Papéis*
Raoul Vaneigem
Os
estereótipos são as imagens dominantes de uma época; as imagens do espetáculo
dominante. O estereótipo é o modelo do papel; o papel é um comportamento
modelo. A repetição de uma atitude cria um papel; a repetição de um papel cria
um estereótipo. O estereótipo é uma forma objetiva à qual cabe ao papel
moldar-se. A habilidade de lidar com os papéis determina o lugar a ocupar no
espetáculo hierárquico. A decomposição espetacular multiplica os estereótipos e
os papéis; ao fazê-lo, condena os papéis ao ridículo, levando-os a alinhar-se
junto à sua negação, que é o gesto espontâneo. A identificação é o modo de
apresentação formal do papel. A necessidade de se identificar importa mais para
a tranqüilidade do poder que as escolhas dos modelos de identificação.
A identificação é um
estado doentio, mas somente os acidentes de identificação caem sob a rubrica
oficial chamada “doença mental”. O papel tem por função vampirizar a vontade de
viver. O papel pretende representar o vivido, ao converter-se em coisa; é utilizado
para consolar a vida, que ele empobrece. Torna-se um prazer vicário e
neurótico.
É preciso livrar-se dos
papéis e confiná-los ao lúdico. A vitória do papel assegura a promoção do
espetáculo, a passagem da categoria a uma categoria superior; é a inflação, que
se concretiza especialmente no culto do nome e da imagem. Os especialistas são
os mestres iniciados da iniciação. A soma de suas inconseqüências define a
conseqüência do poder que destrói se destruindo. A decomposição do espetáculo
torna os papéis permutáveis. A multiplicação das falsas mudanças cria as
condições de uma mudança real, de uma mudança radical. O peso do inautêntico
suscita uma reação violenta e quase biológica do querer-viver.
Nossos esforços, nossas
atribulações, nossas frustrações, o absurdo de nossos atos provêm, na maior
parte do tempo, da imperiosa necessidade em que nos encontramos de desempenhar
personagens híbridos, hostis a nossos verdadeiros desejos sob o pretexto de
satisfazê-los. “Queremos viver”, diz Pascal, “na idéia dos outros, numa vida
imaginária, e nos esforçamos para nos darmos essa impressão. Trabalhamos para
embelezar e conservar esse ser imaginário, e nos esquecemos do verdadeiro”.
Original no século XVII, num tempo em que o parecer apresenta-se bem
comportado, em que a crise da aparência organizada aflora somente à consciência
dos mais lúcidos, a observação de Pascal ganha relevo atualmente, no momento
em que os valores se decompõem, no momento da banalidade, evidente para todos.
Por qual mágica atribuímos a formas sem vida a vivacidade das paixões humanas?
Como sucumbimos à sedução de atitudes emprestadas? O que é o papel?
Será que o que estimula o
ser humano a buscar o poder é a fraqueza a que o poder o reduz? O tirano
irrita-se diante dos deveres a que a própria submissão de seu povo o submete. A
consagração divina de sua autoridade sobre os homens ele a paga com um perpétuo
sacrifício mítico, com uma humilhação permanente diante de Deus. Ao deixar o
serviço de Deus, ele deixa ao mesmo tempo o serviço de um povo que se dispensa
de servi-lo. A vox populi, vox Dei deve ser interpretada da seguinte
forma: “O que Deus quer o povo quer”. O escravo irrita-se num gesto de
submissão que não tenha contrapartida num naco de autoridade. De fato, toda
submissão dá direito a qualquer poder e não há poder senão ao preço de uma
submissão. Essa é a razão por que muitos aceitam facilmente ser governados. O
poder exerce-se por toda parte parcelarmente, em todos os níveis da escada
hierárquica. Está aí a sua ubiqüidade contestável.
O papel é um consumo de
poder. Ele instala-se na representação hierárquica, no espetáculo, portanto. No
alto, em baixo, no meio, nunca aquém nem além. Como tal, o papel intromete-se
no mecanismo cultural: é a sua iniciação. O papel é também a moeda de troca do
sacrifício individual. Como tal, exerce uma função compensatória. Resíduo da
separação, ele esforça-se por criar uma unidade comportamental, apela para a
identificação.
