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sexta-feira, 7 de março de 2025
GUERRA CULTURAL
GUERRA CULTURAL
TEXTO DE Ivanisa Teitelroit Martins
que analisa em profundidade inédita a realidade que vivemos.
“As lógicas discursivas e a guerra cultural
vivo daquilo que o outro não sabe sobre mim. (Peter Handke, Nobel da literatura em 2019), vivo daquilo que nem eu mesmo sei de mim.
A cultura não é um elemento acessório na luta e nos conflitos políticos; ela é o campo onde se constroem as bases da hegemonia. Quem controla a cultura não apenas domina narrativas, mas define os limites do possível, orienta valores e molda a percepção da realidade. Enfrentar a guerra cultural, portanto, exige mais do que reação ou denúncia: é necessário um esforço estratégico e de longo prazo que trate a cultura como o principal território de disputa política. Apenas ao disputar a cultura de forma propositiva e estruturada será possível reverter a hegemonia conservadora e resgatar a capacidade de a cultura funcionar como uma ferramenta crítica, capaz de ampliar os horizontes do debate público e transformar a sociedade.
A guerra cultural não é um desvio da política real, mas uma de suas formas mais sofisticadas de disputa pelo poder. Ela opera no longo prazo, reconfigurando percepções, deslocando termos do debate público e redefinindo o que é socialmente aceitável ou inaceitável. Enquanto a direita utilizou esse mecanismo para consolidar sua influência, a esquerda demorou a reconhecer a cultura como um território central na luta política.
O resultado é um cenário onde o debate público foi capturado por discursos que naturalizam desigualdades, reforçam hierarquias e deslegitimam o pensamento crítico. A guerra cultural não se limita ao enfrentamento direto de ideias políticas; ela transforma valores e comportamentos em campos de batalha permanentes, onde o que está em disputa não é apenas a argumentação, mas os próprios limites do que pode ser imaginado, dito e aceito na sociedade.
Com isso, a política cede à administração de necessidades sociais que não podem modificar o quadro das relações socioeconômicas já existentes e que continuam perseverando.
O hipercapitalismo dissolve a existência humana em uma rede de relações comerciais. Hoje não há mais domínio da vida que não se despoje de um aproveitamento comercial. O hipercapitalismo faz com que todas as relações humanas se tornem relações comerciais. Toma da pessoa sua dignidade e a substitui por valor de mercado. Vivemos em uma sociedade orientada completamente pela produção, pela positividade. Ela suprime a negatividade do outro, do estrangeiro, para acelerar a circulação de produção e de consumo. O que se permite são apenas as diferenças consumíveis. O outro, a quem foi retirada a alteridade, não se pode amar, apenas consumir.
Na hipercomunicação digital tudo se mistura com tudo. Os limites entre o interno e o externo se tornaram cada vez mais permeáveis. Pessoas tornam-se interfaces de um mundo totalmente conectado. Essa desproteção digital é estimulada e explorada por um excesso do discurso do capital.
Um grau maior de informação não cria, sozinho, uma renovação ou modificação sistêmica. A busca pela transparência da “verdade digital” desencadeou um exercício de exame permanente entre o que é verdadeiro e o que é falso. A chamada “verdade digital” constantemente manipulada é um fator que estabiliza o sistema conservador ao invés de questioná-lo. Falta à transparência a negatividade que coloca em questão o sistema político-econômico preexistente, o status quo.
A sociedade da transparência é uma sociedade do positivo. Há transparência quando as coisas ficam transparentes quando se despojam de toda e qualquer negatividade, quando se tornam lisas, niveladas, quando se inserem sem resistência na corrente lisa do capital, da comunicação e da informação. As ações se tornam transparentes quando se subordinam ao processo contável, governável e controlável. As coisas se tornam transparentes quando perdem suas particularidades e se expressam apenas por seu preço. As imagens se tornam transparentes ao se alijarem de toda e qualquer profundidade hermenêutica chegando à perda de sentido.
Há uma fenda aberta no eu que impede que o sistema psíquico concorde e coincida consigo mesmo. Essa fenda se situa no lugar da não transparência e faz com que a transparência do eu seja impossível. Também entre as pessoas há uma fenda aberta. O isso que fica oculto ao eu passa pela fenda psíquica. A iluminação total, a transparência total leva a um tipo de esgotamento do sujeito. O ser humano precisa de esferas em que possa estar em si mesmo sem se preocupar com a opinião dos outros. Apenas a máquina é inteiramente transparente. O psiquismo não é uma máquina. A interioridade, a espontaneidade e a capacidade de gerar acontecimentos são opostas à transparência. O outro é que me questiona, que me arranca de minha interioridade narcísica. Temos a capacidade de ver o outro em sua alteridade se não estivermos inundados pela nossa intimidade. Por outro lado devemos preservar nossa intimidade da sociedade da transparência.
