendências parecem encontrar seu momento máximo de desenvolvimento; depois dele, com as críticas que lhe foram feitas por Platão e Aristóteles, a filosofia enveredará por outro caminho. Antes de Anaxágoras, a escola de Mileto (com Tales, Anaximandro e Anaxímenes) não passou da menção ao princípio material do mundo e de discussões sobre a natureza desse princípio. No plano da física, Anaxágoras, assim como Empédocles, tinha em mente manter a concepção ontológica dos eleatas, para a qual o ser é e o não ser não é, mas sem abandonar, como fizera Parmênides e seus seguidores, a explicação da multiplicidade, relegando-a ao estatuto de mera aparência. Para a maioria dos intérpretes, o pensador de Clazômena fundamenta sua cosmologia na ideia de que as causas da matéria são ilimitadas27 . Nous, isto é, a Inteligência28 - uma matéria muito sutil – é para ele a causa do movimento, da separação e da ordenação de todas as coisas existentes. Todas as coisas existentes, ilimitadas em quantidade e em pequenez (tamanho), estavam a princípio absolutamente juntas, quando essa Inteligência começou a separá-las. Diz-se que estavam “a princípio absolutamente 25 Idem, p. 2. 26 Idem, p. 5. 27 O termo “ilimitadas” traduz aqui ápeira, literalmente, “sem limites”. No entanto, costuma-se traduzir por “infinitas” (cf. Os Pensadores, p. 221) ou “indefinidas”, em alguns casos. 28 Nous será traduzido aqui como “Inteligência”, porém, há diversas traduções para esta palavra: “Espírito”, “Entendimento”, “Mente” etc. 21 juntas”, pois as coisas sempre permanecem juntas, ainda que – depois da ação do Nous – fiquem mais ou menos separadas. No fragmento 11 do tratado anaxagoreano Sobre a natureza, o filósofo apresenta sua mais notória tese, a de que “em cada coisa há uma porção de cada coisa, exceto no Nous” 29. Desse modo, em sua concepção, tudo é parte de tudo e somente a Inteligência permanece homogênea. Embora para muitos comentadores o Nous seja, na verdade, o único princípio da cosmogonia de Anaxágoras, sua aparição no quadro do pensamento filosófico pré-socrático vai além desse dado, pois faz emergir duas grandes descobertas: a primeira consiste na admissão de um único princípio ordenador e inteligente de todas as partes da natureza, reconhecidas agora como multiplicidades reais; a segunda corresponde ao sentido em que esse princípio motriz opera: separando de cada coisa o que ela tem de diferente de si mesma e reunindo, em um processo infindo, o que é comum a cada uma delas. Esse movimento impresso pela Inteligência sobre todas as coisas as separa sempre mais, mas nunca absolutamente. Dois fragmentos de Sobre a natureza nos informam acerca disso: Fragmento 8: As coisas neste cosmos não estão isoladas, nem separadas com machado umas das outras, nem o quente do frio, nem o frio do quente. Fragmento 13: E quando o Espírito (Nous) começou o movimento, separou-se de tudo o que era posto em movimento; e tudo o que o espírito pôs em movimento foi separado. E quando as coisas foram postas em movimento e separadas, a revolução separou-as ainda mais umas das outras30 . O primeiro fragmento, concordando com a tese da presença de todas as coisas em todas as coisas, assegura que nada no cosmos está isolado (isto é, sem conexão com o circundante) ou separado por ruptura (como com um machado). O segundo marca um princípio temporal para o movimento (“quando o espírito começou o movimento”), e cria uma identidade lógica entre mover e separar, considerando que ambas as ações se estendem cada vez mais no tempo, embora nunca separe as coisas definitivamente (“a revolução separou-as ainda mais umas das outras”). O modo pelo qual as coisas estão separadas (fragmento 8) e o tempo em que essa separação se deu, ainda que de forma inconclusa (fragmento 13), leva Anaxágoras a admitir – para grande parte dos comentadores – a tese de um caos original, tal como no poema de 29 DK 59 B 11. Os Pensadores, p. 223. 30 A citação está conforme a tradução de Gerd Bornheim (DK 59 B 8, 13). Em Os Pensadores, p. 222 e 223. 