A
expressão “desempenhar um papel na sociedade” mostra pelo seu uso restritivo que
o papel é uma distinção reservada a um certo número de eleitos. O escravo
romano, o servo na Idade Média, o camponês diarista, o operário embrutecido por
treze horas de trabalho quotidiano não tinham nenhum papel a desempenhar. Ou,
então, desempenhavam-no a um grau tão rudimentar que a polícia os enxergava
mais como animais do que como seres humanos.
Existe, de fato, uma condição miserável de
ser, aquém da miséria do espetáculo. Desde o século XIX, a noção de bom e mau
trabalhador vulgarizou-se como a noção de senhor-escravo se havia expandido no
mito, com Cristo. Ela vulgariza-se à custa de menos meios e com menos
importância, embora Marx tenha acreditado oportuno protestar. Assim, o papel,
como o sacrifício mítico, democratiza-se: o inautêntico ao alcance de todos ou
o triunfo do socialismo.
(...)
Existe
uma vida e uma morte dos estereótipos. Tal imagem seduz, serve de modelo a
milhares de papéis individuais, depois se esboroa e se desfaz, segundo a lei do
consumo, que atualiza seu caráter perecível. De onde a sociedade do espetáculo
retira os seus novos estereótipos? Da parte de criatividade que impede certos
papéis de se conformar ao estereótipo em decadência (da mesma forma que a
linguagem se renova em contato com as formas populares), na parte do jogo que
transforma os papéis.
À
medida que o papel se conforma a um estereótipo, ele tende a se congelar, a
assumir o caráter estático de seu modelo. Ele não tem nem presente, nem
passado, nem futuro, porque ele é um tempo de pose e, por assim dizer, uma pausa
do tempo, do tempo comprimido no espaço-tempo dissociado, que é o
espaço-tempo do poder (sempre de acordo com a lógica de que a força do poder
reside na sua capacidade conjugada de separar de verdade e de unir de mentira).
É-se tentado a compará-lo à imagem do cinema ou, melhor ainda, a um de seus
elementos, a um de seus fotogramas que, reproduzidos rapidamente e um grande
número de vezes com suas variações mínimas, compõem um plano.
A
reprodução aqui está assegurada pelos ritmos da publicidade e da informação,
pela faculdade de fazer o papel falar e, por conseguinte, pela sua
possibilidade de se erigir um dia em estereótipo. Basta que as opiniões
dominantes ganhem algum peso na sua balança, e o papel terá por função
especialmente adaptar-se às normas da organização social, de se integrar ao
mundo funcional das coisas. É por isso que se vêem as câmeras de televisão
enfiar-se por toda parte em busca de se apropriar de existências banalizadas,
de fazer de uma bobagem uma questão transcendental (...). À medida que se
decompõe, a organização do espetáculo estende seus tentáculos sobre as
populações menos favorecidas, ela se nutre dos dejetos que produz (...).
Sobram os irrecuperáveis,
aqueles que recusam os papéis, aqueles que elaboram ao mesmo tempo a teoria e a
prática dessa recusa. Com certeza, é de sua inadaptação à sociedade do
espetáculo que surgirá uma nova poesia da existência, uma reinvenção da vida.
Viver intensamente não é desviar o curso do tempo, perdido na aparência? E a
vida, em seus momentos mais felizes, não é um presente dilatado que rejeita o
tempo acelerado do poder, esse tempo que se esvai em rios de anos vazios, o
tempo da decadência?
A identificação —
(...). A doença mental não existe. É uma categoria cômoda para manter à parte
os acidentes da identificação. Aos que o poder não pode governar nem matar
chama-os loucos. Nessa categoria encontram-se os extremistas e os monomaníacos
do papel. Encontram-se também os que ridicularizam os papéis ou os rejeitam.
Seu isolamento é o critério que os condena (...).
