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quinta-feira, 4 de julho de 2024
Arostóteles arte e ciencia bbb
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nicialmente, é sempre oportuno lembrar que o espectro semântico recoberto pelo termo grego téchne é muito mais abrangente do que o que a sua tradução mais usual, arte, significa para nós. Isto ocorre porque ele não se refere apenas e tão somente à habilidade ou destreza de um especialista qualificado capaz de produzir com maestria algum artefato, mas também a uma dimensão teórica e especulativa. Em outras palavras, a téchne, portanto, é para os gregos uma forma de conhecimento. Essa relação estreita entre a téchne, por um lado, e o conhecimento teórico, por outro, é o que explica e fundamenta a intercambialidade dos termos téchne (arte) e epistéme (ciência) durante todo o século V a.c. Assim, Fernando Rey Puentes é pesquisador na Faculdade de Filosofia da Universidade de Campinas, SP. HYPNOL ANO' / NO4no A TÉCI-INE EM ARisTÓrElES quando Sófocles, por exemplo, fala da habilidade de um arqueiro no manejo do seu instrumento, ele se refere à ela, às vezes como sendo uma téchne (cf. Ajax, 1121), às vezes como sendo uma epistéme (cf. Philoc., 1057). O mesmo uso sinonímico desses termos pode-se constatar em Tucídides, quando ele alude à destreza em combater, definindo-a primeiro como epistéme e, logo a seguir, como téchne (cf. Hist., 11, 87, 4). Platão, por sua vez, tampouco se preocupa em distinguir essas duas palavras, empregando-as com freqüência de modo ambíguo, de acordo com o costume de sua época. Por esta razão, no Górgias, por exemplo, ele define o magistério de Sócrates, por analogia com a téchne iatriké (arte médica), que cuida da saúde do corpo, como uma téchne politiké (arte política), que cuidaria da saúde das almas (cf. Gorg., 464 A-C). É somente com Aristóteles que encontraremos a tentativa de estabelecer uma clara distinção entre os termos téchne e epistéme, como veremos a seguir. Todavia, mesmo nele, a força da tradição era muito forte, pois ele algumas vezes parece tratá-los como sinônimos (cf. Pol., 1282 b14 ' 1288 b10 e 1331 b37 ). Além disso, apesar de estabelecer uma clara distinção entre eles, ele chega a usá-los, ao menos uma vez, em sentido contrário ao por ele adotado, falando assim de "artes matemáticas" (Met. 981 b23-24 : mathematicaí técbnai) e de "ciências poéticas" (Met. 1041 b3 : poietikaí epistemai). Mas, vejamos como ele distinguia esses termos. Os principais textos em que Aristóteles se ocupa em diferenciar a téchne da epistéme são: o primeiro capítulo do livro Alfa da Metajísica e os capítulos três e quatro do sexto livro da Ética Nicomaquéia. Logo, será a partir desses dois textos, bem como das passagens de outras de suas obras, elencadas no sempre útil e valioso Index Aristotelicus de H.Bonitz, que empreenderemos a nossa análise. O supracitado texto da Metajísica tem por objetivo explicar a sentença com a qual o Estagirita inicia o livro Alfa, a saber, a afirmação de que todo homem aspira naturalmente ao saber. Esse anelo pelo saber manifesta-se por meio das diversas faculdades psíquicas que capacitam o homem a conhecer. Essas são: a percepção, a memória e a experiência. Destas, a primeira, isto é, a percepção é coextensiva com o próprio gênero animal (cf. De ano 413 bl _ 4 ), enquanto que as outras duas, ou seja, a memória e a experiência, entendidas como o produto de sucessivas memórias acerca de uma mesma coisa, são mais características do homem, embora também ocorram em alguns outros animais. Por outro lado, a arte (téchne) e a ciência (epistéme) são atividades exclusivamente humanas. Mas, em que elas diferem das faculdades que as produzem? Basicamente elas diferem HYPNOE ANO} / N° 41}1 FERNANdo REy PUENl ES das faculdades cogrutrvas por se referirem ao universal (kathólou), enquanto que as faculdades referem-se apenas ao particular (hékastos). A arte é produzida, mais precisamente, "quando, a partir de muitos pensamentos gerados pela experiência, produz-se uma conjectura universal acerca das coisas semelhantes" (Met. 981 aS _ 7 : hótan ek pollôn tês empeirias ennoemáton mía kathólou génetai perí tôn homoíon hypôlepsis). Dito de outra forma, a arte se gera apenas quando se é capaz de enunciar um juízo universal aplicável a diversos casos semelhantes. O Estagirita procura ilustrar esta diferença entre a experiência e a arte por meio de um exemplo muito caro e freqüente em sua obra, a saber, o exemplo da arte médica.
