Gestão comunitária da terra
06 de Janeiro de 2022 às 10:54
Residentes del Caño Martín Peña em Porto Rico, uma das primeiras experiências na América Latina - Crédito: Line Algoed
Forte protagonismo dos moradores marcam experiências de gestão da terra
Por Felipe Cruz Akos Litsek* e Tarcyla Fidalgo
Ribeiro**
O Termo Territorial Coletivo é o modelo brasileiro de Community Land Trust, instrumento criado nos Estados
Unidos há mais de 60 anos e hoje amplamente disseminado pelo mundo. Trata-se,
em linhas gerais, de um modelo de gestão coletiva da terra, caracterizado pela
separação entre a propriedade da terra e das construções: a primeira pertence à
comunidade como um todo (ficando sob titularidade de uma pessoa jurídica criada
e gerida pelos moradores), enquanto que as casas e construções ficam sob a
titularidade individual dos moradores. Seu principal objetivo é promover o
fortalecimento comunitário e garantir a segurança da posse aos moradores, além
de prover moradia a preços acessíveis de forma permanente. Pode-se dizer que o
TTC é também um mecanismo de desmercantilização da terra: uma vez implementado,
ele retira a terra do mercado, na medida em que a pessoa jurídica composta e
gerida pelos moradores fica proibida de vendê-la.
Breve histórico
O Community Land Trust surgiu nos EUA nos anos 1960,
no contexto do movimento por direitos civis, e de início foi pensado como um
mecanismo de aquisição de terras agrícolas para a subsistência e
desenvolvimento econômico de comunidades negras marginalizadas por políticas de segregação. Os idealizadores do modelo, inspirados por pensadores
como Henri George e Vinoba Bhave, exploravam formas coletivas de posse da terra
baseadas em tradições indígenas e religiosas, buscando adaptar suas
características para atender ao contexto rural dos Estados Unidos. Assim, em
1969, nasce o primeiro CLT no estado da Geórgia, quando 12,000 hectares de
terra foram comprados por uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo era
deter a titularidade da terra e geri-la em nome das famílias que lá residiam e
trabalhavam. A experiência ficou conhecida como New
Communities Inc.
Apesar de surgir no contexto rural, é nas cidades que o instrumento
ganha visibilidade e se desenvolve com rapidez, se relacionando com novas
formas de vulnerabilidade e adotando novas estruturas organizacionais.
Fenômenos como a valorização imobiliária, a gentrificação dos espaços urbanos e
o aumento dos custos com a moradia são apontados como problemas que
justificariam a implementação do instrumento no contexto urbano. Os primeiros
CLTs urbanos surgem nos anos 1980 em cidades norte-americanas, implementados
para servir como um mecanismo de promoção de moradia acessível para comunidades
urbanas vulnerabilizadas de forma permanente.
Hoje, os EUA contam com mais de 250 CLTs ativos, regulamentações
próprias em diversos estados, isenções fiscais devido ao seu caráter social
e crescente apoio do Poder Público. Pelo mundo, o CLT atualmente se encontra
espalhado por diversos países, como o Reino Unido, Canadá, Austrália,
Quênia, Porto Rico, entre outros. Esta proliferação foi acompanhada por uma
contínua adaptação do modelo para realidades distintas, o que é possível
devido ao seu caráter altamente flexível. Em 2017, foi reconhecido pela Nova
Agenda Urbana – documento da ONU adotado que estabelece diretrizes globais de
políticas urbanas e habitacionais – como uma opção preferencial de garantia
de moradia sustentável e acessível, devendo ser apoiada pelos Estados. Apesar
da flexibilidade inerente ao modelo, temos certas características intrínsecas
ao CLT, que são observadas em todas as experiências com o modelo, inclusive no
modelo brasileiro do Termo Territorial Coletivo.
Estrutura do Community Land Trust e
características básicas
Existem pelo menos 5 características básicas que podem ser encontradas
em qualquer Community Land Trust:
1. Adesão voluntária: deve haver liberdade na escolha de constituir
ou aderir a um Community Land Trust. Ninguém pode
ser obrigado a participar de um CLT, a livre manifestação da vontade dos
moradores é essencial para a implementação do instrumento.