O papel é a caricatura de
si mesmo que se leva para toda parte, levando consigo a responsabilidade de
nelas fazer valer a sua ausência. Nem por isso a ausência deixa de cuidar de
si, de engalanar-se. Paranóicos, esquizofrênicos, criminosos sádicos, cujo
papel não é reconhecido como de utilidade pública (não traz o crachá como traz
o policial, o chefe, o militar), encontram sua utilidade em lugares
específicos, asilos, penitenciárias, espécie de museu do qual o governo retira
um duplo proveito, ao eliminar concorrentes perigosos e ao enriquecer o
espetáculo de estereótipos negativos. Os maus exemplos e sua punição exemplar
dão sabor picante ao espetáculo e o mantém em funcionamento. Basta encorajar a
identificação, acentuando o seu isolamento, para destruir a falsa distinção
entre a alienação mental e a alienação social.
No outro pólo da
identificação absoluta, existe uma maneira de estabelecer uma distância entre o
papel e si mesmo, uma zona lúdica que é um verdadeiro ninho de atitudes rebeldes
à ordenação do espetáculo. Ninguém se perde inteiramente num papel. Mesmo
negada, a vontade de viver mantém um potencial de violência sempre pronta a
retificar os caminhos que lhe são traçados. O sabujo fiel que se identifica com
o seu senhor pode também cortar-lhe o pescoço na hora oportuna. Chega um
momento em que seu privilégio de morder como um cão excita nele o desejo de se
bater como um homem. Diderot mostrou-o bem em sua novela “O sobrinho de Rameau”
e as irmãs Papin melhor ainda.
É que a identificação,
como toda desumanidade, tem também suas raízes no humano. A vida autêntica
alimenta-se de desejos autênticos ressentidos. A identificação mediante o papel
age duplamente: reabsorve o jogo das metamorfoses, o prazer de se mascarar e de
se apresentar sob todas as formas. Ela faz sua a velha paixão labiríntica de se
perder para melhor se encontrar, o jogo das escamoteações e das metamorfoses.
Ela recupera também o reflexo de identidade, a vontade de encontrar nos outros
a parte mais rica e mais autêntica de si. O jogo cessa então de ser um jogo,
petrifica-se, impedindo de se entregar ao jogo de criar novas regras. A busca
da identidade converte-se em identificação.
Mas, invertamos a
perspectiva. Um psiquiatra escreveu: “A busca do reconhecimento pela sociedade
leva o indivíduo a descarregar as suas pulsões sexuais num fim cultural, que é
a melhor maneira de se defender contra elas”. Trocado em miúdos, isso significa
que se atribui ao papel a missão de absorver a energia vital, de reduzir a
força erótica em seu proveito por uma sublimação permanente. Por isso, quanto
menos realidade erótica se manifesta, mais o espetáculo promove as formas
sexualizadas. O papel — Reich diria a “carapaça” — garante a impotência de
gozar.
Contraditoriamente, o
prazer, a alegria de viver, o gozo de arrebentar a carapaça destroi o papel. Se
alguém quisesse considerar o mundo não na perspectiva do poder, mas numa
perspectiva em que ele seja o ponto de partida, deveria abrir caminho para os
atos que o liberam realmente, os momentos mais autenticamente vividos, que são
como clarabóias de luz na penumbra dos papéis. A análise dos papéis à luz da
vida autêntica, a sua radiografia permitiria reaproveitar a energia que neles
foi investida, retirar a verdade da mentira. Trata-se de um desafio individual
e coletivo. Embora sejam igualmente alienantes, os papéis não oferecem a mesma
resistência. É mais fácil livrar-se do papel de sedutor que de policial, de
governante, de pastor. Compete a cada um estudar a questão.
A compensação —
Por que os homens atribuem ao papel um preço às vezes superior ao preço que dão
à própria vida? Na verdade, porque a sua vida não tem preço; a expressão
significativa aqui, na sua ambigüidade, é que a vida está além de qualquer
avaliação pública, de qualquer medida oficial, e também que uma tal riqueza, à
luz dos critérios da sociedade do espetáculo, é de uma pobreza lamentável. Para
a sociedade de consumo, a pobreza é o que foge da esfera do consumo. Nela,
reduzir o ser humano ao consumo corresponde a uma promoção social, do ponto de
vista do espetáculo. Quanto mais coisas se têm e mais papéis a desempenhar,
mais se é. É o que dispõe a organização das aparências. Mas, do ponto de vista
da realidade vivida, o que se ganha em graus de poder se perde na mesma medida
em realização autêntica. O que se ganha em parecer se perde em ser e dever-ser.
