segunda-feira, 8 de março de 2021

O TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES E AS REAÇÕES JUDAICAS AO ATAQUE LIBERTINO À REVELAÇÃO por José Raimundo Maia Neto

 

O TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES E AS REAÇÕES JUDAICAS AO ATAQUE LIBERTINO À REVELAÇÃO

por José Raimundo Maia Neto

Resumo

Desde o início do século XVI, a fama do “Tratado dos três impostores” – Moisés, Jesus e Maomé – precede-o. Ele, com efeito, chegou a existir antes mesmo de existir. Bibliotecários viajaram grandes distâncias em busca dele. A rainha Cristina, da Suécia, dispôs-se a pagar uma pequena fortuna por ele. Filósofos importantes, como Marsenne e Leibniz, acreditaram piamente em sua existência. Hoje se sabe que de, tão famoso, alguém resolveu escrevê-lo. Provavelmente, um libertino, no final do século XVII. Para além de versões do lendário tratado, “O espírito de Espinosa” – sua forma mais bem acabada – só foi encontrado recentemente na biblioteca da Universidade de Los Angeles. Vinte e um capítulos agrupados segundo os seguintes temas: os três impostores, as três religiões e as três entidades metafísicas.

A parte dedicada aos impostores é a mais original do livro, tanto no sentido de origem – do que se seguirá – quanto no de novo, com relação ao que se escreveu antes sobre o assunto, a começar por tratar o Talmude, a Bíblia e o Alcorão como livros comuns, escritos por homens comuns. Isso é o que permite ir além, como, por exemplo, alegar que Moisés é um espertalhão que dizia falar com Deus para assegurar a obediência dos judeus, ignorantes e supersticiosos. Já Jesus recebe um tratamento especial. Mais do que seguidor do exemplo de Moisés, ele inventa uma religião para fins políticos, no que é mal sucedido por falta de dinheiro e exército, a não ser que Ele seja entendido como um político de visão; afinal, o cristianismo virá a determinar a história do Ocidente. É, pois, sob essa ótica que se vê o Jesus do Evangelho, inteligente a ponto de declarar-se rei dos judeus sem entrar em conflito com Roma, de diagnosticar a decadência do povo judeu e de propor uma lei contra os gentios. Por isso, Ele teria escolhido apóstolos ignorantes, ou seja, propensos a acreditar em sua natureza divina e, na falta de bens materiais, na vida eterna. Mas é Maomé que recebe o tratamento mais hostil do livro. Ele que, mais do que se aproveitar da ignorância popular para legitimar-se como profeta de Deus, não só se valeu de estratagemas imorais como de um exército para isso.

Quanto às religiões, elas recebem tratamento científico, sobretudo em seus temas comuns, como milagres, prodígios, oráculos, mistérios, artigos de fé, profecias, pois é por meio disso que elas alimentam a superstição, de modo a se salvaguardarem do exame racional.

Em seu último capítulo, o livro defende o deísmo, desprovido de todos os ornamentos humanos, a exemplo do antroporfomismo e das providências, geral ou particular.

O que resta então é “um ser simples, material e infinito”, e a alma, como coisa extensa e material; logo, perecível.

Nisso, o tratado é mais radical do que as concepções de Deus segundo Espinosa e Descartes.


A libertinagem erudita no século XVII

Inicialmente será útil propor um significado de libertino e sobretudo distinguir dois movimentos que recebem essa denominação. A palavra deriva do latim libertinus, que significa “ex-escravo”. Em um sentido amplo e no contexto da história das ideias, podem-se chamar de libertinos aqueles indivíduos que se libertaram de um quadro ideológico que prescreve normas de conduta e fixa limites de pensamento. Nesse sentido amplo o termo se aplica a dois movimentos paralelos mas bem distintos que ocorreram nos séculos XVII e XVIII. Um primeiro, amplamente abordado em vários dos trabalhos reunidos neste volume, é de natureza moral e se expressa sobretudo em poemas, romances, e nas artes plásticas. Essa corrente libertina distingue-se de uma outra, da qual tratarei neste artigo, que se caracteriza por uma independência filosófica (e não necessariamente moral) da ortodoxia religiosa do período. Para distingui-la da primeira corrente, costuma-se denominá-la de “libertinagem” (ao invés de libertinismo) e, num esforço de se evitar qualquer confusão com o libertinismo moral, muitos estudiosos a qualificam de erudita, expressão cunhada pelo historiador das ideias francês René Pintard no seu livro clássico Le libertinage érudit dans la première moitié du XVIIe siècle (Paris, Boivin, 1943, reeditado pela Slatkine em 1983).

A libertinagem erudita no século XVII tem, sobretudo na França, dois períodos marcantes. Um primeiro, estudado por Pintard, desenvolveu-se na primeira metade do século em torno de um círculo de amigos eruditos ligados à corte de Luís XIV. Destacam-se nesse grupo Gabriel Naudé, bibliotecário dos cardeais Richelieu e Mazarin; Guy Patin, médico reitor da faculdade de medicina da Sorbonne; François de la Mothe le Vayer, instrutor do irmão do rei; Pierre Gassendi, um dos maiores filósofos e cientistas da época, grande rival de Descartes, professor de matemática do College Royal; e Samuel Sorbière, amigo e editor de Gassendi, tradutor do cético pirrônico Sexto Empírico.[1] A natureza da libertinagem desses eruditos, em contraposição ao libertinismo moral, é indicada de maneira lapidar em uma correspondência privada de Guy Patin:

O sr. Naudé, bibliotecário do cardeal Mazarin, amigo íntimo meu e do sr. Gassendi, nos convidou para jantar e dormir em sua casa em Gentilly no próximo domingo. Mas está previsto que seremos somente nós três e que haverá uma orgia, mas Deus sabe que orgia! O sr. Naudé bebe regularmente somente água e jamais provou vinho. O sr. Gassendi é tão frágil que jamais beberia, pois acharia que seu corpo seria queimado pelo vinho… Quanto a mim, bebo muito pouco. Ainda assim será uma orgia, mas uma orgia filosófica. Pois nós três, estando curados da superstição e livres do mal dos preconceitos, que são os tiranos da consciência, chegaremos quase ao lugar sagrado. Um ano atrás fiz esta viagem a Gentilly com o sr. Naudé. Não havia outras testemunhas nem poderia haver alguma. Falamos livremente sobre tudo, sem escandalizar nem uma alma sequer.[2]

Talvez a principal característica dessa corrente libertina seja não só uma liberdade de pensamento em relação às amarras impostas pela ortodoxia religiosa — os dogmas da religião judaico-cristã — mas sobretudo um rigoroso exame racional e crítico desses mesmos dogmas. É importante notar que esses pensadores que Pintard e vários outros estudiosos denominam libertinos de forma alguma se consideravam tais. Certamente rejeitariam indignados tal apelação, que era no período um termo pejorativo usado pelos apologistas da religião. Gassendi, que era um padre respeitado, Naudé, Patin e Le Vayer sustentavam que, se a religião cristã não é passível de uma inteira sustentação racional, tal fato é irrelevante ou mesmo útil, já que a adoção da crença religiosa deve ser um ato de pura fé que dispensa justificações para uma razão limitada e corrupta. Paradoxal­mente, entretanto, essa mesma razão é bastante ativa ao submeter a revelação a um exame racional que aponta incoerências no texto sagrado. Pintard e outros não se deixaram convencer pelo argumento dos eruditos de que tais incoerências são relativas somente a uma razão humana limitada, suspeitando assim da profissão de fé que fizeram e chamando-os de libertinos.[3]

Outra característica da libertinagem erudita que também transparece na carta de Patin é a natureza privada, secreta e elitista do movimento. Intelectuais da corte, todos achavam que o livre-pensamento só podia ser exercido por uma seleta elite intelectual. O “povo” (categoria pejorativa corrente nos textos libertinos) precisa ser deixado aos preconceitos e à ignorância, necessários, segundo os libertinos, para assegurar a obediência civil.

