- Publicado em Domingo, 16 Setembro 2012 18:37
- Escrito por Fabiano Escher
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Para discutir argumentos como esses, buscamos ilustrar algumas ideias com exemplos retirados de dois filmes que tratam de gosto alimentar, gastronomia e culinária, e de diferenças entre classes sociais, quais sejam, Vatel: um banquete para o Rei (1999), de Rolland Joffé, e Estômago (2007), de Marcos Jorge.
Antes de qualquer coisa, é importante notar que a palavra gosto tem, pelo menos, dois significados. O primeiro refere-se diretamente ao sabor como atributo sensorial de alguma coisa (alimento), já o segundo à disposição de um indivíduo em realizar determinadas escolhas a partir das condições com que se depara, como sua posição de classe. De acordo com Seymour (2005, p.3), o conceito bourdiesiano de habitus “representa a ligação entre os componentes subjetivos e objetivos da classe, ou seja, classe como fruto de fatores amplamente econômicos, e classe como um conjunto de práticas, predisposições e sentimentos” tipicamente característicos de determinadas coletividades humanas. Assim o habitus, enquanto um conjunto de predisposições, propensões e tendências a pensar, comportar-se e agir de maneira que os membros pertencentes a uma determinada classe social consideram natural, óbvia e sensata, e não de outra, considerada inadequada, é um elemento que condiciona os gostos e as escolhas individuais. Neste sentido, conforme discute Pilla (2005, p.55), “o gosto alimentar é portador de laços sociais [...], pois o consumo do alimento em companhia de outras pessoas revela-se como expressão de sociabilidade e poder”.

Em contexto bastante distinto daquele apresentado no filme Vatel, a questão do poder e da sociabilidade também aparece no filme Estômago. Na falta absoluta de capital econômico, o protagonista Raimundo Nonato soube utilizar muito bem sua sorte, talento e sensibilidade inata para adquirir capital cultural e simbólico por meio do aprendizado da arte culinária. Esse trunfo permitiu-lhe ascender socialmente e alcançar a realização de alguns de seus desejos, como a relação com a prostituta Iria. Mas essa paixão levou Raimundo Nonato à desgraça – do mesmo modo que levou o maître Vatel, apaixonado pela bela Anne, à própria morte por suicídio. Nonato foi preso por assassinar, com requintes de crueldade, a prostituta Iria e seu amante – Giovanni, patrão de Raimundo no restaurante onde trabalhava –, que o traiam em plena noite de seu noivado. Na prisão, ele também conseguiu adquirir status, prestígio e poder por conta de seu talento gastronômico, cozinhando para os seus companheiros de cela e ascendendo na hierarquia.

O mesmo estranhamento em relação a alguma coisa supostamente “aburguesada e afeminada”, nos termos de Bourdieu (1983), ocorre quando Nonato prepara um banquete para o líder criminoso Etecetera, sob encomenda de Bujiu, que por sua vez almejava adquirir prestígio e distinção. Nonato, um Vatel tupiniquim, serviu todo o banquete “a la française”, ou seja, um prato de cada vez, para que os diferentes sabores pudessem ser apreciados. Mas a percepção dos presidiários foi, em certo sentido, negativa. Eles questionavam porque não colocar todos os pratos na mesa para que eles pudessem fazer a refeição servindo-se do jeito e na quantidade que bem entendessem.

Referências
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.).Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. Gosto e deleite: construção e sentido de um menu elegante. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, 2005, p.53-69.
SEYMOUR, Diane. A construção social do gosto. In: SLOAN, Donald (Org.).Gastronomia, restaurantes e comportamento do consumidor. Barueri (SP): Manole, 2005. p.1-26.
* Fabiano Escher é economista, mestre e doutorando em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS, além de apreciador das artes gastronômica e cinematográfica.