sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo bbb

https://www.scielo.br/j/kr/a/XjTrB66wvsrMgSD8RN4kXVD/ Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo AutoriaSCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS Resumos O caráter comunitário da filosofia de Aristóteles resulta das diversas formas de análise da política que o filósofo apresenta na articulação dos seguintes aspectos: a tese de que o ser humano é um animal político; o modo como esta é realizada na comunidade política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana, sobretudo, a amizade; a autossuficiência do cidadão e o seu vínculo com a autarquia da comunidade política. A retomada de um moderno conceito de comunidade, na tentativa de reatualizar os princípios gerais do comunitarismo aristotélico, pode ser compatível com determinadas teses liberais, sobretudo a questão da liberdade (autonomia) individual e o fato do pluralismo ético e político nas sociedades modernas. Aristotelismo; comunitarismo; liberalismo The communal nature of Aristotle's philosophy results from the various forms of analysis of the politics the philosopher shows in the articulation of the following features: the thesis that man is a political animal; the way the political community is accomplished through this thesis, in which the logos itself manifests as a shared discoursive activity; the cultivation of certain ethical and political virtues present in the human companionship, above all, friendship; citizen self-sufficiency and its relationship with the autarchy of the political community. In an attempt to bring up to date the general principles of Aristotelian communitarianism, the resumption of a modern concept of community can be compatible with certain liberal theses, especially the issue of individual freedom (autonomy) and the fact of the ethical and political pluralism in the modern societies. Aristotelianism; communitarianism; liberalism ARTIGOS Aristóteles e o sentido político da comunidade ante o liberalismo Cesar Augusto Ramos Professor titular do Departamento de Filosofia da PUC-PR, cauramos@uol.com.br RESUMO O caráter comunitário da filosofia de Aristóteles resulta das diversas formas de análise da política que o filósofo apresenta na articulação dos seguintes aspectos: a tese de que o ser humano é um animal político; o modo como esta é realizada na comunidade política, na qual o logos se manifesta como atividade discursiva compartilhada; o cultivo de determinadas virtudes ético-políticas presentes na convivência humana, sobretudo, a amizade; a autossuficiência do cidadão e o seu vínculo com a autarquia da comunidade política. A retomada de um moderno conceito de comunidade, na tentativa de reatualizar os princípios gerais do comunitarismo aristotélico, pode ser compatível com determinadas teses liberais, sobretudo a questão da liberdade (autonomia) individual e o fato do pluralismo ético e político nas sociedades modernas. Palavras-chaveAristotelismo, comunitarismo, liberalismo. ABSTRACT The communal nature of Aristotle's philosophy results from the various forms of analysis of the politics the philosopher shows in the articulation of the following features: the thesis that man is a political animal; the way the political community is accomplished through this thesis, in which the logos itself manifests as a shared discoursive activity; the cultivation of certain ethical and political virtues present in the human companionship, above all, friendship; citizen self-sufficiency and its relationship with the autarchy of the political community. In an attempt to bring up to date the general principles of Aristotelian communitarianism, the resumption of a modern concept of community can be compatible with certain liberal theses, especially the issue of individual freedom (autonomy) and the fact of the ethical and political pluralism in the modern societies. KeywordsAristotelianism, communitarianism, liberalism. 