Temos que lidar hoje com uma técnica do poder, o poder smart, que não nega ou oprime nossa liberdade, mas que a esgota. É nisso que consiste a crise atual da liberdade. A avaliação algorítmica de uma pessoa contradiz a ideia da dignidade humana. Nenhuma pessoa deveria ser degradada a um objeto de avaliação. Por outro lado, se forem mantidos mistérios, segredos, estranheza ou outridade serão criados obstáculos que venham a subverter uma comunicação ilimitada, uma hipercomunicação, seus excessos e seus efeitos sobre o sujeito.
A cultura institui o sujeito como humano. Sem o aparato do campo social o sujeito não sobrevive. O sujeito é constituído a partir do campo da linguagem, do simbólico. O sujeito só́ é possível porque entra na ordem social. A constituição do sujeito está atrelada ao campo social o que é uma condição para sua existência.
Para Dessal, psicanalista argentino, o indivíduo pós-moderno é aquele que se vê obrigado a buscar soluções biográficas para problemas sistêmicos. O recurso à biografia torna-se insuficiente diante de uma lógica e de um discurso que hegemonizam uma cultura no contexto nacional e que se mostra em franca expansão no contexto internacional. O recurso à biografia se torna paliativo, sem conseguir se opor à força e a penetração do discurso do capital através da hipercomunicação, tendo como força paradoxalmente solidária o que há de mais temível e que nos espreita dentro de nós mesmos, a pulsão de morte.
Giorgio Agamben, filósofo italiano, ao longo dos anos, adverte que o estado de exceção tende cada vez mais a se tornar o paradigma predominante dos governos na política contemporânea.
Para Bauman que retoma os escritos de Freud o domínio da massa por uma minoria como a imposição coercitiva do trabalho cultural tem sido adotada pela tecnologia cumprindo o papel de neutralizar e anular o pensamento crítico.
Aparelha-se pela coação por transparência que não é um imperativo ético ou político, mas econômico. A superexposição de uma pessoa maximiza a eficiência econômica. Big Data sugere e induz um conhecimento absoluto. Na realidade coincide com o não saber absoluto. É impossível se orientar no Big Data. Uma falha na comunicação nos parece insuportável. Manifesta um vazio que deve ser contornado que compele à compulsividade por mais comunicação, mais informação.
Para a psicanálise, se isso tem efeito sobre o sujeito é devido a não admissão da falta em que o contorno somente poderá ser bordeado pela palavra singular de cada um, permitindo que se retome o pensamento crítico de um a um e coletivamente. A política enquanto esfera da coletividade e da democracia deve recuperar os princípios da solidariedade, justiça e dignidade humana e repelir a hegemonia do capital.
Para Michael Foessel, filósofo francês, a história nos convida a superar os atalhos político-midiáticos que opõem, por exemplo, o liberalismo e o fascismo. A história nos convida a uma leitura mais acurada de nossa época, frequentemente deformada por slogans. A história nos estimula a prestar atenção às diferentes lógicas discursivas.
Deste ponto de vista a força da extrema-direita traduz a gramática da insegurança cultural que causa sofrimentos cuja origem é econômica e social. É urgente repolitizar a questão da extrema-direita no momento em que esta se beneficia ao máximo da ilusão de despolitização característica de uma época supostamente pós-ideológica. No momento em que um sentimento se torna ressentimento coletivo contra estrangeiros e enquanto política de governo americana. O efeito é o surgimento de uma hostilidade crescente a qualquer alteridade.
É importante ter ciência de que a extrema-direita dispõe de um corpo coerente de referências que se baseiam em um imaginário voltado para a desigualdade. A penetração do discurso da extrema-direita no espaço público intelectual e midiático se deve a um certo estágio de nossas economias, mas também a uma infraestrutura material que se apoia em novas tecnologias e no esquecimento da história.
É urgente reconhecer a técnica e a lógica do discurso da extrema-direita, analisar sua base ideológica para repolitizar o discurso, recuperar o protagonismo em defesa da estabilidade e do fortalecimento da democracia, voltar a reconhecer a origem da desigualdade socioeconômica e desenvolver políticas públicas que se voltem à igualdade e à equanimidade. Além de criar condições a todo e qualquer sujeito de viver a alteridade e a diferença no enlaçamento amoroso social contrário à pulsão de morte que inadvertidamente pode se associar à ilusão do discurso do capital, à compulsão à hipercomunicação e ao imperativo econômico da transparência absoluta.”
Ivanisa Teitelroit Martins em
17 de fevereiro de 2025
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