Assim,
o vivido está sempre disponível como matéria-prima do contrato social. É ele
quem paga a entrada. É ele que se sacrifica, enquanto a compensação está nos
arranjos lustrosos da aparência. E quanto mais pobre a vida quotidiana mais se
exacerba a atração do inautêntico. Quanto mais a ilusão convence mais a vida
quotidiana se empobrece. Desalojada do essencial à força de proibições, de
coações e de mentiras, a realidade vivida parece tão pouco digna de interesse
que as soluções da aparência encarregam-se de todos os cuidados.
Vive-se,
então, o papel melhor do que se vive a vida. A compensação oferece, no estado
de coisa, o privilégio de pesar mais. O papel preenche uma falta: tanto de
insuficiência de vida, tanto de insuficiência na forma de papel (...) A
compensação, como o álcool, fornece o doping necessário à realização do
poder-ser inautêntico. Existe uma embriaguez da
identificação.
A
sobrevivência e suas ilusões protetoras formam um todo indissociável. Os
papéis, evidentemente, desaparecem quando desaparece a sobrevivência, se bem
que certas mortes podem vincular seu nome a um estereótipo. A sobrevivência
sem os papéis é uma morte civil. Da mesma forma como somos condenados à
sobrevivência, somos condenados a manter uma boa aparência no inautêntico. A
armadura impede a liberdade dos gestos e amortece os choques. Sob a carapaça
tudo é vulnerável. Resta, então, a solução lúdica de fazer de conta, ser astuto
com os papéis (...)
Em
fim de contas, é o mundo que deve estar de acordo comigo para que eu esteja de
acordo com ele. Rejeitar os papéis como uma trouxa de roupa suja seria negar a
separação e cair no misticismo e no solipsismo. Eu estou na casa do inimigo e o
inimigo está na minha casa. Não é necessário que ele me mate, mas é por isso
que me protejo sob a carapaça dos papéis. Trabalho, consumo, apresento-me como
gente bem comportada, não ofendo os bons costumes.
Mas,
como é necessário ao mesmo tempo destruir esse mundo fictício, as pessoas mais
espertas passam a jogar entre si com os papéis. Passar por um irresponsável,
eis a melhor maneira de ser responsável perante si mesmo. Todas as tarefas são
sujas, façamo-las de maneira suja; todos os papéis são mentirosos, deixemos que
eles se desmintam a si mesmos (...). Basta-me ser verdadeiro com os que me são
mais próximos, com os que defendem uma vida autêntica.
Quanto
mais alguém se livra do papel, tanto mais pode manipular o papel contra o
adversário. Quanto mais se previne contra o peso das coisas, tanto mais
liberdade de movimento ganha. Os amigos não se escondem atrás das formas, eles
polemizam a descoberto, sabendo que não se machucam. Onde a comunicação é real,
o mal-entendido não é um crime (...).
*
A
iniciação — Para proteger a
miséria da sobrevivência e para protestar contra ela, o movimento de
compensação distribui a cada um certo número de possibilidades formais de
participar do espetáculo, espécie de salvo conduto que autoriza a representação
cênica de um ou vários momentos da vida, pública ou privada, pouco importa.
Assim como Deus confere a graça a todos os seres humanos, deixando a cada um a
liberdade da salvação ou da condenação, também a organização social dá a cada
um o direito de ganhar ou perder nos círculos do mundo.
Mas,
enquanto Deus alienava a subjetividade totalmente, a burguesia a esmigalha em
um conjunto de alienações parcelares. Num sentido, a subjetividade, que não era
nada, torna-se alguma coisa; passa a ter a sua verdade, o seu mistério, as suas
paixões, a sua razão, os seus direitos. Seu reconhecimento oficial passa por
sua divisão em fragmentos escalonados e homologados segundo as normas do poder.
O subjetivo entra nas formas objetivas, que são os estereótipos, por meio da
identificação. Entra como migalhas, como fragmentos absolutizados, decomposto
de maneira ridícula.
