domingo, 16 de setembro de 2012

A construção social do gosto, no cinema e na vida


VatelNo dia-a-dia, é frequente escutarmos que isso ou aquilo é “questão de gosto”, ao que segue a sentença: “gosto não se discute”. Como se no comportamento de consumo das pessoas não houvesse nada de interessante ou importante para ser refletido do ponto de vista social e objetivo, por tratar-se de algo dado naturalmente por fatores de ordem individual e subjetiva. Em oposição a essa ideia, argumenta-se, seguindo Bourdieu (1983), que o gosto, especificamente o gosto alimentar, é constituído socialmente e tem função importante na diferenciação social, na medida em que por meio dele formam-se estratégias de distinção, que exprimem diferentes estilos de vida e posições hierárquicas na estrutura de classes.
Para discutir argumentos como esses, buscamos ilustrar algumas ideias com exemplos retirados de dois filmes que tratam de gosto alimentar, gastronomia e culinária, e de diferenças entre classes sociais, quais sejam, Vatel: um banquete para o Rei (1999), de Rolland Joffé, e Estômago (2007), de Marcos Jorge.
Antes de qualquer coisa, é importante notar que a palavra gosto tem, pelo menos, dois significados. O primeiro refere-se diretamente ao sabor como atributo sensorial de alguma coisa (alimento), já o segundo à disposição de um indivíduo em realizar determinadas escolhas a partir das condições com que se depara, como sua posição de classe. De acordo com Seymour (2005, p.3), o conceito bourdiesiano de habitus “representa a ligação entre os componentes subjetivos e objetivos da classe, ou seja, classe como fruto de fatores amplamente econômicos, e classe como um conjunto de práticas, predisposições e sentimentos” tipicamente característicos de determinadas coletividades humanas. Assim o habitus, enquanto um conjunto de predisposições, propensões e tendências a pensar, comportar-se e agir de maneira que os membros pertencentes a uma determinada classe social consideram natural, óbvia e sensata, e não de outra, considerada inadequada, é um elemento que condiciona os gostos e as escolhas individuais. Neste sentido, conforme discute Pilla (2005, p.55), “o gosto alimentar é portador de laços sociais [...], pois o consumo do alimento em companhia de outras pessoas revela-se como expressão de sociabilidade e poder”.
banquete VatelEssa posição teórica nos remete a algumas situações práticas apresentadas nos referidos filmes. Por exemplo, em Vatel, o objetivo do príncipe de Condé (que passava por dificuldades financeiras e, como forma de superá-las, almejava tornar-se general do exército francês), ao oferecer o espetacular, memorável e caro banquete ao Rei Sol, Luís XIV, em Chantilly, estava ligado à aquisição de prestígio político e militar, haja vista a eminência da guerra contra Guilherme de Orange, da Holanda. A pretensão do anfitrião é explicitada quando ele diz que “comparando a visita do rei a Chantilly com a guerra contra a Holanda, esta última não passaria de um piquenique”. Por outro lado, embora o rei absolutamente não desconsiderasse os motivos político-militares e inclusive econômicos do convite feito por seu anfitrião, e ele mesmo fosse interessado nisso, aceitou-o, sobretudo, por ser um apreciador das boas coisas da vida, como as belas artes, os sabores requintados da culinária francesa (que teve seu apogeu naquele período) e a valorização da etiqueta à mesa. O oferecimento de um banquete tão sofisticado e ritualístico era uma estratégia de busca de distinção perante a autoridade real.
Em contexto bastante distinto daquele apresentado no filme Vatel, a questão do poder e da sociabilidade também aparece no filme Estômago. Na falta absoluta de capital econômico, o protagonista Raimundo Nonato soube utilizar muito bem sua sorte, talento e sensibilidade inata para adquirir capital cultural e simbólico por meio do aprendizado da arte culinária. Esse trunfo permitiu-lhe ascender socialmente e alcançar a realização de alguns de seus desejos, como a relação com a prostituta Iria. Mas essa paixão levou Raimundo Nonato à desgraça – do mesmo modo que levou o maître Vatel, apaixonado pela bela Anne, à própria morte por suicídio. Nonato foi preso por assassinar, com requintes de crueldade, a prostituta Iria e seu amante – Giovanni, patrão de Raimundo no restaurante onde trabalhava –, que o traiam em plena noite de seu noivado. Na prisão, ele também conseguiu adquirir status, prestígio e poder por conta de seu talento gastronômico, cozinhando para os seus companheiros de cela e ascendendo na hierarquia.
Mesa EstomagoNeste mesmo filme, destaca-se o estranhamento dos presidiários aos procedimentos alimentares introduzidos por Nonato. Por exemplo, quando ele ouve falar do hábito colombiano de comer formigas e resolve preparar para o líder da cela uma farofa com esse exótico ingrediente. Bujiu come e acha bom, mas ao tomar conhecimento do ingrediente principal, reage com violência, batendo em Nonato, virando o prato e mandando que ele lhe preparasse imediatamente uma “comida de homem”.
O mesmo estranhamento em relação a alguma coisa supostamente “aburguesada e afeminada”, nos termos de Bourdieu (1983), ocorre quando Nonato prepara um banquete para o líder criminoso Etecetera, sob encomenda de Bujiu, que por sua vez almejava adquirir prestígio e distinção. Nonato, um Vatel tupiniquim, serviu todo o banquete “a la française”, ou seja, um prato de cada vez, para que os diferentes sabores pudessem ser apreciados. Mas a percepção dos presidiários foi, em certo sentido, negativa. Eles questionavam porque não colocar todos os pratos na mesa para que eles pudessem fazer a refeição servindo-se do jeito e na quantidade que bem entendessem.
Estomago“Se o ‘homem é aquilo que come’, o que gosta de comer representa seu caráter, portanto, se gosta de alimentos refinados, seu gosto lhe confere qualidade e distinção” (PILLA, 2005, p.62). Assim, o “bom gosto”, valor socialmente construído desde o século XVII, converte-se em uma importante virtude social, reconhecida por quem a possui e pelos outros, tanto seus pares como aqueles de quem ele se distingue, pois representa demonstração de superioridade em termos de capital cultural ou mesmo econômico, pois “ter bom gosto sai caro”. Como bem observou Pilla (2005, p.68), “os banquetes das sociedades ocidentais, desde há muito, contribuem para manifestar publicamente o lugar dos que neles participam. A ostentação está tanto no efeito visual como na qualidade dos alimentos oferecidos. Os modos de vestir, de falar, as habilidades à mesa, a postura, a composição e as opções de cardápio e as predileções alimentares podem classificar os indivíduos”.

