segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Gabriel Tarde, ou a defesa das versões contra o fato



A defesa das versões contra o fato

Nivaldo T. Manzano (*)


"O homem é uma errata pensante". [Machado de Assis]



A nenhum outro pensador do século 19 a história das idéias terá reservado uma exumação tão estrepitosa como essa que está na iminência de ocorrer ao sociólogo francês Jean Gabriel Tarde (1843-1904), contemporâneo de Émile Durkheim, – considerado o pai da sociologia e o seu mais eminente rival. Tarde retorna com ar brejeiro de quem ri por último. De certo modo, trata-se de um retorno profético, e também sintomático.
O seu pensamento antecipa em um século a idéia da sociedade em rede, noção que rompe com o objetivismo desencarnado no estudo das relações entre o indivíduo e a sociedade e reinaugura um modo de pensar oposto ao da ciência clássica. O diálogo, ou a intersubjetividade, é o chão e o modelo de sua sociologia. É dizer que para Tarde não há caminhos predeterminados pela racionalidade e pelo individualismo liberal, nem sujeição a um princípio de ordem superior, nem justificativa para apelos ideológicos que cuidem de cimentar a confiança numa evolução histórica natural ou necessária. Não há Deus nem Diabo, considerados isoladamente, mas Deus e Diabo juntos: incerteza necessariamente, prazer e risco ao mesmo tempo, a exemplo do que ocorre no jogo. Tudo está lançado no "aqui e agora", sem ilusões de paraíso capitalista ou comunista. O caminho se faz ao caminhar. A baliza é o ser humano auto-referente, em contexto, que nele reconhece o que lhe convém e rejeita o que não lhe convém. Não se reconhece como legítima qualquer normatividade abstrata que não seja o desejo de se comprazer na existência. Não em termos individualistas, pois o reconhecimento de si mesmo dá-se no reconhecimento do outro, como parte constituinte da própria individualidade. Para além da epiderme da obra de Tarde, marcada por um profundo reacionarismo e envolta em brumas metafísicas, é possível enxergar a busca de uma proposta de vida em sociedade centrada, não mais no cidadão abstrato dos direitos individuais apenas, mas no sujeito indissociável de sua comunidade, na intersubjetividade como expressão interativa entre indivíduo e sociedade, entre o ser humano e a sua obra, num processo auto-recorrente.
Esse é o motivo que me leva a convidar o leitor a refletir, sem preconceito, sobre a pertinência de se falar da atualidade de Gabriel Tarde. Por ter trazido de volta a contextualidade para dentro dos estudos sociais, acredito que a sua leitura é de interesse para os profissionais da comunicação.
Homem de província, estranho ao mundo acadêmico, remou na contracorrente das idéias dominantes de seu tempo, sem declará-las inúteis, tais como o paradigma da Física, o positivismo de Comte, o evolucionismo de Spencer e o utilitarismo. Investiu contra a soberbia da Razão iluminista em sua pretensão de, isoladamente, representar de modo adequado a realidade para poder controlá-la. Escarneceu da auto-suficiência do método dedutivo e da lógica. Ridicularizou a empáfia aristocrática dos grandes sistemas de idéias, os sobrevôos cósmicos das filosofias da história, os messianismos seculares e religiosos, as teorias ontológicas, a moral do dever-ser, a "originalidade imaginária de entidades ou ídolos metafísicos", tais como o "gênio do povo", o "gênio da raça", da língua, da religião, modismos caros às grandes celebridades de então, como Taine e Renan. Denunciou a pobreza intelectual de todos os reducionismos, que impregnavam o discurso das elites acadêmicas e políticas com noções tais como a ordem, o progresso automático, o equilíbrio, a harmonia universal, a certeza absoluta, a ação racional e o interesse geral. Riu da certeza apoteótica das rupturas revolucionárias, das promessas do futuro e da erradicação definitiva da tradição, como pretendiam liberais e marxistas, de mãos dadas na questão. Denunciou a presença de trincas na solidez do edifício iluminista, ou os primeiros sinais de desconforto ante a iminência da migração do discurso linear das ciências exatas para as ciências sociais, ainda balbuciantes. Paradoxalmente, Tarde, um intelectual que colocou seu preconceito de classe a serviço do combate aos movimentos operários e anarquistas, é um libertário vigoroso.
Nas ciências sociais, como sabemos, triunfou Durkheim, com a sua "Física social", ou seja, com a transposição mecânica de um sistema de pensamento criado para lidar com coisas inertes para o mundo qualitativo da vida em sociedade. Um triunfo compreensível, em razão de seu caráter ideológico complementar: o postulado de Durkheim de considerar o fato social como "coisa" vinha coroar a empreitada de coisificação humana promovida pela ciência e pelo capital, também de modo triunfal. Tarde desempenhou aqui o papel de contraponto dialético, incômodo como uma pedra no sapato, por chamar atenção para a impossibilidade de se dissociar no plano da realidade o objeto do sujeito, a repetição da invenção, a permanência da mudança, o contato do contágio.
O espetáculo da desordem
Como é fácil de imaginar, não foi um iconoclasta. Introdutor na França da estatística na criminologia, por experiência de ofício Tarde parece ter desenvolvido uma rejeição epidérmica à prevalência metodológica da quantidade, da norma, da média, das generalizações, dos arredondamentos, das abstrações, das pretensões excludentes da lógica e do raciocínio em linha reta. Queria tê-los vinculados, de modo indissociável, aos seus opostos correlatos, a desordem com a ordem, o branco com o preto, o espontâneo com o mecânico. Como diretor da seção de estatística criminal do Ministério da Justiça, em Paris, terá observado muitas vezes que o crime é um ato singular e que não há dois criminosos que se deixem levar a esse ato extremo por motivações idênticas: é preciso desconfiar das abstrações. As coisas se repetem, sim, mas não se repetem do mesmo modo. Tudo se dá por imitação, e a imitação seria um mescla de repetição com criação, ou seja, uma transformação, fenômeno que implica de modo indissociável a coexistência ou a coextensão, num mesmo espaço de possibilidades, dos dois termos objeto da operação. A repetição é mecânica, pertence ao mundo dos hábitos, enquanto a inovação, que é viva, corresponde ao gesto que os atualiza, tornando-se singular. A singularidade é, pois, a unidade elementar sobre a qual vai se debruçar a atenção de Tarde. Uma unidade complexa, feita de igualdade e diferença, permanência e mudança, conflito e solidariedade. Ele está convencido de que "fenômenos da vida social escapam a toda fórmula geral, a toda lei científica, que a pretensão de fundar uma sociologia é uma quimera". A menor diferença que se reconheça entre um ato criminoso e outro põe abaixo todo edifício abstrato que se construa para teorizá-los como elementos de um mesmo conjunto.
Tarde conhece o terreno no qual está pisando. Afronta aqui o princípio da identidade (A = A) e de não contradição, fundamento lógico do conhecimento científico, segundo definido pelo paradigma da física, e antes dela por Aristóteles, que o criou. Parece estar convencido de que é preciso teorizar a distinção entre o plano da abstração e o plano da realidade, mas não o faz, porque vacila. Não vacila, entretanto, ao mostrar que a abstração junta qualidades diversas num mesmo saco, ao preço de reduzi-las à quantidade. A realidade, que é feita de qualidades, ou singularidades, não se deixa reduzir. Quando, pela abstração, se delimita a realidade que é contínua, criando-se noções e conceitos, dá-se vida a entidades artificiais que se opõem entre si na afirmação de suas identidades respectivas. Mas oposições dicotômicas, que contrapõem termos excludentes, como "sim x não", um pólo removendo o outro como condição para se instalar, não encontram correspondência no plano da realidade e, por isso, não podem ter aplicação universal indistinta, porque a realidade não obedece ao princípio de identidade. Na Odisséia, por exemplo, Ulisses diz sim e não ao mesmo tempo: sim a Penélope, a esposa que o espera em casa, e não a Calipso, a deusa que o queria entre seus lençóis. No exemplo de Ulisses tem-se a estrutura de toda decisão humana. Vencedor e perdedor são papéis que se opõem no plano do jogo, não no plano da realidade, pois uma mesma pessoa pode ser ao mesmo tempo vencedora e perdedora em contextos diferentes. A realidade, que não é uma abstração como o jogo, não se confunde com o tabuleiro ou com o ringue, ainda que as guerras tenham juncado a história de cadáveres. A realidade é o espaço de todos os possíveis, enquanto a lógica é o espaço estreito das polaridades excludentes.
Como, porém, as abstrações que construímos, como as oposições dicotômicas, são também parte da realidade humana, deparamos nesta necessariamente com a complexidade da singularidade. Esta é complexa porque encerra ao mesmo tempo a continuidade, o fundo a partir do qual se delimitam os espaços abstratos (as noções, as definições, os conceitos), e a descontinuidade, que são as noções, os conceitos e as definições. A realidade é, pois, cristal e fumaça ao mesmo tempo. Não há como viver sem abstrair, sem representar e enunciar a realidade mediante o recurso a uma forma, a uma cristalização ainda que momentânea da fumaça. Para as questões práticas de toda hora, ou para o que quer que seja, é preciso convir em que "isso é isso" e não aquilo, sabendo-se que no plano da realidade não é possível afirmar quando alguém começa a se tornar careca. É por essa via que nos deparamos freqüentemente com duelos entre cristais, duelos lógicos, como ele os chama, que transcorrem no plano da abstração, com freqüência desgarrados como orelhas esvoaçantes que se tivessem desprendido da cabeça.
O duelo lógico aparece, por exemplo, quando a nova invenção vem substituir as antigas provocando: um aumento de fé naqueles que aceitam as novas invenções; uma diminuição de fé naqueles que rejeitam as antigas. Assim, pode dizer-se que a história das sociedades é um conjunto de duelos lógicos. "Não existe instituição pacífica que não tenha a discórdia por mãe." Uma gramática, um código, uma constituição implícita ou escrita, uma economia, uma poética soberana, um catecismo: tudo isso, que é o fundo categórico das sociedades, é obra lenta e gradual da dialética social. Há os duelos lingüísticos (entre uma língua e um dialeto); duelos religiosos (entre o dogma oficial e o dogma herético); duelos jurídicos (entre um autor e um demandado); duelos tecnológicos (entre uma inovação consolidada e as novas invenções); duelos artísticos (uma escola que afirma um gênero estético negado por outra). Mas é na política, e somente nela, que vamos encontrar o duelo lógico que não cessa. "A política, vontade coletiva que não padece nem de indecisão nem de ambigüidade, nos impõe as questões que ela nos põe; é preciso resolvê-las a todo custo; e como se chega logo ao término da série de soluções práticas, as opiniões extremas não tardam em atrair a nossa atenção e armar o país com freqüência contra si mesmo" (L'oposition universelle, 1897).

"Existe também uma sociologia latente, eminentemente maniqueísta, nos grandes revolucionários, de Rousseau a Robespierre, de Lutero a Calvino, de Prudhom a Karl Marx: para todos eles, a evolução histórica se divide em estados satânicos e estados divinos, em encarnações sociais do inferno terrestre e do paraíso celeste, da iniqüidade e da injustiça, predestinados a se combater eternamente. De outro lado, lá onde se exprime essa visão utópica de um futuro feito de felicidade anárquica ou socialista, que sucede e se parece com o sonho hebraico do Messias, não é raro que ela sugira por simetria a noção de uma idade de ouro primitiva" (L'oposition universelle).