O nascimento da tragédia sobre Nietzsche bbb
O nascimento da tragédia sobre Nietzsche bbb
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Sinopse Nos três textos traduzidos neste livro podemos acompanhar progressivamente o nascimento do primeiro pensamento filosófico de Nietzsche, que iria ser exposto e acabado em O nascimento da tragédia, mas que aqui revela uma intimidade que não mais poderemos encontrar nesta obra. Assim, no primeiro texto traduzido, “O drama musical grego” — conferência proferida por Nietzsche, aos 25 anos de idade, como professor de filologia da Universidade da Basileia — vemos este filósofo ainda muito preso às concepções de Wagner sobre a arte. Na conferência seguinte, “Sócrates e a tragédia”, proferida dias depois nas mesmas circunstâncias, entramos já num terreno em que a originalidade de Nietzsche começa a se afirmar. Esta última conferência rendeu ao filósofo suas primeiras antipatias no meio acadêmico, pois nela estava implícita uma crítica a todo o mundo erudito, a todo cientificismo e a todo racionalismo cujas limitações impediam, segundo Nietzsche, uma penetração verdadeiramente originária no sentido mais primordial e mais vigoroso da civilização grega antiga. Mas é no último texto por nós traduzido, em “A visão dionisíaca do mundo”, que aflora o pensamento mais próprio de Nietzsche, quando pela primeira vez vemos expostas as suas concepções do dionisismo, do apolinismo e de toda uma visão artística do mundo que deveria substituir as tentativas, fadadas ao fracasso, da erudição de tocar o cerne originário de onde emanou toda a força de vida da humanidade grega antiga. Todo este texto é composto de fórmulas plenas de fertilidade, que darão o primeiro impulso ao pensamento nietzscheano e que ressoarão ainda no seu pensamento mais tardio. Visando facilitar o mais possível ao leitor o acesso aos textos traduzidos, fizemos com que a tradução fosse acompanhada por notas detalhadas, veiculando informações e mesmo explicando passos difíceis. Ademais, dispusemos, antes de cada texto, uma “Nota introdutória”, com informações biográficas oportunas tiradas da correspondência de Nietzsche e de suas mais importantes biografias, preparamos um “Prefácio dos tradutores”, uma “Introdução sobre o teatro grego antigo no seu contexto de surgimento e desenvolvimento”, que pode proporcionar informações gerais sobre o teatro grego esclarecedoras para todos os textos traduzidos, e um “Posfácio”, que tem o intuito de possibilitar uma penetração no universo do pensamento de Nietzsche.Contracapa “(...) É somente em “A visão dionisíaca do mundo”, escrito durante o verão de1870, que as categorias estéticas do apolíneo e do dionisíaco são resolutamente introduzidas. Durante as conferências proferidas no começo de 1870, os cortejos dionisíacos, a vida natural dionisíaca eram mencionados, mas o contexto era mais concreto, mais flutuante; e, em contrapartida, o termo ‘apolíneo’ só aparece em um emprego não estético, em que, curiosamente, tratava-se da ‘clareza apolínea’ de Sócrates, em referência à dialética e à ciência. Quanto ao resto, em “O drama musical grego”, a preocupação com relação às teses wagnerianas é importante demais e faz obstáculo a uma exposição original. Ele insiste sobre a crítica da ópera moderna e da tragédia clássica francesa: e, como antítese, o drama antigo é apresentado como uma pluralidade unificada de contribuições artísticas paralelas, em que a música ela mesma é rebaixada ao nível de meio em vista de um fim. Por outro lado, em “Sócrates e a tragédia”, a crítica de Sócrates e de Eurípides se desenrola de modo jocoso à maneira de Aristófanes, com um desenvolvimento mais aceitável e mais convincente do que em O nascimento da tragédia.” (Giorgio Colli1 , In Escritos sobre Nietzsche). Nota 1 Giorgio Colli preparou a edição, com Mazzino Montinari, das “Kritischen Gesamtausgabe”, a Edição Crítica em alemão das obras completas de Nietzsche.Apresentação PREFÁCIO DOS TRADUTORES A nossa tradução se baseia na Kritische Studienausgabe2 organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Em sua revisão tivemos o cuidado de cotejá-la, particularmente, com as traduções de André Sánchez Pascoal e de Jean-Louis Backès para as línguas espanhola e francesa, respectivamente. Em algumas passagens chegamos a adotar a solução de algum destes tradutores, quando elas nos pareceram melhores do que as encontradas por nós — o que se tornou oportuno pelo fato destas traduções terem sido feitas em línguas latinas como a nossa. Mas em muitas passagens, e mesmo no todo da tradução, tivemos que nos afastar tanto do texto espanhol como do francês — no que vale, entretanto, mencionar a extrema fidelidade da tradução espanhola de André Sánchez Pascoal. Algumas poucas passagens, que encontramos na versão de um ou outro tradutor, em que o sentido do texto original era particularmente traído, deixamos assinaladas em nota, indicando as razões que nos levaram a nossa própria tradução. Os textos que traduzimos neste volume são duas conferências proferidas por Nietzsche no exercício