domingo, 9 de junho de 2013

(1) A VOLTA DE SIMÃO BACAMARTE

Anotações sobre filosofia em Machado de Assis



Nivaldo T. Manzano

Capítulo 1


Na galeria dos personagens de Machado de Assis, um dos que mais me prendem a atenção é Santos, protagonista da novela “Esaú e Jacó”, ambientada no Rio de Janeiro no período de transição do Império para a República. Santos é ao mesmo tempo barão e banqueiro - no contexto, papéis opostos entre si -, que se digladiam sob uma mesma pele: enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá. O barão não quer a República, porque esta não lhe reconhece a nobreza; o banqueiro não quer o Império, porque este não lhe reconhece o dinheiro. Como resultado do conflito entre ambos — que a mediação da pessoa de Santos converte em colaboração, sem no entanto eliminá-lo —, tem-se a mudança. A opção por esse tipo de situação, que se caracteriza por fazer interagir num mesmo contexto processos ao mesmo tempo concorrentes e conflitantes, é uma das marcas registradas do mestre da literatura brasileira.

Usualmente, diante de um personagem como Santos, o foco da atenção recai sobre o aspecto do conflito entre os papéis, permanecendo na penumbra o aspecto da solidariedade, responsável em igual medida pela mudança. A solidariedade entre papéis opostos parece ser mais difícil de enxergar, porque eles não colaboram diretamente entre si. Abstratamente, os estereótipos de banqueiro e de barão, um frente ao outro, sem a pessoa de Santos de permeio, opõem-se de verdade, como a República ao Império. É Santos que os torna indiretamente solidários, mediante a intervenção de sua pessoa. Ocorre, porém, que quanto mais a pessoa de Santos intervém, mais exacerba o conflito. Eis a complexidade do problema: quanto mais o conflito promove a solidariedade, mais a solidariedade estimula o conflito, para o benefício exponencial de Santos.

Como procede Machado para mostrá-lo?  Ao mesmo tempo que mantém e acirra o conflito, ao levar Santos a explicitar o reconhecimento de seus papéis perante si mesmo e para os outros, ele inverte, sem eliminá-lo, o jogo da animosidade entre ambos, fazendo com que os rivais acabem dando-se as mãos, ainda que sem o saber e de costas um para o outro  — uma colaboração que se expressa no proveito que Santos retira do conflito. De que modo retira proveito? Da fricção entre os papéis parte um raio de luz que, ao incidir sobre o caminho de Santos — que ele mesmo não sabe bem qual seja — ajuda-o a enxergá-lo melhor. E assim Santos deixa-se ir, empurrado pela evolução do conflito, puxado pela referência do contexto. Quanto mais se acirra o conflito, mais os papéis colaboram entre si à sua revelia, mais se agita Santos, mais iminente ou mais distante torna-se a mudança do Império para a República. Eis a álgebra da mudança: conflito e solidariedade, desde que indissoluvelmente unidos num mesmo contexto, promovem uma mudança de estado na realidade. Pois é certo que, sempre que o estado de Santos muda, em conseqüência do conflito e da solidariedade entre seus papéis,  muda a sua visão de mundo, mudança que induz à modulação de suas expectativas — mais distante o advento da República, para o barão, mais próxima para o banqueiro, e vice-versa.
“Empurrado” é o termo adequado, pois a impressão que se tem é que Santos, da mesma forma que as crianças, ao se comprazer no desfrute de uma novidade, fecha os olhos para a diversidade de estímulos igualmente prazerosos, que disputam entre si a oportunidade de conquistar-lhe a preferência. É o conflito entre os papéis que o empurra, para  fazê-lo enxergar, e não é Santos quem puxa. Deixar-se ir, deixar-se estar, deixar-se levar, eis expressões caras a Machado, presentes pelo menos uma vez a cada duas de suas páginas. Assim, por exemplo, na primeira página de Quincas Borba vamos encontrar  “...o coração deixou-se estar a bater de alegria”.