Referências
BOURDIEU, Pierre. Gostos de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (Org.).Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática, 1983.
PILLA, Maria Cecília Barreto Amorim. Gosto e deleite: construção e sentido de um menu elegante. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, 2005, p.53-69.
SEYMOUR, Diane. A construção social do gosto. In: SLOAN, Donald (Org.).Gastronomia, restaurantes e comportamento do consumidor. Barueri (SP): Manole, 2005. p.1-26.

* Fabiano Escher é economista, mestre e doutorando em Desenvolvimento Rural pelo PGDR/UFRGS, além de apreciador das artes gastronômica e cinematográfica.

Grandes transformações sociais na Venezuela de Chavez


A Virada Cultural, em Caracas, se chama Rota Noturna e ocorre uma vez por mês. Em julho, bandas de rock, reggae, salsa e outros ritmos embalaram milhares de jovens em pontos espalhados por todo o centro histórico, numa festa que só terminou ao amanhecer. Na edição seguinte, em agosto, a virada caraquenha teve como foco os museus, que ficaram abertos a noite inteira, oferecendo a um público de todas as idades recitais de música e poesia.

Para o visitante brasileiro, submetido ao bombardeio de grande parte da imprensa comercial sobre os horrores da “ditadura chavista”, Caracas é uma agradável surpresa. A população desfruta como nunca do espaço urbano, que vem sendo recuperado depois de décadas de abandono.

Como em qualquer metrópole da América Latina, o contraste social na capital venezuelana é dramático. Situada num estreito vale, com 20 quilômetros no sentido leste-oeste e apenas 4 no eixo norte-sul, a cidade é rodeada por favelas. Nos bairros chiques há mansões suntuosas, várias delas com campos particulares de golfe, luxo incomum no Brasil. Lá moram os donos das fortunas acumuladas graças à renda do petróleo – uma riqueza fabulosa, da qual o povo até recentemente só recebeu as migalhas.

Com a chegada de Hugo Chávez à presidência, no final de 1998, as regras do jogo mudaram. Um gigantesco pacote de programas sociais fez cair o índice de pobreza de 70% para 28%. “Se temos a sorte de ter petróleo, que seja usado em favor do povo”, defende Gustavo Borges, coordenador de uma rede de rádios comunitárias em 23 de Enero, bairro popular que está sendo urbanizado com a instalação de escolas, clínicas de saúde, quadras esportivas e iluminação pública. No ano passado, em viagem ao Brasil, Borges visitou a favela carioca de Rio das Pedras, e se diz chocado com o que viu: “No teu país, a população mais pobre vive em condições abaixo da dignidade humana”.