de sua atividade docente na Basileia, com os títulos “O drama musical grego” e “Sócrates e a tragédia”, e um texto, intitulado “A visão dionisíaca do mundo”, que pela sua importância dá o título ao nosso livro. Todos estes textos foram escritos por Nietzsche pouco antes da elaboração de O nascimento da tragédia, para apresentar suas ideias sobre a arte grega, que amadureciam sob as influências cardeais de seus estudos filológicos, da filosofia de Artur Schopenhauer e das concepções artísticas de Richard Wagner, e que constituíram, com modificações, acréscimos e supressões, o núcleo mais significativo desta obra. Desta maneira, na primeira conferência, “O drama musical grego”, encontram-se esboçadas as concepções sobre o teatro grego que serão expostas nos capítulos 7 e 8 e 9, principalmente, de O nascimento da tragédia — a saber, a concepção do ator e do poeta trágicos, do coro e de sua origem a partir do cortejo orgiático, as diferenças entre o público da tragédia grega e o público do teatro contemporâneo, entre a tragédia antiga e a ópera, etc.. Nesta primeira conferência, porém, a influência de Wagner ainda é muito marcada, a ponto de não podermos perceber muito bem a originalidade das concepções artísticas de Nietzsche. É na progressão, justamente, de todos os três textos que podemos ver surgir, pela primeira vez, a originalidade particular do pensamento de Nietzsche e de toda a sua visão artística do mundo. Assim, na segunda conferência, “Sócrates e a tragédia”, faz-se notar uma ousadia de pensamento que iria atemorizar o próprio Wagner. Partindo de uma interpretação penetrante das obras de Aristófanes — particularmente de As rãs —, Nietzsche nos mostra a obra de Eurípides e sobretudo o socratismo, enquanto gênio racional orientador da criação artística euripidiana, como agentes determinantes da decadência de toda a arte grega — e consequentemente da civilização grega, como poderemos entender em nosso “Posfácio” — ao eliminarem da tragédia a hegemonia do espírito da música e ao desencadearem na arte trágica a preponderância da potência da lógica. Esta conferência, justamente, rendeu a Nietzsche as primeiras inimizades, ao promover a crítica ao cientificismo característico do meioacadêmico em que este pensador, como professor de filologia, se inseria, e ao negar a todo racionalismo a possibilidade de tocar o cerne da força vital da humanidade grega, como queria a filologia. Aqui, pela primeira vez, se declara a filosofia a marteladas, a destruição necessária à criação, tão característica do pensamento nietzscheano. O núcleo instigante de polêmica desta conferência se transferiu para O nascimento da tragédia, constituindo-se no foco das controvérsias a seu respeito. Com efeito, partes de “Socrates e a tragédia” foram aproveitadas para compor o capítulo 11 e alguns outros seguintes desta obra — sendo que somente na conferência podemos constatar com propriedade a importância que o gênio crítico de Aristófanes teve para a interpretação de Nietzsche da decadência da civilização grega. Em “A visão dionisíaca do mundo”, enfim, o apolinismo e sobretudo o dionisismo têm uma exposição inigualável, que nos permite, como em nenhum outro texto, compreender muito do fundamental destas concepções. A visão artística do mundo de Nietzsche encontra aqui, pela primeira vez, um acabamento fértil de ressonâncias em todo mundo do pensamento e da arte, manifestando, em seu primeiro brilho, toda a força de sua originalidade. O essencial desta visão artística do mundo constituiu-se nos alicerces do pensamento que se consubstanciou em O nascimento da tragédia, e que em boa parte se desenvolveria em toda a sua obra posterior. No texto que aqui traduzimos, porém, muito do que naquela obra apareceu apenas sob forma de alusão encontra um desenvolvimento mais amplo e mais rico, permitindonos um acesso mais íntimo ao seu sentido. Com o intuito de proporcionar informações que possam ajudar na compreensão e contextualização das traduções, nós colocamos, adiante, antes dos textos traduzidos, uma “Nota Introdutória” em que resumimos os dados biográficos do autor mais significativos concernentes a cada texto, e logo a seguir uma “Introdução” que visa informar, ainda que de uma maneira muito geral mas oportuna, sobre o teatro grego antigoIntrodução Sobre o Teatro Grego Antigo no seu Contexto de Surgimento e Desenvolvimento MARCOS SINÉSIO PEREIRA FERNANDES* O teatro grego surgiu no contexto do culto religioso, estando ligado particularmente ao deus Dionísio, e nunca esteve desligado da religião. A palavra teatro vem do grego théatron (θεατρον), em que théa (θεα) quer dizer ‘ação de olhar, de contemplar; aspecto; objeto de contemplação, espetáculo etc,’ e em que o sufixo –tron (τρον) significa ‘instrumento de’, donde théatron querer dizer ‘máquina de espetáculos’. Théa e théatron derivam do verbo theáomai (θεαοµαι ou θεωµαι) que significa ‘ver, contemplar, considerar, examinar, ser espectador; contemplar pela inteligência etc.’ Derivada da mesma origem é a palavra theoría (θεωρια), que quer dizer ‘ação de observar; ação de ver um espetáculo, de assistir uma festa; (e posteriormente) contemplação do espírito, meditação, estudo’, da qual deriva a nossa palavra teoria. O teatro teve em sua origem duas modalidades artísticas principais: a tragédia e a comédia. A palavra tragédia (τραγωδια) deriva de trágos (τραγος), que significa ‘bode; puberdade, os primeiros desejos do sentido, lubricidade (pois o bode simbolizava para os antigos, pelas suas características, o desejo sexual, a lubricidade)’, e de ode (ωδη), que significa ‘canto com acompanhamento de instrumentos; ação de cantar’. A palavra tragodía (τραγωδια) mesma significava em grego ‘canto do bode; canto religioso com o qual se acompanhava o sacrifício de um bode nas festas de Dionísio; tragédia, drama heroico; evento trágico etc’. O tragodós (τραγωδος) era primordialmente aquele que dançava e cantava durante a imolação de um bode nas festas de Dionísio, sendo que este termo significou também, em seguida, ‘aquele que dança e canta em um coro trágico; ator trágico; membro do coro trágico; poeta trágico etc’. Alguns estudiosos, em nossos dias, interpretaram que o canto do bode era o canto dos companheiros de Dionísio em seus cortejos orgiáticos, dos sátiros, os filhos de Sileno — que teria, segundo uma tradição, sido um educador daquele deus (Sileno era famoso pela sua feiúra e sua sabedoria, e suas formas eram em parte equinas). Porém, só muito tardiamente — a saber, na época helenística e romana da cultura grega — os sátiros foram representados como seres em que se misturavam formas humanas e formas caprinas, tendo os membros inferiores até mais ou menos a cintura em forma caprina e um chifre e feições que lembravam as feições caprinas. No tempo áureo das tragédias e mesmo pouco depois — a saber, no século V e IV a. C — , os sátiros apareciam como seres em que se misturavam as formas humanas com a equina, tendo então os membros inferiores semelhantes às patas traseiras de um cavalo, além de um rabo e orelhas de cavalo3. Esta hipótese permaneceu, porém, apoiada em passagens de textos do século V (particularmente no fragmento 207 do Prometeu Pirceu de Ésquilo) em que sátiros são chamados de bode, não pela sua forma, mas hipoteticamente pela sua lascívia — pois, como já dissemos, o bode écaracterizado pela lubricidade. Uma outra hipótese foi a de que o canto do bode era o canto lamentoso da vítima sacrificada a Dionísio — que como vimos acima era um bode. Toda a tragédia se assemelha a um ritual de sacrifício. No centro da orquestra, no teatro grego, havia um altar a Dionísio (o thyméle — θυµελη), sugerindo que o destino trágico do herói a representação trágica eram como uma imolação a Dionísio. Na Grécia, sobretudo nas épocas arcaicas, eram praticados rituais de sacrifício dos chamados bodes expiatórios (em grego pharmakós — ϕαρµακος), em que um indivíduo, carregado de todas as impurezas da comunidade, era sacrificado. Em Atenas havia um ritual nas festas chamadas Targélias, dedicadas a Apolo e Ártemis, que remetia a este sacrifício. Um homem e uma mulher eram surrados enquanto eram conduzidos através de toda a cidade. Depois eram sacrificados fora das fronteiras da cidade, queimados, e suas cinzas jogadas no mar. Na época clássica eram apenas jogados no mar e depois expulsos para fora das fronteiras da cidade. Eles eram chamados de pharmakoí, bodes expiatórios. O ritual de sacrifício era uma tradição que existia em muitas outras civilizações. Nas Sáceas4 babilônicas, por exemplo, que são mencionadas por Nietzsche em O nascimento da tragédia, um prisioneiro era sacrificado depois de ser nomeado rei da Babilônia por cinco dias, tempo em que tinha direito a desfrutar de todo o harém do próprio rei e de dar livre curso a todos os seus apetites até o momento de seu sacrifício. Durante este tempo as orgias eram celebradas em toda a cidade. Os sacerdotes rezavam nos templos para que o caos não tomasse definitivamente conta de toda a cidade, até o prisioneiro-rei ser sacrificado. Depois disso, o antigo rei, representando Marduk, o rei dos deuses babilônicos, libertando-se do mundo dos mortos em que estivera detido durante o tempo das orgias, matava Tiamat, o monstro que ameaçava o mundo com sua força caótica, e que tinha caráter feminino. Do corpo de Tiamat dividido em dois pela sua espada ele fazia ressurgir o Céu e a Terra, e assim reinaugurava a ordem no universo. Pouco depois, a ordem em toda a cidade era restaurada, e o rei assumia novamente o seu reinado. Aristóteles afirma na Poética5: “A tragédia (...) opera a catarse (καθαρσις) dos sentimentos de piedade e de temor”. Na Política6 diz ainda o filósofo: “Além disso a flauta7 não age sobre o costume, ela tem antes o caráter orgiático, de maneira que ela não deve ser empregada senão nas ocasiões em que o espetáculo tende antes à catarse (καθαρσις) das paixões do que à nossa instrução.” E mais adiante, na mesma obra8, podemos ler: “Nós aceitamos a divisão das melodias, proposta por certos autores versados em filosofia, em melodia moral, melodia ativa e melodias que provocam o