Por detrás dessas locuções verbais — na aparência, inocentes —, que fundem passividade e atividade num mesmo gesto, um estudioso de Machado iria reconhecer toda uma sabedoria, uma mescla entre pensamento ocidental, grosso modo, de viés masculino, e de pensamento oriental, de viés feminino. O oriental é a ondulação suave na planície; o ocidental é a dobra encrespada na paisagem. O herói ocidental, a esquadrinhar o mundo com suas abstrações, a exemplo de Dom Quixote; o sábio oriental, a fugir das abstrações, para se deixar estar à espera de um embate solidário entre as forças terrestres e as forças celestes que lhe configurem algum estado favorável, ao qual responderá com assentimento, para evitar que o levantamento de uma prega na paisagem enrugue a harmonia universal. Juntem-se ambos e ter-se-á um ser humano na sua integridade contextual, igual e diferente de si mesmo.

Quando a percepção da realidade, por parte de personagens de Machado, assume enfaticamente a voz ativa, é certo que o mestre está chamando atenção do leitor para o grão de sandice que se terá instalado no bestunto da vítima, aos próprios olhos um herói auto-suficiente, capaz de dobrar o mundo à sua vontade - um self made man, um especialista, um homem prático, no jargão atual. Assim, por exemplo, Machado nos faz enxergar a dimensão faustiana da empreitada com que o cientista e médico Simão Bacamarte, do conto “O alienista”, põe-se a dividir ativamente os seus supostos enfermos mentais em duas classes, os furiosos e os mansos, sem se dar conta de que era ele ao mesmo tempo furioso e manso. Sob a pena do escritor, Bacamarte reveste-se da imagem de um Deus tragicômico, a separar a luz das trevas, para eliminar o lusco-fusco, na faina de recriar o seu mundo racional. Desse mundo remove a dimensão feminina da existência — que congrega, na solidariedade —, em proveito de sua dimensão masculina — que separa, no conflito. Que Machado leva ao ridículo a auto-suficiência do herói, demonstra-o no seu apólogo do burro: por mais que o carroceiro lhe pespegue o chicote, mais ele empaca, a ruminar que “burro” era o outro, pois além de incapaz de remover-lhe a teimosia, vivia a esfalfar-se em prover-lhe água fresca e capim. A última palavra é, pois, do burro, ou da realidade, como diria um sábio chinês. Enfim, é o que basta para me convencer de que em Machado o risco da sandice auto-suficiente é tão mais iminente quanto mais próximo está o personagem de assumir a voz ativa, e tão mais distante quanto mais próximo está da voz passiva.

Daí concluir que a iniciativa da ação humana seria coisa necessariamente de louco é um passo lógico que não se pode dar — e, se eu tiver razão, o leitor deverá convir comigo em que a lógica nem sempre a tem. Para demonstrá-lo, seria preciso inventariar as condições que o habitat mental de uma pessoa como Simão Bacamarte precisaria reunir, para que possa desencadear a ação patológica de sua racionalidade sempre lúcida, a separar a razão da loucura. Aoposição simétrica e includente, ao mesmo tempo, entre Santos e Bacamarte, eis a questão que neste ensaio me proponho a enxergar melhor.


Se a empreitada for bem sucedida, como resultado ter-se-á exposto o que vem a ser um problema, por definição necessariamente contextual, problema que se configura em quaisquer delimitações analíticas da existência – na intimidade pessoal, na vida política, na economia, na relação amorosa, na amizade, nas artes, nas relações da sociedade civil com o Estado e assim por diante. Reconhecer o problema na sua contextualidade significa enxergá-lo como processo, e este nas suas três dimensões constitutivas, segundo a sugestão do amigo Fuad Gattaz Sobrinho. Tais dimensões – eis a novidade aportada neste ensaio – são a referência, a atividade e a infraestrutura. A atividade entende-se no sentido corrente, de ação com vistas a um fim; a referência é o valor axiológico, a norma, a regra; a infraestrutura, que foge à acepção usual, constitui o hardware lato sensu, que inclui, além das máquinas, o corpo humano. O problema, ou o processo, é por definição um estado de mudança – e a mudança dá-se mediante a interação (atividade) dos componentes do contexto, de acordo com um conjunto definido de regras e graças ao suporte da infraestrutura.  Nada impede que haja mais de  três dimensões – depende de nossa capacidade de reconhecê-las.

