Diário Liberdade - [Michael Hudson,
Frankfurter Algemeine Zeitung] 5 de janeiro de 2012. O Livro V da
Política
de Aristóteles descreve a eterna transição das oligarquias, que se
convertem elas mesmas em aristocracias hereditárias – que terminam por
ser derrubadas por tiranos ou desenvolvem rivalidades internas, quando
algumas famílias decidem “cercar a multidão” no campo delas e abrem
caminho para a democracia, dentro da qual uma oligarquia reemerge,
seguida de aristocracia, depois democracia, sempre, ao longo da
história.
A principal dinâmica
que move essas derivas é a dívida – sempre com novas viradas e mudanças.
A dívida polariza a riqueza, para criar uma classe de senhores do
crédito, cujo governo oligárquico termina quando novos líderes (para
Aristóteles, “tiranos”) ganham apoio popular porque cancelam as dívidas e
redistribuem a propriedade, ou assumem, para o Estado, o usufruto da
propriedade.
Contudo, desde o Renascimento, os banqueiros passaram a garantir
apoio político às democracias. Não que isso reflita alguma convicção
igualitária, ou convicções políticas liberais, mas, sim, porque os
banqueiros entenderam que, nas democracias, seus empréstimos estão mais
bem garantidos. Como James Steuart explicou em 1767, os empréstimos
reais continuaram a ser negócio privado, muito mais do que dívidas
públicas. Para que a dívida do soberano e o dever de pagá-la fossem
distribuídos para toda a nação, os representantes eleitos criariam
impostos, com os quais se pagariam os juros e encargos das dívidas dos
reis.
Ao dar voz nos governos aos contribuintes, as democracias holandesa e
britânica ofereceram aos emprestadores de dinheiro garantias muito mais
firmes de pagamento das dívidas, do que, antes, os reis e príncipes
tinham a oferecer, porque, então, as dívidas morriam com os devedores
reais. Mas os recentes protestos populares, da Islândia à Grécia e
Espanha começam a mostra aos emprestadores de dinheiro que não devem
continuar a confiar na garantia democrática, razão pela qual já começam
também a retirar seu apoio às democracias. Exigem já austeridade fiscal e
privatizações ao ritmo de liquidação de queima de estoque.
Com isso, a finança internacional entra agora em modo de guerra. Seu
objetivo é idêntico ao objetivo dos exércitos militares de conquista do
passado: apropriar-se de terras, de recursos minerais e da
infraestrutura comunal, e cobrar impostos sobre tudo. Em resposta, as
democracias exigem referendos para decidir o que pagar e o que não pagar
aos senhores do crédito, que lhes dão só liquidação de bens públicos e
impostos sempre crescentes, para assim imporem o desemprego, reduzir
salários e criar depressão econômica. A única alternativa é auditar as
dívidas, ou, mesmo, anulá-las, e impor controle regulatório sobre o
setor financeiro.
Governos do Oriente Próximo proclamaram novas regras para os devedores, para preservar o equilíbrio econômico
Cobrar juros nos empréstimos de bens ou dinheiro não foi pensado, no
início, para polarizar as economias. O juro (de 20%, que em cinco anos
dobrava o valor emprestado) foi inventado no início do 3º milênio a.C.,
como arranjo contratual entre os templos e palácios sumerianos com
mercadores e empresários que, quase todos, trabalhavam na burocracia do
reino. E visava a remunerar com justiça os riscos das viagens no
comércio de longa distância, ou do empréstimo de terra e outros bens
públicos, a serem usados para neles localizar oficinas, barcos e
tavernas.
Quando a prática começou a ser privatizada por cobradores do rei, que
recolhiam impostos sobre o uso ou aluguéis, “a divindade” dos reis
protegia os devedores da terra. As leis de Hammurabi (c. 1750 a.C.)
cancelavam as dívidas dos pobres em tempos de seca e de inundações.
Todos os reis dessa dinastia babilônica começavam o seu primeiro dia no
trono cancelando as dívidas agrárias, dispensavam o pagamento pelo
arrendamento do ano e reiniciavam-se, do zero, todos os contratos.