1 Introdução O pensamento de Aristóteles representa uma notável contribuição à filosofia política no que diz respeito à qualificação do homem como um ser que realiza os seus mais altos fins na relação indissociável com a comunidade (polis) na efetivação de um bem comum. Tal perspectiva orientou um modo quase programático de pensar a ação humana na matriz comunitária, repercutindo no chamado comunitarismo contemporâneo em contraste com o individualismo liberal.1 Este último concebe a comunidade como uma associação composta por indivíduos que possuem suas próprias e independentes concepções em relação a um bem comum que, eventualmente, a comunidade poderia professar como essencial para o viver humano. Em oposição a este modo de ver a sociedade, e nela os valores ético-políticos que orientam a ação dos indivíduos, o comunitarismo propõe uma filosofia baseada no pertencimento social. Ao ressaltar valores comunais próximos ao ideal da virtude cívica, sob o lema de que o bem deve ser correlato ao justo, pretende destacar a conformação social do sujeito engajado e imerso nas diversas configurações do viver comum. O comunitarismo aspira, assim, não só a corrigir os desvios da filosofia liberal na obliteração dos valores sociais, como também reavaliar a acusação antimodernista do comunitarismo de Aristóteles. Alguns comunitaristas - como M. Walzer e, sobretudo, C. Taylor - recusam os pressupostos epistemológicos liberais ancorados no individualismo e defendem uma política do bem comum no âmbito dos direitos como forma de melhor resguardar o pluralismo. Na análise de C. Taylor, por exemplo, o comunitarismo, mesmo recusando determinadas noções vinculadas à epistemologia do individualismo liberal, não implica necessariamente a negação de certas conquistas da modernidade. O que os comunitaristas reclamam é que determinados valores sociais, incluindo a própria noção de justiça, pressupõem uma sociabilidade cooperativa do homem a partir de uma antropologia informada por razões morais, constituídas segundo uma determinada concepção de bem comunitário. Além disso, algo só pode ser repartido e distribuído, mediante princípios neutros de justiça, se tiver um significado geral, um valor de uso comum que se articula com as valorizações intersubjetivas, marcadas pela dinâmica social do mútuo reconhecimento. Com base no caráter dialógico da ação humana que se configura na perspectiva de uma comunidade de discursos expressivos, Taylor reivindica o sentido comunitário de um espaço público, no qual os direitos e os interesses individuais adquirem consistência e base para a sua defesa. Uma linha de interpretação mais aderente ao pensamento de Aristóteles dentro do comunitarismo provém de MacIntyre, que se declara um aristotélico-tomista. Criticando as tendências das filosofias morais contemporâneas que vinculam o agir moral às emoções e ao caráter do agente, ou à maximização da utilidade ou das consequências da ação, ou ao formalismo do imperativo do dever - todas essas tendências são sintomas do fracasso do relativismo utilitarista ou do universalismo do projeto iluminista -, MacIntyre procura reabilitar o conceito aristotélico de virtude como uma fonte capaz de dar conta dos desafios morais de nossa época. Este conceito, estabelecido no contexto histórico do agir humano, caracteriza-se pela indispensável dimensão comunitária, a qual se orienta por uma determinada concepção forte do bem comum, constituído pela via de uma racionalidade prática, mediante a qual todos são capazes de ordenar valores, seja na vida individual, seja na coletividade. "De acordo com essa concepção do bem comum, a identificação do meu bem, de como é melhor eu dirigir minha vida, é inseparável da identificação do bem comum da comunidade, de como é melhor para essa comunidade dirigir a sua vida" (Macintyre, 1981, p. 241). Apesar da diversidade de suas fontes na elaboração da crítica ao atomismo liberal, os comunitaristas são simpáticos à perspectiva "neoaristotélica" na partilha de uma herança que defende o valor prioritário da comunidade. Em contraste com uma defesa restritiva do justo, segundo o valor universal de princípios éticos e políticos dos direitos subjetivos do liberalismo - propiciando, inclusive, resistências ideológicas a uma análise alternativa mais abrangente destes direitos e da liberdade dos indivíduos -, o comunitarismo propõe a importância do bem que ele veicula na interação comunitária dos indivíduos. A questão a ser discutida intenciona ir além da mera influência ou mesmo da presença do pensamento aristotélico - e que se mostra de modo não uniforme - na filosofia política contemporânea do comunitarismo.2 Pretende-se, antes, destacar que determinados aspectos na filosofia prática de Aristóteles, e que configuram uma matriz comunitarista, podem ser reatualizados sem ferir os ganhos da modernidade, sobretudo, porque eles, na medida em que não representam a negação ou a antítese dos valores positivos do individualismo, permitem um diálogo com as conquistas hodiernas, notadamente, a liberdade individual, o pluralismo e os direitos humanos, as quais foram considerados apanágios do liberalismo. Estes aspectos são: a) o homem como animal político por natureza diante das diferentes formas da convivência comunitária e a superioridade da comunidade política; b) o logos compartilhado e as virtudes ético-políticas; c) a autossuficiência dos indivíduos e a autarquia da polis. 