A obra que examino a seguir já é de um segundo momento do movimento libertino francês, que ocorre no final do século XVII e primeira metade do XVIII. Ideias libertinas desse período que já prepara o Iluminismo, em que pese a enorme influência que sofreram dos libertinos eruditos da primeira metade do século XVII, são mais diretamente contestadoras da religião judaico-cristã e não apresentam nenhuma alternativa fideísta à crítica racional que fazem da religião revelada. Por essa razão as ideias libertinas nessa época circulam em manuscritos clandestinos de autores e copistas anônimos ou, quando são publicadas, trazem autor, editor, local e data de publicação falsos. O pico da circulação desses manuscritos ocorre já no início do século XVIII, mas há várias referências a alguns deles ao longo do século XVII.[4]

O Tratado dos três impostores

O próprio título do manuscrito — Tratado dos três impostores — já indica o seu caráter agressivo. Com efeito, a tese de que os líderes do judaísmo, do cristianismo e do islamismo — Moisés, Jesus e Maomé — foram impostores é, como diz Georges Couton, de uma “simplicidade brutal”.[5] Em um só golpe se coloca acintosamente em questão o fundamento mesmo das três grandes religiões reveladas do Ocidente. O manuscrito foi recentemente datado do final do século XVII. É possível que tenham existido versões mais antigas, pois há várias referências a um Tratado dos três impostores nos séculos XVI e XVII, embora ainda não tenham sido encontradas versões anteriores ao final desse século.[6] Um aspecto bastante curioso do tratado é que sua história parece ter antecedido a existência da obra.

A tese da tripla impostura de Moisés, Jesus e Maomé já era bastante difundida no início do século XVII. A tese e o tratado que supostamente a veiculava exerceram um fascínio enorme nos eruditos do século XVII. Bibliotecários viajaram grandes distâncias em busca do manuscrito. A rainha Cristina da Suécia se dispôs a pagar uma pequena fortuna por uma cópia que de fato nunca foi encontrada. Filósofos importantes como Mersenne e Leibniz acreditavam piamente na existência do tratado. É possível que, depois de tantas citações e buscas mal sucedidas do Tratado dos três impostores ao longo de todo o século XVII, algum libertino ativo entre 1680 e 1690 tenha resolvido escrever um, do qual derivam as cópias que possuímos.

Em seguida farei um resumo de uma das versões mais elaboradas do tratado, cujo título é O espírito de Espinosa. Essa versão foi recentemente editada por Sílvia Berti que a descobriu na biblioteca da University of California at Los Angeles (Ucla).[7] Os 21 capítulos do manuscrito podem ser agrupados em três partes. Uma que trata da tese dos três impostores, outra que apresenta uma análise das religiões, em particular a judaico-cristã, e uma terceira na qual o autor anônimo do tratado apresenta sua visão positiva das entidades metafísicas relevantes na temática religiosa: Deus, a alma e os espíritos.

A parte que trata dos impostores é a mais original do tratado. E original tanto por possivelmente constituir o núcleo originário do tratado constante em todas as versões como por apresentar uma certa originalidade intelectual. Embora a tese da impostura religiosa fosse corrente, é somente nesses capítulos que o autor não se limita a transcrever ou resumir passagens de outros filósofos.

Uma das peculiaridades da versão em exame é a inclusão de um quarto impostor pagão, o romano Numa Pompílio, no grupo nuclear formado por Moisés, Jesus e Maomé. Essa inclusão talvez derive da intenção do autor de que sua obra fosse interpretada como uma análise objetiva das reli­giões em geral e não como um panfleto anticristão. Os líderes judaico-cristãos recebem o mesmo tratamento de um pagão: o Talmude, a Bíblia e o Alcorão são livros comuns escritos por homens comuns, com o mesmo valor dos livros do paganismo. As histórias e lendas bíblicas equivalem às histórias e lendas pagãs. Essa busca de cientificidade serve também ao propósito de subverter qualquer estatuto privilegiado do judaico-cristianismo.

Moisés é caracterizado no tratado como um espertalhão que alegou legitimação e comunicação divinas para assegurar a obediência dos judeus, um povo ignorante e supersticioso, incapaz de aceitar comandos justificados apenas racionalmente. Jesus recebe um tratamento bem detalhado. É um legislador que segue o exemplo de Moisés ao inventar uma religião para fins políticos. Inicialmente é mal sucedido por não contar nem com um exército nem com dinheiro. Mas a tremenda expansão posterior do cristianismo atesta a competência de Jesus como político de visão. O autor analisa então passagens do Evangelho que exemplificariam a habilidade política de Jesus. Apresenta-se como rei dos judeus mas evita cuidadosamente um conflito inoportuno com Roma. Demonstra grande inteligência ao perceber a decadência do povo judeu e propor uma nova lei aberta também aos gentios. Escolhe a dedo apóstolos ignorantes, incapazes de questionar sua pretensão à divindade: são porta-vozes perfeitos para um povo igualmente ignorante. Desprovido de meios materiais para recompensar seguidores, acena com a possibilidade de uma felicidade eterna em outra vida etc.

O autor do tratado ataca duramente a moral pregada por Jesus. Ela não é adequada à natureza humana, na medida em que exige o impossível. O que contém de genuinamente virtuoso é basicamente imitação da moral dos filósofos pagãos, do estoico Epicteto em particular, que teria sido mais virtuoso do que Jesus. Esse capítulo do tratado sobre a moral cristã é fortemente influenciada pelo livro De la vertu des paiens, do libertino erudito La Mothe le Vayer. Le Vayer contesta santo Agostinho ao argumentar que filósofos pagãos que desconheciam Cristo e a revelação poderiam agir eticamente e até merecer a salvação eterna. Essa parte sobre o cristianismo mostra que a junção de diferentes matrizes críticas do cristianismo leva o autor do tratado a certas inconsistências. A acusação de que a moral cristã é inadequada para a natureza humana está em certa tensão com a suposta habilidade política de Jesus, uma das causas alegadas do sucesso do cristianismo.