entusiasmo, e, segundo eles, os modos musicais são naturalmente apropriados a cada uma destas melodias, um modo respondendo a um tipo de melodia, um outro a um outro; mas nós dizemos, de nosso lado, que a música deve ser praticada não só em vista de uma vantagem, mas de várias (pois ela tem em vista a educação e a catarse (καθαρσις) — mas o que entendemos por catarse (καθαρσις) ? Por agora nós tomamos este termo em seu sentido geral, mas nós tornaremos a falar dele mais claramente em nossa Poética(...)” A palavra grega katharsis (καθαρσις), de onde se origina catarse em português, significa ‘purificação, purgação; alívio da alma pela satisfação de uma necessidade moral; cerimônia de purificação às quais eram submetidos os candidatos a alguma iniciação’.Katharsios (καθαρσιος) significa ‘o que se pode purificar ou expiar; o que purifica’ e tó katharsion (το καθαρσιον) significa ‘sacrifício expiatório; vítima oferecida para um sacrifício expiatório’. Com o que já dissemos acima podemos entender que a hipótese da interpretação de tragédia como um sacrifício encontra o seu eco aqui. Nietzsche, porém, no contexto de pensamento dos textos que traduzimos neste livro, interpretou a catarse, a purificação, como um gozo estético que só a música sublime poderia proporcionar, ou seja, a música que se volta para o fundo de dor da Vontade, para o Uno-originário de pura dor, e cria a sua imagem mais acabada. O gozo estético pode ser interpretado como uma sublimação do sacrifício, em que o homem se coloca o mais adequadamente diante do fundo de dor da Vontade que constitui todo o mundo, realizando o supremo êxtase desta, que é justamente o sentido de catarse para Nietzsche. Essa possibilidade de transformar a dor em êxtase, pela via da estética, seria justamente o sentido aliciador para a vida do pensamento de Nietzsche desde o seu ponto de partida, que assim já diferencia-se essencialmente do pensamento de Schopenhauer. Mas não temos espaço para explicar aqui satisfatoriamente esta conjuntura de pensamento. Recomendamos a leitura do nosso “Posfácio” para quem quer dar mais alguns passos neste sentido.A comédia, em grego komodía (κωµωδια), vem de kômos(κωµος) que significa ‘festa dórica com cantos e danças em honra de Dionísio; festa com cantos e danças nas ruas, em honra do vencedor ou do aniversário da vitória em um dos quatro grande jogos helênicos; grupo de pessoas que percorriam as ruas depois de um festim, com música, cantos e danças; festim, banquete’. Komos (Κωµος) era uma divindade da alegria e do prazer. A origem da comédia é muito discutida. Aristóteles disse, em sua Poética9, que ela teria derivado dos cantos fálicos. Nas dionisíacas rurais, em Atenas, por exemplo, que eram comemoradas em cada demos no mês de dezembro, como festas de agradecimento pela colheita, sobretudo, do vinho, e em que tinha lugar alegres entretenimentos, havia uma longa procissão cantada, que era justamente chamada de komos, a qual era conduzida por canéforas10 e por jovens que levavam vinho, folhas de parreira, figos e o bode que devia ser sacrificado; no fim do cortejo era portado um falo11. Depois do sacrifício se representava a origem de Dionísio em farsas improvisadas. Alguns estudiosos, porém, dizem que a comédia provém do cortejo jocoso, que é significado por kômos, em combinação com uma farsa literária. Não nos ocuparemos em aprofundar aqui a discussão sobre a origem obscura da comédia porque ela não interessa tanto quanto a tragédia para a compreensão dos textos de Nietzsche que queremos esclarecer. A tragédia teria derivado, segundo Aristóteles12 , do ditirambo. Nietzsche concorda com Aristóteles neste ponto. Por isso, deixaremos indicado aqui, resumidamente, o que era o ditirambo. O ditirambo era cantado, em honra de Dionísio, nos primeiros dias da primavera por um coro cíclico, ou seja, por cantores-dançarinos que evoluíam em círculo em torno de um altar — como faria também o coro trágico, mais tardio. Ele era acompanhado pela flauta dupla, instrumento lendário do sátiro Marsyas. Cinquenta pessoas, vestidas de sátiro como o cortejo do deus, compunham o coro, do qual se destacava um corifeu, que representava Dionísio, e que cantava em contraposição ao coro. O ditirambo teria se originado em Sicione, como um canto cultual a Dionísio, de onde passa a Corinto, na época do tirano Periandro (tido, em algumas listas tradicionais, como um dos sete sábios), onde teria sido reorganizado pelo citaredo Arion13 que seria também o autor do próprio nome14 ‘ditirambo’. Arion teria feito cantar ditirambos em Corinto por alguns coreutas disfarçados de sátiros, com o rosto sujo de borra de vinho e a cabeça coberta de folhagens. É de Corinto que teria passado a Atenas. Em Atenas o primeiro concurso de ditirambo teria sido organizado em torno do ano 508 e 505 a. C. (portanto na época de Clístenes, tido como fundador da democracia ateniense). O primeiro grande compositor de ditirambos em Atenas teria sido Lasos de Hermione, e entre seus sucessores estão Píndaro, que fora também seu aluno, Simonides (que teria vencido o concurso