Ignorar o caráter conflitante da realidade, ou sua dimensão da descontinuidade, no entanto, é cair no erro oposto:

"É sempre o mesmo erro que vem à luz: o de crer que, para ver emergir a regularidade, a ordem, a marcha lógica nos fatos sociais, é preciso deixar de lado o pormenor, essencialmente irregular, e se elevar às alturas até abraçar com uma visão panorâmica vastos conjuntos; o de crer que o princípio e a fonte de toda coordenação social residem em algum fato muito geral do qual se desce por degraus até aos fatos particulares, mas enfraquecendo-os singularmente; e o de crer, em suma, que o homem se agita, mas na verdade é uma lei da evolução que o conduz" (Les lois sociales, 1898).
Nem somente as bolas de bilhar da física, nem somente as sinfonias: ambas ao mesmo tempo. Assim, o que fascina Tarde é o que escandaliza a grande parte dos homens de ciência de seu tempo, aferrados à certeza absoluta dos fundamentos inabaláveis, das garantias pétreas, do curso "natural" das coisas, da lei "natural" do equilíbrio, da ordem, da identidade, da nitidez, da transparência, da linha divisória entre o Bem e o Mal etc. Tarde, sem negá-los, deixa-se encantar em igual medida pelo espetáculo da desordem, pela diversidade, pelo pormenor, pelo destoante, pelo infinitesimal, pelo confuso, pelo impreciso, pelo hesitante, pelo matiz, por tudo aquilo que se encontra no estado de já não ser o que era e ainda não ser o que será. Pode imaginar-se que ele gostaria de ter feito de sua obra uma ode à diferença, para chamar atenção para o caráter singular de um gesto humano, de um contexto, singularidade que desautoriza qualquer julgamento definitivo, qualquer pretensão à estabilidade, uma ode em rejeição ao simplismo das abstrações dicotômicas da lógica, do raciocínio por inferência e das generalizações, tão mais vazias de poder explicativo quanto mais grandiloqüentes.
Permanência e mudança
Durkheim escreve que "quanto mais amplas as sociedades, e complexas, tanto mais têm necessidade de reflexão para se conduzir". Tarde escreve o oposto: quanto mais ampla a sociedade, menos ela reflete, como a sugerir que o cúmulo da irreflexão estaria na Casa Branca; quanto mais singular o objeto de estudo, mais complexo ele parece. Os micros, e não os macrorganismos, são o grande desafio para a biologia. Sob a ótica de uma concepção unitária do ser humano, que era a dele – razão, intuição, sentimentos, ética e estética a um só tempo – é mais fácil ser Napoleão à frente de seus exércitos do que sargento à frente de seu pelotão. É mais fácil aprovar-se uma resolução na ONU do que promover o consenso no seio da família. Enquanto as abstrações são transparentes e manipuláveis por definição, a singularidade é inesgotável e não se deixa controlar. Não há modalidade de pensamento único capaz de impedir a irrupção da diferença, para dentro de suas fronteiras, que irá desmantelá-lo. Sobre o fundo no qual se move a dupla maniqueísta, um presidente George W. Bush e um seu correlato fundamentalista, está a realidade irremovível que é também contínua – matriz de todas as descontinuidades –, a sugerir que a diversidade não se dissocia da unidade, ainda quando acuada pelo terror imperial:

"Entre a concepção de mundo, polar e simétrica, dos povos infantis ( Deus e o Diabo, etc.), e a concepção belicosa e antinômica, dos darwinistas, não há diferença de fundo: uma e outra erigem a relação de oposição à categoria de chave de explicação suprema; uma não vendo no fundo da realidade senão contradição entre dois seres e outra não enxergando no fundo da vida senão antagonismo entre duas ações...A verdade é que a oposição, essa contra-repetição, ou essa repetição invertida, não é, como a repetição, senão um instrumento e uma condição da vida universal, mas o verdadeiro agente da transformação é algo ao mesmo tempo mais impreciso e mais profundo que se mistura com todo o resto, imprime uma marca individual em todo objeto real, diferencia o similar – e a isso se chama variação" (L'oposition universelle).
A verdadeira oposição, esta sim fecunda, está em outra parte:

"A verdadeira oposição social elementar deve ser buscada no interior de cada indivíduo social, todas as vezes que ele hesita entre adotar ou rejeitar um modelo novo que se apresenta a ele, uma nova palavra, um novo rito, uma nova idéia, uma nova escola de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa pequena batalha interna, que se reproduz em milhões de exemplares a cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e infinitamente fecunda da história; ela introduz na sociologia uma revolução tranqüila e profunda" (Les lois sociales).
Durkheim, na esteira da ciência de Newton, quer mostrar como é possível resolver o problema mediante a simplificação do complexo à sua redução a categorias e entidades abstratas, que são por definição dóceis à manipulação. Esse é o ideal de sua sociologia. Tarde quer mostrar como é difícil enxergar melhor o problema se se toma o caminho indicado por Durkheim: a realidade é constituída de infinitas dobras; é preciso reconhecê-las e explicitá-las antes de proceder a qualquer generalização, para dar-lhe consistência, sempre provisória. Durkheim nos convida a abraçar abstrações ambiciosas, como a moral cívica, o direito contratual, o indivíduo e o Estado. Tarde está atento ao umbigo social, ou ao conflito e à solidariedade entre os intestinos que, sedentários, querem permanecer em casa, enquanto o paladar, aventureiro, desejoso de provar novos sabores, quer viajar. Durkheim simboliza o modo masculino ocidental e branco de pensar; Tarde, a associação entre o masculino e o feminino. Durkheim separa, para exaurir a inteligibilidade de seu objeto de estudo; Tarde junta, para enxergá-lo melhor. Por isso, fez reconhecer-se como o pioneiro da microssociologia. Embora não se tenha debruçado sobre o estudo da vida cotidiana, inaugurou o estudo da opinião pública, do mexerico, dos pequenos grupos, das seitas, das relações sociais intersubjetivas, matriz de toda relação social. Na sua perspectiva,

"O progresso de uma ciência consiste em substituir semelhanças e repetições externas, ou seja, comparações do objeto próprio dessa ciência com outros objetos, por semelhanças e repetições internas, ou seja, comparações desse objeto consigo mesmo considerado em seus múltiplos exemplares e sob outros aspectos" (Les lois sociales)
Imediatamente a seguir, ele opõe-se, em razão do que afirmou acima, à a idéia de considerar a sociedade como um organismo, muito em voga em sua época:

"À idéia do organismo social, que enxerga a nação como uma planta ou um animal, corresponde à do mecanismo vital que enxerga uma planta ou um animal como uma máquina. Mas não é por essa comparação vazia de um corpo vivo com uma máquina que a biologia avançou, e sim pela comparação das plantas entre si, dos animais entre si, dos corpos vivos entre si. E não é pela comparação das sociedades com organismos que a sociologia avança, e sim pela comparação entre as sociedades, pelas inúmeras coincidências observadas entre evoluções nacionais distintas do ponto de vista do idioma, do direito, da religião, da economia, das artes, dos costumes: é sobretudo pelo fascínio que exercem essas imitações de homem a homem que elas produzem a explicação analítica dos fatos de conjunto" (idem, ibidem)
Não foi um iconoclasta das abstrações, por coerência com o seu modo de pensar. Se é a diferença que importa observar, se "a diferença é o lado substancial das coisas", como ele o diz, é preciso levar em conta que também esses grandes sistemas, essas grandes generalizações, ao despontar, emergem como uma diferença, uma ondulação no substrato gelatinoso da unanimidade que em geral caracteriza o modo de pensar dominante. É o que se poderia dizer da própria obra de Tarde, uma diferença no modo então oficial de pensar a vida em sociedade que não estabelece uma ruptura radical com o passado nem dele é uma mera continuidade. Tarde é positivamente, por opção, o pensamento que hesita entre a lógica e o trapézio, entre o cristal e a fumaça. A hesitação aqui não denota uma atitude moral ou psicológica, ao contrário do que se quis pensar dele, nem se identifica com a dúvida metodológica de Descartes. Quem hesita, na realidade, é o objeto de estudo que tem à sua frente, do qual não é possível dissociar o sujeito que estuda. Como arrancar-lhe a última palavra, se o diálogo entre o sujeito que estuda e o objeto estudado não se encerra? Como fixar-se em uma verdade definitiva se a nenhum dos interlocutores cabe a última palavra? Quem pode dizer que exauriu a compreensão da realidade?
À mesma época, ele não se encontra sozinho perante seu sujeito e seu objeto hesitantes, mas certamente do lado dos futuros perdedores do século seguinte, daqueles que se sentiam desconfortáveis em afinar as suas idéias com a objetividade impessoal das ciências. Vemo-lo como companheiro de desdita intelectual de Henri Poincaré, o grande físico e matemático, posto para fora do leito principal do desenvolvimento da disciplina pelos colegas que preparavam o advento da cibernética algumas décadas depois, em razão de suas afinidades eletivas com a intuição matemática. Quatro anos antes de Tarde publicar As leis sociais, Poincaré, em artigo escrito para a Revue de Méthaphysique et de Monde, alertava para o risco de auto-enclausuramento e esterilidade do procedimento analítico, implicado nas exigências da objetividade impessoal: "A indução só é possível se uma mesma operação pode ser repetida indefinidamente. É por esse motivo que a teoria do jogo de xadrez não poderá nunca se tornar uma ciência, já que os diferentes lances de uma mesma partida não se assemelham." (A ciência e a hipótese, 1984).
Mas não se passaria o mesmo com outros processos irreversíveis, tais como difusão e viscosidade em misturas de fluidos, com o calor e a entropia? Não seria a realidade que se exibe ao escrutínio das ciências um imenso tabuleiro de jogo no qual se joga uma partida em fim? É provavelmente com muita estranheza que Tarde observa os físicos fazerem migrar, sem enrubescer, a termodinâmica para dentro dos cânones de equilíbrio da física clássica. Sai-se do determinismo das leis causais para as ciências experimentais "naturalmente", para afirmar com desfaçatez que o efeito de verdade produzido é o mesmo, ainda que a verdade experimental deva ser substituída de tempos em tempos por outra verdade provisoriamente definitiva. Um passe de mágica, propiciado pela estatística, graças à probabilidade, à custa de reduzir a qualidade à quantidade, de suprimir os desvios da média, os infinitesimais, as rebarbas que a ciência experimental joga no lixo e que Tarde tanto aprecia.
Recordando: Laplace entretinha-se com demonstrar para uma platéia embevecida que pelas leis da Mecânica, de trajetórias reversíveis, era possível prever a trajetória de volta que faria um projétil para dentro do cano da espingarda da qual teria sido disparado. Da mesma forma, seria possível prever a trajetória reversa de uma omelete para dentro da casca do ovo. Eis senão quando as suas esferas regulares e polidas começam a derreter sob a ação do calor. Surpresa e pânico: a difusão do calor vinha pôr em questão o paradigma da física, no qual assentava todo o conjunto arquitetônico das ciências de então, sem falar da ordem política e econômica. Foi quando veio-lhe em socorro Ludwig Boltzmann, com o seu princípio termodinâmico da ordem. Diz o princípio que é possível descrever com precisão em química, em física, em biologia, nas ciências sociais as evoluções dos sistemas, desde que se aplainem as diferenças e se limem as desigualdades, por compensação estatística. A uniformidade faz milagres, já o demonstrara Newton antes da ciência experimental. E assim é que, enquanto Durkheim se deixa encantar pelo princípio da ordem de Boltzmann, Tarde se põe a matutar sobre o mexerico, a perguntar se, de fato, os eventos veiculados pelo falatório se anulariam na insignificância do anedotário. De fato, esse seria o caso se o falatório, ao promover no seio da comunidade uma inquisição contínua e recíproca, funcionasse como estímulo somente para a estabilidade dos costumes e das instituições. Nesse caso, como explicar a instabilidade e a mudança?