2. Terra de propriedade coletiva: aqui não se quer dizer que a
terra está registrada sob o nome de todos que nela habitam, ou que há mais de
um titular da propriedade fundiária. Em todo CLT forma-se uma organização sem
fins lucrativos que se torna a proprietária do terreno – criada e gerida
coletivamente pelos moradores. O objetivo deste arranjo é retirar a terra do
mercado e impedir que pessoas negociem individualmente a propriedade do solo,
afastando interesses especulativos e mantendo o valor dos imóveis estável e
permanentemente acessível para famílias de baixa renda.
3. Casas e construções de propriedade individual: no CLT, cada
morador é individualmente titular da sua casa, e coletivamente titular da
terra. Esse arranjo garante um equilíbrio entre interesses individuais e
coletivos: moradores têm autonomia para usar e dispor de seus bens como
desejarem, desde que dentro dos limites estabelecidos coletivamente, e ao mesmo
tempo contam com a força do coletivo na gestão do território. Assim, é
permitida a troca, venda, aluguel e outras formas de utilização dos imóveis –
podendo o CLT estabelecer regras e limitações com fins de preservar seu
objetivo de promover moradia acessível – e todas as benfeitorias/construções
efetuadas no terreno pertencem aos seus moradores. Para efetivar a separação
entre a propriedade da terra e a propriedade das construções, temos no direito
brasileiro a figura do direito real de superfície, que traz segurança pela
presença de um título registrado em cartório e garante autonomia em seu manejo.
4. Gestão coletiva do território: em todo CLT é formado um conselho
gestor responsável por tomar decisões relativas à gestão do território, cuja
estrutura e formação é definida pelos moradores. As possibilidades de
composição desse conselho são diversas, mas tradicionalmente é previsto no
conselho a representatividade de pessoas de fora do território – como técnicos,
vizinhos ou membros do poder público – desde que aliados da comunidade. Apesar
do conselho ser responsável pela gestão do dia-dia e funcionamento da
organização titular da terra, é possível e recomendada a adoção de outros
mecanismos que garantam uma participação direta dos moradores, como assembleias
gerais, comitês participativos, entre outros.
5. Acessibilidade econômica da moradia: este ponto compreende uma
das principais finalidades do Community Land Trust,
pelo menos em suas aplicações urbanas. Por deter a propriedade da terra e
retirá-la do mercado imobiliário, apenas as construções podem ser objeto de
transações comerciais, o que por si só já reduz drasticamente o preço das
transações imobiliárias. Além disso, existem diversos mecanismos pelos quais o
CLT pode buscar garantir os baixos custos dos imóveis, como a imposição de um
teto para a venda e aluguel das casas, limitações acerca dos possíveis
compradores (evitando, por exemplo, que empresas adquiram imóveis, de forma a
privilegiar o acesso de famílias de baixa renda), direito de preferência (no
qual, se um dos moradores quiser vender sua casa, o próprio CLT pode exercer a
preferência e adquiri-la, para depois revendê-la por um custo acessível), entre
outros.
A reunião dessas 5 características configura o modelo do Community Land Trust, no qual a terra deixa de ser
compreendida como um mero valor de troca mercantilizado para ter privilegiado
seu valor de uso, a partir do cumprimento da sua função social de prover
moradia acessível. Recentemente, experiências com o modelo em assentamentos
informais demonstraram um enorme potencial na resposta às demandas das
comunidades, em especial a permanência no território e o desenvolvimento
comunitário. Uma delas está situada em Porto Rico e merece atenção especial por
seu impacto e influência.
CLT em assentamentos informais: o caso de Porto Rico
Em 2004 foi instituído o Fideicomiso de la Tierra Caño
Martín Peña, uma das primeiras iniciativas com o CLT no âmbito da
América Latina, e uma das poucas em assentamentos informais no mundo. O modelo
foi implementado em um território que abriga cerca de 6.000 famílias de 8
comunidades – dentre as quais 2.000 aderiram ao CLT – localizado no entorno do
canal Martín Peña, que atravessa o centro da cidade de San Juan, capital de
Porto Rico. Esta implementação foi fruto de um projeto de desenvolvimento
integral e regularização fundiária voltado para as comunidades do Caño, onde
moradores e técnicos aliados pressionaram o poder público e conseguiram obter
conquistas importantes que garantiram uma maior autonomia e poder decisório
sobre os rumos do projeto. Preocupados com uma provável valorização imobiliária
da terra, decorrente da intervenção urbanística no local – o que poderia
impulsionar um processo de gentrificação -, os moradores escolheram o modelo do
fideicomisso pela sua capacidade de garantir a propriedade coletiva da terra e
a titulação individual das construções. Depois de um longo processo de luta o
fideicomisso foi oficialmente instituído através da lei 489/2004, que prevê a
transferência das terras públicas para uma organização sem fins lucrativos –
composta e gerida pelos moradores – e que deve administrá-la em seu nome, sendo
proibida a venda da terra.