Direitos sobre a terra, sobre colheitas futuras e outros direitos eram
devolvidos aos servos devedores para “restaurar a ordem” numa condição
“original” idealizada de equilíbrio. Essa prática sobreviveu ao Ano do
Jubileu da Lei de Moisés, e lê-se sobre ela em Levítico 25.
A lógica era bem clara. As sociedades antigas precisavam de exércitos
em campo para defender a posse da terra, e, para encontrar soldados,
era preciso liberar da servidão os cidadãos endividados. As leis de
Hammurabi protegiam os que dirigiam carroças e carros, e outros
combatentes, para que não fossem aprisionados na servidão das dívidas; e
proibia os senhores do crédito de tomar as colheitas dos servos reais
que vivessem em terras do rei ou de outras comunidades das quais se
recrutavam a força de trabalho e os soldados do palácio.
No Egito, o faraó Bakenranef (c. 720-715 a.C., “Bocchoris”, em grego)
proclamou uma anistia de todas as dívidas e aboliu a servidão das
dívidas, quando teve de enfrentar ameaça militar da Etiópia. Segundo
Deodoro da Sicilia (que escreveu nos anos 40-30 a.C.), Bakenranef
determinou que, se um devedor se recusasse a pagar, a dívida seria
anulada, se o credor não pudesse apresentar contrato escrito. (Os
credores sempre exageraram o que lhes coubesse receber.) O faraó
argumentou que “o corpo dos cidadãos deve pertencer ao Estado, para que o
Estado dele se possa servir e receber o serviço devido pelos cidadãos
ao Estado, em tempos de guerra e de paz. Porque entendia que seria
absurdo um soldado (...) ser metido na prisão por um credor, por dívida
não paga; e que a ganância de cidadãos privados, se isso fosse
permitido, poria em risco a segurança de todos.”
O fato de que os principais credores no Oriente Próximo fossem o
palácio, os templos e seus arrecadadores tornava politicamente muito
fácil cancelar dívidas. Sempre se pode cancelar dívidas, se o credor é
você mesmo. Até imperadores romanos queimaram registros de impostos
devidos, para evitar crises. Mas muito mais difícil ficou cancelar
dívidas devidas a credores privados, quando a prática de cobrar juros
espalhou-se pelos reinos a oeste do Mediterrâneo, depois de,
aproximadamente, os anos 750 a.C. Em vez de servir de ponte pelas quais
as famílias acertavam os livros de entrada e saída, a dívida tornou-se
principal alavanca para expropriação de terras, polarizando as
comunidades entre oligarquias de credores, de um lado; e clientes
endividados, de outro. Na Judeia, o profeta Isaías (5:8-9) denunciou
despejos por credores que “somam casa a casa e somam campo a campo, até
que não haja espaço para nada, e você fique sozinho na terra”.
Poder aos credores e crescimento estável raramente andaram juntos.
Muitas dívidas pessoais nesse período clássico eram efeito de pequenas
quantias de dinheiro emprestado a indivíduos que viviam no limite da
subsistência e que nunca conseguiam fechar as contas. Garantias em terra
e patrimônio – e em liberdade pessoal – forçaram os devedores
inadimplentes a uma servidão que se tornou irreversível. À altura do
século 7º a.C., os “tiranos” (líderes populares) emergiram, para
derrubar as aristocracias em Corinto e outras ricas cidades gregas. E
arregimentaram apoios, porque cancelavam dívidas. Em movimento menos
tirânico, Sólon fundou a democracia ateniense, em 594 a.C., extinguindo a
servidão por dívidas.
Mas as oligarquias reemergiram e apareceram em Roma, quando os reis
egeus de Esparta, Cleomenes e seu sucessor Nabis, tentaram cancelar
dívidas, no final do século 3º a.C. Ambos foram mortos, e seus
apoiadores foram expulsos. É uma constante política na história, desde a
antiguidade, que os interesses dos credores oponham-se,
simultaneamente, às democracias populares e ao poder real capaz de
limitar a conquista financeira da sociedade – conquista que se consuma
quando os juros exigidos nas dívidas a receber passam a equivaler a todo
o excedente que haja na economia.