Permanência e mudança a um só tempo: eis a questão incômoda para conservadores e revolucionários, que a sua atenção para a diferença repunha na ordem do dia, para nela permanecer, na condição de dimensões constitutivas e indissociáveis da realidade. Mudança, mudança qualitativa já fora um termo excluído do vocabulário dos físicos que, em seu lugar, colocaram o movimento. Tratava-se, pois, de uma noção indesejável e, de todo modo, intratável pela matemática, disciplina que operava como último critério para se conferir legitimidade à pretensão dos objetos a um lugar de direito no espaço da ciência.
A bolha ou a água e o sabão?
Não estranha, assim, que, a despeito de ter arrebatado platéias enquanto viveu e ter batido (também pelo seu reacionarismo) o filósofo Henri Bergson na disputa pela sua admissão no Collège de France, Tarde tenha sido mantido no ostracismo desde a sua morte. Tornou-se conhecido da posteridade por uma única obra, sobre a opinião pública – L'opinion et la foule – tema no qual se consagra como desbravador. À parte isso, pode dizer-se que durante um século inteiro foi vítima de uma conjura tácita, solidária e militante entre o pensamento liberal e o pensamento marxista tradicional, que o desejaram morto de corpo e alma.
Os três lados encontraram razões para odiar-se mutuamente em torno do que parecia ser um mesmo objeto de disputa: a transformação social. Variavam entre si as formas de lá chegar: o liberal defendia o livre mercado e os direitos individuais e acenava com o progresso automático; o marxista queria a revolução proletária, o fim da propriedade privada e a igualdade social e acenava com o comunismo final; e Tarde, diferentemente dos demais, nada propunha, senão que se abandonassem as ilusões de Paraíso. Em vez de acenar com o desembarque na estação final, sugeria que se buscasse conforto no modo de viajar, convencido que estava de que o voluntarismo, por mais disposto que esteja, não controla a realidade evitando que dela emerja uma diferença – e esta desmascara toda a ilusão de controle. É a realidade que nos controla, ao dispor de todas as opções de controle, incluída a ilusão de se poder controlá-la. "Não apresse o rio", poderia ter dito, sem com isso ter de convir em que se devesse barrar-lhe o curso.
Variava também o preço a pagar pelo prêmio: em troca do paraíso capitalista, o liberal exigia que o indivíduo se conformasse à mesma liberdade que Newton concedeu à maçã da ciência: cair do galho. Sendo a lei natural, de caráter necessário, não haveria risco algum na obediência e na ascese do trabalho e da acumulação. Em troca do comunismo final, o comunista exigia do postulante salivação e fé no advento do banquete final, quando o rocambole dialético, que o confeiteiro do materialismo dialético e histórico vinha enrolando desde o albor da História, seria servido aos últimos convivas. Aqui também não haveria risco algum, além da frustração pela morte prematura, pois as leis do materialismo histórico e dialético estariam inscritas na realidade desde sempre, oferecendo garantia absoluta de entrega do produto: a felicidade compulsória. Ambas as posições identificavam-se na remoção da incerteza e do risco, em troca da renúncia ao desfrute do prazer no tempo presente pelo seu desfrute no futuro. Já o pensamento de Tarde não acenava com nada no futuro, como condição para poder oferecer o desfrute no presente, uma garantia de acesso ao prazer imediato não porém dissociado do risco. Ou seja, enquanto para os rivais a felicidade compulsória se identificava com a imagem da cenoura à frente do burro na carroça, para Tarde a felicidade não estava no termo de viagem alguma, capitalista ou comunista, e sim no modo de viajar, com prazer e risco. Diferentemente dos demais, Tarde removia assim qualquer direção predeterminada da história, deixando o seu desfecho em aberto para que nela se exercitasse a criatividade, com prazer e risco.
A exigência de prazer era consensual entre as três posições. Discordavam quanto à hora de gozá-lo e, principalmente, quanto ao risco, inaceitável para liberais e marxistas, convencidos de que, mediante o uso da Razão iluminista, era possível banir as incertezas e oferecer certeza absoluta. Tanto mais que estavam à mão as novas ferramentas do método científico, ou da "ciência natural", abstrações supostamente capazes de permitir o controle da realidade. As abstrações nos controlam, sim, diria Tarde, quando nos deixamos controlar por elas, como ocorre nos "duelos lógicos". Ao que liberais e marxistas retrucavam, sem ouvi-lo, dizendo que aceitar a idéia de risco era não admitir que se havia chegado à idade da Razão, que não se deixa enganar, raiz comum da ideologia liberal e do marxismo. Lembre-se do socialismo científico, de Engels.
Por isso, ao longo de todo o século 20, os rivais irmanaram-se no afã de apagar o legado de Tarde, para poder proclamar e consolidar a entronização do homo sociologicus, abstração criada por Émile Durkheim, que ele havia denunciado por estar convencido de que o seu caráter artificial mutilava a realidade. Ninguém, como Gabriel Tarde, na virada do século 19 para o século 20, se opôs tão frontalmente nos estudos sociais ao positivismo e a Durkheim, em especial. Durkheim, como se disse, parece ter-se deixado fascinar pela proeza do enquadramento da termodinâmica nos cânones da lei do equilíbrio da física clássica. Ao preço de pôr de lado as rebarbas geradas pela média estatística, as ciências sociais se tornariam capazes de realizar com igual eficácia o milagre das ciências exatas: produzir certezas indiscutíveis. Graças à probabilidade, que na termodinâmica passara a determinar estados da matéria, a sociologia passaria a produzir objetos científicos igualmente inquestionáveis. Eis o homo sociologicus: uma coisa, na bancada do laboratório, sob o escrutínio do cientista social, que passa a desmontá-lo para descrever-lhe a estrutura e as funções. Na tarefa, a exemplo do açougueiro, recorrerá apenas aos instrumentos analíticos, que a racionalidade, operando isoladamente, lhe fornece.
O homo sociologicus foi concebido à imagem de um cadáver. Foi despojado da capacidade de interagir consigo mesmo, no jogo entre os papéis que desempenha na sociedade, e com a sociedade. O cadáver é destituído da faculdade de auto-recorrência: não reflete, é acionado de fora, de modo mecânico, como um êmbolo. É uma espécie de entidade matemática ou física, que percorre trajetórias previsíveis, porque predeterminadas aprioristicamente por axiomas. O homo sociologicus é uma máquina de demonstração automática de teoremas, programável por Deus ou não se sabe por quem. Em que pese a genialidade de Émile Durkheim e a sua incomensurável contribuição para o estudo das relações sociais, esse é o núcleo duro de sua epistemologia: exclusão do sujeito, ou das relações intersubjetivas. "Eis aí, portanto, certos modos de agir, de pensar e de sentir que apresentam essa notável propriedade de existirem fora das consciências individuais", escreve ele no ato de batismo de sua "coisa social".
E eis que o príncipe dos sociólogos contemporâneos, o francês Alain Touraine, às vésperas do centenário da morte de Tarde, vem juntar-se a seu conterrâneo para reconhecer com ele "o fim do homo sociologicus" (Veja-se o seu opúsculo Igualdade e diversidade", 1997. Faço uma exposição sucinta da obra mais à frente).
O homo sociologicus é a versão híbrida do homo logicus+estatística, que é preciso rejeitar, por rejeitar a diferença, o conflito e a solidariedade. Assumir o homo sociologicus é ignorar que ele emerge na história não como um fato natural, mas como resposta a uma exigência analítica de transparência, ordem, funcionalidade e controle – propriedades abstratas próprias das coisas inertes –, que a diferença, somente percebida pelo ser humano, turva, desordena, entorta e descontrola: basta uma nova idéia para se ter reorganizado o conjunto inteiro das idéias que se tinha.
A diferença de que fala Tarde convida a que se busque identificar o caráter apriorístico (axiomático), ou seja, artificial, dessa fantasia: a que ela vem, como vem, por que vem e para que serve? Sim, argumentaria ele, pois o a priori axiomático que conforma o homo sociologicus é apenas uma cristalização, no plano da abstração, da prática social, que flui sem cessar e que testemunha, não em favor da inelutabilidade da abstração, mas da capacidade humana de criar abstrações e de removê-las quando o reconhecimento de uma nova diferença o recomendar. Quando isso ocorrer, surgirão novas verdades axiomáticas, que tomarão o lugar das antigas, novas cristalizações daquilo que a intuição reconhece como permanência e mudança; cristalizações que, no arco de tempo da história humana, terão a solidez e a duração de uma bolha de sabão. Correria menor risco de se enganar quem estivesse atento não à permanência ilusória da bolha e sim à água, ao sabão e às suas interações, às intenções que levam à sua mistura e à sua produção em diferentes tempos e lugares.
Polaridades abstratas
Assim procede Tarde perante o homo sociologicus. Ao ser informado agora, no além-túmulo, de que o príncipe dos sociólogos contemporâneos lança a última pá de cal sobre o corpo funcionalista em decomposição, é de supor que Tarde esteja rindo por último de sua vitória, enfim reconhecida, contra o espantalho sociológico de Durkheim. É de supor também, após a leitura de Tarde sobre a miríade de sujeitos liliputianos em interação responsáveis pelo avanço da reflexão, que ele não guarda ressentimentos pela desatenção secular para a com a sua obra. Ele próprio, tido por um elitista empedernido, cuidara de alertar para o vício metodológico de se acreditar em que o que importa está espelhado nos nomes vistosos que a moda ou o interesse consagram: "...Não é somente o superior que se faz imitar pelo inferior, o patrício pelo plebeu, o nobre pelo vilão, o clérigo pelo leigo, mais tarde o parisiense pelo provinciano, o homem das cidades pelo camponês etc.: é ainda o inferior que, numa certa medida, bem menor, é verdade, é copiado ou tende a ser copiado pelo superior."
E vamos ao enterro do homo sociologicus:
Tarde opõe-se ao programa de Durkheim de considerar os fenômenos sociais como "coisa", como condição para que ascendam à dignidade de objeto científico. "Deveríamos tratar os fatos sociais como coisas", escreve Durkheim. Não no sentido de que o social seja reduzido a algo material, mas no sentido de que deve ser assumido como algo dado, tal qual é, e não imaginado ou construído de acordo com o que acreditamos possa ser, ou desejamos que seja: fato, de um lado; valor, de outro. E assim Durkheim caracteriza o fato social mediante dois sinais coisificantes, retirados do vocabulário da Física: a exterioridade, sob o qual se manifestaria; e a coerção, por ele exercido sobre as pessoas. Ao que Tarde rebate, invertendo a orientação do programa: "Todas as coisas são sociedade", e todo fenômeno é um fato social. Ou seja, na ausência do ser humano, não há coisas, ou não se sabe o que são coisas. Na condição de objeto de conhecimento ou de fruição, a coisa é, pois, humana, a coisa conhecida e a desconhecida. Não há como dissociar um da outra na correlação que os une: um é interface da outra, assim como pai é interface de filho e vice-versa. Trata-se assim de um programa que une de forma indissolúvel sujeito e objeto, dado e valor, e isso destitui de sentido toda proposta de elaboração de uma ciência que funde a sua verdade no critério de objetividade impessoal. A subjetividade é parte constituinte da coisa na sua condição de ser a única instância capaz de fazer da coisa um objeto de conhecimento e, reciprocamente, de fazer da faculdade de conhecer algo inteligível por ter como membro correlato um objeto que se dá a conhecer, porque existe alguém dotado da faculdade de conhecer.