em 489 a. C e obtido além disso 56 triunfos) e Bacchylides. Além de do ditirambo, Aristóteles15 também deriva a tragédia do drama satírico (ou do satírico simplesmente, como está no texto aristotélico: satyrikoû — σατυρ ικου), que nos primeiros tempos do concurso de tragédias devia ser apresentado ao final de uma triologia trágica (como veremos adiante). Os estudiosos ainda especulam se Aristóteles nesta passagem não queria chamar de drama satírico o ditirambo. Alguns autores consideraram que Arion teria sido também o primeiro a compor uma tragédia. De acordo com Heródoto16, porém, a tragédia teria a sua origem em Sicione, instituída pelo tirano Clístenes17. Segundo o pai da história, ela teria derivado de um culto ao herói Ádrastos18, que envolvia coros que cantavam as desventuras do dito herói, denominados por Herôdotos de coros trágicos19. Adrastos representava a aristocracia em Sicione, e por isso o tirano Clístenes teria querido banir o seu culto, o que só conseguiu transformando-o em um culto a Dionísio, ao invés de a Ádrastos. Nisto vemos a ligação original do apolinismo com o dionisismo, aludida por Nietzsche, na ligação da arte apolínea, própria da aristocracia mais original da polis, com a arte dionisíaca que trazia à representação as forças do devir que incidiam na polis. O dionisismo, de acordo mesmo com o pensamento de Nietzsche, tem relação com o advento da força da Terra, do apego à riqueza, à vida material, aos apetites, ao desejo, forçando a decadência da elevação apolínea na polis sob a hegemonia da aristocracia guerreira. Com as vicissitudes do devir na polis grega em geral, foi se acumulando uma camada de população não escrava, advinda de cidadãos malogrados e que perderam suas terras, e de estrangeiros que por vários motivos emigraram de suas pátrias e vieram viver em outra polis. Esta população, que tinha perdido o vínculo com a terra, característico da aristocracia original — arsitocracia que prezava a sua nobreza de sangue e que como nobreza guerreira tinha fundado a elevação apolínea constituidora primordial da polis –, passou a veicular tensões na polis justamente em torno do que chamamos hoje de bens materiais, que eram o problema candente desta parte da população. Esta população, quando não sucumbiu na pobreza e marginalização, se constituiu na classe dos artesãos e dos comerciantes — esta última assumindo grande importância em Atenas. Ela foi agente de variadas conturbações no estado apolíneo e deu ensejo à instalação de diversas tiranias, que derrubaram a hegemonia da aristocracia original e apoiaram-se na camada mais pobre da população ou na classe mais abastada, liderada muitas vezes pelos comerciantes. Em todos os casos passou a haver uma valorização das forças da Terra, do que nós chamamos hoje de valores materiais: a riqueza, o desejo, etc.. Estes valores entravam em tensão com o parâmetro da virtude guerreira original, a coragem, que implicava um comedido desapego de toda a vida sobre a Terra, de tudo o que nós chamamos hoje de bem material — como mostraram os espartanos — e uma valorização de bens que pairam acima de todo devir sobre
Doutrina social da Igreja bbb
Doutrina social da Igreja bbb
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"... Assim falando, urbi et orbi, Leão XIII reprojectava a Igreja, depois de um eclipse de cem anos, como aquela instância suprema sob cujas directrizes o Estado, os patrões e os operários deveriam actuar, com vista a uma «economia moral» que haveria de produzir, com equilíbrio e realismo, uma sociedade em harmonia e paz e uma ordem material justa Só um tal ordenamento socio-económico (conservador na política, socializante na economia, virtuoso e caritativo na moral) permitiria um status quo imune tanto ao egoísmo dos ricos como ao revolucionarismo dos pobres, isto é, simultaneamente alternativo tanto ao capitalismo mais selvagem e individualista como ao socialismo mais radical e revolucionário. Como em todo o ensinamento da Igreja, o segredo estava afinal num regresso à pureza das origens, ou seja, àquela caridade «paciente» e «benigna», de que falara São Paulo na sua l.a carta aos Coríntios, e que Leão XIII fez questão de invocar no fecho da encíclica 12°. A Rerum Novarum teve uma enorme repercussão, à escala do mundo ocidental de então - não apenas nos meios católicos, mas também fora deles. A maioria dos comentadores não hesitou em ver nela um claro sinal que consagrava a ruptura operada por Leão XIII face ao seu antecessor Pio IX. De um catolicismo integrista e fechado, o papado e, com ele, a Igreja, recuperava um prestígio perdido, abrindo os braços ao século e às massas, ou seja, caminhando resolutamente «do romanismo para um catolicismo mais largo» e «da diplomacia de gabinete para um apostolado mais democrático» 1 2É claro que houve, nos meios católicos, um lado, ainda aferroado ao legitimismo mais tradicionalista, que se escandalizou com a «modernidade» de Leão XIII - da mesma forma que os socialistas e, em geral, a esquerda europeia, consideraram uma aberração a intervenção do Papa nos problemas materiais da sociedade I22. "