Quando os irmãos Graco e seguidores tentaram reformar as leis do
crédito em 133 a.C., a classe senatorial dominante agiu com violência;
os irmãos Graco e seguidores foram mortos, e ali se iniciou um século de
Guerra Social, só resolvida com a ascensão de Augusto, coroado
imperador em 29 a.C.
A oligarquia romana dos credores vence a Guerra Social, escraviza populações e inaugura uma Idade das Trevas
Longe dali, as coisas eram mais sangrentas. Aristóteles não fala da
construção dos impérios como parte de seu esquema político, mas
conquistas estrangeiras sempre foram fatores importantes para impor
dívidas, e dívidas de guerra sempre foram a principal causa das dívidas
públicas em tempos modernos. A mais dura onda de endividamento aconteceu
em Roma, cujos financistas espalharam-se como praga pela Ásia Menor, a
mais próspera das províncias romanas. A ordem legal praticamente
desapareceu, quando chegaram os “cavaleiros” financistas. Mitrídates de
Pontus liderou três revoltas populares, e as populações locais em Éfeso e
outras cidades levantaram-se e, segundo relatos, mataram 80 mil romanos
em 88 a.C. O exército romano retaliou, e Sula impôs um tributo de
guerra de 20 mil talentos em 84 a.C. Em 70 a.C., os juros já haviam
multiplicado por seis aquele valor.
Dentre os principais historiadores romanos, Tito Lívio, Plutarco e
Deodoro atribuíram a queda da República à intransigência dos credores,
que insistiram em manter a Guerra Social, marcada por assassinatos
políticos, de 133 a 29 a.C. Líderes populistas tentaram ganhar
seguidores pregando o cancelamento das dívidas (p.ex., a conspiração de
Catilina em 63-62 a.C). Foram mortos. No século 2º d.C., cerca de um
quarto da população estava reduzida à servidão. No século 5º, a economia
de Roma entrou em colapso, já completamente sem dinheiro. O campo
regrediu à economia de subsistência.
Os credores encontram motivação legalista para apoiar a democracia parlamentar
Quando os banqueiros recuperaram-se, depois de os Cruzados terem
saqueado Bizâncio, e distribuíram ouro e prata para reativar o comércio
na Europa Ocidental, a oposição dos cristãos à “usura”, à cobrança de
juros, foi superada por uma combinação de emprestadores prestigiados (os
Cavaleiros Templários e a Ordem dos Hospitalários, que garantiam o
crédito durante as Cruzadas) e seus grandes clientes – os reis, de
início para pagar a Igreja, e em seguida, cada vez mais, para fazer
guerras. Mas dívidas contraídas por reis iam-se por água abaixo quando
os reis morriam. Os Bardi e os Peruzzi faliram, em 1345, quando o rei
Eduardo III renegou suas dívidas de guerra. Famílias de banqueiros
perderam ainda mais em empréstimos aos Habsburgo e aos Bourbon que
ocupavam os tronos de Espanha, Áustria e França.
As coisas mudaram com a democracia holandesa, que buscava vencer e
assegurar a própria liberdade contra a Espanha dos Habsburgo. O fato de
que o parlamento holandês contraíra débitos públicos permanentes em nome
do Estado permitiu que os Países Baixos tomassem empréstimos para pagar
mercenários, numa época em que dinheiro e crédito eram alimento para as
guerras. O acesso ao crédito “era proporcional à arma mais poderosa na
luta pela liberdade”, escreveu Richard Ehrenberg em Capital and Finance in the Age of the Renaissance
(1928): “Quem emprestava a um príncipe sabia que o pagamento da dívida
dependia só de o devedor ter capacidade para pagar e vontade de pagar.
No caso de cidades, tudo mudava; as cidades tinham poder, mas também
eram formadas de corporações, associações de indivíduos mantidos ligados
por um laço comum. Segundo a lei geralmente aceita, cada burguês
individual era executável, seu corpo e suas propriedades, para
ressarcimento de dívidas que a cidade não pagasse.”