A parte sobre a impostura termina com um capítulo sobre Maomé, que recebe um tratamento ainda mais hostil do que Jesus e Moisés. Novamente aproveitando-se da estupidez do povo, Maomé estabeleceu uma religião dizendo-se profeta de Deus. Criou um exército para assegurar seu poder e se valeu de estratagemas imorais para legitimar-se. O autor do tratado conta, entre outras, uma história relatada por um outro libertino erudito, Gabriel Naudé, um dos principais teóricos da interpretação política das religiões. Maomé teria ordenado a um criado que se escondesse perto do caminho por onde costumava passar e dissesse, imitando a voz de Deus, que Maomé é o bem-amado de Deus. Mais tarde teria assassinado esse criado para que a sua impostura não fosse descoberta. Último e maior dos impostores, Maomé foi quem logrou maior sucesso.

A segunda parte do tratado, a análise das religiões, contém capítulos específicos sobre a religião judaico-cristã e outros mais genéricos sobre as religiões em geral. O autor anônimo cita refutações recíprocas dos apologistas das três grandes religiões reveladas, estabelecendo entre elas um conflito no qual cada uma destrói as demais. Com efeito, muitos cristãos denunciam a superstição e a ausência de espiritualidade dos judeus. Esses, por sua vez, acusam os cristãos de adorarem imagens e de levarem uma vida plena de adultérios, blasfêmias e heresias. Cristãos e judeus de­nunciam a religião “maometana por causa de sua vaidade carnal e grosseira […]”. “Os seguidores dessas religiões”, diz o autor do tratado, “engalfinham-se, desprezam-se e desdenham-se mutuamente, tomando uns aos outros por cegos, malditos, condenados e perdidos, às vezes perseguindo uns aos outros como cães furiosos” (p. 116).[8] A intolerância religiosa é frequentemente denunciada no tratado. Ocorre não só entre religiões diferentes, mas no interior do próprio cristianismo. As guerras religiosas, a perseguição de protestantes, a caça às bruxas, enfim, a Inquisição, mostram que, não obstante se pregar uma moral de humildade e submissão, o cristianismo na prática faz eclodirem paixões de ambição, crueldade e vingança.

A análise crítica das religiões em geral é fortemente influenciada (há mesmo transcrições literais) por Hobbes, Espinosa e pelos livros De la sagesse, de Pierre Charron, e Considérations politiques sur les coups d’états, de Naudé. Charron foi um discípulo de Montaigne extremamente influente em todo o século XVII, em particular entre os libertinos. Bastante influenciado pelo ceticismo antigo, Charron apresenta em De la sagesse as regras de uma sabedoria humanista independente da religião. Além disso, Charron faz uma crítica cerrada das religiões pagãs, que os libertinos do final do século XVII estenderam à tradição judaico-cristã.[9]

O autor do Tratado dos três impostores analisa “cientificamente” as religiões, explicando-as por causas exclusivamente naturais. Todas possuem certos elementos comuns: milagres, prodígios, oráculos, mistérios, artigos de fé, profetas e profecias. Esses elementos funcionam como alimentadores da imaginação e da superstição popular. Todas apelam, de uma forma ou de outra, para o sobrenatural e o extraordinário, introduzindo uma revelação que supostamente se coloca para além do exame racional do comum dos mortais. Quanto às causas do surgimento e desenvolvimento das religiões, são apontadas a ignorância das causas naturais dos fenômenos, com a consequente atribuição equivocada de causas finais (influência de Espinosa), o medo de poderes invisíveis e da própria condição precária dos homens (influência de Hobbes), e, principalmente, a junção perversa da habilidade dos políticos e legisladores, por um lado, e a ignorância e superstição do povo, por outro (teorias de Vanini, Charron e, sobretudo, Naudé).

Na parte construtiva do tratado, nos capítulos em que o autor apresenta suas próprias opiniões sobre Deus, ressaltam-se a rejeição de todo antropomorfismo e a adoção de um deísmo que nega a providência geral ou particular, isto é, nega que Deus exerça qualquer intervenção providencial na natureza. O autor do tratado nega assim os milagres, admitindo apenas uma teologia racional e naturalista. Deus se confunde com a natureza mas, apesar do título O espírito de Espinosa, a concepção de Deus e da alma que o autor defende é materialista. Deus é definido como, eu cito, “um ser simples, uma extensão material infinita” (capítulo 18, sugestivamente intitulado “Verdades sensíveis e evidentes”), e a alma, como um “fogo sutil” originário do sol que anima o mundo (capítulo 19). A concepção cartesiana da alma é duramente criticada: a alma é uma coisa extensa, material, portanto perecível. Fica assim descartada como inconsistente com as verdades sensíveis e evidentes toda noção de justiça eterna divina.

O cristianismo é, sem dúvida, o principal alvo do autor do Tratado dos três impostores. A grande maioria dos apologistas que buscaram refutar o tratado ou a tese da impostura religiosa é cristã, e foi no interior da cristandade que o tratado teve maior circulação e repercussão. Por exemplo, Georges Couton (no artigo citado) e Anthony McKenna mostram que boa parte da apologética de Pascal busca responder à tese da impostura.[10] Pascal caracteriza Maomé como um impostor: “Eu vejo os fazedores de religião em diversos lugares do mundo e em todos os tempos, mas eles não têm nem a moral que satisfaz nem as provas que poderiam me convencer. Desse modo rejeito igualmente a religião de Maomé, a da China, a dos antigos romanos e a dos egípcios pela única razão que, uma não possuindo mais marcas de verdade do que as outras, a razão não pode pender para um mais do que para outro lado” .[11]

Denunciada a impostura de Maomé e outros, Pascal elabora provas históricas e doutrinais a favor de Moisés à medida que a revelação cristã depende da judaica, e desenvolve a teoria do Deus escondido na pessoa de Cristo. Segundo Pascal, Cristo se deixa deliberadamente tomar por um impostor para que somente aqueles cujos corações foram tocados pela graça medicinal possam reconhecer a sua divindade e ser salvos. A atribuição de impostura encontra assim um lugar no interior mesmo da ética e teologia cristãs.

Evidentemente não é só Jesus que é atacado no Tratado dos três impostores. Moisés também o é, mas a reação dos judeus ao tratado ou à tese ainda não foi explorada. Como se sabe, a Inquisição perseguiu duramente os judeus em Portugal e na Espanha nos séculos XV, XVI e XVII. Alguns que resistiram à conversão forçada encontraram refúgio em Amsterdam, na Holanda, país de grande tolerância religiosa no contexto intelectual da época. Lá estabeleceram uma comunidade, podendo professar livremente o seu credo e praticar livremente a sua lei. Interessei-me pela reação dessa comunidade à libertinagem, em particular à tese da impostura de Moisés, Jesus e Maomé, porque, em primeiro lugar, trata-se sobretudo de portugueses nascidos e criados em Portugal, ou de filhos destes. Como muitos eram ex-conversos, conheciam até mais o cristianismo do que o judaísmo, cujo culto só era possível em Portugal e na Espanha sob condições extremamente precárias. Esses judeus escreveram obras literárias, teológicas e apologéticas em português ou espanhol, obras que permanecem ainda muito pouco estudadas e que são praticamente desconhecidas no Brasil. Em segundo lugar porque Espinosa foi associado aos libertinos na época de sua excomunhão da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam. Espinosa foi também uma influência importante na libertinagem do final do século XVII, quando foi escrita a versão do Tratado dos três impostores examinada acima, intitulada, como se viu, O espírito de Espinosa. Por fim, acho que será historicamente correto incluir neste artigo o exame de uma reação ortodoxa à libertinagem, uma vez que trato do século XVII, século no qual, diferentemente do XVIII, a apologética é tanto ou mais significativa do que a libertinagem.

