terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Um cheiro de moralismo verde oliva na pauta de costumes de Damares

 Um cheiro de moralismo verde oliva na pauta de costumes de Damares

Não se faça injustiça a Damares como porta-bandeira da pauta de costumes. Há pegadas de coturnos de milicos nisso também, que lhe disputam a primazia como irmãos siameses nas afinidades afetivas e como integrantes da democradura. É o que se depreende na evocação da história de Cassandra Rios. Autora de literatura erótica - a mais punida, dentre todos os escritores, pelo AI-5 -, Cassandra Rios somente deixou de ser perseguida pela ditadura militar de 1964 ao adotar pseudônimo MASCULINO, com o qual conseguiu ludibriar os seus algozes e prosseguir na carreira, utilizando a MESMA paleta de artista com que pintava as MESMAS paixões tórridas entre lésbicas e demais variações de seu repertório. Graças à adoção do novo pseudônimo de Oliver Rivers, Cassandra Rios (1932-2002), pseudônimo de Odete Perez Rios, paulista da Capital, deixou de ser "cliente" contumaz do DOPS, como era conhecida a sede da polícia política no Estado de São Paulo. (Não se pretende insinuar, com isso, que se manifeste algum pendor homoafetivo na corporação de machos fardados).
Cassandra Rios foi a primeira autora brasileira a vender um milhão de exemplares, superando os escritores de maior sucesso editorial na época, como Jorge Amado e Érico Veríssimo. Ao cair em desgraça vítima do AI-5, teve a sua vida pessoal e autoral convertidas num inferno persecutório. CURIOSAMENTE (ou estranhamente, ao seu gosto, leitor), a caçada inquisitorial somente não a levou à falência, porque, em busca de sobrevivência na atividade, ocorreu-lhe a óbvia ideia de explorar a seu favor o machismo militar, ao mudar de feminino para masculino o sexo de seu pseudônimo. Bingo!
Enquanto os livros de Cassandra Rios, como autora FEMININA, eram recolhidos das estantes das livrarias de todo o País e queimados e a sua livraria fechada, mediante a mesma truculência com que os esbirros arrancavam de dentro de suas casas os opositores da ditadura, o pseudônimo MASCULINO pode prosseguir tranquilamente na sua carreira, livrando-a da miséria e da fome.
No mundo das letras brasileiras, foi talvez a autora mais visada pela sanha moralista verde-oliva. Essa mesma sanha que ameaça retornar agora com o governo Mijair, como atesta a militância dos ministros igrejeiros e adjacentes no atual Ministério. Da mensagem enviada ao Congresso pelo presidente da República, por ocasião do início do ano legislativo 2021, dos 33 temas apresentados como PRIORTÁRIOS, constam nove da pauta de costumes.
Entenda-se: Cassandra Rios nunca foi militante de esquerda e jamais se propusera a fazer oposição à ditadura. Não fosse a perseguição obsessiva que marcou os dias atribulados de sua atividade profissional, o nome e a obra de Cassandra Rios teriam passado incólumes ao preconceito e à intolerância suspeita da agremiação machista. Longe da política, ou de alguma especial aversão à hipocrisia, ao cinismo, à ignorância e à obtusidade dos militares, ela se dedicava tão somente à exploração bem sucedida de seu filão de autora comercial.
O crime? A liberdade sexual.
Nivaldo Manzano, jornalista.