A grande realização dos governos parlamentares, para o mundo da
finança, foi, portanto, estabelecer dívidas que não eram meras
obrigações de príncipes, mas realmente eram “públicas”, no sentido de
que ligavam entre eles todos os cidadãos, independente de quem estivesse
no trono. Por isso, as duas primeiras nações democráticas, os Países
Baixos e a Grã-Bretanha depois de sua revolução de 1688, desenvolveram
os mais ativos mercados financeiros e vieram a ser as potências
militares dominantes. A ironia está em que foi a necessidade de
financiar guerras que promoveu a democracia, formando uma trindade
simbiótica entre fazer guerras, construir estruturas de crédito e
construir democracias parlamentares que durou até nossos dias.
Naquele momento, “a posição legal do rei qua tomador de
empréstimos era obscura, e não se sabia com certeza, sequer, se os
credores teriam alguma arma contra o rei, em caso de calote” (Charles
Wilson, England’s Apprenticeship: 1603-1763, 1965). Quanto mais
despóticas iam-se tornando Espanha, Áustria e França, maior dificuldade
encontravam para obter financiamento para suas aventuras militares. Ao
final do século 18, a Áustria foi deixada “sem crédito e,
consequentemente, sem muitas dívidas”, o país mais mal armado e menos
confiável da Europa, do ponto de vista dos financistas, completamente
dependente dos subsídios e garantias britânicos, ao tempo das Guerras
Napoleônicas.
A finança acomoda-se na democracia, mas em seguida começa a pressionar na direção da oligarquia
Quando as reformas democráticas do século 19 reduziram o poder das
aristocracias da terra para controlar os parlamentos, os banqueiros
moveram-se agilmente na direção de uma relação simbiótica com
praticamente qualquer tipo de governo. Na França, seguidores de
Saint-Simon promoveram a ideia de os bancos atuarem como fundos mútuos,
estendendo o crédito, contra a participação equitativa no lucro. O
Estado germânico fez uma aliança com grandes bancos e a indústria
pesada. Marx escreveu com otimismo sobre como o socialismo reduziria o
parasitismo e tornaria produtivas as finanças. Nos EUA, a regulação dos
bens públicos andou de mãos dadas com os retornos garantidos. Na China,
Sun-Yat-Sen escreveu em 1922: “Pretendo converter todas as indústrias
nacionais da China num Grande Trust, de propriedade do povo chinês e
financiado com capital internacional para benefício mútuo.”
A 1ª Guerra Mundial viu os EUA substituírem a Grã-Bretanha como
principal nação credora, e ao final da 2ª Guerra Mundial os EUA já
haviam sequestrado cerca de 80% do ouro monetário do mundo. Seus
diplomatas formataram o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial por linhas orientadas pelos emprestadores que financiaram a
dependência comercial, sobretudo nos EUA. Empréstimos para financiar o
comércio e déficits na balança de pagamentos foram submetidos a
“condicionalidades” que orientaram o planejamento econômico na direção
de oligarquias clientes e ditaduras militares. A resposta democrática
aos planos de austeridade resultantes que sangraram para fora dos países
o serviço das dívidas nunca conseguiu ir muito além de “protestos
contra o FMI”. Até que a Argentina deu calote na sua dívida externa.
Austeridade similar, também orientada para os interesses dos credores
está agora sendo imposta à Europa pelo Banco Central Europeu (BCE) e
pela burocracia da União Europeia (UE). Ostensivamente, governos
social-democratas foram dirigidos para salvar os bancos, em vez de
reviver o crescimento econômico e o emprego. Perdas em maus empréstimos
bancários e especulações são incluídas no orçamento público, enquanto se
reduz o gasto público e até se vende infraestrutura. A resposta dos
contribuintes, confrontados com a dívida resultante tem-se resumido a
protestos populares que começaram na Islândia e na Latvia em janeiro de
2009, e às mais amplas manifestações na Grécia e na Espanha, no outono
passado, para protestar contra a recusa, pelos respectivos governos, a
organizarem referendos para decidir sobre os malfadados “resgates” de
acionistas de bancos estrangeiros.