A melhora da realidade social venezuelana é, de fato, impressionante. Em Caracas, dois teleféricos recém-inaugurados levam favelados até o alto dos morros. Nas ruas, não se enxerga uma única criança pedindo esmolas ou em situação de risco. Ninguém dormindo na calçada por falta de abrigo. O que mais se destaca na paisagem urbana são os canteiros de obras da Misión Vivienda, projeto governamental que pretende erguer em dois anos 350 mil casas ou apartamentos (mais de 90% já entregues) para a população sem teto ou precariamente instalada, no país inteiro. As moradias populares são espaçosas, construídas com material de qualidade e bem localizadas.

Muitos projetos habitacionais destinados aos mais pobres se situam em bairros de classe média, rompendo a segregação social no espaço urbano. Nem sempre os recém-chegados são recebidos com simpatia. “Existem pessoas de classe média que não aceitam viver ao lado dos pobres”, constata o arquiteto Francisco Farruco, um dos coordenadores da Misión Vivienda. “Eles consideram o nível de educação dos novos moradores inferior, ou inadequado seu comportamento, o que é muito discutível.” Para Farruco, esses conflitos são inevitáveis em um país que está reduzindo a desigualdade. Nas suas palavras: “O sonho de transformar Caracas passa por integração. Estamos construindo uma cidade que rompa com barreiras sociais”.

Erudição popular

Os sinais dessa mudança são muito claros. Como jornalista, viajei a Caracas várias vezes na década de 1990. Minha lembrança é de um lugar decadente e perigoso. Agora me surpreendi ao caminhar pela Sábana Grande, o centro comercial da cidade, limpo, bem iluminado e seguro. Numa esquina, um mágico reúne a seu redor dezenas de curiosos. Ali perto, crianças se divertem nos equipamentos recreativos instalados pela estatal Petróleos de Venezuela. A reurbanização daquela área faz parte de um imenso projeto de recuperação do espaço urbano, o que inclui teatros, centros esportivos, praças e monumentos históricos.

Entre os investimentos públicos, a ênfase à cultura chama atenção. Não por acaso, nos trens do metrô de Caracas se ouve música clássica o dia inteiro. É comum a presença de jovens carregando instrumentos. São alunos do Sistema Venezuelano de Orquestras, uma referência internacional. O país é, talvez, o único do mundo em que um maestro – Gustavo Dudamel, da Orquestra Sinfônica de Caracas – é um ídolo de massas.

Igor Fuser

Interesse da população e investimento do governo no setor da cultura é um dos pontos altos da Venezuela

A paisagem remodelada tem como pano de fundo uma transformação social mais profunda, que inclui a elevação da renda dos trabalhadores. Em 2011, a remuneração média teve um aumento real de 8,5% e o novo salário mínimo, anunciado em maio deste ano, um reajuste de 33,5%. A inflação, porém, é muito alta, 27% em 2011. O congelamento dos preços de 19 produtos essenciais garante uma relativa proteção ao poder de compra. E uma gigantesca rede de mercados e feiras livres estatais (a Mercal) oferece todos os itens da cesta básica pela metade dos preços do comércio privado.

Sem surpresas

A legislação trabalhista que entrou em vigor em maio amplia direitos dos assalariados em uma escala sem paralelo em qualquer outro país. O benefício em caso de demissão sem justa causa equivale à remuneração de 105 dias por ano de serviço. A trabalhadora que dá à luz ganha seis meses e meio de licença e tem garantia de emprego por dois anos. Ainda assim, a parcela da mão de obra com carteira assinada tem aumentado, e o desemprego se situa atualmente em 7,5%, um índice próximo ao brasileiro.

O “socialismo do século 21”, como Chávez batizou seu projeto político, convive com um setor privado que controla 70% da economia e garante gordos lucros aos empresários, graças à elevação do consumo popular. Do outro lado, as empresas controladas diretamente pelos trabalhadores crescem na preferência dos consumidores, com produtos como os laticínios Los Andes (vendidos até mesmo nas padarias dos bairros ricos) e o café La Fama de América, exportado para Europa e Estados Unidos. Na embalagem, essas mercadorias trazem sempre uma pequena frase, rodeada pelo desenho de um coração: Hecho en Socialismo.

Há ainda conquistas extraordinárias – que não caberão neste espaço – em educação, saúde e na participação política dos cidadãos, que se organizam em conselhos comunitários (mais de 40 mil, em todo o país) para fiscalizar as autoridades e definir investimentos públicos para as regiões onde moram. Como nada disso é divulgado na imprensa brasileira, na qual Chávez é apontado diariamente como um tirano grotesco, imagino a dificuldade dos leitores em entender o fato de ele liderar as pesquisas para as eleições de outubro com uma vantagem de 15 a 25 pontos sobre seu adversário direitista. Para quem conhece a verdadeira face da Venezuela, não há nisso surpresa alguma.

(*) texto originalmente publicado no site Outras Palavras