O quiproquó – reconhece-se hoje com mais clarividência – está no termo dado, utilizado por Durkheim e por toda ciência experimental. O que é um dado, ou um fato, oferecido à percepção? As ciências, que se dão por missão descrevê-lo, parecem ignorar que a descrição implica seleção e a seleção é feita com base em idéias ou pressuposições, a respeito da ordem social no caso da sociologia. Essas idéias ou pressuposições são axiomáticas, ou seja, não podem ser testadas nem ser submetidas à demonstração da verdade ou da falsidade. Na aritmética, a mais rigorosa das disciplinas, não se pode demonstrar a legitimidade das quatro operações mediante o uso da racionalidade isoladamente. É preciso recorrer também à intuição.
A recusa de Tarde de dissociar razão e intuição implica o abandono da presunção de que o dado possa ser apreendido na sua objetividade impessoal. Ao dado, ou ao fato social como se apresenta a cientista, está associado necessariamente um valor. Admiti-lo significa abandonar tanto a idéia de que a mente é passiva perante uma sua suposta impregnação pela realidade, quanto a idéia inversa de que o produto mental é o espelho fiel da realidade. A evidência de que as coisas não se passariam assim está em que a seletividade interpretativa é contextual: exclui certos tipos de informação, quando estes são considerados como desnecessários, ao mesmo tempo que admite outros tipos considerados como de utilidade e significado no contexto em que se está operando. Os processos seletivos da percepção amplificam algumas mensagens por ela captadas, ao mesmo tempo que reduzem a premência de outras, consideradas redundantes. Exemplo: damo-nos conta da presença do relógio no pulso especialmente nos momentos em que estamos interessados em saber da hora e não em todos os momentos.
É dizer que, ao questionar a legitimidade da objetividade impessoal, desacompanhada da subjetividade, como único critério de cientificidade do fato social, Tarde, sem dizê-lo, reintroduz na ciência a noção de contextualidade. Na ausência do sujeito interessado, não é possível saber o sentido do símbolo de igualdade (=), por exemplo, já que não é unívoco. Na aritmética significa identidade, na geometria proporcionalidade e na álgebra equivalência. É preciso a presença do sujeito para reconhecer-lhe o contexto, a partir de cuja referência será operado. Um sapato com barro colado á sua sola está no contexto adequado do gramado do jardim; está no contexto inadequado no carpete da sala de visita. Considerar o dado "sapato" dissociado de algum valor é não saber do que se está falando: falta-lhe a referência, o contexto, que somente pode ser o ser humano.
Aqui estaria o fulcro da divergência entre Tarde e Durkheim, mal explicitada pelo próprio Tarde: este quer partir da realidade, elevar-se à abstração e retornar à realidade (contextual), para poder enxergar a diferença; Durkheim quer partir da realidade, abstraí-la e permanecer no plano da abstração, fora de qualquer contexto, para que a sua verdade tenha aplicação universal e torne possível exercer controle sobre a realidade. Ignora que, assim procedendo, está exercendo controle apenas sobre a abstração que construiu. Desenha um leão de papel e crê estar lidando com um leão de verdade. Tarde reinstala o contexto humano (realidade e abstração a um só tempo) no local que lhe cabe de direito e do qual havia sido removido pela objetividade impessoal da nova ciência. As coisas, ou as abstrações, nada significam ou não se saberia dizer o que são na ausência do ser humano. Se a ciência de Durkheim investe contra a contextualidade, é com a pretensão de torná-las objetivas, indiscutíveis, necessárias, despidas de subjetividade, como se fosse possível a alguém sair da própria pele. Enquanto a ciência de Newton e de Durkheim, extasiada diante da aparente facilidade com que o principio de identidade (A = A) permite desvelar pela lógica e pela matemática a transparência do mundo e da sociedade, para controlá-los, Tarde desconfia da possibilidade de um centro racional de controle e, por isso, postula o caráter humano (contextual, co-evolutivo) de sua construção, enxergando na pretensão da objetividade sem sujeito um novo cavalo de Tróia a abrigar em seu ventre uma ontologia supostamente natural, expressa na "ordem necessária das coisas" ou nas leis do equilíbrio.
Como ele intentou mostrar de mil maneiras, a ordem ou o equilíbrio são tão "naturais" como a desordem e o desequilíbrio. São termos correlatos de polaridades abstratas, tais como continuidade e descontinuidade, permanência e mudança, que devem estar presentes em todo contexto, como suas dimensões constituintes. Se no plano da abstração é preciso optar por um dos termos, com a exclusão logicamente necessária do outro, no plano da realidade (contextual), que não é apenas lógica, retêm-se ambos num mesmo espaço unitário, conflitante e solidário de possibilidades. Eis como Tarde definiria a realidade, se o tivesse feito.
Diferença, verdade capital
A Tarde parecia evidente que o princípio de identidade (A = A) tinha a sua utilidade restrita ao plano da abstração. O papel de professor, por exemplo – uma abstração – é identitário por não se confundir com o papel de pai, também identitário. "Cientificamente", não se pode dizer a um só tempo, no plano abstrato dos papéis, que o professor é professor e não é professor. Na realidade concreta do sujeito que os desempenha, porém, ambos os papéis convivem harmonicamente no contexto de Fulano. Contrariando a lógica e mantendo-se ao mesmo tempo fiel à realidade, é possível dizer que Fulano é professor e também não é professor quando é pai ou vizinho.
Eis por que Tarde opta por fazer sociologia a partir de Fulano – ou seja, da interação de Fulano entre seus papéis consigo mesmo – e não a partir de seus papéis ou de sua estereotipia, considerados isoladamente, fora do sujeito. É certo que a repetição de uma atitude cria um papel e que a repetição de um papel cria um estereótipo. O papel é um comportamento modelo; e o estereótipo é uma forma objetiva à qual o papel deve moldar-se. Sim, argumentaria Tarde, mas onde está o sujeito dessa história? E qual é o sujeito capaz de repetir-se a si mesmo, sem modular subjetivamente ao mesmo tempo a repetição? Como explicar a diferença entre dois sujeitos no desempenho de um mesmo papel, ou como explicar a diferença entre dois desempenhos de um mesmo papel num mesmo sujeito? Deveria eu acreditar em que os papéis e os estereótipos se movem mecanicamente sozinhos, movendo em conseqüência o sujeito, a exemplo da vassoura e do balde de água na lenda do aprendiz de feiticeiro?
Tarde elege então como unidade conceitual e axiológica de sua sociologia o Sujeito. Não o sujeito lógico-gramatical, que a exemplo de um relê ou uma máquina cibernética sabe somente dar respostas dicotômicas (sim ou não), e sim o sujeito de carne e osso, tão mais cambiante e complexo quanto mais se tenta reduzi-lo a partículas elementares. Eis uma implicação de sua verdade dialética que escandaliza os ideólogos do pensamento único: a complexidade situa-se na base e não no alto da realidade social. Os seres humanos por atacado, ou a sociedade, são muito menos complexos do que no varejo, o sujeito tomado na sua singularidade. Seria insensatez, portanto, eleger o caminho das generalizações crescentes, mediante sucessivas operações reducionistas – tais como a "era da informação", a "era do conhecimento", a "globalização" e outras generalidades rasas – para se chegar ao âmago da realidade. Ao contrário das abstrações, a singularidade não se deixa apreender pela racionalidade, considerada isoladamente. Entre a abstração e a realidade existe de modo recorrente uma diferença – e é na busca da superação, jamais alcançada, dessa diferença que transcorre a existência. Tarde não parece ter teorizado com a necessária versatilidade a diferença entre o plano da realidade e o plano da abstração. Isso não o impediu de se ter batido na defesa e no resgate da diferença, que a sociologia de Durkheim cuidava de dissolver na uniformidade da "coisa social". Pode dizer-se que a obra de Tarde é uma peça oratória em defesa da realidade contra as pretensões absolutistas das abstrações. Recorrendo ao senso de humor que não lhe faltava, ele diria que jamais viu um par de orelhas desgarradas da cabeça, adejando por conta própria.
Durkheim construiu para as ciências humanas o paradigma da norma, ou a repetição. A esta Tarde opôs, sem negá-la, a invenção ou, como ele a chamava, a imitação, de natureza singular. Norma inventiva ou invenção normativa, eis a singularidade, ou a sociedade, diria Tarde. Uma singularidade que é um universo em si mesmo, não apenas um microcosmo, mas o cosmos contido e absorvido por um único ser, o sujeito, que longe de ser o indivíduo burguês, feito de generalidade vazia na condição de mero suporte lógico de direitos individuais, é um sujeito que traz dentro de si, como parte constituinte de si mesmo o outro, na forma de alteridade irredutível, a diversidade. "Identidade e diversidade" teria sido a fórmula buscada por Tarde para caracterizar a unidade de seu objeto de estudo.
"O que é a sociedade? De nosso ponto de vista, ela poderia ser definida como a possessão recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um...Graças à civilização crescente, o possuído torna-se cada vez mais possuidor, o possuidor possuído, até que, pela igualdade de direitos, pela soberania popular, pela troca equânime dos serviços, a escravidão antiga, mutualizada, universalizada, converta cada cidadão ao mesmo tempo em mestre e servo de todos os outros" (L'opposition universelle).
A intersubjetividade, removida pela "física social" de Durkheim, instala-se assim no âmago da concepção tardeana de sociedade, como lugar natural de sua legitimidade e sede originária dos valores humanos – não é de surpreender, assim, que Tarde se tenha recusado a remover a ética do mesmo espaço em que se move a racionalidade; o que implica admitir, inversamente, que a racionalidade, isoladamente, geradora de abstrações de vocação absolutista, é de natureza delirante, virtualmente intolerante e violenta, por se apresentar dissociada dos demais valores, como os sentimentos, por exemplo. Lembre-se da carnificina promovida pela Razão na Revolução Francesa, nos fornos crematórios do nazismo e nos campos de concentração do bolchevismo. Hoje, mediante o livre mercado, ela promove a exclusão, além de se prestar a estimular o preconceito e a intolerância.
Por curiosidade, é interessante observar que na mesma época em que Tarde entrega-se às suas reflexões sobre o caráter interativo (objetivo e subjetivo) entre indivíduo e sociedade, continuidade e descontinuidade a um só tempo, Machado de Assis exercita-se na mesma temática do mesmo modo, ao publicar em 1882 a sua novela O alienista, na qual Simão Bacamarte, no papel de médico-cientista, possuído pela racionalidade científica, rejeita em nome da ciência o amor de sua esposa, Dona Evarista, e põe-se a separar loucos e mansos na vila de Itaguaí, trancafiando a todos no hospício. Bacamarte confia em poder vencer a realidade, mediante um "duelo lógico" e, ao final, é vencido por ela. Não enxergou a diferença.
"Existir é diferir; a diferença, a bem dizer, é o lado substancial das coisas, aquilo que elas têm de mais próprio e de mais comum. É dela que é preciso partir e abster-se de explicá-la, já que a ela tudo se reporta, inclusive a identidade, da qual se costuma partir equivocadamente. A identidade não é senão um minimum, uma espécie da diferença, uma espécie infinitamente rara, da mesma forma como o repouso não é senão um caso do movimento, e o círculo uma variedade singular da elipse. Partir da identidade primordial é pressupor na origem uma singularidade prodigiosamente improvável, uma coincidência impossível entre seres múltiplos, ao mesmo tempo distintos e semelhantes, ou então é ir de encontro com o mistério inexplicável de um ser simples que posteriormente se divide não se sabe por quê...A diferença é o alfa e o ômega do universo; é por ela que tudo começa...por ela tudo acaba...Todas as semelhanças, todas as repetições fenomênicas não me parecem senão intermediários inevitáveis entre as diferenças elementares mais ou menos latentes e as diversidades transcendentes que se obtêm por essa imolação parcial. Ou, melhor dizendo, em toda evolução que se prolonga suficientemente, observamos uma sucessão e um entrecruzamento de camadas fenomênicas alternadamente manifestas pela regularidade e pelo acaso, pela permanência e pela fugacidade" (L'opposition universelle).