O legado histórico de Leão XIII e da encíclica Rerum Novarum «Leão XIII estabeleceu um paradigma permanente para a Igreja. Esta, com efeito, tem a sua palavra a dizer perante determinadas situações humanas, individuais e comunitárias, nacionais e internacionais, para as quais formula uma verdadeira doutrina, um corpus, que lhe permite analisar as realidades sociais, pronunciar-se sobre elas e indicar directrizes para a justa solução dos problemas que daí derivam». (JOÃO PAULO II, Centesimus Annus, 1991) 1. Introdução Em meados de Novembro de 2002, a propósito do crescendo de contestação socio-laboral registado na sociedade portuguesa, a Conferência Episcopal divulgou uma nota pastoral, intitulada O Trabalho na Sociedade em Transformação, com o objectivo explícito de trazer o contributo da Igreja para a reflexão sobre as questões do trabalho, considerado «uma dimensão fundamental da existência humana sobre a terra» e sempre perspectivado «à luz dos princípios da Doutrina Social da Igreja». Os bispos portugueses explicitavam o sentido das suas recomendações no desenvolvimento da nota. Era seu entendimento que, nas sociedades fortemente competitivas e tecnologicamente inovadoras do início do século XXI, regidas pelos «mecanismos do mercado» e por um «pensamento neo-liberal, de cariz individualista», se tornava desde logo necessário reconsiderar o «mundo do trabalho» à luz de uma «dimensão ética», ou seja, «num conjunto de direitos e deveres que impliquem todos os intervenientes», a satisfazer «na perspectiva da paz social, alicerçada na justiça e construída através do diálogo». DIDASKALIA 3-55 XXXIV (2004) 4 DIDASKALIA Defendendo a Igreja que «o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social», essa mesma vida económico-social deveria ser «concebida de modo a que todos os homens e mulheres participem dos benefícios e dificuldades resultantes da actividade económica, segundo os princípios da justiça e da equidade». Isto significa entender o trabalhador não como um «sujeito passivo» do sistema económico mas, ao invés, como um seu elemento activo, cuja inalienável dignidade humana deve ser salvaguardada antes, e por sobre, o mero critério economicista da competitividade. E verdade que a Igreja reconhece o valor positivo do mercado e da empresa, «orientados para o bem comum»: mas desejável é que, no interior dos dois - mercado e empresa-por critérios de justiça e sob o olhar vigilante do Estado, não deixe de haver «uma certa igualdade entre as partes» (capital e trabalho), «de modo que uma delas não seja de tal maneira mais poderosa que a outra que praticamente a possa reduzir à escravidão». A dignidade do trabalho, e no trabalho, pressupõe assim que cada trabalhador possa ter condições para prover condignamente à sua subsistência, e à da sua família, e também para encontrar resposta para as «necessidades de ordem espiritual e cultural que os mecanismos económicos não favorecem». A nota da C.E.P. salientava ainda que a produtividade, outro dos conceitos-chave do discurso económico corrente, não poderia implicar a redução do homem a um «mero instrumento e factor de produção», uma vez que todo o agente da economia, ou seja, não apenas o trabalhador mas também o empresário, é «sujeito de direitos e deveres». Relembrando o «princípio universal do direito à propriedade privada», embora à luz da sua necessária subordinação ao bem comum, os bispos portugueses declaravam que os meios de produção não deveriam ser possuídos «contra o trabalho», mas a favor, e ao serviço, do trabalho. Seria assim desejável que, mediante o contributo «responsável» dos sindicatos, o tecido empresarial e fabril português promovesse «a participação activa de todos na gestão das empresas», ali realizando não apenas lucros, indubitavelmente um importante indicador de sucesso económico, mas «comunidades de pessoas». A luz destes princípios, qualquer «código de trabalho» terá de salvaguardar a dignidade da pessoa e a solidariedade colectiva, compatibilizadas com as exigências de melhoria global das condições económicas vigentes. Segundo a Igreja, a legislação laboral deve não apenas ouvir o associativismo do mundo do trabalho como respeitar, no emprego, na remuneração ou nos horários «a necessidade de defender os direitos da família», especialmente nos O LEGADO HISTÓRICO DE LEÃO XIII E DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM 1 5 momentos de mais aceso «confronto social». Na conclusão, os bispos portugueses exortavam a comunidade cristã a «reflectir, analisar e fazer um discernimento das situações e condições do trabalho à luz da Doutrina Social da Igreja», renovando deste modo, na «procura diligente das mudanças a promover», a «sua confiança na força e na originalidade das exigências evangélicas». Naturalmente datada, enquanto resposta conjuntural a um problema também conjuntural e localizado - a agitação suscitada em Portugal pela projectada revisão das leis do trabalho, sobre um pano de fundo de crise económica e de agitação social - a nota da Conferência