22 Hesíodo; obriga-o, ademais, a ter que explicar como agiu certa vez essa Inteligência, a única coisa que a nada se mistura, sendo totalmente ilimitada, autônoma, homogênea e por si mesma (como se lê no fragmento 12). O oitavo capítulo da Metafísica I aperfeiçoa o entendimento desse caos anaxagoreano. Nessa passagem, Aristóteles critica a cosmogonia de Anaxágoras por pensar as coisas como originalmente juntas, reivindicando aquela prioridade do não-misturado. Para o estagirita, é de vários modos absurdo afirmar que todas coisas estavam misturadas no início – porque é preciso que elas estivessem previamente dadas como não-misturadas, e porque não é verdade que qualquer coisa naturalmente é apta a se misturar com qualquer coisa (...)31 . Anaxágoras construiu, como se percebe pela crítica aristotélica, uma ideia de caos diferente do caos mitológico, de modo a não defini-lo mais como não-ser, mas como um ser imóvel, que não vem a ser nem deixa de ser, não se gera nem se corrompe, que permanece desde sempre eterno. Com isso, ele manteve a salvo o essencial da doutrina de Parmênides: por mais que reconheça a existência de infinitas substâncias, nunca haverá mais ou menos substâncias, elas sempre existirão em idêntica quantidade. Por outro lado, ele não relegará o movimento, empiricamente perceptível, ao não-ser ou ao aparente: a mudança e o movimento serão tidos como realidade, mobilizando as infinitas substâncias, ainda que não sejam capazes, por si mesmos, de engendrar novos itens ou destruir sequer um deles. O início do movimento (quando a Inteligência começou a mover e separar as coisas) e o término do movimento (se ela finalmente vier a separar absolutamente tudo) são e serão, sempre, desconhecidos pelos homens32. No entanto, é possível conhecer como a Inteligência, sendo não-misturada, causa o movimento e ordena as coisas, dispondo-as conforme as percebemos. Aqui incide o pensamento segundo o qual “qualquer coisa é naturalmente apta a se misturar com qualquer coisa”, tal como Aristóteles enuncia em sua crítica. Esse 31 Aristóteles, Metafísica I, 8, 989 b 4-9. 32 Cf. Fragmento 7: “Assim das coisas separadas não podemos conhecer a quantidade, nem na teoria, nem na prática” (DK 59 B 7; Os Pensadores, p. 222). Nietzsche observa que, como a mistura originária era infinita, o Nous precisa de um tempo infinito para desfazê-la por completo (cf. Nietzsche, A filosofia na idade trágica dos gregos, op. cit., p. 95). 23 pensamento é formulado por Anaxágoras, da forma a mais clara que chegou à posteridade, no fragmento 12 de Sobre a Natureza33. Nesse texto, ele explica o modo de operação da Inteligência, começando por esclarecer que, se tudo está misturado em tudo e ela é a única coisa homogênea, então não poderia estar misturada a nada, pois se estivesse ligada a um item qualquer, estaria ligada a todos imediatamente. Portanto, embora reconheça que em algumas coisas o Nous está incluído (cf. fragmento 11), de nenhuma forma pode-se dizer que se mistura a isso que ele contém ou em que está contido. Trata-se da “mais fina de todas as coisas e a mais pura; e tem todo conhecimento de todas as coisas e a maior força; (...) tem poder sobre todas as coisas que têm alma, tanto as maiores como as menores” (fragmento 12). O sentido da operação do Nous é o de ordenar um caos de coisas misturadas, reunindo as “partes iguais” ou as “sementes” de cada coisa que integra o universo. Isso faz surgir a teoria das sementes ou das homeomerias34, por meio da qual o filósofo de Clazômena reivindica que, se tudo tem parte em tudo, o que caracteriza cada coisa é aquilo que ela tem em maior quantidade. Assim, por exemplo, ouro é aquilo em que existem muitas coisas (como cabelo, carne, osso etc.), mas predominantemente ouro. Os homeômeros, de acordo com a tradição, passaram a designar sempre isso: os compostos de partes exatamente iguais; uma coisa homeômera é encontrada quando, sendo ela dividida infinitas vezes, o que resta é idêntico àquilo que era antes da divisão. As homeomerias não são criadas nem destruídas, mas eternas; apenas parecem geradas e corrompidas na medida em que se combinam e se diluem, mas, como já foi expresso, nem vêm a ser nem deixam de ser. Diante disso, a direção do agir do Nous é mais claramente apreendida. Para Simplício, Teofrasto a descreveu bem afirmando que (...) na separação do ilimitado as coisas de origem comum eram levadas umas às outras, e porque no todo havia ouro, gerava-se ouro, e porque havia terra, gerava-se terra; e assim também cada uma das outras coisas, que não se engendravam, mas já antes eram subjacentes35 . 33 Sobre o fragmento 12 e sua importância no conjunto dos fragmentos que nos chegaram de Anaxágoras, cf. o longo comentário de Schofield, M. An essay on Anaxagoras. London/New York: Cambridge, 1980, p. 3-35. 34 O termo homeomerias, literalmente, “partes iguais” é provavelmente uma criação de Aristóteles ao interpretar Anaxágoras. O próprio Anaxágoras parece ter usado a palavra “spermata” para se referir às “sementes” de cada coisa. 35 DK 59 A 41. Os Pensadores, p. 216. 