O planejamento distancia-se dos representantes públicos eleitos e aproxima-se dos banqueiros
Todas as economias dependem de planejamento. Tradicionalmente, os
governos planejam as economias, até abrir mão desse papel e, sob o
slogan do “livre mercado”, entregam a tarefa de planejar a economia aos
bancos. Mas o privilégio de planejar a criação e a alocação do crédito
torna-se ainda mais centralizado do que quando essas tarefas cabiam a
funcionários públicos eleitos. E, para piorar, o prazo financeiro é
sempre curto prazo, bater-e-correr, e leva sempre a ‘torrar’ patrimônio.
Ao buscar primeiro os próprios ganhos, os bancos tendem a destruir a
economia. O excedente acaba por ser consumido pelo juro e outros
encargos financeiros, deixando resto zero para capital de investimento
ou gasto social básico.
Por isso, delegar a política de controle à classe dos donos do
crédito raramente anda de mãos dadas com crescimento econômico e
melhoria dos padrões de vida. A tendência das dívidas, de cresceram mais
depressa que a capacidade das sociedades para pagar, tem sido constante
básica em toda a história conhecida da humanidade. As dívidas crescem
exponencialmente, absorvendo excedentes e reduzindo a maioria da
população a servidão equivalente à do servo. Para restaurar o balanço
econômico, o grito ancestral pelo cancelamento de dívidas buscou o que o
Oriente Médio da Idade do Bronze quase conseguiu por Fiat dos reis: cancelar o crescimento das dívidas.
Em tempos mais modernos, as democracias exigiram Estado forte que
impusesse taxas e impostos sobre a riqueza e a renda dos financistas, e,
quando fosse preciso, para cancelar dívidas. É mais fácil de fazer
quando o próprio Estado cria dinheiro e crédito. É menos fácil de fazer
quando os bancos traduzem seus lucros em poder político. Quando os
bancos sejam autorizados a se autorregular e têm poder para vetar
regulações pelos governos, a economia sofre distorção, para permitir que
os senhores do crédito metam-se nas jogatinas especulativas e na
descarada fraude que marcaram a década passada. A queda do Império
Romano mostra o que acontece quando nada controla as exigências dos
senhores do crédito. Nessas condições, a alternativa de governos
planejarem e regularem o setor financeiro converte-se em estrada direta
para a servidão da dívida.
Finança vs. Governo; oligarquia vs. democracia
Democracia envolve subordinar a dinâmica financeira para servir ao
equilíbrio econômico e ao crescimento – e taxar a renda financeira ou
manter como propriedade pública os monopólios básicos. ‘Destaxar’ ou
privatizar a renda da propriedade deixa a propriedade ‘desamparada’ ante
a sanha dos bancos, para ser capitalizada em empréstimos cada vez
maiores. Financiada pela alavancagem da dívida, a inflação dos preços
aumenta a riqueza dos bancos e, no longo prazo, leva toda a economia ao
endividamento. A economia encolhe e entra em “equidade negativa” [que
ocorre quando o valor de mercado de um bem hipotecado é menor que a
hipoteca ainda por pagar].
O setor financeiro ganhou influência suficiente para usá-la nessas
emergências como uma oportunidade para convencer os governos de que a
economia entrará em colapso se os governos não “salvarem os bancos”. Na
prática, significa consolidar o controle dos bancos sobre a política,
que os bancos usam de modo que polariza ainda mais as economias. O
modelo básico é o que aconteceu na antiga Roma, quando se converteu, de
democracia, em oligarquia. De fato, dar prioridade aos banqueiros e
deixar o planejamento econômico entregue à União Europeia, ao Banco
Central Europeu e ao Fundo Monetário Internacional ameaça tirar do
estado-nação o poder de cunhar moeda e aumentar impostos.