E Tarde, que se recusa a separar em escaninhos a verdade da física, a verdade da biologia e a verdade da sociedade, embora não as dissocie, continua insistindo na sua "verdade capital", a diferença: se nos elementos sociais não se pudesse reconhecer nada além do social, e especialmente de nacional, poder-se-ia afirmar que as sociedades e as nações permaneceriam imutáveis. Ao mesmo tempo que franceses ou ingleses, somos também mamíferos, e nessa medida levamos no sangue algo mais que o social, que nos faz reconhecer uns aos outros como semelhantes, crer no que eles crêem, querer o que eles querem, da mesma forma que levamos no mesmo sangue fermentos de instintos não-sociais, que nos fazem anti-sociais, escreve ele. Observe-se que, embora se refira à dimensão orgânica da existência, Tarde não empresta fundamento fisiológico à sua sociologia, nem tampouco determinismos e causalidades: o ser humano, microcosmo feito de tensão entre a permanência e a mudança, e tendo como substrato a diferença, apresenta-se no plano cultural como sujeito e produto das interações entre suas partes consigo mesmo, interações que se multiplicam ao infinito, na extensão da sociedade, ao estímulo recorrente do reconhecimento de novas diferenças


Sujeito da própria história
"A diversidade, e não a unidade, está no coração das coisas." Quanto mais uniformidade identificar-se na realidade, quanto mais genéricas as abstrações, mais vazias serão elas, menos poder explicativo detêm, mais distante se está da apreensão da realidade. Zero ou Um, na linguagem cibernética: eis o cúmulo da estupidez, se dela se fizer uso como modelo e instrumento de compreensão da realidade. Não que as abstrações sejam inúteis, ao contrário: servem para mostrar que sobra realidade para além delas. Uma nova diferença resultante da construção de uma nova abstração, que se divise entre a abstração e a realidade, irá enriquecer o repertório de diferenças, tornando possível enxergar-se melhor a complexidade da realidade, tanto quanto a diversidade de pontos de vista permite lançar mais luz sobre uma questão que se quer esclarecida.
Se se quiser, pois, conhecer a sociedade, é preciso reconhecer a diversidade na singularidade de uma mesma pessoa e nela não se deter, senão como objeto auto-referencial de estudo, para se poder avançar no reconhecimento da complexidade de suas partes – e entre estas está o outro, como se verá. É no infinitesimal inapreensível pela racionalidade que se vislumbra a possibilidade, sempre fugidia como um arco-íris, de apreendê-la. Por isso, Tarde admitirá, com Espinosa ou com Nietzsche, que o ser humano é desejo votado ao infinito, desejo de se comprazer na existência. Dirá, não que "penso, logo existo", e sim que "desejo, logo tenho", um sentido de posse que não se confunde com posse de coisa, mas com a presença em si de uma diferença, outrem – hábitos, costumes, maneiras de pensar, papéis, estereótipos – e com a presença de si mesmo em outrem.
Entre duas singularidades, ou no interior de uma mesma singularidade, existe uma diferença. É preciso cuidado para não convertê-la em oposição dicotômica – do tipo "sim x não", "certo x errado", "vencedor x perdedor" – pois tais oposições caracterizam o plano da abstração, e não o plano da realidade. Neste, diferentemente do que ocorre com a maçã de Newton, que deve cair do galho, o desafio consiste em optar em situações que oferecem uma diversidade de pares de opostos, diversidade que se torna possível graças ao exercício da auto-recorrência, de que são despossuídos os objetos sociais. Eis a liberdade contextual, que não se exerce no vazio, livre de constrangimentos, nem autoriza que alguém se deixe conduzir mecanicamente, como um êmbolo no interior de um cilindro. Na Odisséia, por exemplo, Ulisses vive seu drama benfazejo entre se entregar e não se entregar à sedução das sereias e se entregar e não se entregar à esposa Penélope, que o espera em casa: dois pares de opostos, pelo menos. O drama da existência, uma aventura prazerosa e arriscada, poderia ter acrescentado Tarde, consiste em optar entre coisas boas, uma vez que entre o bom e o ruim não há escolha.
É dizer que, ancorando a sua epistemologia, que é ao mesmo tempo uma axiologia, na singularidade da existência, Tarde leva-nos a enxergar que não existe na realidade situação sem saída. Situações do tipo "ganhar ou perder" existem somente no plano do jogo, que é o plano da abstração. No plano da realidade, o problema inverte-se: difícil é escolher entre as muitas saídas que se podem divisar, à configuração de novos contextos, que se reconhecem tão logo se reconheçam as diferenças que os caracterizam. Enxergar a diferença entre um plano e outro é ser capaz de se reconhecer a si mesmo e a realidade no contexto, no "aqui e agora" configurado pela emergência da nova diferença. Eis o que se deveria chamar de problema – delimitar as fronteiras do contexto que se busca reconhecer. Pois a existência é uma totalidade feita de continuidade e descontinuidade. Vislumbra-se a dificuldade posta pela questão, quando se dá conta de que se lida com a realidade somente por partes, como é próprio do ato abstrativo, e ao fazê-lo recorta-se artificialmente, imobilizando-a na forma de idéia, de caráter necessariamente repetitivo, uma realidade que não cessa de fluir ou de borbulhar no turbilhão de suas interações, de efeitos imprevisíveis.
Embora bem postos, quando exercitados no plano da abstração, o princípio de identidade e a lógica não podem sobrepor-se normativamente ao esforço de reconhecimento da realidade em mudança. A totalidade da realidade não é apenas lógica, para o desapontamento dos dialéticos da coisa, escreve ele, ridicularizando o rocambole dialético de Hegel ou de Marx. Assim, ao remover da realidade todo emplastro idealista, que se quer fazer passar por natural ou racional – como o indivíduo racional no liberalismo –, Tarde abre caminho para a reconciliação entre fato e valor, racionalidade e intuição, ética e razão, estética e sentimentos, tudo ao um só tempo, operando num mesmo espaço unitário de possibilidades, conflitante e solidário. Nenhuma dessas dimensões de valor é dissociável num gesto humano.
Isso é dizer, em outras palavras, que Tarde intenta embeber as suas idéias na linguagem atual de processo: um gesto humano, conflitante e solidário, é uma resposta a um estímulo do meio gerado pelas interações entre as interfaces do contexto). Se se quiser, pois, buscar um precursor do paradigma ambiental, ou contextual (a realidade como expressão unitária, conflitante e solidária de interfaces em interação, de acordo com uma referência) entre os pensadores do século 19, é em Tarde que será encontrado. Observe-se que se Darwin e Comte chamaram atenção para a importância do meio, como lugar natural de conformação da identidade biológica e social, ainda com o pensamento embebido no maquinismo cartesiano eles atribuíram ao meio propriedades mecânicas. Em Darwin e em Comte o organismo não é sujeito, e sim objeto da ação das forças internas e externas. Diferentemente de Tarde, Darwin e Comte fazem metodologicamente do sujeito o palco inexistente no qual se desenrola o drama cósmico entre forças internas e externas do meio, que o singularizam. Ou seja, enquanto Darwin e Comte fazem da galinha uma ponte ausente entre a evolução de um ovo e a seleção de outro ovo – dois determinismos produzindo magicamente o acaso –, Tarde detém-se na galinha, como sujeito da própria história, ciosa de seu choco, singular como os seus pintainhos, a exemplo de seu cacarejo que não se confunde com o cacarejo de nenhuma outra galinha, embora no galinheiro todas sejam capazes de reconhecer-se mutuamente como tais: "identidade e diversidade", a que alude Alain Touraine.
A rede do mexerico
Não é o mesmo que dizer que em Tarde, graças às interações reais e não mecânicas entre o organismo e o meio, vamos encontrar um precursor da idéia modernosa da sociedade em rede? De que consistem os nós da rede? Ou: em que consiste a "substancialidade" do sujeito? Aqui não há substancialidade, ontológica ou metafísica. O sujeito é um meio, um vazio não-ontológico, no qual interagem as suas interfaces (sociais) consigo mesmo e com as interfaces de que se constituem os outros nós. Ou seja, ser Fulano é reconhecer-se no leque de papéis que desempenha, papéis que interagem entre si mediante Fulano, ao mesmo tempo que interagem com seus respectivos correlatos em Cicrano. O papel de pai interage com o papel de filho, o de professor com o de aluno e assim por diante. O ser humano é a expressão unitária da reunião de suas interfaces em interação. Ou como ele o diz: a sociedade é a posse de todos por cada um e de cada um por todos. Indivíduo e sociedade não se dissociam, assim como não se dissociam os lados de uma moeda. Indivíduo e sociedade não se sobrepõem de forma identitária nem se opõem de forma dicotômica.
Aqui toca-se no âmago da originalidade do pensamento de Tarde, em relação a seus contemporâneos da escola subjetivista, que proliferam por toda parte em reação à onda do positivismo e do racionalismo triunfantes. Corre-se o risco de jogar a criança fora com a água suja do banho se não se atenta para o caráter singular da noção de subjetividade em Tarde. O subjetivismo ontológico grassa nos centros intelectuais da Europa, como uma emenda pior do que o soneto. Ora o motor da história é a raça, ora o gênio do povo, a alma única, o monoteísmo, os resíduos da alma, o instinto vital, os grandes homens, as grandes idéias, etc. Nada disso é do agrado do paladar de Tarde, que não preenche o seu conceito de subjetividade com recheio algum. A subjetividade se constitui na interação com a objetividade, com esta constituindo uma só e mesma unidade, conflitante e solidária. Já é intersubjetiva ao se dar conta de si mesma, o que significa dizer que o sujeito se enxerga a si mesmo somente mediante o social que se manifesta nele e no qual se reconhece e se faz reconhecer, como um outro de si mesmo, o seu correlato, uma alteridade irredutível. Não há filho que não seja filho para uma mãe – e a maternidade, que é uma função biológica, não se dissocia do papel social de mãe. Não há papel sem um sujeito que o desempenhe e não há sujeito que não desempenhe um papel. Assim como em Marx, quando este não escorrega no positivismo, o sujeito é um suporte auto-referente de relações sociais (sem determinações em última instância), que nelas se constitui como sujeito, que as constitui na interação com outros sujeitos. Esse sujeito, que emerge do social e do qual emerge o social, é a um só tempo invenção normativa e normatização inventiva.
Essa emergência é uma singularidade, a diferença de que fala Tarde, a descontinuidade na continuidade, sendo essa singularidade ao mesmo tempo o lugar natural da continuidade, como expressão da realidade, ou do espaço de todos os possíveis. Esse sujeito não precede o social e não se dissocia dele, mas não se identifica logicamente com ele. O sujeito é a capacidade de se fazer social de muitos modos diferentes, a depender do modo como se dão as interações entre indivíduo e sociedade, jamais previsíveis na sua co-evolução, e essa capacidade excede, em qualquer circunstância, o modo de ser social que o qualifica neste contexto, para qualificá-lo de modo diferente em outro contexto, como resultado de sua resposta ao estímulo do meio cultural. Isso não é o mesmo que dizer que o sujeito em Tarde é uma biruta de campo de aviação: ele é portador de uma referência, uma auto-referência intersubjetiva, que é o desejo de se comprazer na existência, em relação ao qual todos se entendem no seu desentendimento ou, inversamente, todos se desentendem no seu entendimento. Obviamente, pelo exposto, trata-se de um sujeito conflitante e solidário consigo mesmo e nas suas interações com os outros sujeitos. Mas isso é a rede do mexerico, na qual cada nó na rede é um conjunto de interfaces em interação consigo mesmo e com os demais nós, todos conflitantes e solidários uns com outros, em transição de um contexto para outro, sem que se possa dizer objetivamente o que são eles, uma vez que quem pretende dizê-lo o faz mediante a percepção que, sendo seletiva, é necessariamente interpretativa. Em razão do caráter interpretativo da percepção, o que se veiculam na rede do mexerico são versões e não fatos.