A libertinagem na comunidade judaica de Amsterdam na época de Espinosa

Nos três anos que vão da data da chegada de Juan de Prado a Amsterdam em 1655 até sua excomunhão em 1658, vários problemas de libertinagem surgiram no interior e em volta da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam. No dia 27 de julho de 1656 Espinosa foi excomungado da comunidade por causa, eu cito a proclamação da excomunhão, “das heresias abomináveis que ele praticou e ensinou”. Estas heresias foram presumivelmente as seguintes: 1) negação da imortalidade da alma; 2) negação da divindade da lei de Moisés; e 3) a opinião de que Deus existe apenas filosoficamente. Essa lista foi dada por Tomás Solano y Robles, que testemunhou ter ouvido pessoalmente de Espinosa e Prado que a adoção dessas opiniões teria sido a razão da sua excomunhão.[12]

Em 1658 foram levantadas acusações contra outro membro da comunidade, Daniel Ribeira. Isaac Pacheco testemunhou que, entre outras he­resias, Ribeira negou, eu cito, “que Deus exerça seja providências particulares, seja uma providência genérica”. Essa opinião, idêntica à do autor do Tratado dos três impostores, é ainda mais radical do que a de alguns deístas que negam somente intervenções particulares de Deus, admitindo uma providência genérica que corresponde ao curso ordinário da natureza. Ribeira teria afirmado ainda que “Moisés era um grande mágico” e que, ao ditar os comandos, “Moisés estava contemplando o seu próprio interesse e o interesse do seu irmão Aaron”.[13] Segundo uma outra testemunha, Abraão Franco da Silveira, Ribeira acreditava na tese dos três impostores. Diz ele que “um dia, quando entrei em seu quarto, ele (Ribeira) falou-me tão francamente que me disse que o que Moisés pregou é tão falso quanto as pregações de Maomé e de Jesus, que o discurso dos três não passa de engano e ação estratégica.[14] Na mesma ocasião, acusações igualmente graves foram feitas contra Prado. Segundo um dos seus estudantes de latim, Jacó Monsato, Prado teria indagado: “Por que deveríamos acreditar na lei de Moisés mais do que nos ensinamentos das várias outras seitas? Se cremos em Moisés ao invés de em Maomé, tem de haver uma justificação, mas tudo é imaginário”.[15]

A sugestão de que Moisés era, como Jesus e Maomé, um impostor, circulou na época não só no interior da comunidade judaica, mas também ao seu redor. Richard H. Popkin chama atenção para uma carta do milenarista britânico Oldenburg ao hebraísta holandês Boorel, na qual o primeiro faz referência à tese dos três impostores e urge Boorel para escrever uma resposta.[16] Boorel mantinha contato próximo com rabinos da comunidade judaico-portuguesa, inclusive tomando lições de hebraico com Menasseh ben Israel e Jacó Judá Leon. Para facilitar seu contato com os judeus, Boorel chegou mesmo a aprender português e espanhol.[17] Outro judeu das relações de Boorel entre os rabinos é Jacó Abendana. Segundo David Katz, como Boorel estava ocupado demais trabalhando em sua refutação da tese dos três impostores, ele engajou Abendana no projeto da tradução do Mishna.[18]

Popkin sugere que o Tractatus de Espinosa é uma resposta à tese dos três impostores. Espinosa conhecia Boorel? Embora não haja evidência de um contato pessoal, sua interação após sua excomunhão com mem­bros de um círculo de protestantes liberais do qual Boorel participava é bem conhecida. Além disso, Espinosa estava em contato com Oldenburg, que sabia da preparação da refutação da tese dos três impostores por Boorel.[19]

Considerando os casos de libertinagem registrados na comunidade judaica, entre os quais a tese dos três impostores e o fato de que o contato atestado de Boorel era com os rabinos e não com Espinosa, cabe investi­gar se além da resposta cristã de Boorel e da política de Espinosa haveria também uma resposta judaica à tese dos três impostores. Tive a oportunidade de examinar alguns manuscritos polêmicos preservados na ETS Haim Seminarium, que contém boa parte do acervo da biblioteca da sinagoga de Amsterdam do século XVII, bem como livros escritos por membros da comunidade preservados na biblioteca Rosenthaliana de Amsterdam, sem contudo encontrar nenhuma referência explícita à tese dos três impostores. Encontrei, todavia, um debate interessante sobre a religião revelada que é com certeza uma resposta indireta à tese dos três impostores.

Saul Levi Morteira era o principal rabino da comunidade durante o período em exame. Ele escreveu, em português, um tratado intitulado “Tratado da verdade da lei de Moisés”. O tratado é mais uma obra anticristã do que uma resposta à libertinagem. Entretanto, Morteira aborda uma questão cética a propósito da religião revelada, levantada por um teólogo católico (provavelmente o jesuíta português Antônio Vieira). Vieira argumentou em Amsterdam que, se os judeus não aceitarem a divindade do Novo Testamento serão obrigados, caso sejam coerentes, a também negar a lei de Moisés. As evidências da autenticidade do Velho Testamento não são maiores do que as evidências da autenticidade do Novo Testamento. Morteira considera a posição de Vieira suicida. Ele a compara com o gesto desesperado de marinheiros derrotados numa batalha que atiçam fogo na própria nau, queimando a si próprios e aos inimigos.[20] Embora Vieira introduza esse argumento apenas como uma hipótese absurda que seu debatedor judeu não irá aceitar, Morteira sabe que outros — os libertinos — podem perfeitamente achar a hipótese da falta de fundamento de toda revelação bastante plausível. Morteira não aceita a consequência do argumento e se esforça para provar a veracidade da revelação mosaica em contraposição à falsidade da cristã.

O problema do critério implicitamente levantado por Antônio Vieira é fundamental na tese dos três impostores. Quando se têm apologistas das três religiões reveladas, cada um argumentando pela impostura das demais, é fácil para um libertino como Ribeira, que passou por duas das três religiões reveladas, justapor todo esse criticismo mútuo e liquidar com a própria noção de religião revelada.