24 Esse dado é fundamental, porque evidencia que o sentido da ação do Nous (aquilo que separa o ilimitado) se faz como aproximação de coisas comuns ou semelhantes; “tudo é nutrido pelo semelhante”36. Além disso, ele expressa o primeiro momento da história da filosofia em que se cria certa dinâmica de coisas em comum articulada a toda uma maquinaria conceitual dedicada a explicar a coerência da natureza. Temos, assim, não só a aparição de um princípio inteligente ordenador do caos original, mas também uma compreensão da organização complexa das partes da natureza através do argumento de que “cada homeomeria, semelhantemente ao todo, contém todas as coisas já existentes, e que não são apenas infinitas, mas infinitas vezes infinitas (...)”37 . 1.3. As críticas de Sócrates Desde esse momento, o termo ou mesmo a ideia de homeomeria povoará os estudos sobre física e metafísica, habitando inclusive discussões de filosofia prática. Um exemplo é o Protágoras de Platão, quando a noção de homeomeria (não o termo propriamente dito) aparece ainda antes de Aristóteles. Nesse diálogo sobre a possibilidade ou a impossibilidade de se ensinar a virtude, após uma longa exposição de Protágoras, Sócrates aponta ao seu interlocutor algumas objeções. A primeira delas diz respeito à natureza das partes que constituem a virtude: seriam elas partes iguais, como as partes do ouro (distintas apenas quanto ao tamanho), ou como as partes do rosto (diferentes como o nariz, a boca, o olho etc.)? O objetivo de Sócrates era saber se, para Protágoras, a virtude era una e composta de partes diferentes como a justiça, a temperança e a piedade, ou se todas essas qualidades eram apenas nomes diferentes de uma só coisa – a virtude – de modo que, tendo efetivamente uma dessas qualidades, um homem possui imediatamente toda a virtude38 . A noção de homeomeria se apresenta neste debate sobre a moral e, relacionada ou não ao conceito físico de Anaxágoras, ela o expressa bem: a virtude tomada como algo homeômero seria tal que uma vez alguém participando de qualquer parte dela (como a justiça, por exemplo), teria imediatamente acesso a todas as demais (a piedade, a coragem etc.), afinal todas as partes teriam parte em todas as partes. 36 Aristóteles, Física III, 4, 203 b 10; DK 59 A 45. Os Pensadores, p. 217. 37 Idem. 38 Platão, Protágoras, 329 c-e. 25 No decorrer do diálogo, seduzido pela maiêutica, Protágoras é obrigado a experimentar a ironia de Sócrates. Inquirido pelo mestre de Platão, o sofista afirmou que as partes da virtude eram diferentes, de tal forma que seria possível a alguém ter uma parte da virtude e não outra, por exemplo, ser corajoso, mas não ser justo (isto é, participar da coragem, mas não da justiça)39. Entretanto, pouco depois, embaraçado pelas perguntas socráticas, ele foi obrigado a reconhecer que as partes da virtude são profundamente semelhantes entre si, pois não poderia ser dito virtuoso um homem que comete uma injustiça corajosamente, ou aquele que, sendo justo, comete uma impiedade40 . É certo que Platão não invoca o nome de Anaxágoras para pensar esta questão no Protágoras, mas no Fédon, ele é explicitamente evocado para receber a crítica que mais fortemente pesará sobre seu nome ao longo de toda a tradição filosófica. Pode-se dizer, aliás, que toda a tradição filosófica, ao menos no que tange à discussão sobre a coerência entre as partes da natureza, se construiu à luz desta crítica: a ausência de uma teleologia na ação do Nous e, mais especificamente, a falta de uma identificação entre o Nous e a ideia (moral) de bem. Antes de beber a cicuta, a certa altura do Fédon, Sócrates conta que ainda jovem havia ouvido alguém dizer que Anaxágoras expusera em livro a teoria segundo a qual uma Inteligência (Nous) seria a causa de tudo e coordenadora de todas as coisas. Encantado com esse pensamento, Sócrates imaginou que o autor demonstrar-lhe-ia como essa mente organizaria tudo em seu lugar, dispondo as coisas da melhor maneira possível e para o bem comum; Anaxágoras não se limitaria a expor que a Terra era redonda ou plana, mas mostraria o porquê de ser melhor uma forma em relação à outra. O desencanto, porém, se deu quando ele foi estudar a cosmologia anaxagoreana e não encontrou o melhor como causa única de tudo, e sim explicações físicas extravagantes que excluíam toda e qualquer menção ao bem. [Anaxágoras] não recorria à mente [Nous] para nada, nem a qualquer outra causa para a explicação da ordem natural das coisas, só ao ar, ao éter, à água, e a uma infinidade de causas extravagantes. Quis parecer-me que com ele acontecia como com quem começasse por declarar que tudo o que Sócrates faz é determinado pela inteligência, para depois, ao tentar apresentar a causa de cada um dos meus atos, afirmar, de início, que a razão de encontrar-me sentado agora 39 Platão, Protágoras, 329 e. 40 Platão, Protágoras, 331 a