É de suma importância observar que as três dimensões do processo são comutativas entre si, o que significa dizer que variam de posição de acordo com a variação da referência do contexto. Assim, o que é atividade num contexto pode consistir de referência em outro contexto, da mesma forma que a referência pode consistir de infraestrutura, e a infraestrutura , de norma ou atividade. Exemplo: na construção de uma casa, pode tomar-se o trabalho do pedreiro de levantar as paredes e cobri-las como atividade; a norma são as regras ditadas por sua experiência e maestria e a planta do arquiteto; a infraestrutura é o conjunto de mão-de-obra, ferramentas e materiais utilizados. Se em vez da construção da casa, tomar-se o contexto do arquiteto, a atividade consistirá da elaboração da planta, orientada pela referência da arte e das normas da construção, tendo como infraestrutura o material e o equipamento de que se serve. 

Por desconhecer o caráter tridimensional dos processos, gastaram-se rios de tinta para caracterizar de modo adequado a mudança – o primeiro objeto de reflexão filosófica na Grécia Antiga. Mudança, aqui, não significa movimento, ou deslocamento quantitativo, como o entende Galileu, e sim coevolução qualitativa do contexto para um novo estado do problema – e assim indefinidamente – graças à possibilidade de atribuição de novas propriedades aos componentes do contexto, em interação coevolutiva.  Exemplo: os componentes de um ambiente doméstico (sofá, cadeiras, mesa e outras peças do mobiliário) podem ser assumidos como meros suportes materiais (infraestrutura) de mais de um contexto. Se se decide fazer do sofá uma cama, está-se no contexto do dormitório; os mesmos componentes assumirão novas propriedades e suas interações obedecerão a novas regras se se converter o ambiente num escritório, e assim por diante. Marx, avesso a quaisquer emplastros ontológicos, definiu o ser humano alienado de seu trabalho, sujeito às normas do capital como mero “suporte de relações sociais”.

Machado de Assis parecia ciente de tal complexidade, podendo ombrear-se, na sua fina intuição, aos mais eminentes pensadores da dialética. Teria optado, talvez, por expressar-se na ficção, por se tratar de um instrumento mais adequado de representação da realidade do que a elaboração conceitual. Para ilustrar as idéias aqui reunidas,  recorri a dois personagens do ficcionista – Santos e Bacamarte – cuja oposição simétrica e includente permite esclarecer, suponho, o que vem a ser processo, ou contextualidade e suas implicações, com o que estaremos municiados de ferramental adequado para abordar a realidade em mudança.




Em praticamente tudo o que escreve, Machado faz incidir a sua acuidade de observador sobre os estados de mudança – no exemplo, o estado de mudança em que se encontra Santos, a respeito de quem se poderia dizer, a cada momento de sua existência, que já não é o que era e ainda não é o que será. Da mesma forma procede na sua contextualização da passagem do Império para a República, como se verá adiante. Inversamente, ele nos faz enxergar que a loucura instala-se em Bacamarte, quando se removem de seu habitat mental o conflito e a solidariedade entre os papéis, ou seja, a possibilidade de mudar. Como é sabido, Bacamarte renuncia a todos os demais papéis na sua vida, como o de amante e esposo de Dona Evarista, para se entregar com exclusividade e afinco ao papel de cientista. Era um missionário da racionalidade instrumental. Nesse caso, já não seria possível ocorrerem estados de mudança, porque falta a coexistência indissociável do duplo gatilho que a dispara — o conflito e a solidariedade entre os papéis da pessoa. De Bacamarte cientista, pode dizer-se que, já não podendo comportar-se de outro modo, ele é o que é e será o que é, sem mudança – uma coisa, uma abstração.  

A esse tipo de comportamento, cientistas dão apropriadamente o nome de caótico. Bacamarte está imobilizado na sua abstração auto-suficiente como que por um emplastro mental, enquanto o mundo à sua volta, em contraste, se encontra em estado de mudança. Como, porém, ninguém suporta carregar consigo a consciência da própria imobilidade, ele irá criar em seu delírio racional mundos conflitantes, abrindo a golpes lógicos de fantasia um espaço polar abstrato no qual a ação da racionalidade instrumental, desacompanhada da solidariedade, encontrará oportunidade de intervir. Assim procede também Dom Quixote. Assim procede a lógica descolada dos contextos, De Dom Quixote pode dizer-se tudo, como louco, mas ninguém de juízo e sentimento contestará que o louco procedia com absoluta coerência racional, ao imprimir no mundo real que tinha à sua frente a fantasia cavalheiresca que levava na cabeça.
Assim, aprende-se com Cervantes e Machado que o contexto encontra condições para evoluir somente quando não se separam, em seu habitat por definição unitário, o conflito e a solidariedade. Aprende-se inversamente que, uma vez removidos o conflito e a solidariedade do contexto, já não é possível explicarem-se os estados de mudança. A contextualidade, ou o processo, corresponde no mundo natural à metamorfose, o mais explorado estado da existência dentre a extensa gama de mudanças escandidas na obra do escritor. “Crisálidas” é o nome de seu primeiro livro de poemas.

