sábado, 17 de outubro de 2020

Manipulação de massas: democracia e autogestão

Manipulação de massas: democracia e autogestão

Nivaldo T. Manzano (17/10/20)

  "Críticos contumazes da esquerda, em geral tachada no atacado de “esquerda populista” fundam os seus argumentos num quadro referencial superado de um século, para não falar das doutrinas do socialismo utópico de séculos anteriores. Em uma investida reducionista, esses críticos aventam o discurso de que, por extensão, o pensamento de esquerda se limita a contrapor o socialismo, como solução para os problemas da democracia representativa, com o objetivo de “manipular as massas”, mediante a tomada do Poder do Estado e o seu controle centralizado em mãos de uma minoria oportunista. Não se ouve desses críticos referência alguma à manipulação pela “direita populista”, que tem ocorrido com igual frequência. É o que se observa, por exemplo, em ensaio sobre a obra do norte-americano George Lakoff, especialista em estudos sobre fundamentos materiais da linguagem, que discorre sobre “conflitos morais e a ineficácia de esquerdistas e liberais moderados diante da explosão populista”. Trata-se de manifesta má fé intelectual, além de rotunda ignorância histórica. Aqui a íntegra do artigo https://medium.com/.../n%C3%A3o-d%C3%A1-para-manipular-a... .

Com efeito, há registros na história política do século XX de sistemas de representação que descambaram para o populismo de esquerda, com o seu corolário da tomada de poder e o seu controle por uma minoria, mediante a manipulação das massas. Esse teria sido o caso da União Soviética de Stalin. Quanto à direita, o mesmo ocorreu na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini, entre outros.
Interessa indagar se tais casos consistiriam de deformação episódica dos sistemas políticos que se arrogam o caráter legítimo da representação popular, ou se tais deformações estão inscritas na genética de todo sistema político, de esquerda ou de direita, que se vale da concentração do Poder de Estado para a manipulação das massas. Indaga-se ainda se é possível, mediante a representação popular democrática, instituir-se uma forma de organização da sociedade que seja dotada de anteparos às investidas da centralização e da manipulação.
O problema da manipulação das massas nos regimes políticos do Ocidente é velho de quase três milênios. É contemporâneo da Democracia na Grécia Antiga, já nos seus primórdios. Assim o aristocrata Péricles (495 – 429 A.C.), homem que melhor simboliza a democracia ateniense e que governou Atenas por 30 anos, é quem estatizou a manipulação das massas, antes privativa de adversários políticos, como Cimon. Dentre os aristocratas mais ricos, Címon oferecia, com a mais ampla generosidade, banquetes públicos a todos, para seduzir os eleitores (o demos) que decidiam das questões políticas na Assembleia, instância da máxima de decisão popular. Em vez de banquetes, Péricles, que tinha em Címon o seu principal rival, passou a assegurar a gratuidade no acesso aos grandes espetáculos teatrais, muito concorridos por encenar, sob a forma de tragédia ou comédia, enredos vivenciados por réplicas de figuras mitológicas que simbolizavam protagonistas reais da vida política. Péricles foi também o responsável pela instituição da burocracia estatal, mediante remuneração, para cortar o passo às influências perniciosas no seu desempenho. A corrupção mediante a manipulação das massas é intrínseca à democracia ateniense, como mostra o historiador italiano Luciano Canfora em seus livros “Democracia – a história de uma ideologia” e “Crítica da retórica democrática”. O tema da manipulação é presença permanente no debate entre cientistas políticos e tem como referência literária no século XX o livro “A rebelião das massas” (1929), o mais lido na vasta obra do filósofo espanhol Ortega y Gasset.
No Brasil, de há muito politólogos têm discutido os limites, as insuficiências, as deformações da democracia representativa e, mais enfaticamente, a erosão provocada no sistema de representação pela corrupção no mecanismo eleitoral e no exercício parlamentar, que comprometem a sua legitimidade. Vai desenvolver-se aqui a evocação de modalidades de representação política, propostas ou já em andamento efetivo, de alternativas que suplantam ou minoram os vícios da centralização e da manipulação.
Dentre as ideias mais antigas, está a da complementaridade entre democracia representativa e autogestão (democracia direta) aventada na pré-história da social democracia alemã por Carl Kautsky (1834 – 1938). A seguir, surgiram as propostas do intelectual marxista italiano Antonio Gramsci (189-1937), linguista e membro fundador do Partido Italiano Comunista, o mais influente dentre os análogos no Ocidente, aprisionado por Mussolini em 1927 e libertado da prisão condicional na iminência de falecer em 1937, ano em que de fato morre. Gramsci propôs a criação de conselhos operários como complemento da democracia parlamentar.
Karl Marx, que se deteve no tema apenas na medida em que a política é uma interface da economia política, apresentava a sociedade comunista como forma de “autogoverno dos produtores”, um regime comunal de “livre associação de produtores”, no qual o Estado capitalista seria abolido juntamente com todo o aparato burocrático, o que implicava a abolição da democracia representativa. Embora não tenha utilizado o termo “autogestão”, a sua concepção era autogestionária. É o que basta para confirmar a má fé intelectual de George Lakoff de associar in abstracto ao pensamento de esquerda, supostamente de matriz marxista, à estratégia de assumir e controlar o poder do Estado para manipular as massas.
De modo geral, as propostas de refundar os valores democráticos giram em torno das modalidades de autogestão. São meras propostas, sem aderência real à experiência política concreta, pois não são vigentes nos países de governos que se proclamam socialistas/comunistas, nos quais a presença e a direção do Estado são avassaladoras, como ocorre na China.
À guisa de rodapé de página, observe-se que o Brasil detém a mais ampla e vigorosa experiência mundial de “autogestão de produtores’, como propunha Marx, nas figuras do MST (Movimento dos Trabalhadores rurais Sem Terra) e, no setor social terciário, do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto). Por absoluto boicote da imprensa nacional, sabe-se menos do MST no Brasil do que no exterior. O MST compreende 380 mil famílias, o que perfaz mais de um milhão de pessoas, distribuídas em assentamentos rurais por todo o País; e as suas cooperativas de produção apresentam os melhores índices nacionais de produtividade, segundo o ranking do setor, além de disputar no mercado a oferta dos melhores produtos alimentícios em qualidade. A sua tecnologia social, inédita no gênero no Ocidente, desperta curiosidade e interesse em todo o mundo. Fui testemunha pessoal do fato, ao visitar um assentamento do MST, onde presenciei a visita de meia dúzia de visitantes do exterior, uma rotina diária, segundo fui informado. Um destacamento de intérpretes e monitores foi criado para acolhê-los.
Estou convencido de que tanto o MST quanto o MTST constituem o embrião de uma futura organização da sociedade. Graças aos seus mecanismos internos de autocontrole, descentralizado e sem hierarquia, o MST parece amadurecer a sua proposta para apresentar-se em condições de suplantar no futuro os vícios da democracia representativa convencional, em acelerada decadência.
Não dá para manipular a massa sem sujar as mãos

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