A experiência foi marcada por um forte protagonismo dos moradores, que
construíram juntos o estatuto do Community Land Trust e
optaram por garantir sempre uma maioria de moradores no conselho gestor da
organização titular da terra. O instrumento adotado para efetivar a separação
da propriedade da terra e construções foi o direito de superfície, celebrado
entre os moradores e a entidade proprietária da terra. Além da regularização da
situação fundiária dos moradores da área, o CLT pôs em prática diversos
projetos de desenvolvimento local e recuperação ambiental, e fortaleceu a
organização comunitária na gestão do território, facilitando inclusive a
comunicação e o poder de barganha com o governo local. Em 2015, recebeu um
prêmio da organização internacional World Habitat, reconhecendo a experiência
como boa prática habitacional.
O sucesso da experiência de Porto Rico demonstra que o Community Land Trust pode ser um instrumento
eficaz de desenvolvimento, promoção de moradia e garantia da segurança da posse
em assentamentos informais e precarizados.
Potencial para o Brasil
A partir do sucesso das comunidades de Porto Rico com o modelo do Community Land Trust (aqui denominado Termo
Territorial Coletivo), ficou evidente seu potencial para favelas e
assentamentos informais latino-americanos. Dado seu histórico, acredita-se que
as cidades brasileiras podem se beneficiar amplamente a partir da utilização do
Termo Territorial Coletivo, especialmente na luta por justiça socioespacial e
pela moradia. Sob essa perspectiva das potencialidades do TTC, destaca-se
alguns dos impactos positivos que ele pode trazer:
1. Garantia de segurança da posse robusta para
populações vulnerabilizadas: O TTC protege comunidades da ameaça
de remoção, provocada tanto pelo Estado quanto pelo mercado, assegurando de
forma efetiva o direito à permanência.
2. Promoção do desenvolvimento comunitário através
da gestão coletiva: O TTC dá as ferramentas necessárias para que
comunidades possam se desenvolver com independência e protagonismo. Mais que
isso: permite que os frutos do desenvolvimento sejam aproveitados pelos
moradores, e não por terceiros que possam chegar para especular em cima da
valorização da terra.
3. Garantia do controle do território por parte dos
moradores: Os titulares das construções situadas sob o modelo TTC, bem como outros
membros chamados a participar de seu órgão de gestão, governam do TTC e
determinam os usos do território e o desenvolvimento local. Além de definirem a
composição do conselho e elegerem seus membros, os moradores também podem
estabelecer mecanismos de participação direta para deliberar sobre questões
mais sensíveis.
4. Aumento do poder de barganha perante o Poder
Público e concessionárias de serviços: a partir do momento em que moradores
se tornam coletivamente proprietários de uma pluralidade de imóveis, seu poder
de negociação muda de patamar. Eles poderão pressionar autoridades com mais
força para exigir o cumprimento dos serviços públicos e também se organizar
coletivamente para implementar melhorias.
5. Garantia de moradia acessível economicamente
pela perpetuidade: através da retirada da terra do mercado – e de outros mecanismos
de controle de preço que podem ser estabelecidos na sua criação – o TTC
consegue manter o custo da habitação acessível por famílias de baixa renda de
forma permanente. Ele contribui, dessa forma, para a plena efetivação do
direito à moradia adequada, uma responsabilidade do Estado segundo nossa
Constituição. Assim o TTC tem grande potencial de aumentar a eficiência do
Estado no cumprimento do seu mandato em relação ao direito à moradia.
Diante do reconhecimento do impacto positivo que o Termo Territorial
Coletivo pode trazer para as cidades do país, atualmente está em curso um
projeto no Rio de Janeiro que busca viabilizar sua implementação em alguma
comunidade da cidade, estudando meios para tal e realizando ações de
mobilização junto aos moradores.
O Projeto TTC no Brasil
Em agosto de 2018, uma coletiva de membros do Fideicomiso de la Tierra Caño Martín Peña (CLT em
Porto Rico mencionado acima) veio ao Rio de Janeiro para oferecer uma série de oficinas em
parceria com a Comunidades Catalisadoras. O objetivo dessas oficinas foi
aprender com a experiência porto-riquenha – especificamente em relação à
adaptação do modelo TTC para assentamentos informais – para melhor conhecer o
instrumento e discutir como ele poderia ser efetivo na promoção de moradia
acessível no Brasil.