Morteira não precisava ter ouvido a tese dos três impostores nem ter deduzido o potencial libertino do argumento de Vieira para estar familiarizado com o problema. Uriel da Costa, um outro excomungado da comunidade judaico-portuguesa, chegou a uma noção de religião natural depois de negar primeiro a revelação cristã e depois a judaica. Na sua autobiografia escrita cerca de vinte anos antes do período em foco, Uriel diz que

[s]empre existiram e sempre existirão fariseus cegos que esqueceram a lei que é a primeira. Esses fariseus só conhecem as outras leis, que somente muito mais tarde começaram a existir, e as quais você condena, fazendo exceção apenas para sua própria lei. Entretanto, apesar de você, outros avaliam [a lei judaica] de acordo com a reta razão, que é o único critério da verdadeira lei natural, que você quer esquecer e esconder para poder dominar o povo.[21]

Uriel da Costa levanta o problema cético do critério nessa passagem. Cada religião revelada só não é percebida como irracional pelos que nela foram criados, submetidos à doutrinação dos guardiães (os teólogos e sacerdotes) dessa religião particular. Também notável na autobiografia de Uriel da Costa é sua afirmação de que, embora não se considere judeu, cristão ou muçulmano, crê em Deus.[22] O texto de Uriel da Costa deixa a impressão de que ele negou a religião revelada porque ela é um obstáculo à verdadeira religião natural, uma religião baseada só na razão.[23]

O exame do Tratado dos três impostores apresentado acima mostra que o seu autor não é de forma alguma um ateu. O criticismo do Deus das escrituras é somente um lado da moeda, o outro é a crença em um Deus infinito e eterno, um Deus filosófico, identificado com a natureza. Após a denúncia de Moisés, Jesus e Maomé como impostores, a autor anônimo inicia o capítulo “Verdades sensíveis e evidentes” da seguinte maneira: “Uma vez que Moisés, Jesus e Maomé são como acabamos de descrevê-los, é evidente que não é em seus escritos que devemos buscar a verdadeira ideia da divindade” (p. 214). Há portanto uma verdadeira ideia da divindade que deve ser descoberta pela razão. O autor do Tratado dos três impostores, como a maioria dos autores dos manuscritos clandestinos do período, é um deísta que crê na existência de um Deus filosófico. Com efeito, Anthony McKenna examinou o Tratado dos três impostores e outros manus­critos heterodoxos clandestinos da época, concluindo que “em todos os manuscritos que citamos, a crítica das provas históricas da religião se funda sobre uma inabalável certeza metafísica na existência do Deus dos filósofos. A perfeição deste Deus fundamenta a denúncia do Deus tirânico do Antigo Testamento, cuja impostura é explicada pela estupidez do povo”.[24]

Uma vez que o ataque libertino à religião revelada é complementado pela introdução de um Deus filosófico, duas estratégias apologéticas podem ser perseguidas. Uma é a defesa direta e positiva da divindade da escritura. Essa estrátegia é, contudo, espinhosa, conforme indiquei a pro­pósito da disputa de Morteira com Vieira. O libertino ataca as três religiões reveladas, ganhando credibilidade do fato do apologista de cada religião revelada concordar com ele no que diz respeito às revelações alheias. Outra estratégia de defesa consiste não tanto na defesa direta da revelação, mas no contra-ataque. Por um lado, argumentos céticos são levantados contra o Deus filosófico. Por outro, o Deus da escritura é legitimado pela atestação histórica de milagres e pela realização de profecias. Ainda que logre sucesso, esta segunda estratégia não fornece certeza metafísica da divindade da escritura. Mas ela ao menos destrói a alternativa filosófica proposta pelo libertino. Trata-se assim de um argumento indireto da necessidade da revelação como única forma de evitar o ateísmo.

O contra-ataque judaico

As duas respostas ao deísmo por membros da comunidade judaico-portuguesa que examino a seguir são de 1663 e adotam a estratégia do contra-ataque. Uma primeira resposta é a tradução comentada para o espanhol do livro Kuzari, do filósofo judeu medieval Ha-Levy, feita por Jacó Abendana. A segunda é um escrito de Oróbio de Castro intitulado “Epístola invectiva contra Prado, un Philosopho Medico que dudava o no cria la verdad de la divina escriptura y pretendio encubrir su malicia con la afectada confession de Dios y Ley de Naturaleza”.

A tradução que Abendana fez do Kuzari é bastante relevante nesse cenário de conflito das religiões reveladas e da oposição entre religião revelada e natural. O Kuzari é um livro dramático no qual é relatada a história da conversão do rei Kuzar ao judaísmo. A história começa quando o rei tem um sonho no qual um anjo lhe diz que suas intenções são boas, mas não suas ações. Desconfiando tratar-se de uma mensagem divina, o rei convoca quatro especialistas em Deus — um filósofo, um cristão, um muçulmano e um judeu — para ajudá-lo a interpretar o sonho, a fim de determinar quais ações deveria tomar, isto é, qual religião deveria adotar. A maior parte do livro é um diálogo entre o rei e o rabino, pois o rei rapidamente acha os outros pouco convincentes.

O livro de Ha-Levy é portanto apologético do judaísmo tanto em relação às duas outras religiões reveladas como em relação à filosofia pagã. Em qual dessas duas frentes Abendana estava lutando ao traduzir a obra? A Enciclopédia judaica sugere que sua iniciativa é anticristã, motivada por tentativas de cristãos de convertê-lo. De fato, há evidência de que Boorel e um outro hebraísta Hulsius — tentaram converter Abendana. Penso não obstante ser falsa essa hipótese. Abendana dedicou sua tradução ao embaixador inglês em Amsterdam, Guilielmo Davidson. Além disso, subs­tituiu o cristão do diálogo original por um “sábio de Edon”, e nem sequer menciona o diálogo do cristão com o rei em seu longo comentário. Finalmente, as autoridades da comunidade judaica proibiam seus mem­bros de entrarem em disputas religiosas com cristãos.[25] O principal alvo de Abendana é o filósofo que Abendana, com um olho na libertinagem da época, interpreta como sendo um deísta. Já no início da tradução, na carta a Davidson, Abendana justifica a tradução do Kuzari nos seguintes termos:

Ha-Levy destrói as opiniões falsas dos filósofos e prova a veracidade da Lei Divina. Ele mostra, com razões fundadas no entendimento, como é possível que Deus se comunique com os homens e como Deus revela sua vontade, o que filósofos e gentios que não são iluminados pela Lei Divina às vezes acham impossível. Ha-Levy declara que há uma maneira particular de cultuar Deus que não pode ser descoberta pelo entendimento humano, mas somente por intermédio da revelação divina.[26]

O filósofo de Abendana nega a revelação, a vontade e a providência divina. O filósofo do livro de Ha-Levy aparece assim como um libertino, inimigo comum de judeus e cristãos, que Oldenburg, Boorel, Vieira, Morteira, Oróbio e, presumivelmente, Davidson gostariam de ver derrotado por “razões fundadas no entendimento”.

