sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Política e Moral – uma lição aos moralistas Ou: Da impossibilidade de se eliminar o conflito, para a nossa sorte.

Política e Moral – uma lição aos moralistas
Ou: Da impossibilidade de se eliminar o conflito, para a nossa sorte. (1 de 2)
Nivaldo T. Manzano
O que é certo ou errado nas relações de poder? Questão equivocada. O poder define-se pela capacidade de mandar (presidir, controlar, dirigir, ordenar, sujeitar, subordinar...) pela força ou pela capacidade de convencimento. Isso é poder na POLÍTICA. É dizer que não existe uma força, uma instância superior às relações de poder, para estabelecer o que é o certo e o errado, como acredita quem confunde Moral com Política.
O que existe, pois, são relações de poder, interesses conflitantes, conflitos inerentes a toda sociedade, que não se podem eliminar (nem na futura sociedade comunista, para desapontamento dos aficionados do paraíso terrestre e do desencanto na existência).
Assim, não se consegue eliminar diferenças de opinião entre grupos, entre pessoas ou dentro de uma mesma pessoa. O conflito é próprio da condição humana, em qualquer sociedade, o conflito social ou individual, como mostra Luís Fernando Veríssimo, na parábola sobre o conflito do turista: o paladar, aventureiro, quer viajar, para provar novos sabores, enquanto os intestinos, sedentários, querem permanecer em casa, com receio de se expor à mudança de dieta.
A analogia ilustra o caráter positivo do conflito: Se o turista se decide pela viagem, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita equivocadamente a propósito dos pactos políticos ou do entendimento por desavenças entre casais. Pois as partes conflitantes seguem juntas, ainda mais teimosas na sua oposição: os intestinos ainda mais receosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se ele embarca, enfim, é justamente por motivo inverso e complementar: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir.
Em contraste, o consenso é o paralelismo das vontades, que não estimula a solidariedade política (solidariedade no sentido técnico, não moralista), ou seja, não convida à aproximação entre forças divergentes, pois ninguém se dispõe a abdicar do próprio interesse ao custo de apoiar o interesse dos outros. Não é o consenso, mas é a irredutibilidade das diferenças que estimula a promoção de um acordo com vistas ao reforço na posição de cada um. Não haveria interesse na solidariedade, se o preço fosse a abdicação do interesse próprio. Aqui reside o equívoco da filosofia política de Habermas (consenso), ancorada no pensamento de Kant, da superioridade da racionalidade sobre as demais faculdades humanas (ética, estética, sentimentos, intuição). Da política participa o sujeito inteiro, não apenas a racionalidade.
Esta é a lição genial de Homero: Na Odisseia, o conflito é definidor nos contextos das peripécias de Ulisses, em sua longa viagem de volta à casa. Ulisses faz-se atar com cordas no mastro da nau por seus marinheiros, para não ceder à sedução das sereias, dizendo a elas e a si mesmo não, o que se traduzia, no mesmo gesto, em sim a Penélope, a esposa que o esperava em casa, na Ilha de Ítaca. É de admitir que o desejo de retornar a Penélope intensificava-se tanto mais quanto mais o premia a sedução das sereias, de modo que, se não lhe afligisse o conflito, Ulisses não encontraria estímulos para resistir à sedução das sereias nem para ansiar pelo retorno à casa
Na filosofia da Grécia Antiga, o primeiro a chamar atenção para o conflito na existência foi Heráclito (540 – 470 a. C.), ideia que colheu no mito cosmogônico do devir. Da mesma inspiração provém a filosofia de Hipócrates (460 – 375 a. C.), a mais difundida e duradoura episteme da Cultura Ocidental, tendo se estendido, em parte por influxo do filósofo e médico Averróis (1126 – 1198), por dois mil anos – do século V a. C., até pelo menos o fim do século XV. Hipócrates, que, além de filósofo era médico, localiza o conflito no interior do organismo do paciente, a quem perguntava o que estava sentindo, antes de recorrer a instrumentos mecânicos de diagnóstico: o problema estava no SUJEITO na sua resistência ou resposta à pressão do ambiente interno ou externo. Daí que, por extensão histórica, tem-se a compreensão de que dispor de poder político consiste da capacidade (autonomia) de resistir à influência de outrem, ou de sujeição a outrem, e confiar a decisão à própria cabeça. A AUTONOMIA do ser humano, graças à reflexão descolada do mito, é a contribuição mais preciosa da Grécia Antiga à cultura ocidental.
Se ainda hoje a noção de política permanece confusa a muita gente, é porque cientistas desde Descartes (século (1596 – 1650) e a escola, do primário ao nível superior, insistem, por opção ideológica, em defender a COAÇÃO e não a INTERAÇÃO do sujeito com o seu meio interno ou externo. A coação é mecânica, determinista, unidirecional; a interação é contágio, transformação ativa entre as partes (sujeito e meio), da qual resulta um novo estado do problema, um novo estado de equilíbrio em que se instala o conflito, jamais eliminado. Ou seja, a coação dispensa o sujeito como protagonista do processo, individual ou social, ao contrário da interação, que faz do sujeito o protagonista do processo de mudança individual ou social. (Aí está a pedagogia de Paulo Freire). A coação atribui às máquinas (à tecnologia, ao hardware, ao software, ao algoritmo) a fantasia delirante de conduzir e mudar o mundo, em contraste com a interação, que faz do sujeito e da humanidade protagonistas de sua própria história. Goethe ilustrou essa ideia com a sua alegoria do aprendiz de feiticeiro.
Exemplos de coação encontram-se nas teorias da evolução de Charles Darwin e do positivismo de Auguste Comte, ignorantes do caráter interativo do organismo com seu o meio interno e o seu meio externo; equívocos associados também ao funcionalismo do criador da sociologia, Émile Durkheim, e de seu discípulo Talcott Parsons, entre outros ismos, como os monocausais (energetismo etc). Imagine você, que, para eliminar o conflito de sua sociedade imaginária do EQUILÍBRIO, Talcott Parsons, o sociólogo oficial da cultura americana, do período da Guerra Fria aos dias de hoje, entregou o conflito (o “desvio social”) aos cuidados da polícia ou à psiquiatria. (Voltarei ao tema em nova postagem)
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Arriet Chahin
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