Ser
é possuir representações do poder. Para ser alguém, o sujeito deve, como se
diz, fazer parte das coisas, desempenhar seus papéis, poli-los, atualizá-los,
avançar até merecer a promoção espetacular. A fábrica de alunos, a publicidade,
os condicionamentos de todo tipo ajudam solicitamente a criança, o adolescente
e o adulto a conquistarem seu lugar na grande família dos consumidores. Esta
fragmenta-os, convertendo-os em gente sem importância. A quantificação da
subjetividade cria categorias espetaculares para os gestos mais prosaicos ou
para as disposições mais comuns: um jeito de sorrir, uma empinação do peito, um
tipo de penteado. Há cada vez menos grandes papéis; cada vez mais, figurações.
Mesmo os Ubu-Stalin, Hitler, Mussolini não deixaram senão pálidos descendentes.
A maior parte das pessoas conhecem o desconforto de aderir a um grupo, de
entrar em contato com seus membros: é o medo do comediante de se sair mal no
papel. Para remover o medo, é preciso atingir aquele estágio em que se
fragmentam as atitudes e em que as poses oficiais caem sob controle. A origem
do medo não está no mal desempenho do papel mas na perda de si no espetáculo,
na ordem das coisas (...).
*
(...). Há muito tempo as mesmas novidades
sucedem-se no mercado de bugigangas e de idéias, mudando-se apenas a sua
aparência. A mesma coisa ocorre no mercado dos papéis. Como dispor de papéis
com a qualidade de um papel medieval? Como consegui-lo, sabendo que o critério
da quantidade é em si uma barreira e que a mentira se esconde atrás da
novidade?
Não
somente a multiplicação dos papéis tende a torná-los equivalentes, mas existem
ainda os degraus de iniciação. Nem todos os grupos socialmente reconhecidos
dispõem da mesma dose de poder, e essa dose eles não a repartem igualmente
entre seus membros. Entre o presidente e seus acólitos, o cantor e seus fãs, o
deputado e seus eleitores estendem-se os caminhos da promoção. Certos grupos
são solidamente estruturados, outros são frouxos. Entretanto, todos
constroem-se graças ao sentimento ilusório de participação de que estão
imbuídos os seus membros, sentimentos que são estimulados por reuniões,
insígnias, pequenos afazeres, responsabilidades... Coerência mentirosa e muito
frágil. Nesse escotismo estafante encontram-se estereótipos (...).
Será
que a socialização dos papéis substitui o velho poder decaído das grandes
ideologias? Não se pode esquecer de que o poder está ligado à sua organização
da aparência. A recaída do mito em fragmentos ideológicos manifesta-se hoje em
uma poeira de papéis. Isso significa que a miséria do poder, para se
dissimular, não conta mais senão com a miséria de sua mentira estilhaçada. O
prestígio de uma vedete, de um pai de família ou de um chefe de Estado não
valem um traque. Nada escapa à decomposição nihilista, senão a sua superação
(...).
O especialista prefigura esta era fantasma,
esta engrenagem, esta coisa mecânica estabelecida na racionalidade de uma organização
social, de uma ordem abstrata. Ela pode ser vista em toda parte, na política ou
nos assaltos a mão armada. Em certo sentido, a especialização é a ciência do
papel. Ela faz brilhar com brilho de bijuteria o que antes era jóia autêntica,
as tiradas “inteligentes”, o luxo e a conta bancária. Mas o especialista faz
mais. Ele converte-se em papel para converter os outros em papel.
É
o elo na cadeia entre a técnica de produção e de consumo e a técnica da
representação espetacular. Mas é um elo isolado, uma mônada, de certa forma.
Sabendo tudo de um pedaço, ele leva os outros a produzir e a consumir nos
limites desse pedaço, de tal maneira que recolhe uma mais-valia de poder,
aumentando assim o seu pedaço de representação na hierarquia. Por necessidade,
ele é levado a renunciar à multiplicidade de papéis para conservar um deles,
condensando seu poder em vez de juntá-lo, reduzindo sua vida à linearidade.
Torna-se, então, um manager.
A
desgraça faz com que o círculo no qual a sua autoridade se exerce seja sempre
muito estreito, muito parcelar. Encontra-se na situação do gastro-enterólogo
que cura as enfermidades de sua área e envenena o resto do corpo. Certamente, a
importância do grupo que ele oprime pode dar-lhe a ilusão de seu poder, mas ao
mesmo tempo acaba por revelar-lhe a sua impotência. Assim como dois chefes de
Estado de potências inimigas neutralizam mutuamente a força de seu arsenal,
assim os especialistas constróem e acionam uma gigantesca máquina — o poder, a
organização social — que os domina e os esmaga, com mais ou menos habilidade,
de acordo com seu lugar na engrenagem. Eles a acionam cegamente, pois ela é o
conjunto de suas interferências.