2 A dimensão comunitarista da filosofia política de Aristóteles No que diz respeito ao primeiro aspecto, a tese aristotélica da radical sociabilidade do ser humano atesta a insuficiência de uma vida isolada: aquele que vive sem cidade ou é um ser degradado (um animal) ou está acima da humanidade (um deus), "comparável ao homem ignominiosamente tratado por Homero como 'sem família, sem lei sem lar" (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a, 5, grifos do original). No Livro IX da "Ética a Nicômaco", o filósofo, ao analisar a virtude ética da amizade, observa que a felicidade está atrelada à convivência humana, ao fato do viver junto com os outros em relações de compartilhamento social, uma vez que "não menos estranho seria fazer do homem feliz um solitário, pois ninguém escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade" (Aristóteles, 1973, IX, 9, 1169 b 18/20). A polis é uma criação da natureza e que "o homem é por natureza um animal político (zoon politikon)" (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a 2 e III, 6, 1278 b, 20). Se o bios politikós constitui uma finalidade essencial para o homem, esta característica deve ser concebida como uma inclinação que, muito embora não seja um destino inelutável, representa um telos que porfia pela sua realização. Isto é, a tendência social (e política) da natureza humana se realiza quando o homem alcança o estatuto ontológico de um ser que vive na comunidade política (polis). Porém, esta tendência pressupõe, de algum modo, o concurso do fazer artificial (o nomos) - o campo da ação humana na criação de leis e instituições políticas que levam o homem à sua plena realização - que completa o fazer natural da physis. Por obra e arte dos homens é possível dar continuidade ao processo de realização do fim, isto é, da natureza política como destinação da vida humana. A natureza se manifesta, assim, coroada pelo concurso da ação artificial da atividade humana, não só pelo concurso da formação (paideia) para a cidadania, como também pela interveniência do legislador, cuja atuação no conhecimento do fim da polis (a felicidade de uma vida boa e virtuosa) concorre para efetivar o bios politikós. O homem é um zoon politikon por natureza, isso significa afirmar que há apenas uma pressuposição virtual da vida política. Se a consecução do fim não é arbitrária (já está dada potencialmente na origem), o seu termo final é a cidade, de tal modo que a tendência natural do homem para ser um animal comunitário deve ser atualizada, mediante o concurso da ação humana (cultura) norteada pelo logos.3 Se Aristóteles destaca o significado do processo teleológico na constituição do homem como zoon politikon, e que culmina no seu vínculo com a comunidade, qual o papel dos indivíduos na formação, organização e funcionamento desta comunidade? A posição aristotélica é a de que o Estado, embora sendo uno, não deve almejar o ideal da unidade platônica exposta na "República", a despeito da tese aristotélica - de resto nitidamente platônica - sobre a importância da totalidade. A crítica a Platão no Livro II da "Política" tem por base a tese de que a felicidade da polis vincula-se à felicidade individual dos cidadãos que a compõem, denunciando a desconsideração do indivíduo em prol do ideal platônico da unidade. Na medida em que as diferenças individuais são eliminadas, a comunidade política inclina-se à aspiração de uniformidade apropriada à família, tornando a vida política um ente que se assemelha a um ser individual exclusive e excludente. Obter tal identidade significa destruir o Estado, pois "é evidente que se o processo de unificação for perseguido com muito rigor não haverá mais o Estado" (Aristote, 1982, II, 1261 a, 20). A comunidade política não é apenas formada por muitos homens, mas também pela diversidade que eles apresentam, de modo a evitar a homogeneidade familiar que os semelhantes produzem. A família apresenta uma maior unidade porque nela - e muito mais no indivíduo - a tendência à identificação repele as diferenças. Uma vez que a cidade é por natureza uma pluralidade, e se sua unificação for excessivamente compelida, de cidade ela torna-se família, e de família indivíduo: com efeito, podemos afirmar que a família é mais una que a cidade, e o indivíduo mais uno que a família. Por