Observe-se que no seu livro mais conhecido – L'opinion et la foule (1901) – Tarde eleva à dignidade de objeto sociológico o fenômeno prosaico do mexerico, para mostrar como na vida social permanência e mudança andam necessariamente juntas, de modo indissociável. Atento à observação do infinitesimal, que se esconde por detrás do fato social, sempre uniforme para Durkheim, Tarde faz ver que o modo como determinado conteúdo de comunicação se difunde na rede do mexerico contribui para mantê-la em estado permanente de estabilidade na mudança, e inversamente de mudança na estabilidade. Numa pequena comunidade, por exemplo, no qual as alterações bruscas nos sinais exteriores de riqueza dos políticos estão ao alcance da vista dos cidadãos, existe a possibilidade de que o mexerico – sobre o ganho fácil sem contrapartida no trabalho – contribua para reduzir o coeficiente de corrupção em geral associado ao preço das obras públicas contratadas. O mexerico estaria contribuindo assim, a um só tempo, tanto para a estabilidade (equilíbrio) das finanças públicas quanto para a mudança dos costumes.
No estudo de fluxos e esforços nas redes elétricas, atribui-se a cada ponto do espaço a cada instante um único valor de potencial, de modo que uma diferença entre dois potenciais será a expressão de um esforço responsável por uma corrente durante esse instante. Na medida em que se admite que os esforços e os fluxos variam no tempo, os potenciais obviamente variam, mas o princípio da ordem de Boltzmann desconsidera metodologicamente a relevância da variação, ao estabelecer que é sempre possível definir intervalos de tempo tão pequenos que o potencial em cada ponto pode ser considerado constante. Dessa forma, satisfaz-se à exigência da lei do equilíbrio, que é assegurar o equilíbrio em cada ponto. Na rede do mexerico, ao contrário, cada ponto, na condição de suporte de um estado de mudança, ou de uma diferença, encontra-se virtualmente em desequilíbrio, expresso pela diferença entre a versão que acabou de ser emitida por um nó da rede e a nova versão que lhe chega no momento seguinte, enviada por um outro nó, as quais reinterpreta, para fazê-las circular pela rede novamente. O que importa na rede do mexerico, antes de tudo, é o caráter infinitesimal da diferença entre as versões, que a anima.
A percepção da realidade
Surpreende a ousadia de Tarde de lançar o mexerico e sua eficácia sociológica, no reconhecimento da mudança e da permanência, contra um universo científico embebido na fé da objetividade dos fatos. Desconcerta tanto a fisiologia e a medicina experimental, então incipientes, de Claude Bernard, calcadas na estatística – ou seja, no estabelecimento da normatividade orgânica fundada na normalidade quantitativa –, quanto o princípio termodinâmico da ordem de Boltzmann. Em vez de proceder como os sociólogos da coisa – que a exemplo dos físicos fazem migrar para dentro da sociologia a probabilidade que estes convertem em ferramenta lógica e matemática capaz de determinar novos estados da matéria –, Tarde toma a direção oposta, para reafirmar a singularidade contextual do fato sociológico, que não se repete duas vezes da mesma maneira. Aquele que desempenha um papel não o faz sempre do mesmo modo nem de modo idêntico aos demais. Nesse contexto, pode dizer-se que Tarde produz sociologia com as rebarbas que a estatística ou a ciência experimental desprezam ao se fixarem na média, para definir a norma ou o padrão.
Que padrão identificar nos comportamentos na rede do mexerico? Como prever os efeitos colaterais resultantes das interações entre as suas interfaces, na inexistência de um centro de controle? Faria sentido, nessas condições, falar-se em determinações em última instância, tais como a energia, a economia, o instinto, a geografia, o clima, a psicologia, a raça, a fisiologia ou qualquer outro processo considerado isoladamente? Como hierarquizá-los se não se controla a influência de uns sobre outros e se essa influência jamais se exerce diretamente, senão indiretamente, como efeito de suas interações com os demais processos? Como isolar num mesmo sujeito a funcionalidade do papel de professor da funcionalidade do papel de marido ou de pai? Ou não é verdade que o pai aprende com o papel de professor e este com o papel de tenista, supondo-se que todos sejam desempenhados por uma mesma pessoa ou por diferentes pessoas? A Tarde pareceria mais consentâneo com a realidade admitir que Fulano é um espaço unitário de possibilidades de emergências de papéis conflitantes e solidários. Conflitantes, porque enquanto o papel de pai quer permanecer brincando com o filho, o papel de trabalhador chama-o para o trabalho. Solidárias, porque ambos os papéis legitimam-se mutuamente em Fulano. Embora os papéis sejam distintos (descontínuos), há uma continuidade entre eles, expressa no suporte vivo que os desempenha.
Em razão da ocorrência de interações entre os papéis, numa mesma pessoa ou entre pessoas, interações que geram diferenças, como efeitos colaterais, cada papel encontra-se em estado de mudança, virtualmente em desequilíbrio, expresso na diferença. É a rede do mexerico, animada pelas diferenças, ou efeitos colaterais resultantes das interações. Essa diferença, consoante a sociologia tardeana, é responsável pela existência da rede, ou seja, pelo estímulo que desencadeia mudanças de estado nas versões, cujo fato correspondente não se poderia definir objetivamente, uma vez que qualquer que seja o nó o que nele se veiculam são versões. O fato social tem, pois, na sociologia de Tarde a mesma objetividade que a honorabilidade da esposa de César. Da mesma forma, não se poderia dizer que Fulano é isso ou aquilo – uma abstração –, pois Fulano, sendo um estado de mudança como resultado das interações entre seus papéis, é alguém que está em busca de se reconhecer a si mesmo para poder decidir. É nesse estado que se encontra Ulisses na ilha de Ogigia, dividido entre o amor de Calipso, a mais linda das deusas, e a esposa Penélope, que o espera em casa.
Tanto o livre mercado, que pretende assegurar o equilíbrio social mediante a regulação do Estado quanto a topologia, disciplina que estuda as redes artificiais, não conseguem e jamais conseguirão desautorizar a intuição do sociólogo do mexerico. A explicação está em que as conexões da rede humana são levadas a modificar-se como resultado de seu próprio funcionamento, e a analise deve tornar possível a percepção dessas mudanças. E a impossibilidade está em que a lógica e a matemática não têm como assumir a auto-recorrência: são operadores da mente que não atuam sobre si mesmos reflexivamente. Exemplo de mudança na rede como resultado de seu próprio funcionamento: uma pessoa que esteja exercendo o seu aprendizado na rede muda como resultado do próprio aprendizado e, ao mudar, induz uma mudança na interface correlata, o professor, que em conseqüência já não oferece as mesmas lições a seu aprendiz. Considerando uma sucessão de estados entre professor e aprendiz, pode dizer-se que a cada instante ambos encontram-se em estado de mudança, em razão das diferenças. Assim, na evolução de um estado para outro, a própria topologia (estrutura) deixa de ser fixa e passa a fazer parte das variáveis de estado. É dizer que o ser humano e a sociedade são a um só tempo sujeito e objeto de sua própria história.
A incursão sociológica de Tarde pelo mexerico produz como resultado a demolição total das pretensões objetivistas da ciência sem sujeito, sedução na qual sucumbiram eventualmente Marx e Engels. Ao mesmo tempo, a imagem do mexerico reintroduz a auto-recorrência dos processos e a contextualidade não apenas nas ciências humanas mas também na totalidade da existência, nela incluída a natureza e o cosmos, como o faz o próprio Marx, ainda que vacilante entre fato e valor, sem saber se deve ou não dissociar um do outro. O que significa dizer que a Razão, até então ciosa de sua soberania, deve render-se agora à auto-recorrência do ser humano (razão, intuição, sentimentos, etc.), ao ponto de indução da existência, à singularidade conflitante e solidária de todos os seus valores. A menção aqui a valores não implica a postulação de ontologia alguma, pois os valores, que não se definem previamente, são reconhecidos no contexto, ou seja, o ser humano auto-recorrente. Além da racionalidade, da percepção participam igualmente as emoções, os sentimentos, a estética e a ética, e esses valores somente são dissociáveis artificialmente no plano da abstração. No plano da realidade, operam em conjunto a um só tempo, fazendo do mundo que enxergamos um mundo humano na sua plenitude, e não apenas um mundo racional. O olho que enxerga a coisa social de Durkheim pelas lentes da racionalidade é mecânico.
A obra de Tarde apresenta-se como um intento de conter a pretensão absolutista da razão, mediante a delimitação do espaço da legitimidade na aplicação do princípio da identidade nos estudos sociais, nas ciências em geral e, mais propriamente, na existência. O reconhecimento da contextualidade, como princípio de inteligibilidade e fundamento da ética, opera como referência última, não autorizando que na singularidade humana se separem razão e sentimento, por exemplo. Ao proceder dessa maneira, o seu pensamento aproxima-se do modo como poetas e artistas enxergam a realidade – razão, emoção, sentimentos, intuição, ética e estética a um só tempo –, ou do modo como se dá a percepção da realidade, antes que ela seja mutilada pela racionalidade quando opera de forma isolada.
As novas ideologias
E aqui não resisto ao desejo de aproximar a temática sociológica de Tarde da ficção de Machado de Assis. Na literatura brasileira, Machado é o "cientista" contextual por excelência. Criou, por exemplo, o personagem Santos, de sua novela "Esaú e Jacó", ambientada no Rio de Janeiro no período de transição do Império para a República. Santos é ao mesmo tempo barão e banqueiro, papéis opostos entre si, que se digladiam numa mesma pele: enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá. O papel de barão não quer a República, porque esta não lhe reconhece a nobreza; o papel de banqueiro não quer o Império, porque este não lhe reconhece o dinheiro. Como resultado do conflito entre ambos – que a mediação da pessoa de Santos converte em solidariedade, no proveito que dele retira ao enxergar melhor a própria realidade – tem-se a mudança. Uma vez advinda a República, ao contrário do que teria previsto o pensamento digital, não ocorre a exclusão pura e simples das propriedades que caracterizam o papel de barão. A realidade não é dicotômica: entre os opostos há continuidade. Antes de enviar o papel de barão para o museu, que acolherá o seu sangue azul, o banqueiro retira-lhe o status e o poder, que juntará a seu dinheiro, para poder mandar na República. Pense-se com Tarde na complexidade da realidade no seu nível molecular. A história de Santos transcorre num período de transição de regime político: pode ocorrer, pois, que Santos entre por uma portinhola da carruagem como barão e saia pela outra como banqueiro. O lugar que ocupa no assento da veículo, no entanto, é o mesmo. De que serve, em tais circunstâncias, a aplicação do princípio de identidade? Para identificar os papéis de Santos, não a pessoa de Santos. Como abstração, o papel de barão é sempre barão, da mesma forma que o papel de banqueiro. Mas Santos, que é a realidade, é um e outro papel ao mesmo tempo, sendo também ele mesmo, distinto portanto de ambos os papéis.