Conforme indicado acima, a questão inicial do Kuzari que leva à com­paração do judaísmo com a filosofia (que é sobretudo a aristotélica) é o sonho do rei. O que está em questão é portanto o estatuto da revelação, objeto central do ataque libertino. Abendana atribui o silêncio que o filósofo guarda nesse ponto ao respeito pela figura do rei, pois o filósofo “considerava a mensagem do sonho como uma ilusão ou como uma mera imaginação do rei (o filósofo não achava que aquilo que o rei viu no sonho fosse profético ou verdadeiro)” .[27]

Após indicar que com essa explicação naturalista do sonho o filósofo desconsidera a comunicação profética com Deus, Abendana afirma que o filósofo busca conhecer Deus por demonstrações matemáticas por ele consideradas como absolutamente certas.[28] Essas supostas demonstrações não passam, entretanto, segundo o juízo de Abendana, de “opiniões sem nenhum fundamento […] que se mostram dúbias quando examinadas cuidadosamente”. Mais ainda, o Deus concebido dessa forma matemática é um Deus “incapaz de dirigir a natureza conforme a sua vontade e de mudar o seu curso”.[29] A vontade e a providência de Deus são portanto negadas pelo filósofo que reduz a divindade a uma mera causa primeira. Abendana deixa claro que esse Deus filosófico é bem distinto do Deus providencial da escritura. “Com seus raciocínios e demonstrações, os filósofos chegam a negar que Deus tenha conhecimento da humanidade. Afirmam que Deus não faz ao homem nem bem nem mal e outras heresias semelhantes. Mas esses filósofos não conhecem nem podem captar o nome correto de Deus, pois eles não possuem nem podem possuir o verda­deiro conhecimento da divindade.”[30]
Um ponto enfatizado por Abendana em seu comentário é que o filósofo deísta — no fundo, o libertino — não oferece uma alternativa adequada ao Deus da escritura que ele nega. O verdadeiro conceito de Deus não é formulado pela razão limitada e falível. A limitação natural das faculdades torna os homens dependentes da revelação no que concerne o conhecimento de Deus. A abordagem filosófica da divindade é considerada herética tanto porque revela a presunção de que os intelectos humano e divino são comensuráveis como porque resulta em uma concepção equí­voca de Deus.[31]

A posição de Abendana é similar à teologia negativa adotada por contra-reformadores franceses.[32] Um ceticismo a respeito da razão humana justifica a aceitação da divindade da lei mosaica com base num fideísmo e em testemunhos históricos da revelação. Cito novamente Abendana: “O Rabino condena a investigação da verdade por meio da especulação inte­lectual e aprova o caminho seguro da tradição porque o juízo humano é incerto e vão no que concerne às coisas escondidas e porque a doutrina da lei dos profetas que recebemos pela tradição é certa e infalível, pois é revelada por Deus. Devemos assim seguir os profetas que, através de visões espirituais, alcançaram as coisas escondidas que foram dessa maneira reveladas” .[33]

Oróbio de Castro, em sua carta contra Prado e os deístas, tem preocupações semelhantes às de Abendana quando menciona, no prólogo, dois grupos de ex-marranos que viviam na comunidade.

Alguns se esforçam ao máximo para amar a Lei Divina. Humildemente escutam os que estão em condições de explicá-la por terem sido criados no judaísmo e aprendido a Lei. Assim chegam doentes de ignorância, mas, como não sofrem do terrível mal do orgulho, são facilmente curados. Outros que vieram para o judaísmo estudaram algumas ciências profanas como a lógica, a física, a metafísica e a medicina enquanto viviam sob a idolatria (i. e., em Portugal e na Espanha). Esses chegam tão ignorantes da Lei de Deus como aqueles, mas vêm cheios de vanidade, orgulho e arrogância, crentes que são muito sábios. Esses últimos não podem ser curados da ignorância.[34]

Oróbio argumenta que questões teológicas e históricas não são passíveis de demonstração matemática. Isso torna “as ciências profanas” pouco úteis para tratar de questões religiosas. Segundo Oróbio, a autoridade da lei judaica deriva do fato de não ser contra a razão e da credibilidade dos que creram nela. Diferentemente do cristianismo, o judaísmo atende as duas exigências.[35]

Um dos argumentos centrais de Oróbio em defesa da divindade da lei mosaica é bastante similar ao de Abendana. A divindade da escritura é atestada pelo fato de que nenhum filósofo, antigo ou moderno, e não obstante inteligente e cuidadoso, jamais concebeu a unidade absoluta de Deus sem o auxílio da revelação.[36] Já que a concepção monoteísta verdadeira de Deus está além do entendimento humano, o único lugar em que pode ser encontrada é na escritura. Ao negar a escritura, o deísta de fato nega Deus. Oróbio reduz assim o deísmo ao ateísmo: “Segue dessas considerações que é contraditório crer em Deus e não crer na revelação, já que não há outra fonte de crença na divindade, mesmo que se admita que a existência de Deus possa ser conjeturada dos efeitos e razões. Tal conjetura seria uma opinião dúbia e não uma crença indubitável, que é como nosso assentimento à unidade do criador deve ser dado”.[37]

Se Oróbio está certo ao afirmar a impossibilidade de provar matematicamente a existência de Deus, então o deísta é ou derrotado ou desmascarado como um ateu, pois “os deístas afirmam crer com tanta certeza na unidade e eternidade de Deus que não admitem fazer nenhuma con­jetura nem professar meras opiniões nesse assunto, pois opinar seria duvidar ao invés de crer com certeza infalível”.[38] A estratégia de Oróbio, como a de Abendana, é quebrar, nas palavras de McKenna, “a inabalável certeza metafísica na existência do Deus dos filósofos”, que é apresentada pelos libertinos com a alternativa verdadeira ao conceito de Deus das religiões reveladas.

Em suma, segundo Abendana e Oróbio, o homem é naturalmente li­mitado e, por conseguinte, incapaz de conhecer Deus sem o auxílio da revelação divina. O fracasso das inúmeras tentativas das mentes mais brilhantes que não lograram estabelecer o monoteísmo nem conceber a natu­reza volitiva de Deus atesta os limites da razão no que concerne às questões metafísicas. A revelação divina, ao contrário, é atestada pelo testemunho histórico de toda a nação judaica. Tentativas de conhecer Deus apenas pela razão estão fadadas ao fracasso e exibem uma inaceitável arrogância que somente mantém o deísta ainda mais distante de Deus.

No que essa estratégia judaica antilibertina difere da cristã? A estratégia de contra-atacar com argumentos céticos o Deus dos filósofos foi também bastante utilizada por apologistas cristãos. Basta lembrar o famoso memorial de Pascal: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó, não dos filósofos e sábios”.[39] O que parece peculiar à apologética judaica antilibertina no período é que, embora fique claro que a revelação defendida é a da lei de Moisés, há certo cuidado em se evitar atingir as demais revelações, em particular a cristã. Essa postura contrasta com a dos apolo­gistas antilibertinos cristãos do período, como Pascal, que agressivamente também se voltam contra o islamismo e o judaísmo. A atitude cautelosa da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam é bem a de um povo perseguido, que preza, portanto, a tolerância religiosa, e que usufrui de uma liberdade bastante ampla para o período mas ainda assim precária, pois permanecia sempre sujeita a restrições por parte das autoridades cristãs holandesas.

A hetorodoxia volta a atacar

Poderei aqui apenas mencionar um desenvolvimento posterior dessa luta teológica no interior da comunidade judaico-portuguesa de Amsterdam. Cito acima as heresias de Prado e Espinosa que motivaram a exco­munhão de ambos da comunidade. Concluo este artigo com uma rápida referência ao Tractatus theologico-politicus de Espinosa, publicado mais de vinte anos depois de sua excomunhão. Algumas das posições de Espinosa no Tractatus são diametricalmente opostas às principais teses de Oróbio e Abendana.