Ao contrário do que à primeira vista poderia parecer razoável, é da situação de conflito e solidariedade entre barão e banqueiro que Santos retira estímulos tão mais tonificantes quanto mais aperta a crise entre a República e o Império, para enxergar melhor a sua realidade. A realidade unitária (contextual) de Santos, cronicamente dividida entre pólos que não se fundem nem se consolidam, é também um símbolo da singularidade da existência, um valor absoluto, enquanto os seus papéis são meras abstrações, ainda que concretas. Sim, abstrações, porque os papéis podem ser outros, enquanto Santos permanece necessariamente o mesmo enquanto muda. Por mais numerosos ou influentes que sejam, os papéis não abrangem nem suplantam a auto-suficiência e soberania do sujeito que os desempenha, prerrogativas inalienáveis e exclusivas de Santos. Com isso, quer dizer-se que ninguém jamais viu um par de orelhas desgarrar-se da cabeça, para se aventurar em adejos por conta própria. Império e República puderam opor-se na sua tensão, em busca da resolução do conflito, porque disputavam um mesmo espaço solidário, por estarem implicados reciprocamente um no outro, na caracterização de sua oposição.  

Na abordagem contextual da existência, da qual não se desgarra Machado, é sabido que, por mais estragos que possam produzir os papéis (abstrações) quando assumem o comando da pessoa, como ocorre a Bacamarte cientista, o desastre nunca é completo. É sempre possível reconhecer-se algo de humano na desumanidade. Assim, por exemplo, Bacamarte, depois de ter implantado o terror científico na vila de Itaguaí, recolhe-se mansamente ao hospício que ele próprio criara — e morreu em seu juízo. Da mesma forma, Dom Quixote já no leito de morte confessa aos amigos: “Fui louco; hoje estou em meu juízo”. Ambos os casos parecem confirmar — ao contrário do que pensara Bacamarte no início de sua carreira —, que é impossível separar completamente a loucura da razão. Intimamente unidas uma à outra,  a razão e a loucura, ou a razão e o sentimento, assemelham-se na sua unidade indissociável à metamorfose, que não separa a larva da borboleta.

Se não é fácil enxergá-lo é porque o conflito, quando supostamente removido, refugia-se camuflado na interioridade da pessoa, onde passa a subverter na sombra a auto-suficiência ordenadora que a abstração racional promove à luz do dia. Para impedir que ocorra a subversão, a racionalidade funcionalista intenta converter a situação real, como o é a da pessoa de Santos, em uma situação artificial, chamada de “experimento controlado”. O “experimento controlado” consiste em se remover o contexto do objeto de estudo. Pode assumir-se aqui a noção de contexto (há outras) como espaço de reflexão não lógico, unitário e indivisível, no qual componentes em interação, orientados por uma referência, tornam possível a coexistência entre conflito e solidariedade, com vistas à mudança.  
Antes de se debruçar sobre a realidade com que trabalha, e dela extrair o que chama de objetividade, a ciência positivista precisa construir metodologicamente os seus objetos, ou seja, retirá-los de seu contexto, mediante uma operação abstrativa. Assim, paradoxalmente se procede a uma cirurgia reducionista para conferir ao objeto uma dimensão universal. Não existiria ciência do singular, de José ou de Maria, por exemplo.
Além disso, a ciência funcionalista precisa fragmentar a realidade em partes. Como resultado da fragmentação, o objeto de estudo apresenta-se  como susceptível de ser manipulado mecanicamente — e é nisso que ele está interessado, para poder variar as condições de seu experimento sob controle e sentir-se senhor da realidade. As crianças divertem-se de maneira semelhante, dizendo “isso é meu”, quando apontam o dedo para um nuvem, por exemplo. Mas, ao contrário do cientista funcionalista, o fazem apenas por brincadeira.
Uma terceira condição para se compor um objeto científico é que ele apresente alguma utilidade — a ciência não se embevece ante o desenho que o vôo de um pássaro risca no ar. Ela quer, sim, saber o que lhe vai nas entranhas; por isso, sacrifica-o. Aí está a utilidade do pássaro para a ciência positivista: ser coisa. Evoque-se o “desencantamento” de Marx Weber.