O conflito daí resultante implica jogar os interesses financeiros
contra a autodeterminação dos estados. A ideia de que banco central
independente seria “marca registrada das democracias” é eufemismo para o
movimento pelo qual a mais importante ferramenta de decisão política – a
capacidade para criar dinheiro e crédito – é delegada ao setor
financeiro. Em vez de deixar a escolha política para o referendo
popular, o resgate dos bancos organizado pela União Europeia e pelo
Banco Central Europeu é, hoje, a mais refinada forma de aumentar o
endividamento nacional. As dívidas dos bancos privados assumidas nos
orçamentos do governo na Irlanda e na Grécia são hoje obrigações que
pesam sobre os contribuintes. E é verdade também para os 13 trilhões a
mais, na dívida dos EUA, desde setembro de 2008 (incluindo os $5,3
trilhões dos papéis podres no cofre de Fannie Mae e Freddie Mac em
hipotecas ruins, que estão hoje no balanço do governo, e os $2 trilhões
dos swaps cash-for-trash (dá-dinheiro-recebe-lixo) do Federal Reserve).
Tudo isso está sendo ditado por fantoches das finanças, chamados, eufemisticamente, de “tecnocratas”. Definido por lobbystas
dos senhores do crédito, o papel desses “tecnocratas” é calcular quanto
de desemprego e depressão é preciso criar para arrancar algum excedente
para pagar as dívidas que, agora, são oficiais. É conta de
autodestruição, porque, com a economia encolhida – deflação da dívida –,
a dívida torna-se cada vez mais impagável.
Nem os bancos, nem as autoridades públicas (nem, sequer, os
economistas das tendências dominantes na academia) calcularam em termos
realistas a capacidade da economia para pagar – quer dizer, para pagar
sem exaurir cada vez mais a economia. Usando para isso a
empresa-imprensa e seus think-tanks, todos convenceram as
populações de que o jeito mais rápido de enriquecer é tomar dinheiro
emprestado para comprar propriedade, estoques e ações cujos preços
estejam aumentando – inflados pelo crédito bancário – e voltar à taxação
progressiva da riqueza, do século passado.
Dizendo claramente, o resultado é economia-lixo. O objetivo da
economia-lixo é desarmar os controles públicos, passando o poder de
planejar para as mãos da alta finança, sob o pretexto de que isso seria
mais eficiente que os controles públicos. O planejamento e o poder de
impor impostos entregues ao Estado são acusados de ser “o caminho da
servidão”, como se “livres mercados” controlados por banqueiros que
ninguém controla e livres para agir como lhes interesse não fosse alto
planejamento, planejado por interesses, por métodos e vias oligárquicas,
não democráticas. Dizem aos governos que “resgate” dívidas feitas, não
como antigamente, para manter exércitos que defendiam as nações, mas,
exclusivamente, para beneficiar a camada mais rica da população. E as
perdas são transferidas para os contribuintes.
A evidência de que o desejo dos eleitores não está sendo levado em
consideração põe as dívidas nacionais em terreno político pouco firme,
pouco firme, também, em termos legais. Dívidas criadas ‘porque-sim’, por
governos ou agências financeiras internacionais, que enfrentem forte
oposição popular, podem sem tão ‘incobráveis’ quanto as dívidas dos
Habsburgos e outros déspotas de outros tempos. Sem validação popular,
aquelas dívidas podem morrer com o governo que as tenha assumido. Novos
governos podem decidir, democraticamente, subordinar os setores bancário
e financeiro e fazê-los servir à economia, não o contrário.
No mínimo, novos governos podem tentar saldar suas dívidas com a
reintrodução do imposto progressivo sobre riqueza e renda, passando a
carga fiscal para as costas da riqueza e da propriedade. Re-regular os
bancos e oferecer alternativa pública para a obtenção de crédito e
prestação de serviços bancários renovariam o programa social democrático
que parecia estar num bom caminho há um século.
A Islândia e a Argentina são exemplos bem recentes, mas também se
pode olhar a moratória nas dívidas entre os Aliados e as reparações
alemãs em 1931. Estavam ativados ali matemática e um princípio político
elementares: dívidas impagáveis nunca serão pagas.
Tradução do coletivo Vila Vudu
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