Após 5 dias de oficinas, foi decidido que seria formado um Grupo de
Trabalho permanente, com reuniões regulares, para estudar com mais profundidade
o Termo Territorial Coletivo, difundir conhecimento sobre ele e pensar como ele
poderia ser implementado no Brasil. A composição do grupo é bastante diversa,
incluindo lideranças comunitárias, representantes de órgãos públicos,
universidades, arquitetos e urbanistas e estudantes. Logo no início, foram
definidas duas frentes de trabalho principais: mobilização (destinada
a organizar atividades nas comunidades interessadas) e legislação (destinada a pensar soluções jurídicas
para a implementação do TTC, e construir propostas de regulamentação legal do
modelo).
Assim nasceu o Projeto TTC, cuja estrutura se manteve até os dias de
hoje. A diversidade de atores que participam do GT é um dos pontos mais
positivos do projeto, e permitiu a criação de um ambiente fértil de troca e
colaboração. Em 2019, o foco foi o trabalho de mobilização nas comunidades
interessadas. Logo se apresentaram duas comunidades como possíveis projetos
piloto, nas quais foram organizadas atividades como oficinas, visitas de porta
em porta, festividades para aumentar o espírito comunitário e dinâmicas de
planejamento comunitário.
Em 2021, o Projeto TTC caminha para completar três anos de vida, cada
vez mais forte e com mais apoiadores, mantendo-se firme em seu objetivo de
trazer o TTC para a realidade dos assentamentos informais cariocas como uma
solução fundiária capaz de garantir sua permanência, fortalecimento e estimular
seu desenvolvimento. Com o advento da pandemia, todas as atividades do projeto
foram transferidas para o ambiente virtual, explorando as frentes de trabalho
possíveis de serem desenvolvidas remotamente, sem deixar de prestar apoio às comunidades
parceiras. Atualmente, o Grupo de Trabalho conta com 202 membros no GT, de 76
instituições, e uma série de propostas legislativas prontas para regulamentar e
facilitar a implementação do TTC em todos os níveis federativos.
O Grupo de Trabalho do Projeto Termo Territorial Coletivo é aberto e
todos que desejarem contribuir podem participar! Todo mês, temos uma reunião
plenária com todo o GT e, além disso, agendamos reuniões específicas para
tratar de temas pontuais. Para mais informações sobre como colaborar, acesse
nosso site.
Para ficar por dentro do projeto aqui no Brasil:
Site do Projeto TTC: https://www.termoterritorialcoletivo.org/
Página do Facebook: https://www.facebook.com/termoterritorialcoletivo
Vídeo TTC: https://bit.ly/VideoTTC
Relatório Anual de 2020: http://www.bit.ly/RelatorioTTC2020
Relatório Anual de 2019: http://www.bit.ly/RelatorioTTC2019
The truth about land grabs - Oxfam
We all rely on the land—our common ground—and farms to put food on the
table. But the world’s farmland is at risk. Here in the US, we have been losing
more than an acre of farmland every minute. In developing countries, the rush
for land is even more intense.
What's a land grab?
Imagine
waking up one day to be told you’re about to be evicted from your home—being
told that you no longer have the right to remain on land that you’ve lived on
for years. And then, if you refuse to leave, being forcibly removed. For many
communities in developing countries, this is a familiar story.
In the past
decade, more than 81 million acres of land worldwide—an area the size of
Portugal—has been sold off to foreign investors. Some of these deals are what’s
known as land grabs:
land deals that happen without the free, prior, and informed consent of
communities that often result in farmers being forced from their homes and
families left hungry. The term “land grabs” was defined in the Tirana
Declaration (2011) by the International Land Coalition,
consisting of 116 organizations from community groups to the World Bank.
The global
rush for land is leaving people hungry
The 2008
spike in food prices triggered a rush in land deals. While these large-scale
land deals are supposedly being struck to grow food, the crops grown on the
land rarely feed local people. Instead, the land is used to grow profitable
crops—like sugarcane, palm oil, and soy—often for export. In fact, more than 60
percent of crops grown on land bought by foreign investors in developing
countries are intended for export, instead of for feeding local communities.
Worse still, two-thirds of these agricultural land deals are in countries with
serious hunger problems.