E para que a ciência positiva procede dessa forma? A resposta pode ser encontrada no seu ideal de conhecimento. Conhecer, nesse caso, significa tornar obrigatória a capacidade de predizer o efeito, em todo o sistema, ao se mudar uma de suas partes. A previsão requer do sistema que seja passível de ser descrito de uma forma manejável e lógica, de maneira que enunciados do tipo “se isto, então aquilo” possam ser feitos. Para que o conhecimento seja universal, nem a natureza das partes nem a natureza das relações entre as partes podem mudar. A ciência das partes sem conflito proscreve, pois, normativamente, a possibilidade de ocorrência de mudanças nas interações entre as partes, ou entre os papéis, embora se admita que a proporção quantitativa das partes possam alterar-se. Estão traçadas, nessa constelação de implicações da visão funcionalista do conhecimento, as propriedades da máquina e do espantalho, ou o paradigma da física clássica, de Newton e Laplace.

Para o cientista funcionalista, são óbvias as vantagens em se proceder dessa maneira. A primeira é que se passa a acreditar em poder simplificar o problema; a segunda é que, em conseqüência, tem-se a impressão de que a solução ganha aplicação universal; a terceira é que se acredita em que se pode manipular o mundo, supostamente sem risco. Muitos diriam que não há como proceder de outro modo. Nesse caso, Santos, por exemplo, contraditório e solidário em seus papéis, não poderia ser objeto de ciência. Em razão de sua singularidade contextual, ele não é matematizável; nem tampouco susceptível de  manipulações, uma vez que a ciência sem contexto somente admite respostas binárias do tipo sim x não. Ora, Santos, que é a expressão contextual de sua realidade unitária, é e não é ao mesmo tempo, eis o problema. Ele é banqueiro, mas também não é banqueiro, porque é barão, e vice-versa: um sujeito carnal não lógico.   
Por não se dissociarem da lógica, as linguagens formais não admitem que se possa ser e não ser ao mesmo tempo. Assim, para se conformar o “objeto” Santos às exigências funcionais, o banqueiro precisaria ser isolado do barão, e ambos de Santos, recebendo cada um tratamento em separado, como se os regimes do Império e da República, na condição de entidades binárias, devessem manter-se paralelos um ao lado da outra até o fim dos tempos. Ou, como se um regime político devesse remover radical e subitamente o outro, como se substitui na matemática de Boole o zero binário do um binário ou vice-versa. Nada mais oposto à realidade da mudança.

Assim, Machado pôde observar que, no dia seguinte ao advento da República, os mesmos coches e carruagens, que no Império transportavam barões, transportavam agora banqueiros, não sendo, portanto, os mesmos coches e carruagens: os suportes materiais do transporte, de fato, eram os mesmos, mas a natureza dos expoentes de prestígio, status e poder associados a eles era outra. Coches e carruagens já não transportavam sangue azul, por exemplo, o que os desqualificava como transporte da nobreza, que deixava de existir. Mas ambos os processos – o do Império e o da República – não se distinguiam inicialmente do mesmo modo como Bacamarte separava razão e loucura em Itaguaí. A coisa estava mais para lusco-fusco do que para sol a pino ao meio dia. Na dança da transição do regime, ao observar o desfile de coches e carruagens pelas ruas, nenhum transeunte poderia reconhecer o momento preciso em que o pé da República pisara pela primeira vez no terreno do Império. Nem mesmo o cocheiro — ou menos ainda ele —, saberia dizer se conduzia o papel de barão, que militava contra o advento da República, ou se conduzia o papel de banqueiro que, ocupando no assento o mesmo lugar do barão, conspirava contra o Império. E, no entanto, o passageiro era o mesmo Santos, postado na sua ambivalência em ambos os lados das trincheiras, irreconhecível pela lógica binária, porque contraditório em si mesmo — e nessa condição, inabordável pela ciência funcionalista.  Nesse caso, a contribuição de Machado à rejeição da ideologia positivista reinante à época, está em enfatizar a metamorfose, o lusco-fusco, a ambiguidade, a ação dramática, as expectativas e as frustrações, as incertezas e os riscos, a transição, o processo da mudança, que não se confunde com a resolução de uma cadeia linear de causalidades. Rejeita, pois, a previsibilidade positivista, que, a pretexto de controlar a realidade, mediante a suposta remoção do risco, elimina o contexto humano, ou, mais precisamente, a presença humano no contexto, sem a qual o termo é destituído de sentido. E ainda que se pudesse juntar retroativamente o conjunto das razões que induzem à mudança – pessoal ou política -, esse conjunto não poderia dar conta de todas as causas do grande evento, pois que, sem que tenham ocorrido, aquelas não teriam sido razões da mudança. Somente vistas retroativamente, as coisas terão sido “necessárias”. Foi o fato da mudança, que, retroativamente, converteu a contingência em necessidade; o passado determinado pelo presente.  

