segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Sete diferenças entre gerir um Estado e gerir uma casa

Será que gerir um Estado é semelhante a gerir uma casa? A resposta evidente para quem pensa minimamente sobre a questão é um categórico não. Mas vale a pena refletir melhor sobre o assunto, para podermos mais eficazmente desmontar esta ideia abstrusa.

Entre os comentadores económicos defensores da austeridade, há uma ideia constante que guia a sua análise superficial e enviesada da realidade: gerir um Estado é como gerir uma casa. Não podemos gastar mais do que temos, explicam, porque teremos uma dívida crescente. Prosseguindo com um salto argumentativo de dimensões olímpicas, concluem então que teremos de cortar no Estado Social e nos serviços públicos, ignorando o prejuízo resultante de tantas despesas supérfluas ou do não pagamento de impostos pelas grandes fortunas.
O mais famoso e prolixo comentador austeritário é, como é sabido, Medina Carreira. Aquando do lançamento do seu último livro, teve a candura de nos explicar porque as donas de casa saberiam gerir melhor as contas do Estado que qualquer ex-Ministro das Finanças (como, por exemplo, ele):
“Há dois números muito fáceis de registar: a economia portuguesa dos últimos 20 anos (1990 - 2010) cresceu 1,8 (em média anual) e a despesa pública corrente primária cresceu 4,2. Qualquer dona de casa percebe que se o seu rendimento do lar crescer 1,8, a despesa não pode crescer 4,2. Teoricamente qualquer dona de casa teria feito melhor do que os governos que tivemos.”1
Portanto a boa gestão é a gestão doméstica. Mais concretamente, o modelo de gestão é Salazar, um “bom gestor”2, o “tipo que o país precisava”3. Mas Salazar, um bom dono de casa que até criava galinhas em casa, meteu-se em intrigas politiqueiras, uma pena. Portanto, explica Medina Carreira, o desafio de hoje é conciliar a democracia com a boa gestão, algo que se conseguia acabando com os partidos durante 15 a 20 anos e tendo um governo de iniciativa presidencial com técnicos não eleitos4.
Esta é a vantagem de Medina Carreira, a de conseguir explicar sem qualquer prurido o que entendem os austeritários por “democracia” e “boa gestão”. Mas voltemos ao ponto de partida. Será que gerir um Estado é semelhante a gerir uma casa? A resposta evidente para quem pensa minimamente sobre a questão é um categórico não. Mas vale a pena refletir melhor sobre o assunto, para podermos mais eficazmente desmontar esta ideia abstrusa.
Existirão imensas diferenças entre gerir um orçamento doméstico e gerir um orçamento de um Estado. Mas listarei apenas sete, centrando-me nas mais relevantes:
1. Um Estado gera a sua própria receita, uma família não. Isto é particularmente relevante porque o discurso austeritário aponta as suas baterias apenas para o lado da despesa pública, como se um Estado não pudesse financiar um aumento da despesa com o agravamento da carga fiscal. Agravamento que, entenda-se, se pode e deve fazer de forma justa, de forma a que quem ganha mais pague muito mais do que quem ganha menos.
2. As ações de uma família não afetam as outras famílias mas as ações do Estado afetam todas as famílias. Ou seja, se uma família decidir gastar menos e poupar mais, isso não afeta uma família que viva ao lado. Já se o Estado decidir gastar menos, essa decisão afeta toda a gente. Para o bem, se decidir gastar menos no BPN, ou para o mal, se decidir gastar menos na saúde.
3. Não há qualquer semelhança entre o grau de complexidade de uma economia familiar e o de uma economia nacional. Gerir uma casa passa basicamente por fazer contas de somar e subtrair, pouco mais. Não é algo fácil, como saberá qualquer pessoa que tenha de gerir um baixo salário, mas não é uma tarefa que exija ter profundas noções de gestão, finanças ou contabilidade. Já gerir um Estado implica gerir os serviços públicos, a segurança e defesa nacional, a segurança social, a administração pública, as empresas públicas, etc. Uma tarefa hercúlea, certamente não exequível por uma pessoa isolada mas antes exigindo o trabalho de uma grande equipa de peritos. Só quem não percebe rigorosamente nada sobre o funcionamento de um Estado pode pensar que a sua gestão se resume a contas de somar e subtrair.
4. As funções de uma família e de um Estado são completamente diferentes. Como a gestão se tem de adequar às funções, não faz qualquer sentido gerir da mesma forma duas entidades com funções diferentes.
5. Uma família gere o seu dinheiro, um Estado gere o dinheiro de todos/as. Isto é relevante do ponto de vista dos chamados problemas de agência, na medida em que interessa assegurar a existência de mecanismos de representação democrática que assegurem que o Estado gere o nosso dinheiro de acordo com os nossos interesses. Algo que obviamente não aconteceria com um governo de tecnocratas nomeado por um messias, como sonham os austeritários.
6. O rácio de dívida como proporção dos rendimentos considerado aceitável é muito diferente para uma família ou para um Estado. Note-se que não é possível determinar de forma técnica qual o rácio de dívida pública como percentagem do PIB que é aceitável. Podemos, contudo, aceitar que este rácio pode ser tão baixo quanto 60%, o valor fixado pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, e 120%, o valor para o qual a troika aponta como aceitável para a dívida grega. Mas uma família que peça um crédito à habitação pode ter um rácio dívida sobre rendimentos anuais de 500%5.
7. Uma família deve poupar e gastar menos quando tem menos dinheiro, um Estado deve gastar menos quando tem menos dinheiro. Esta ideia parece contra-intuitiva, o que explica a facilidade com que o discurso austeritário conquista a hegemonia no senso comum, mas é fácil de entender tendo em conta que um Estado gera a sua receita. A questão é que uma das funções do Estado é a estabilização do ciclo económico. Significa isto que, em período de recessão, não só o Estado deve apoiar quem fica no desemprego ou na pobreza, através das transferências sociais, mas também deve usar o investimento público como meio de recuperar a atividade económica. Naturalmente que isto implicará um aumento da dívida, mas esse aumento pode ser anulado facilmente quando o país sair da recessão, dado que a receita fiscal será superior e as despesas serão inferiores. Caso um Estado prescinda da sua intervenção contra-cíclica, as consequências de uma crise serão muito mais profundas e a sua duração será estendida. Por isso é que a austeridade nunca funcionou nem nunca funcionará.
Não é fácil de saber se os austeritários acreditam mesmo nas patranhas que nos tentam impingir ou se simplesmente não encontram melhor justificação para disfarçar o facto de que estão a implementar um programa de transferência massiva de rendimentos do trabalho para o capital, de quem trabalha para quem vive do excedente criado pelo trabalho de outrém. Mas esta análise psicologizante não é muito relevante para os nossos propósitos. Muito mais importante é conquistar o senso comum, da conversa na paragem do autocarro até à discussão de café. Fica aqui um contributo para esta tarefa.


1 Em http://livrosemanias.economico.sapo.pt/7716.html. Note-se que, tivesse Medina Carreira aprendido alguma coisa de Economia e já saberia que o que interessa não é a relação entre o crescimento económico e a despesa pública mas antes a relação entre o crescimento económico e o défice orçamental, como expliquei anteriormente: http://www.esquerda.net/opiniao/sim-%C3%A9-poss%C3%ADvel-termos-d%C3%A9fices-or%C3%A7amentais-eternamente.
5 Por exemplo, uma família que ganhe 20000€ por ano e pede um crédito de 100000€ para comprar uma casa fica com um rácio dívida como percentagem dos rendimentos de 500%.