Por
isso, pode-se supor da maior parte dos especialistas que a repentina
consciência de uma passividade tão desastrosa, à qual se entregam tão
obstinadamente, os desperte para a vontade de uma vida autêntica. É também
previsível que um certo número dentre eles, expostos durante um tempo mais
longo à radiação da passividade autoritária, deve, como na história de Kafka,
morrer com a máquina, torturados pelos seus próprios sobressaltos.
*
A
deterioração do papel caminha historicamente passo a passo com a insignificância
do nome. Para o aristocrata, o nome contém em resumo o mistério de seu
nascimento e de sua estirpe. Na sociedade de consumo, a ostentação publicitária
do nome de Bernard Buffet transforma em pintor célebre um dinossauro medíocre.
A manipulação do nome serve para fabricar dirigentes da mesma forma que se
vende loção capilar. Isso significa também que um nome célebre já não pertence
àquele que o carrega. Sob a etiqueta Buffet, não se encontra senão uma coisa.
Um pedaço de poder.
*
Ao
mudar a perspectiva, tomo consciência de que nome algum é capaz de esgotar ou
cobrir o que sou. Meu prazer não tem nome. Nos raros momentos em que me
construo, nada fica do lado de fora, como uma alça que pudesse ser manipulada
do exterior. Somente a alienação de si é que se petrifica no nome das coisas,
que nos esmagam.
*
Um
filósofo chinês dizia: “A confluência é a proximidade do nada. Na confluência
total, a presença se inquieta”. A alienação estende-se a todas as atividades do
ser humano, dissociando-as ao extremo; mas, ao fazê-lo, ela se torna mais
vulnerável. Na desagregação do espetáculo, as coisas se passam como “a vida que toma consciência de si, que
destroi o que estava destruído, rejeita o que havia sido rejeitado”(Marx). Sob
a dissociação, encontra-se a unidade; sob a usura, a concentração de energia;
sob o estilhaçamento, a subjetividade radical, a qualidade (...).
*
O
estado de degradação do espetáculo, as experiências individuais, as
manifestações coletivas de contestação devem expressar nos fatos o assédio
tático à liberdade do papel de se movimentar. Coletivamente, é possível
eliminar os papéis. A criatividade espontânea e o sentido da festa, que se
manifestam nos momentos revolucionários, oferecem muitos exemplos. Quando a
alegria de viver toma conta do coração do povo, não há chefe nem espetáculo
capaz de contê-lo. É somente roubando a alegria do povo que alguém se torna
senhor das massas revolucionárias; impedindo-as de ir além e de estender as
suas conquistas. No imediato, um grupo de ação teórica e prática é capaz de
entrar nesse espetáculo político-cultural
para subvertê-lo.
Apêndice II
A
tríade unitária: realização, comunicação, participação*
Raoul Vaneigem
A
unidade repressiva do poder em sua tríplice função de coação, de sedução e de
mediação não é senão a forma, inversa e pervertida pelas técnicas de
dissociação, de um tríplice projeto unitário. A nova sociedade, tal como ela se
engendra confusamente na clandestinidade, tende a se definir praticamente como
uma transparência de relações humanas que favorecem a participação real de
todos na realização de cada um. A paixão de criar, a paixão do amor e a paixão
do jogo estão para a vida assim como a necessidade de se alimentar e a
necessidade de se abrigar estão para a sobrevivência. A paixão de criar funda
um projeto de realização; a paixão de amar funda um projeto de comunicação; a
paixão de jogar funda um projeto de participação. Dissociados, esses três projetos
reforçam a unidade repressiva do poder. A subjetividade radical é a presença —-
ainda presente na maior parte das pessoas — de uma mesma vontade de fazer de
sua vida uma vida apaixonada. O erótico é a coerência espontânea que oferece a
sua unidade prática à coerência do vivido.