Há mais, porém, a observar na ciência contextual de Machado. A cada novo estímulo que Santos recebe, como resultado de um novo estado das interações entre seus papéis (novo contexto), ele o absorve guiado pela referência daquilo que deseja para si mesmo – na expressão de Espinosa, o desejo de “permanecer no ser”. Assim, se num determinado momento do conflito entre os papéis dele receber o estímulo de que a mudança do Império para a República é iminente, Santos irá cuidar de correr ao alfaiate, para que lhe costure um novo fraque de banqueiro. Confiado no dinheiro, que pouco prestígio lhe confere no Império, Santos está desejoso de assumir um papel proeminente na gestão dos negócios da República, para fazer valer o seu patrimônio financeiro. Se, ao contrário, perceber que a evolução do conflito pender para o lado do barão, deixará a ida ao alfaiate para uma outra ocasião. O que orienta, pois, a Santos é o que deseja para si mesmo ao divisá-lo na referência do contexto. Estão descartados, pois, como fantasia, referenciais tais como a necessidade histórica, as teleologias, o fim da história, os messianismos, os três estados de Auguste Comte, o progresso linear, os finalismos... Da mesma forma, está descartada a pretensão de toda ontologia, de toda transcendência. A verdade, para Santos, está expressa na referência do contexto, por definição um estado de mudança. Assim é que jamais Santos se encontra na condição de poder estar de posse da verdade inteira, translúcida, definitiva, o que não quer dizer que viva em estado de ignorância absoluta.

Como efeito e causa da mudança, Santos terá de optar entre assumir um papel e outro - o de banqueiro, com o advento da República, por exemplo. Nesse caso, enviará para o museu os punhos rendados e o sangue azul do barão, cuidando antes de tomar-lhe o status, o prestígio e o poder político associados a esse papel no tempo do Império, aos quais juntará o poder de seu dinheiro para mandar na República.  Atente, pois, que ser banqueiro no Império não é o mesmo que ser banqueiro na República. Os papéis são equivalentes, não porém idênticos. E a razão disso está em que, de acordo com as três dimensões do processo, discutidas anteriormente, se a atividade é a mesma, as referências co contexto são agora outras. 

Dadas as referências de status, prestígio, dinheiro e poder, a partir das quais busca orientar-se no seu contexto, a decisão de Santos é difícil, pois ambos os papéis lhe agradam, porque lhe convêm. As suas referências contextuais indicam-lhe que é tão confortável ser barão no Império quanto ser banqueiro na República. A decisão de Santos deve incidir, pois, sobre opções igualmente prazerosas e arriscadas.