Muito do que se discutiu acima nos parece consabido, mas não o era nos tempos de Tarde, quando ainda ecoava nos meios intelectuais a profissão de fé de Laplace no determinismo. É sobre um tal pano de fundo que se deve apreciar a ousadia de Tarde de incorporar positivamente à sua epistemologia a incerteza e o risco, como dimensões constitutivas da existência. Então, o vocabulário cultural do Iluminismo mantinha-se hostil contra tudo o que não se apresentasse com foros de certeza absoluta. A proposta do Iluminismo era prover a humanidade universal de uma linguagem universal, destituída de toda ambigüidade, de qualquer particularismo fundado em crença religiosa ou em acidentes de história local.
Saídos de dois séculos seguidos de guerras de religião e conflitos de classes, os intelectuais haviam acabado de sonhar com estabelecer um fundamento cultural neutro e sólido, capaz de sustentar os esforços de conciliação de suas divergências, assim como Newton recorrera à régua e ao compasso para oferecer a mesma certeza reconfortante que os medievais encontravam nas poções das bruxas e nas bolas de cristal dos adivinhos. Na esteira de Descartes e Galileu, encontraram-no numa nova concepção da razão e do conhecimento. Como elemento central dessa nova concepção estava o "método científico", suficientemente poderoso para garantir a neutralidade cultural ou a "objetividade" das crenças geradas pela sua utilização. Nessa mesma pretensão à objetividade e à universalidade radicou-se a ideologia liberal, dela ao mesmo tempo origem e produto, que passou a falar a linguagem do Iluminismo. Na sua cartilha podiam aprender-se as normas da vida cívica, apresentadas como um corpo de proposições sobre o Homem e a História. Essas proposições falavam da verdade das coisas como estas seriam em si mesmas, no seu estado virginal paradisíaco, antes de terem sido tocadas pela presença contextual do ser humano, que as embaralha necessariamente em singularidades e diferenças de todo tipo, de classe, de credo, de raça, de região, de partido, de idiossincrasia e coisas assim.
Definidas as coisas como seriam em si mesmas – descontextualizadas, portanto – impunha-se com a força de uma evidência o reconhecimento da trajetória que elas percorrem, já que não havia dúvida, diante da nova máquina a vapor a resfolegar, que o mundo estava em movimento. Em que direção? Na direção do progresso, um progresso automático, de leis inscritas na natureza das coisas, patrão e empregado na faina de produzir e extrair mais-valia, tudo regulado pelas leis do equilíbrio cósmico, que reporia as coisas no lugar, para felicidade geral, desde que não se ousasse tocar nos mecanismos do mercado.
A Gabriel Tarde não escapou o caráter providencial e messiânico das novas ideologias, como se mostrou acima.
Repetição e invenção
Uma vez removida toda possibilidade da miragem do paraíso, conatural à ontologia do sujeito, torna-se possível ao "fato social" de Tarde, o sujeito, fazer recuar as promessas do futuro para a atualidade do tempo presente, no qual o sujeito, "possuído e possuidor de tudo e de todos", entrega-se ao exercício de se comprazer na existência, depois de ter sopesado todos os riscos, para escolher o menor. O sujeito de Tarde, indissociável do outro na intersubjetividade que os caracteriza, é um surfista da realidade, que não sonha o sonho racional de converter o mar em geléia, porque o amortecimento das ondas, daí resultante, lhe roubaria a oportunidade de se exercitar na sua destreza, no prazer com risco.
Sepultado o homo sociologicus, emerge o novo sujeito que, ao ocorrer na vida democrática, subverte tanto as ilusões liberais quanto as ilusões revolucionárias do passado. Isso é dizer que não há mais ouvidos para ouvir razões de ordem superior. Não há mais verdade única, nem sequer a dos direitos individuais considerados isoladamente; a eles é preciso contrapor, para integrar, os direitos da comunidade, por exemplo, que o liberalismo rejeita. Atente-se, na analogia do mexerico, que a realidade veiculada pela rede não é aquela que está nos livros. O que a rede veicula são comportamentos. Cada nó na rede está tentando representar para si mesmo a realidade que está enxergando do modo como a está enxergando, ou seja, de modo necessariamente incompleto, uma vez que ele não é todos os nós e, por isso, não domina o conjunto das versões. Esse é o modo como se são as relações entre sujeitos, individuais ou coletivos.
O social constitui-se formalmente na comunicação. A integração social – ou seja, o reconhecimento de si mesmo e dos outros, dos outros em si mesmo e de si mesmo nos outros, como membros de uma mesma comunidade –, dá-se mediante a comunicação. Esta realiza-se mediante a utilização de símbolos, sinais, nomes, palavras. Na arena da sociedade política, na sociedade democrática, na qual se disputa o poder de influência de uns sobre os outros, a interpretação do sentido que as palavras veiculam é determinante no jogo do poder, ao incidir de maneira direta sobre a relação de dependência dos atores para com a sua audiência. Veicular a interpretação do sentidos das palavra, ou veicular o argumento, é o que caracteriza a ação política. Os argumentos precisam ser brandidos e atualizados durante todo o tempo, para que se possa manter a atenção da audiência, disputada entre todos. Esta deseja, em princípio, participar e por isso está em busca de argumentos que legitimem e lastreiem o peso e o potencial de sua intervenção. Estados, partidos, grupos de pressão e indivíduos encontram-se nesse jogo com o objetivo de afetarem uns aos outros no processo de poder, ou seja, no processo de conquistar pela anuência, e eventualmente pela força, o poder sobre os outros homens – eis a dimensão política da sociedade hierárquica. A influência de uns sobre outros mede-se pela posição e pelo potencial de valor assumido por uma pessoa ou grupo. Um valor é uma ocorrência desejada. Que X valoriza Y significa que X age de maneira a ocasionar a consumação de Y. Do conceito de valor, em termos de ato de valorização, decorre que os valores são conflitantes e solidários entre si. Conflitantes, porque opõem-se uns aos outros; solidários, porque dependem uns dos outros para terem reconhecida a sua legitimidade (Kaplan & Lasswell, 1979). A ascendência de uns sobre outros é a fruição do poder hierárquico, ou o desfrute da deferência reconhecida por parte dos outros na forma de respeito, prestígio, status, temor etc., para com aquele que detém o poder. O drama cultural na sua dimensão política é um drama de legitimação, encenado por cada um dos atores com o objetivo de legitimar a sua autoridade persuadindo os outros de que a sua proposta de ordem ou de mudança é necessária para a salvação da humanidade. O argumento utilizado não pode ser de natureza racional exclusivamente, porque o que se pretende é conquistar a adesão da audiência, seduzi-la, e a audiência não decide somente apoiada na razão ou somente apoiada na emoção. A sua resposta, como ação humana, é constituída ao mesmo tempo de razão, sentimento e paixão. Assim, uma decisão ou ato, por mais concreto que sejam, carregam necessariamente consigo a utopia, porque também, como ação, são uma aposta sobre o futuro que se desconhece, e nessa medida, são fruto de conjetura, de apelo, de encenação, de promessa, de subjetividade. Por isso, qualquer apelo feito à razão ou em nome dela, unicamente, é um equívoco e um engodo: visa tão somente a camuflar o desejo de mandar nos outros, submetendo-os a seus desígnios, jamais legítimos. O poder hierárquico ou racional – chame-se livre mercado ou ciência – é uma patologia, e não se conhece melhor antídoto contra ela do que a reciprocidade, ou o poder de destituição que caracteriza a rede libertária do mexerico. Esse poder exerce-se não em nome de algum princípio ou razão de ordem superior, que subjuga de forma autoritária, e sim em nome da referência comum e universal, conflitante e solidária: o desejo de se comprazer na existência.
Se o leitor assente no que acabo de afirmar, retornamos então a Tarde, à sua intersubjetividade como matriz do fato social, à sua representação da sociedade como uma abstração destituída de um centro a partir do qual se irradiariam univocamente os valores já hierarquizados, para serem assumidos sem discussão pelos seus membros. Na rede do mexerico não há centro nem hierarquia, e os valores e seus coeficientes de importância se reconhecem no contexto (interação) da ação humana. Trata-se pois de um sujeito, individual ou coletivo, em processo, entre a permanência e a mudança, em busca recorrente de se reconhecer a si mesmo nos outros, assumindo como referência comum e última o desejo de se comprazer na existência. Esse sujeito espelha em si a sociedade e esta, a ele. Para ele, não há ideologias da esperança para além do resultado da ação imediata, nunca completo porque, ao primeiro passo em direção à realização do sonho, descortina-se um novo mundo, um novo repertório de sonhos e um novo modo de sonhar: repetição e invenção a um só tempo, como diz Tarde. Eis a rede do mexerico. Nela, graças ao seu caráter auto-recorrente, não vigora o tempo linear, o da escassez ou carência, que seria preciso preencher, mediante a acumulação de parcelas do futuro, mediante a renúncia ao prazer do tempo presente.
O trono removido
Tudo dá-se a um só tempo: é-se sempre tudo e se deseja ser sempre mais tudo o que a vida pode oferecer. Os tempos presente, passado e futuro fundem-se na simultaneidade: o que está além e se deseja é um prolongamento de si mesmo, que somente é pressentido porque é também um aquém, a pulsar na intimidade do tempo presente. O que se busca alcançar é o que já se tem; do contrário, não se saberia o que se quer. O que estimula a buscá-lo é o prazer de obtê-lo de modo diferente. Por isso, não importa que o resultado obtido seja incompleto: nunca o será enquanto for possível sonhar. A incompletude somente se manifesta, como um desabrochar, no ato de sua realização e em conseqüência dela. O mundo da incompletude, como pretende ser o de Tarde, é um mundo interativo de ascensão sem fim rumo a mim mesmo: admito submeter-se ao esforço de realização de um projeto no futuro, desde que possa removê-lo em seguida, para superá-lo ou superar-me. As abstrações precisam ser removidas de modo recorrente, para que se possa retornar à singularidade, local onde se fabricam sonhos, e construir outras, indefinidamente.
Passados 100 anos, o que teria permanecido atual no pensamento de Tarde? Em busca de uma resposta, retomo alguns aspectos do "fim do homo sociologicus", agora na visão de Alain Touraine. O estado cultural em que se encontra um legado, como o de Tarde, não é uma abstração em duelo lógico com outras abstrações, sem que de permeio se encontre a prática social, a história. Rejeitado por um século, eis que ele parece na iminência de retornar. É preciso ouvi-lo sem preconceito, e vamos fazê-lo sobrepondo a sua leitura à de Touraine. A leitura do opúsculo de Touraine, sobre as etapas da história da instituições políticas, contribui sobremaneira para compreendermos como chegou ao fim o homo sociologicus e como de sua tumba emergem agora os primeiros delineamentos de uma Política do Sujeito.
A Política do Sujeito surge e delineia-se na atualidade como resposta à falência da Política do Conceito. Esta tem como fundamento da representação política a crença de que a base formal de poder identifica-se com a sua base real, a abstração com a realidade. Essa crença alimenta-se de sua eficácia na manipulação ideológica com vistas a borrar na prática a diferença entre o "poder primário", que é o Sujeito como fonte legítima de todo poder, e o poder daqueles que o representam. Assenta no pressuposto de que o representante age necessariamente em conformidade com o interesse do representado, e camufla desse modo a possibilidade de o representante agir no próprio interesse em prejuízo do interesse dos representados quando afirma estar agindo em nome da sociedade. Trata-se de uma ideologia investida do propósito de remover artificialmente o conflito irremovível entre o Sujeito e o cidadão, entre a pessoa (ou a comunidade) e os direitos individuais como definidos pelo Estado de Direito, para assegurar-lhe a funcionalidade.