A
reconstrução da vida quotidiana realiza no mais alto grau a unidade do racional
e do passional. O mistério que se mantém sobre a vida serve ao obscurantismo no
qual se dissimula a trivialidade da sobrevivência. Na verdade, a vontade de
viver é inseparável de uma certa vontade de organização. A atração que exerce
sobre cada pessoa a promessa de uma vida rica e múltipla passa à frente de um
projeto submetido no todo ou em parte ao poder social encarregado de refreá-lo.
Assim como o governo dos homens recorre essencialmente a um triplo modo de
expressão — a coação, a mediação alienante e a sedução mágica —, assim também a
vontade de viver retira sua força e sua coerência da unidade de três projetos
indissociáveis: a realização, a comunicação e a participação.
Numa
história dos seres humanos que não se reduzisse à sua sobrevivência, sem no
entanto se dissociar dela, a dialética desse projeto tríplice, vinculado à
dialética das forças produtivas, contemplaria a maior parte dos comportamentos.
Não há sublevação ou revolução que não expresse a busca apaixonada de uma vida
exuberante, de uma transparência nas relações humanas e de um modo conjunto de
transformação do mundo. Embora aquém da evolução histórica, podem-se divisar
três paixões fundamentais, que são para a vida o que a necessidade de se nutrir
e abrigar é para a sobrevivência. Bem entendido, esses elementos não ganham
importância senão no quadro histórico, mas é precisamente a história de sua
dissociação que aqui é questionada, em nome de sua totalidade sempre reclamada.
O
Estado do bem-estar tende a envolver a questão da sobrevivência numa
problemática da vida. Nesse quadro histórico em que a economia da vida absorve
a economia da sobrevivência, a dissociação dos três projetos, e das paixões que
os subentendem, aparece distintamente como um prolongamento da distinção
aberrante entre vida e sobrevivência. Entre a separação, que é o fiel do
poder, e a unidade, que é o domínio da revolução, a existência somente consegue
exprimir-se, na maior parte do tempo, na ambigüidade. Falarei separada e
unitariamente sobre cada projeto.
O projeto de realização nasce da paixão de
criar, no momento em que a subjetividade se entumece e quer reinar. O projeto
de comunicação nasce da paixão do amor, cada vez que os seres humanos descobrem
em si mesmos uma vontade idêntica de conquista. O projeto de participação
nasce da paixão do jogo, quando o grupo apoia a realização de cada um.
Isoladas,
as três paixões se pervertem. Dissociados, os três projetos tornam-se falsos. A
vontade de realização torna-se vontade de poder; sacrifício em favor do
prestígio e do papel, ela reina em um universo de coações e de ilusões. A
vontade de comunicação converte-se em mentira objetiva; fundada sobre relações
entre objetos, ela distribui aos semiólogos os sinais, que eles revestem de
uma aparência humana. A vontade de participação organiza o isolamento na
multidão, ela cria a tirania da ilusão comunitária.
Separadas
umas das outras, cada paixão se integra numa visão metafísica que a absolutiza
e a torna, como tal, inacessível. Não falta humor aos homens de pensamento:
eles desconectam os elementos do circuito, e depois anunciam que a corrente
não passa. Podem, então, afirmar sem receio que a realização total é um engodo,
a transparência uma quimera, a harmonia social uma falácia. Onde reina a
separação, cada um está preso, de fato, à impossibilidade. A mania cartesiana
de fragmentar e avançar por etapas garante sempre a inconclusão. Os exércitos
da Ordem não recrutam senão mutilados.
(...)
Expulso
da organização social hierárquica, a paixão do jogo funda, ao destrui-la, uma
sociedade de novo tipo, de participação real. Sem pretender adivinhar o que
será uma organização das relações sociais aberta sem reservas à paixão do jogo,
pode-se assentir em que ela apresenta as características seguintes:
—
rejeição do chefe e de toda a hierarquia;
—
rejeição do sacrifício;
—
rejeição do papel;
—
liberdade de realização autêntica;
—
transparência das relações sociais.
O
jogo não se concebe sem regras nem sem o jogo de criar regras. É observar o que
fazem as crianças quando brincam. Trapaceiam, sim, mas em busca de um novo
jogo. Às vezes, dá certo. Sem descontinuar, elas reavivam a consciência lúdica.