Deixe-se de lado por um momento Santos, para visitar o cientista Bacamarte na vila de Itaguaí, a separar de seus habitantes com violência a loucura da razão. Aí vai observar-se que as opções, para a tomada de decisão são de formato muito diverso. Nada de prazeroso pode ser encontrado no modo excludente de que se revestem as opções.
Como se sabe, Bacamarte eliminara supostamente o “conflito x solidariedade” que trazia dentro de si, ou o seu próprio contexto, ao se submeter de corpo e alma ao mando excludente de seu único papel — a racionalidade científica instrumental, que lhe afia o corte da navalha com que vai separar a loucura da razão. Assim afiado, Bacamarte entrega-se agora à faina de eliminar o conflito dos habitantes da vila. O seu trabalho consiste em reconhecer em cada uma das pessoas a linha divisória que separa a razão da loucura — e, assim, dividi-las ao meio, a parte boa e a parte ruim. É a mesma sangria racional que aplicara anteriormente a si mesmo, ao sujeitar-se ao papel de cientista, em deterimento dos demais. Quem decide, pois, em seu lugar, é supostamente a sua ciência, e não mais a pessoa à frente de seus papéis. E como decide? Com a frieza da lâmina, uma vez que, desintegrada a pessoa, a razão não conhece outra linguagem senão a própria. É cortar fundo, para salvar a parte “boa” do mundo, expressa na suposta racionalidade da ordem das coisas, atirando-se, em conseqüência, no lixo as suas rebarbas irracionais, tais como a intuição, o sentimento, as emoções. Por isso é que dói, e é por isso que os habitantes da vila vão rebelar-se: por mais que se empenhem, não conseguem ser somente racionais, para o pesar e para a indignação da crença de Bacamarte. Não é casual o fato de Bacamarte imitar aqui o papel de Deus, separando a luz das trevas. Ele está, de fato, brincando de ser Deus, que culpa o Diabo pela criação do lusco-fusco.
Uma vez fixado um único papel no habitat mental de Bacamarte , já não há como sonhar. Uma borboleta pregada na parede não sonha com adejar, nem corre risco algum. Foi-se a liberdade e o prazer de viver. Todos, de Bacamarte ao último habitante da vila, estão agora diante da opção de dizer sim ou sim à lei racional, da mesma forma que a maçã da ciência diz sim à lei da gravidade. É como se já não se pudessem juntar o inferno e o céu, para se infundir alguma animação na monotonia da eternidade. Todos devem ir para o céu da racionalidade. Não mais lhes é dado o direito de lá sair, para sentirem o prazer de para lá voltar, ao enxergá-la de modo diferente. Para os recalcitrantes de Itaguaí, o hospício; para os da Revolução Francesa, a guilhotina; para os do capitalismo de Estado, os campos de concentração, ou a exclusão social.

Sempre que uma abstração, como a racionalidade, se põe a comandar a mente humana, de modo excludente, o resultado é a conversão do problema da liberdade num falso problema. Ao cindir abstratamente a realidade em duas partes, Bacamarte remove de si mesmo e dos demais habitantes da vila o habitat no qual se exercita a liberdade contextual. Ou seja, aquela que, dentro do espaço reflexivo delimitado de cada contexto, saberá dizer o que convém ao ser humano, Para os habitantes da vila, sob o comando da racionalidade de Bacamarte, já não existe a possibilidade de uma decisão contextual.
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Em um caso, Santos movimenta-se em liberdade no seu contexto, em mudança; em outro caso, Bacamarte está preso, supostamente sem conflito, na imobilidade de sua abstração. Quando Bacamarte reduz a realidade à abstração que traz na cabeça — como se a abstração pudesse ser assumida como representação adequada da realidade — o resultado é que o mundo passa a ser visto de forma binária: céu ou inferno, bem ou mal, zero ou um, razão ou loucura, herói ou vilão, e assim por diante. A abstração racional exige simetria, univocidade e coerência — e a existência não é simétrica, nem coerente nem unívoca. Pode dizer-se que toda violência a que esteve sujeito o ser humano na história resulta de se assumir o binarismo dão moral como ideologia adequada para representar a realidade.

Na lógica binária, não há espaço para o convívio solidário entre o sim e o não, entre Deus e o Diabo, entre o belo e o feio. Como opostos excludentes, é um ou outro — e, assim, não podem ocorrer estados de mudança, ou a metamorfose, que caracteriza necessariamente o contexto humano. Neste, sempre se está deixando um modo de existir para assumir um outro, sem se deixar de ser si mesmo, não sendo possível estabelecer-se que a mudança ocorreu ou deverá ocorrer às 22 horas e 43 minutos. Formalmente, o marechal Deodoro desembainhou a espada no dia 15 de novembro às tantas horas, mas na realidade não se saberia dizer quando e como o processo começou nem como vai evoluir. Império e República, como estados da realidade política, interpenetram-se numa dimensão de continuidade que embebe em si mesma a descontinuidade: Espinosa.