conseguinte, mesmo supondo que alguém tem condições de realizar esta unificação, deve-se resguardar de fazê-lo, pois isto conduziria a cidade à ruína. A cidade é composta não apenas de uma pluralidade de indivíduos, mas ainda de elementos especificamente distintos (Aristote, 1982, II, 2, 1261 a, 15-25). Entretanto, esta análise não autoriza pensar a polis segundo o modelo do arranjo atomístico de indivíduos dispersos. Os membros da polis devem constituir uma organização política de cidadãos livres e iguais que guardam um sentido de pertencimento comunitário. Se a polis não constitui uma unidade indistinta, e nem é um agregado social que reúne indivíduos sob a forma de uma simples aglomeração, ela deve retratar o ideal político de uma comunidade que possui o caráter da identidade de uma formação comunitária plena, e que tem prioridade em relação às partes que compõem o todo social. Porém, este ideal não deve, de forma alguma, estimular a nulidade do indivíduo, absorvendo-o na unidade indiferenciada da comunidade política. Mesmo como partes do todo, os indivíduos devem diferir, pois a identidade da polis permite e até exige indivíduos diferenciados, só possível pela diversidade.4 Ao recomendar o caráter plural da cidade, Aristóteles entende que a existência de cidadãos que diferem em suas distintas capacidades na execução de tarefas, mediante a cooperação, torna-se indispensável para o cumprimento da diversidade de fins que são próprios à comunidade política. Num Estado onde a multiplicidade está garantida, a igualdade não possui o sentido de uma uniformidade irrestrita. Sendo iguais em parte e desiguais em outros aspectos, o princípio que rege as relações interindividuais é o da reciprocidade proporcional. Em relação ao segundo aspecto comunitarista da filosofia política de Aristóteles, ou seja, o logos compartilhado e as virtudes ético-políticas, é preciso ressaltar que o homem não é um simples animal gregário, portador de uma espécie de "sociabilidade" que ele partilha com outras espécies, também solidárias, como as abelhas e as formigas. A afirmação de que o homem é por natureza um animal político retrata a ideia de que ele é o único ser que possui a capacidade discursiva, e que é capaz de fazer da linguagem um uso compartilhado com outros homens para estabelecer fins comuns. Que o homem seja um animal político no mais alto grau do que uma abelha ou qualquer outro animal vivendo num estado gregário, isso é evidente. A natureza, conforme dizemos, não faz nada em vão, e só o homem dentre todos os animais possui a palavra. Assim, enquanto a voz serve apenas para indicar prazer ou sofrimento, e nesse sentido pertence igualmente aos outros animais [...] o discurso serve para exprimir o útil e o prejudicial e, por conseguinte, também o justo e o injusto; pois é próprio do homem perante os outros animais possuir o caráter de ser o único a ter o sentimento do bem e do mal, do justo e o injusto e de outras noções morais, e é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade (Aristote, 1982, I, 2, 1253 a, 7-12). O discurso só é possível pela mediação do homem como ser político, e a maneira mais adequada para analisar a dimensão do logos discursivo é, propriamente, uma forma específica de conhecimento político, o qual é definido como a ciência suprema ou arquitetônica por excelência, pois ela "utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e o que não devemos fazer" (Aristóteles, 1973, I, 1, 1094 b, 5). O estudo da política não possui um fim em si mesmo, não tem por objeto as coisas necessárias e eternas, e nem visa apresentar um conhecimento axiomático e metafisicamente normativo. Destarte, o estagirita concede à política um estatuto epistemológico peculiar - aquele que tem por objeto a praxis na classificação proposta por Aristóteles sobre as ciências. Esta forma de saber não visa à posse de um conhecimento ideal submetido ao rigor de um saber contemplativo, mas aquele que concerne à contingência das ações humanas enraizadas na vida da comunidade. A política (bem como o seu conhecimento) tem por finalidade esclarecer o sentido destas ações, segundo o critério da boa razoabilidade fornecida pela sabedoria prática (phronesis) e pela experiência da repetição dos casos e das situações particulares. Na medida em que a política é um conhecimento deste tipo, ela se distancia do modelo abstrato das essências universais. Ao retratar a atividade adequada ao modo próprio de atuação (praxis) que se dá na polis e pela polis, a política se constitui em instrumento essencial para se