É sobre a identidade entre quem delega e quem recebe a delegação que repousa a doutrina do contrato social de Hobbes e de Rousseau, agora posta em causa, uma doutrina adequada para regular as relações de poder entre querubins e serafins. Hobbes confere ao Estado, agência do poder atribuído, o monopólio do poder, que o exerce mediante um mecanismo de concentração; Rousseau o atribui à vontade geral, que é exercida mediante um mecanismo de dispersão. "Em Hobbes, todos conferem poder a um só; em Rousseau, cada um confere poder a todos. Ambas essas proposições, tomadas como afirmações de fatos, são falsas" (Kaplan & Lasswell, 1979). O exercício do poder pelo indivíduo ou por um pequeno grupo não coincide na prática com o exercício por parte do grupo maior que constitui o domínio do poder em questão. Tratando-se de uma categoria formal, a representação, a exemplo de uma casa de aluguel, pode ser habitada por indivíduos que dela fazem uso de modo diverso.
Não é, pois, somente a forma da representação que importa, mas principalmente o modo como o eleitorado exerce controle sobre o representante. Pode distinguir-se assim uma representação formal e uma representação efetiva. A representação efetiva não está inscrita em nenhum corpo abstrato de regras, mas se define somente na prática. A Política do Sujeito é assim o reconhecimento da política como ela é, não a Política segundo um ideário qualquer. O ideário, como se sabe, é o expediente ideológico utilizado para escamotear o conflito e, quando sincero, é fruto da ilusão de que existe coincidência ponto a ponto entre a abstração e a realidade. Ao remover o conflito, o ideário remove também a solidariedade, que é o seu correlato, como expressão da interdependência entre Sujeitos. A Política do Sujeito, antecipada por Tarde, entre outros, retorna como realização da proposta de restabelecimento do conflito e da solidariedade num mesmo espaço unitário de possibilidades. A Revolução Francesa cortou a cabeça do rei, mas não lhe removeu o trono. Agora, com a Política do Sujeito, remove-se enfim o trono.
Com a palavra Touraine:

A idéia de sociedade
O que definiu a modernidade foi a separação entre a ordem do mundo e a consciência humana; entre a racionalização, como modalidade de ação sobre a natureza, e o individualismo moral. Com a secularização do mundo, a ordem social é produzida e submetida a uma ordem superior, a racionalização e o individualismo moral. A sociedade e o seu interesse tornaram-se assim o próprio princípio de avaliação moral dos comportamentos. Esse modelo de sociedade produz indivíduos semelhantes, mas desiguais. Ele está, portanto, em frontal oposição ao modelo que associa igualdade e diferença. O aceno à igualdade de direito choca-se contra a desigualdade de fato. Daí o apelo ideológico a uma força histórica que cuidaria de cimentar a confiança numa evolução histórica natural. A idéia é que quanto mais moderna a sociedade, mais rapidamente muda e mais elimina as barreiras e distâncias sociais herdadas do passado. Quanto mais apela à razão, menos suporta o apelo da tradição e a manutenção do privilégio.
A democracia revolucionária
A democracia, no início de sua história moderna, foi fundada como esperança num futuro melhor. Democracia e revolução conformavam um conjunto inseparável de reformas por meio das quais seriam eliminados os obstáculos à entrada numa sociedade moderna, racionalmente organizada, zelosa na defesa dos interesses de todos e socialmente justa. Em muitos lugares, movimentos revolucionários transformaram-se, depois da tomada do poder, em regimes autoritários. Ainda assim, a cultura política associa democracia com esperança. A idéia de "povo", dada por Rousseau, remete a um só tempo à vontade da maioria e às forças produtivas, trabalhadores e cidadãos. A confiança na evolução histórica conduziu ao triunfo de uma política voluntarista, criadora de uma sociedade política poderosa que mantém em estado de dependência uma sociedade civil em que a desigualdade retorna constantemente. Ao operar por maioria, essa política democrática age por eliminação, não por meio do debate e do compromisso. Surgem tensões e rupturas sociais profundas. A idéia democrática tende então a se tornar revolucionária. No final do século 20, afastamo-nos de uma concepção revolucionária da democracia, mas corremos o risco de esquecer que os movimentos democráticos sempre enfrentam a resistência de uma ordem que protege uma dominação social. Quanto mais um poder político domina um movimento social, tanto menos oportunidades existem de se criar uma sociedade democrática. Prevalece a tendência para o surgimento de um poder absoluto que se declara o único capaz de estabelecer o reino da igualdade.
A democracia liberal
A democracia revolucionária, por causa de sua estreita associação com a concepção evolucionista e voluntarista da modernidade, somente pode definir-se em oposição à democracia liberal. Enquanto a primeira impõe uma vontade política a uma ordem social, a segunda reduz o mais possível as intervenções do poder político e favorece a regulação social pela negociação direta e pelo mercado. O declínio da visão progressista da história e da ação revolucionária deu uma importância central a esse liberalismo cujos efeitos são tão negativos para a idéia dos direitos civis e sociais como o foram os efeitos da violência revolucionária. A concepção liberal, no entanto, carrega consigo os mesmos princípios da concepção revolucionária, no que diz respeito a seu aceno a esperanças históricas.
A democracia social e cultural
Estão esgotados os modelos revolucionário e liberal. O poder político associado ao capital dá origem à oligarquia. Um regime assim privado de princípios igualitários dá origem à formação de um contra-sistema político, freqüentemente autoritário. As barreiras sociais já não são suficientemente altas para manter o povo afastado do jogo da oligarquia.
Das políticas do progresso a uma política dos atores
Com a crise de confiança no progresso, as soluções liberais e revolucionárias perderam seu principal fundamento, e a idéia democrática começa a se nutrir cada vez mais da defesa de identidades pessoais e coletivas, num mundo dominado pelos mercados e pela uniformidade.
A política, acima e no centro do Social
Os atores sociais estão ameaçados menos por uma classe dominante do que pelo funcionamento impessoal do mercado ou, inversamente, pelo poder mobilizador dos dirigentes comunitários. Trata-se de proteger as liberdades e a segurança pessoais e, acima de tudo, o direito de cada um conservar ou adquirir controle sobre a própria existência. Ao mesmo tempo, falecem as filosofias da esperança e com elas assiste-se ao enfraquecimento acelerado das normas, dos valores, das formas de organização social consideradas como racionais e, portanto, como a gestão da diversidade.
A ruptura das sociedades
Assiste-se a um enfraquecimento da ordem social e política, em proveito (1) das relações de mercado; e (2) de identificações culturais, individuais e coletivas, um duplo movimento que conduz a uma ruptura crescente entre os dois universos, cuja ligação e separação, ao mesmo tempo, definiam a modernidade. É preciso encontrar um novo princípio de ligação entre os dois níveis, sob o risco de se perder toda forma de unidade da cultura, da sociedade e da personalidade.
Unidade e diferença
Abaixo o multiculturalismo. Nesse vazio social e político, as culturas com a sua diversidade somente podem ser reconstruídas pelo esforço de cada indivíduo ou grupo, para a recuperação de sua autonomia, sua capacidade de associar valores e práticas, técnicas e mercados. Para tanto, faz-se necessário convocar a Política. O essencial é reconhecer que o papel da política é tornar possível o diálogo entre culturas. Não se trata de reconhecer o valor universal de cada cultura, mas de reconhecer em cada indivíduo o direito de combinar, de articular em sua experiência de vida pessoal ou coletiva, a participação no mundo com uma identidade cultural particular. O que é preciso reconhecer não é a inspiração universalista da cultura, mas a vontade de individuação de cada um.
O direito à individuação
Já não é possível a existência de outros lugares de combinação de estratégias fora do próprio indivíduo, como ator que participa do mundo com o todo de sua personalidade. Nessa empreitada, não basta a racionalidade objetiva e substancial. A racionalidade agora convocada é de natureza formal e instrumental, da ordem dos meios e não mais dos fins. Não existe outra possibilidade, além da vontade e do esforço de cada ator, individual ou coletivo, para dar sentido geral ao conjunto das situações, das interações e das condutas que formam a sua existência e que, portanto, a transformam numa experiência. Nosso comportamento individual e coletivo se organiza, pois, em torno de três princípios: a racionalidade instrumental, a afirmação identitária e comunitária e a subjetivação, que é o desejo de individuação. Somos todos iguais na medida em que procuramos construir a nossa individuação, ou seja, a nossa diferença. A eliminação de todo conteúdo concreto da categoria Homo, de toda definição universalista, deve ser completa. Já faz muito tempo que os direitos universalistas dos cidadãos aparecem-nos como insuficientes e mesmo como enganosos.
O outro
No processo de individuação, ou afirmação da diferença, existe o risco de se construírem identidades pessoais ou coletivas fechadas, em posição defensiva. O recurso ao Sujeito pessoal, suporte de um conteúdo social concreto, pode tornar-se um princípio de individuação democrática da vida social e também um princípio de formação de uma ação coletiva. O primeiro passo é os indivíduos se reconhecerem mutuamente como sujeitos. O indivíduo somente pode reconhecer-se como autônomo por meio do reconhecimento do outro. O reconhecimento do outro não se limita a uma relação interpessoal; pressupõe condições institucionais.
Do cidadão ao Sujeito pessoal
Quanto mais a sociedade se submete a um princípio superior – razão, realização do espírito na história, interesse geral – mais difícil é combinar igualdade e diferença. O mercado, regulado pelo Estado, não combina espontaneamente diferença e igualdade. Uma sociedade comandada pelo mercado não apenas não contribuir para reduzir a desigualdade mas também homogeneíza e padroniza os comportamentos. Somente o apelo ao Sujeito pessoal, à sua liberdade para criar um projeto e um trajeto individual de vida, permite doravante ligar entre si os dois universos, sem nenhum intermediário institucional, social ou político.
A democracia contra a História
Estamos longe aqui das democracias liberais e revolucionárias. O discurso político não é mais de natureza histórica. Ninguém mais confia na cenoura do futuro. A ação política não está a serviço do progresso; não visa mais a alcançar um certo estado da sociedade. O que era sucessivo torna-se simultâneo; o que era linear torna-se auto-recorrente. Ninguém está interessado em saber quando se chegará na estação final. O que interessa é o modo de viajar. O pensamento democrático, que era um pensamento do futuro, uma meta, tornou-se um meio de trazer para o presente o sonho do futuro para convertê-lo em passado.
O fim do homo Sociologicus
A idéia do Sujeito pessoal e, mais ainda, a de sujeito democrático, que é seu complemento necessário, conduz ao fim do ser social, da definição do ser humano como ser social, aquele que age de acordo com o lugar e com as funções que ocupa na sociedade. A definição do homo sociologicus torna impossível a combinação da igualdade e da diversidade. Isso nada tem a ver com a exaltação do invidualismo burguês, à procura racional de seu interesse ou de seu prazer nos mercados. Tem a ver com um sentido oposto, uma vez que o Sujeito pessoal define-se pela combinação de uma identidade – ou seja, de todos os aspectos de uma personalidade e de uma ou mais culturas – com uma atividade instrumental, combinação que só tem como razão de ser a produção de uma vida individualizada. Tais são os elementos de análise inseparáveis: (1) uma definição estratégica e não normativamente orientada da ação social; (2) o reconhecimento de que todos os atores têm as suas particularidades psicológicas e culturais; (3) o descobrimento, no ator individual ou coletivo, de um princípio de combinação de ambos e, enfim, (4) a redefinição da democracia como política do Sujeito.
(*) Jornalista e escritor, autor de A volta de Simão Bacamarte – anotações sobre a filosofia em Machado de Assis e Que pau é esse? – uma introdução à contextualidade na resolução de problemas

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