Episcopal Portuguesa é uma espécie de aggiornamento da Doutrina Social da Igreja, e esta mesma uma espécie de codificação moderna das exigências evangélicas e dos fundamentos da teologia cristã para aplicação aos problemas das sociedades contemporâneas. Ora, a intervenção sistemática, e sistematizada, da Igreja católica nos problemas da sociedade, da economia e das relações laborais tem pouco mais do que um século de história, pese embora os seus muitos e variados antecedentes Remonta, por junto, ao pontificado de Leão XIII (1878-1903) e, muito especificamente, à sua encíclica Rerum Novarum, unanimemente considerada, por teólogos e historiadores, a «magna carta» fundadora da Doutrina Social da Igreja. Nas palavras de um autor actual, «não foi senão com Leão XIII que as preocupações sociais da Igreja receberam uma sistematização filosófica e teológica (...) (por isso) todos 1 De acordo com o Papa João Paulo II, «a atenção aos problemas sociais faz parte, desde o início, do ensino da Igreja e da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social, que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Tal património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos sumos pontífices sobre a moderna questão social a partir da encíclica Rerum Novarum» (Encíclica Laborem Exercens, 1981, cit. por Augusto da SILVA, Continuidade e inovação na doutrina social da Igreja in Análise Social, n.° 123-124, Lisboa, 1993, p. 781). V. também Paulo Fontes, A Doutrina Social da Igreja numa perspectiva histórica in Questões Sociais, Desenvolvimento e Política. Curso de Doutrina Social da Igreja, Lisboa, Universidade Católica Editora, CESP, 1994, p. 68. Todos os autores são unânimes em filiar os origens longínquas da Doutrina Social da Igreja nas próprias raízes do cristianismo expressas, por exemplo, nos evangelhos ou nos textos apostólicos e epistolares; depois, e subsequentemente, a patrística e os teólogos medievais (particularmente Santo Agostinho e São Tomás de Aquino) abordaram repetidas vezes questões como a posse de bens materiais, o lucro e a usura, na perspectiva da justa organização da sociedade (Michael J. WALSH, Caminhos da lustiça e da Paz. Doutrina Social da Igreja. Documentos de 1891 a 1991, coord. de Peter Stilwell, 4." ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2002, Introdução geral, p. 17, e Charles E. CURRAN, Catholic Social Teaching (1891-Present). A Historical, Theological and Ethical Analysis, Washington, Georgetown University Press, 2002, pp. 2-4). 6 DIDASKALIA os católicos interessados nessas temáticas citam Leão XIII como o pai de tais preocupações»2. Nesse sentido, nenhuma das intenções, e quase nenhuma das palavras, contidas na nota dos bispos portugueses é estranha à obra e ao legado permanente de Leão XIII. Sempre que se pronunciam no campo socio-económico, todos os prelados católicos, portugueses e não só, recolhem a sua inspiração numa fonte aberta pelo catolicismo leonino e sucessivamente aprofundada - na forma do discurso, mais do que nos seus grandes princípios - pelos sucessivos papas que, desde Leão XIII até à actualidade, ocuparam o trono de Pedro. 2. O sentido da Doutrina Social da Igreja Por Doutrina Social da Igreja pode entender-se, comummente, o discurso ou conjunto de ideias e ensinamentos com que a hierarquia eclesiástica se pronuncia acerca dos desafios e problemas a cada momento levantados pelas sociedades humanas. Nesse sentido, e desde a sua origem, ela nunca foi um corpo ideológico estático e imutável, revelando, bem ao invés, um carácter dinâmico, evolutivo, e adaptável sucessivamente a novas realidades, na medida em que os problemas suscitados pela democracia, pela modernidade, pelo capitalismo ou pelo socialismo de hoje são naturalmente diferentes daqueles de há cem anos atrás3. Por isso mesmo, a própria expressão «doutrina social da Igreja» não colhe a unanimidade entre os meios católicos, havendo quem lhe prefira outras formas, que substituam a palavra «doutrina» - tida porventura por excessivamente estanque - por uma alternativa que espelhe melhor a dinamicidade dos discursos e pontos de vista eclesiásticos sobre a realidade social circundante. Não foi aliás Leão XIII quem criou a expressão, preferindo falar antes do «conjunto de direitos e deveres que a filosofia cristã ensina»4. Só com Pio XI, já bem entrado o século XX, se popularizou a designação «doutrina social da Igreja»5; o Concílio Vaticano íleo Papa Paulo VI pouco a usaram, e só com João Paulo II ela foi de novo promovida, 2 Gene BURNS, The Frontiers of Catholicism. The Politics of Ideology in a Liberal World, Berkeley / Los Angeles, University of California Press, 1992, p. 32. V. também, sobre o pioneirismo do Papa Leão XIII, Ildefonso CAMACHO, Doctrina social de la Iglesia. Una aproximación histórica, Madrid, Ediciones Paulinas, 1991, p. 12. 3 Ildefonso CAMACHO, op. cit., p. 18. 4 Paulo FONTES, op. cit., p. 79. 5 Gene BURNS, op. cit., p. 32. O LEGADO HISTÓRICO DE LEÃO XIII E DA ENCÍCLICA RERUM NOVARUM 1
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