alcançar a eudaimonia, possível apenas no seio da comunidade. As atividades humanas constitutivas do bios politikós eram a ação (praxis) e o discurso (logos). Quem vive na polis deve possuir a disposição discursiva do logos, do homem (cidadão) que fala e discorre pela palavra como instrumento de persuasão que se dirige a outrem em pé de igualdade, com o objetivo de buscar um entendimento geral no espaço público da ágora e da ekklesía. Entre iguais, a disputa (polemos) ocorre pelo diálogo, pelo convencimento por meio do discurso como forma superior do relacionamento entre os cidadãos. O modo político de decidir exclui a violência, pois o convencimento pela palavra é feito por argumentos produzidos por uma razão dialógica. Para os gregos [observa Arendt] forçar alguém mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da polis característicos do lar e da vida em família, na qual o chefe da casa imperava com poderes incontestes e despóticos, ou da vida nos impérios bárbaros da Ásia, cujo despotismo era frequentemente comparado à organização familiar (Arendt, 1981, pp. 35-36). Em sintonia com esse logos compartilhado, os homens atualizam a dimensão do viver junto numa forma de sociabilidade comunitária, mediante um relacionamento conveniente a esse viver com base na justiça e na amizade, as quais, por isso mesmo, constituem virtudes ético-políticas.5 Por fim, no que diz respeito ao terceiro aspecto, a saber, a autossuficiência dos indivíduos e autarquia da polis, o filósofo, no livro VII da "Política", discute a questão se o bem supremo que a cidade deve realizar é o mesmo para o indivíduo, observando que "temos que nos pôr de acordo sobre o modo de vida o mais digno de ser escolhido para todos por assim dizer e, depois, ver se este modo de vida é o mesmo para a comunidade e para o indivíduo tomado isoladamente, ou se ele é diferente" (Aristote, 1982, VII, 1, 1323 a, 17-20). Ou seja, trata-se de saber em que consiste para todos uma vida que se apresenta como a mais predileta, para avaliar se aquela que o indivíduo escolhe para si coincide ou não com a vida que ele leva na comunidade. Aristóteles não titubeia em afirmar que é possível realizar uma vida mais perfeita, que vale tanto para o indivíduo como para a comunidade. "Vê-se, assim, claramente que a vida mais perfeita deve necessariamente ser a mesma, tanto para cada indivíduo em particular como para os Estados e os homens tomados coletivamente" (Aristote, 1982, VII, 3, 1325 b, 30). Se é plausível sustentar a tese de que a felicidade do indivíduo e da cidade não se opõem, é porque para ambos a autossuficiência (autarquia de bens e de caráter) é fundamental, tanto para a consecução do fim comunitário como dos fins individuais. A convergência ou o paralelismo entre ser livre e ser cidadão é evidente para Aristóteles, pois, a polis é uma "comunidade de homens livres" (Aristote, 1982, III, 6, 1279 a, 21). Isso porque, o homem não só tem em si mesmo a finalidade do seu agir, como também, na condição de cidadão, não está submetido ao domínio de outrem, nem a constrangimentos ou impedimentos externos que impendem o exercício de uma vida feliz e virtuosa. Se a felicidade do homem inclui a noção de realização de fins no cumprimento de sua natureza, então, esse fim inclui a dimensão da autossuficiência, e o seu pleno desenvolvimento requer bens comunitariamente compartilhados em consonância com a autarquia da comunidade. Nessa medida, não constitui uma exorbitância ética e política afirmar que a felicidade da cidade e a do indivíduo podem coincidir, e que a melhor constituição é aquela que assegura aos cidadãos a melhor vida com base no critério da autossuficiência para os indivíduos e da medida maior da autarquia para a comunidade. É bem verdade que, no contexto cultural e ideológico da antiga Grécia, a autossuficiência exigia o afastamento de entraves ou de dependências que impediam a sua consecução. Apenas os cidadãos livres das ocupações servis não estavam compelidos a proverem suas necessidades cotidianas, permitindo que se dedicassem à política.6 Os membros da polis são os cidadãos (politai) livres, desobrigados da servidão do trabalho da vida, da necessidade, e esta condição não pode ser atribuída aos escravos e aos trabalhadores, cuja ocupação laboral lhes retira toda possibilidade da cidadania e, até mesmo, do exercício de uma vida virtuosa com base no ócio e na contemplação. O conceito de virtude não se aplica a qualquer homem livre, mas apenas àqueles que "não estão ... ...

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