Abendana e Oróbio sustentam que, apesar do esforço dos filósofos, só os judeus foram capazes de alcançar o conhecimento adequado da divindade, porque somente eles receberam a revelação milagrosa de Deus. Espinosa diz, eu cito o Tractatus, que “os israelitas, não obstante todos seus milagres, eram incapazes de formar uma idéia adequada de Deus, ao passo que os filósofos que buscaram compreender as coisas através de con­cepções claras ao invés de milagres sempre acharam a tarefa extremamente fácil”.[40] Abendana e Oróbio denunciaram a arrogância inaceitável daqueles que se valeram apenas de suas faculdades intelectuais limitadas, desprezando a revelação e a tradição, para buscar o conhecimento de Deus. Segundo Espinosa, perfeição intelectual é um grande bem por permitir justamente o conhecimento de Deus.[41]

É crucial na apologética de Oróbio a afirmação de que, embora acima da razão, a escritura e suas histórias, os comandos e a lei não são contra a razão. Isto é, a razão humana desassistida da tradição é incapaz de deduzir a lei mas essa, uma vez revelada, aparece como inteiramente razoável para a razão. Espinosa diz: “Não reconheço nenhuma diferença entre um evento contra as leis da natureza e um evento acima das leis da natureza” .[42]

Oróbio observa que os deístas atribuem a causas naturais mesmo os eventos mais extraordinários, dessa forma descartando a providência divina. Segundo Oróbio, o deísta afirma que “para exercer sua onipotência, Deus não precisa alterar a ordem natural das coisas nem fazer milagres, pois somente por ter criado o universo e conservá-lo Deus mostra seu do­mínio infinito e universal”.[43] Já citei a caracterização do filósofo libertino por Abendana como alguém que crê em Deus, “mas num Deus incapaz de inclinar a natureza conforme sua vontade, ou de modificar o seu curso”. Espinosa argumenta que a vontade e a providência divinas são idênticas ao seu entendimento das essências eternas das coisas e da ordem fixa e imutável da natureza.[44] O povo, isto é, os judeus ignorantes, crê que Deus exerce sua vontade somente através de milagres e da providência. “Eles supõem que Deus é inativo”, diz Espinosa, “enquanto a natureza funciona em sua ordem habitual e vice-versa, que o poder da natureza e as causas naturais são inoperantes quando Deus está atuando. Assim eles imaginam dois poderes distintos: o de Deus e o da natureza.”[45]

Os estudiosos Kasher e Biderman entendem a alegada heresia do jovem Espinosa de que Deus existe apenas filosoficamente como a tese de que “Deus é ausente do universo, não dirige todos os seres criados nem cuida do seu povo”.[46] Se as opiniões de Espinosa na época de sua exco­munhão foram semelhantes às de Prado — Solano y Robles as reporta co­mo sendo adotadas por ambos —, então a interpretação de Kasher e Biderman é atestada por Prado, de acordo com as cartas a ele dirigidas por Oróbio. Se Espinosa adotava de fato o deísmo de Prado nessa ocasião, sua evolução posterior em direção a um panteísmo pode ter sido uma forma de evitar críticas como as de Abendana e Oróbio. Se a vontade e a providência de Deus são idênticas ao seu entendimento eterno das essências, se a essência de Deus é idêntica às leis imutáveis da natureza, então o “Deus filosófico” não é mais uma divindade que meramente criou e preserva o curso ordinário da natureza. A atividade e o poder de Deus já não aparecem limitados, pelo menos da maneira que Abendana e Oróbio denunciam na posição libertina deísta.

Afirmo acima que o cerne do contra-ataque de Abendana e Oróbio é a tese de que a existência de Deus não pode ser provada matematicamente. O Deus da razão filosófica é então incompetente para julgar o Deus da religião histórica. Oróbio chega mesmo a desafiar o deísta: este precisa primeiro fornecer a demonstração matemática da existência de Deus para só depois, tendo conseguido tal façanha, condenar o Deus da escritura no tribunal da razão.

Quando no Tractatus Espinosa diz que a existência e a essência de Deus são conhecidas não por milagres mas por leis naturais, ele remete o leitor à demonstração “geométrica” da existência de Deus que ele elaborou no seu comentário dos Princípios da filosofia de Descartes.[47] Essa obra de Espinosa apareceu em 1663, mesmo ano da tradução e comentário do Kuzari por Abendana e da primeira carta de Oróbio sobre Prado. Embora não haja evidência que Prado ainda estivesse em contato com Espinosa nessa época, pois os dois heréticos encontravam-se em cidades diferentes da Holanda, não é implausível conjeturar que Espinosa conhecia o ataque de Oróbio aos deístas. As cartas de Oróbio foram amplamente copiadas e difundidas na ocasião.

Révah, estudioso de Espinosa, argumenta que Juan de Prado exerceu uma influência significativa no jovem Espinosa. Révah nota semelhanças básicas entre as opiniões dos dois judeus heréticos, indica que estavam as­sociados desde a chegada de Prado à comunidade, sendo que até esse mo­mento o comportamento de Espinosa era aparentemente ortodoxo. (Espinosa cumpria pontualmente suas obrigações para com a sinagoga e assistia às aulas do rabino chefe Saul Levi Morteira.)[48] A teoria de Révah foi recentemente atacada por Yirmiyahu Yovel. Yovel sustenta que o comportamento de Espinosa não é revelador de suas opiniões de então, que Espinosa era intelectualmente independente e não se deixaria influenciar por alguém menos dotado como Prado, e que o período que vai da chegada de Prado à comunidade até o início do inquérito que levou à excomunhão de Espinosa é curto demais para que causasse uma mudança no filósofo.[49]

Há, porém, outra possibilidade de como o pensamento de Prado pode ter influenciado Espinosa, além do contato direto: através das objeções de Abendana e Oróbio ao deísmo adotado por Prado e, presumivelmente, pelo então jovem Espinosa. Révah sugere que Espinosa desenvolve algumas de suas ideias a partir de problemas que detecta na posição de Prado.[50] Ironicamente, Abendana e Oróbio podem ter ajudado Espinosa a identificar e trabalhar esses problemas, ao mostrarem os pontos fracos do deísmo de Prado, as questões que teriam de ser desenvolvidas e demonstradas para que a religião natural pudesse ser oferecida como uma alternativa séria à religião revelada judaica. Caberia então ao Espinosa da maturidade fortificar a posição heterodoxa e fornecer as demonstrações necessárias. Se minha hipótese for verdadeira, ela exemplifica um fato extremamente irônico, corrente na história da libertinagem e de outros movimentos heréticos no século XVII. A circulação, evolução e aprimoramento das ideias subversivas da religião se deu menos pelas obras libertinas — que eram bastante reprimidas no período — e mais por intermédio dos próprios apologistas, obrigados a citar as passagens mais importantes e os argumentos mais decisivos das obras libertinas em seu esforço de refutação. Talvez as ideias libertinas não teriam triunfado como triunfaram tão rápida e tão completamente no século XVIII se não tivessem sido preservadas e divulgadas no século XVII pelos apologistas da religião.

* Este trabalho resulta de pesquisas que fiz enquanto bolsista da Capes (em Leiden e Amsterdam) e posteriormente do CNPQ (em Paris e Belo Horizonte).

Notas

[1] Cf. Richard H. Popkin, The history of scepticism from Erasmus to Spinoza, Berkeley/Los Angeles/Londres, University of California Press, 1979, pp. 87 ss.