A
partir do momento em que se instala uma autoridade, o jogo cessa. É verdade que
a leveza do jogo não dispensa o espírito de organização, no que isso implica
disciplina. Mas, mesmo se é preciso um coordenador investido do poder de
decidir, esse poder nunca está dissociado do poder de que dispõe cada jogador
de maneira autônoma; ele é o ponto de concentração de todas as vontades
individuais, o dual coletivo de cada exigência particular.
O
projeto de participação implica pois uma coerência tal que as decisões de cada
um sejam as decisões de todos. São, é certo, os grupos numericamente mais
fracos, as microsociedades que apresentam as melhores garantias de desempenho.
Nelas, o jogo regula de maneira soberana os mecanismos da vida comum, harmoniza
os caprichos, os desejos, as paixões. Tanto mais que o jogo assemelha-se ao
jogo insurrecional pelo grupo e torna-se necessário pela vontade de viver fora
das normas oficiais.
A paixão do jogo exclui o
recurso ao sacrifício. Pode-se perder, pagar, submeter-se à lei, atravessar um
mau momento: é a lógica do jogo, não a lógica de uma Causa, não a lógica do
sacrifício. Quando aparece a exigência do sacrifício, o jogo se sacraliza,
suas regras tornam-se ritos. No jogo, as regras são estabelecidas de maneira
que possam ser mudadas, para se brincar também com elas. No sagrado, ao
contrário, o ritual não deixa jogar; seria preciso quebrá-lo, desafiar o
interdito (mas profanar uma hóstia é ainda uma maneira de render preito à
Igreja). Somente o jogo dessacraliza, somente ele se abre para uma liberdade
sem limites. Ele é o princípio do desvio, a liberdade de mudar de sentido de
tudo o que serve ao poder; a liberdade, por exemplo, de transformar a catedral
de Chartres em lupanar, em labirinto, em campo de tiro ou em cenário onírico...
Em um grupo organizado em
torno da paixão do jogo, as corveias e as obrigações estafantes encontram um
meio de serem partilhadas por ocasião de uma falha ou de um erro lúdico. Ou,
mais simplesmente, elas preenchem o tempo ocioso, o repouso passional
assumindo, por contraste, um valor de excitação, que torna mais instigantes os
momentos por vir. As situações a construir vão fundar-se necessariamente na
dialética da presença e da ausência, da riqueza e da pobreza, do prazer e do
desprazer, a intensidade de um espicaçando a intensidade do outro.
Além disso, as técnicas
empregadas numa atmosfera de sacrifício e de coação perdem a sua eficácia. O
valor instrumental redobra-se em efeito de uma função repressiva; a
criatividade oprimida reduz o rendimento das máquinas opressivas. Somente a
atração lúdica garante um trabalho não alienante, um trabalho produtivo.
O papel no jogo somente
se concebe como um jogo de papéis. O papel espetacular exige uma adesão; o
papel lúdico, ao contrário, postula uma distância, um recuo a partir de onde se
toma consciência de que se é livre, à maneira como os comediantes tarimbados
que, entre duas tiradas dramáticas, trocam gracejos. A organização espetacular
não resiste a esse tipo de comportamento. Os irmãos Marx mostraram em que se
converte um papel quando o lúdico o assume, e observe-se que isso não passa de
um exemplo pervertido pelo cinema. O que seria um jogo entre papéis no
epicentro da vida real?
Se alguém entra no jogo
com um papel fixo, um papel sério, ou ele está perdido ou corrompe o jogo. É o
caso do provocador. O provocador é um especialista do jogo coletivo. Deste ele
conhece a técnica, mas não a dialética. Pode ser que ele seja capaz de traduzir
as aspirações do grupo em matéria ofensiva — o provocador sempre açula ao
ataque, — mas é incapaz de representar o interesse defensivo do grupo. Essa
incoerência entre o ofensivo e o defensivo denuncia cedo ou tarde o provocador,
é a causa de seu triste fim. Quem é o melhor provocador? Aquele que de manifestante
ou coordenador torna-se chefe.
Somente a paixão do jogo
é capaz de fundar uma comunidade cujos interesses identificam-se com os do
indivíduo.
(...).