Como, então, proceder? Evitar construir abstrações? Impossível. Sem se enxergar na abstração de papel de banqueiro ou na abstração de papel de barão, pai, filho, marido, vizinho, etc., Santos não saberia dizer para si mesmo como intervém no seu contexto, nem seria reconhecido por ninguém. Embora se diga “Lá vai o Santos”, está-se pressupondo que lá vai o banqueiro Santos, o barão Santos, o vizinho Santos, o amigo Santos, etc. As abstrações são necessárias para se lidar com a realidade. O perigo está em se deixar levar por seu comando supostamente auto-suficiente.
A ilusão do cientifismo de Bacamarte — e de todos os ismos — está em acreditar na carnalidade real das abstrações que a mente humana constrói; e, em razão disso e inversamente, acreditar no caráter abstrato do sujeito concreto que as manipula, como faz Bacamarte. Para o médico cientista, a pessoa — a exemplo do que ocorre a um autômato na cibernética —, seria movida pelas funções, e não seria a pessoa que as move, razão por que, em vez de mudar as funções, ele se propõe a remover a pessoa, para que as funções possam continuar operando. Com que objetivo? Consagrar o ideal de racionalidade auto-suficiente das ciências, ou da acumulação de capital no capitalismo, ou do poder hierárquico na organização e no Estado. 

Bacamarte revela uma confiança cega e missionária no seu método: sacrificando a pessoa, ele confirmaria para si mesmo, a exemplo de Dom Quixote com sua fantasia, que a sua racionalidade científica deve prevalecer. Bacamarte reverencia a sua ciência com a mesma fé com que o povo eleito do Antigo Testamento idolatrava o bezerro de ouro. Porém, como não consegue isolar de cada habitante da vila algum grão de loucura que se lhe esteja colado na mente, trancafia a todos na Casa Verde — e, ao final, depois de implantar o terror científico na vila, trancafia-se a si mesmo no hospício que criara. Rende-se ao reconhecimento da impossibilidade de separar a pessoa de seus papéis. Ou seja, rende-se ao reconhecimento da exigência incontrolável da mudança de si mesmo, pelo prazer de mudar, o que significa dizer: exigência de se preservar a integridade do contexto, em estado de mudança, no qual se digladiam e colaboram os papéis.

Se ao agir dessa forma, Santos contraria a lógica, já que se mantém igual e diferente de si mesmo, pior para a lógica e para a ciência não contextual. Remover artificialmente o conflito, isolar os papéis do sujeito em funções, imobilizar a realidade tolhendo-lhe a possibilidade de mudar — isso é brincadeira para os lógicos, que vivem de lustrar o princípio da identidade (A = A). Esse princípio, de grande valia na construção de pirâmides, não encontra ponto de aplicação na existência de ninguém, pois o sujeito é e não é ao mesmo tempo: é tenista, mas também é médico; além disso, o papel de médico imiscui-se na vida do papel de tenista, e o tenista na vida do médico, confundindo-se as “funções”, para o benefício da pessoa que os desempenha e para desespero da lógica.  
Binarismo, violência — esse é o tributo que se paga à auto-suficiência da racionalidade cientificista, da política, da economia, etc., que se põe a simplificar a realidade complexa: elimina-se o contexto unitário do ser humano, no qual residem o encantamento da vida, o risco, o sonho, ou a possibilidade de mudar. 

É a unidade da existência que caracteriza e articula um modo de ser das coisas em que tudo é revogável e em que nada é definitivo.

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Esta é a primeira lição que a cultura ocidental teve a oportunidade de aprender, ao se dar conta de que o seu berço estava em Homero — o caráter contextual da existência. Machado de Assis retomou-o, como que para chamar atenção para o risco de que, desprezada, poderia levar o ser humano a se esquecer de que cabe a si mesmo construir o seu destino, não aos deuses. Esse destino constrói-se na incerteza, que se expressa no reconhecimento do coeficiente de risco associado ao prazer. O risco maior está em se  acreditar que seja possível afastar todos os riscos, pois ao fazê-lo remove-se o prazer de viver.

 ISBN-10: 8585734477 ISBN-13: 9788585734473 Cod Int SPD

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