[2] Cf. idem, ibidem, p. 88.

[3] No artigo “Les problèmes de l’histoire du libertinage, notes et réflexions”(XVII Siècle, nº 127, 1980, pp. 131-61), René Pintard reavalia o seu estudo quase quarenta anos depois, considerando novas pesquisas realizadas nesse intervalo e algumas críticas que recebeu. Reafirma a caracterização de libertino feita por La Mothe le Vayer (contra abjeções levantadas por Popkin na obra citada acima) e outros, mas se mostra cauteloso em relação a Gassendi. Com efeito, no que diz respeito a este último, a tendência entre os estudiosos a qual compartilho é considerá-lo como um cristão sincero.

[4] Mersenne faz citações de um manuscrito libertino intitulado “Quatrain du déiste” em seu livro L’impiété des déistes, athées, et libertins de ce temps Paris, P. Bilaine, 1624. Enquanto nenhuma cópia do “Quatrain du déiste” jamais foi encontrada, há um outro manuscrito dos meados do século XVII, o Theophrastus redivivus, cujo texto crítico foi editado por G. Canziani e G. Paganini (2 vols., Milão, F. Angeli, 1981-2). J. J. Denonain indica outros que foram citados como existindo no século xvi: Cymbalum mundi e Fléo de la Foy (“Le Liber de tribus impostoribus du xvième siècle”, in Aspects du libertinism au XVI’ siècle, Paris, J. Vrin, p. 223).

[5] Georges Couton, “Libertinage et apologétique”, in XVII Siècle, nº 127, 1980, p. 187.

[6] Ver artigo de J. J. Denonain citado acima.

[7] Ver S. Berti, “La vie et l’esprit de Spinosa (1719) e la prima traduzione francesa dell’Ethica” , Rivista Storica Italiana, vol. 98, 1986, pp. 5-46.

[8] Cito a edição crítica em preparação por Sílvia Berti de La vie et l’esprit de mr. Benoit de Spinosa, originalmente publicado em 1719. Há uma reedição moderna do Traité des trois imposteurs, que reproduz uma edição de 1777, sob a responsabilidade de Pierre Rétat. Saint-Etienne, Centre Universitaire d’Éditions et Rééditions, Universités de la Région Rhône-Alpes, 1973.

[9] Ver Françoise Charles-Daubert, “La Bible des libertins”, in J.-R. Armogathe (ed.), Le grand siècle et la Bible, Paris, Nachetel, 1991. Sobre Charron, ver Michel Adam, Etudes sur Pierre Charron, Bordeaux, Presses Universitaires de Bordeaux, 1991.

[10] A. McKenna, “Les Pensées de Pascal dans les manuscrits clandestins du XVII siècle”, in O. Bloch (ed.), Le matérialisme du XVII siècle et la littérature clandestine, Paris, Vrin, 1983, pp. 131-48.

[11] Pascal, Pensées; org. Louis Lafuma, Paris, Editions du Seuil, 1962, p. 454.

[12] Citado por A. Kasher & S. Biderman, “Why was Spinoza excommunicated”, in D. S. Katz & J. I. Israel (eds.), Sceptics, milenarians and Jews, Leiden, Brill, 1990, p. 103.

[13] Cf. Yosef Kaplan, From Christianity to Judaism: the story of Isaac Orobio de Castro, Oxford, Oxford University Press, 1989, pp. 142-3.

[14] Ver documento publicado por I. S. Révah, “Aux origines de la rupture spinozien-ne”, in Revue des Etudes Juives, vol. 123, 1964, p. 404.

[15] Cf. Y. Kaplan, op. cit., p. 142.

[16] Cf. R. H. Popkin, “Spinoza and The three impostors”, in E. Curley & Pierre-François Moreau (eds.), Spinoza: issues and directions, Leiden, Brill, 1990, pp. 348-9.

[17] Cf. R. H. Popkin, “Some aspects of the Jewish-Christian theological interchanges in Holland and England 1640-1700”, in J. van der Berg & E. van der Wall (eds.), Jewish-Christian relations in the seventeenth century, Dordrecht, Kluwer, 1988, pp. 3-32; e Ernestine van der Wall, “The Dutch Hebraist Adam Boorel and the Mishnah project”, Lias, vol. 16, 1989, pp. 239-63.

[18] Cf. D. Katz, “The Abendana brothers and the Christian Hebraists of seventeenth-century England”, in Journal of Ecclesiastical History, vol. 40, 1989.

[19] A obra de Boorel, concluída em 1661, intitula-se “Jesus Christi universi humani generis legislator” (Cf. R. H. Popkin, “Spinoza and The three impostors”, p. 349).

[20] Cf. Saul Levi Mortera, Tratado da verdade da lei de Moisés; ed. H. P. Salomon, Coimbra, 1988.

[21] Uriel da Costa, Três escritos, Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1963, p. 59.

[22] Idem, ibidem, p. 59.

[23] A autenticidade da autobiografia de Uriel da Costa não é atestada. Entretanto, H. P. Solomon descobriu em 1990 a primeira cópia do Exame das tradições farisaicas (1624) de Uriel da Costa que parece confirmar as posições citadas da autobiografia.

[24] A. McKenna, op. cit., p. 137.

[25] Cf. A. Kasher & S. Biderman, op. cit., pp. 128-30.

[26] Yehuda Ha-Levy, Cuzary; traducido del arabe al hebreo por Yehuda Abentibbon y del hebreo al castelhano por Jacó Abendana, Madri, Victoriano Suarez, 1910, p. 4.

[27] Idem, ibidem, p. 363.

[28] Idem, ibidem, p. 545.

[29] Idem, ibidem, p. 365.

[30] Idem, ibidem, pp. 497-8.

[31] Idem, ibidem, p. 358.

[32] Sobre isto ver R. H. Popkin, The history of scepticism from Erasmus to Spinoza, Berkeley/Los Angeles/Londres, University of California Press, 1979.

[33] Yhuda Ha-Levy, op. cit., p. 517.

[34] Oróbio de Castro, “Epístola invectiva contra Prado […]”; editado por I. S. Révah no seu Spinoza et le dr. Juan de Prado Paris/La Hague, 1959, p. 90.

[35] Idem, ibidem, p. 100.

[36] Idem, ibidem, pp. 116 e 119.

[37] Idem, ibidem, p. 120.

[38] Idem, ibidem, p. 119.

[39] Pascal, op. cit., p. 913.

[40] Espinosa, A theologico-political treatise, Nova York, Dover, 1951, p. 88.

[41] Idem, ibidem, p. 59.

[42] Idem, ibidem, p. 87.

[43] Oróbio de Castro, op. cit., p. 103.

[44] Espinosa, op. cit., pp. 62-3 e 84.

[45] Idem, ibidem, p. 81.

[46] A. Kasher & S. Biderman, op. cit., pp. 108-10.

[47] Espinosa, op. cit., pp. 84 e 270.

[48] I. S. Révah, op. cit., p. 287.

[49] Cf. Yirmiyahu Yovel, Spinoza and other heretics, vol. 1, Princeton, Princeton University Press, 1990, pp. 57-83.

[50] I. S. Révah, op. cit., p. 287.