domingo, 18 de outubro de 2020

Espinosa e Nietzsche para não iniciados

 

Espinosa e Nietzsche para não iniciados

Nivaldo T. Manzano (18/10/20)


O humorista-filósofo, ou filósofo-humorista, Luís Fernando Verissimo, expõe numa de suas crônicas o drama, prazeroso e arriscado, que dilacera o turista: enquanto o seu paladar, aventureiro, quer viajar em busca de novos sabores, os seus intestinos, sedentários, querem permanecer em casa. Eis o conflito que, se resolvido em proveito excludente de um lado ou de outro, ao eliminar o outro – a parte que teria perdido a contenda – elimina ipso facto a unidade da pessoa do turista: não há como viajar desacompanhado de ambos. Assim é que a pessoa do turista, para se exercitar no desafio de ser turista, não pode prescindir de seu conflito, assim como a noite precisa do dia, Deus do Diabo e o branco do preto, já que o turista, que preza a si mesmo, não quer desapontar as razões convincentes de seu paladar nem as razões implacáveis de seus intestinos. Ele as acolhe em si como outros modos de ser si mesmo, da complexidade da pessoa que ele é. Partes conflitantes, é verdade, mas é graças ao conflito entre elas que ele se reconhece, em meio a eventuais cólicas nos intestinos como resultado de mudança na dieta, ou protestos do paladar por não suportarem mais comer o mesmo prato. Nessas ocasiões, tem-se a impressão de que o turista será partido ao meio, paladar de um lado e intestinos de outro, e a sua unidade esfacelada, tamanha é a tensão do drama em seu clímax, ponto de ruptura, proclamação da independência, ou revolução, em casos extremos.
Se ele se decide, enfim, viajar, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita equivocadamente a propósito dos pactos políticos ou das desavenças entre casais. Longe disso. Pois as partes conflitantes seguem junto, ainda mais teimosas na sua oposição: os intestinos ainda mais temerosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se a pessoa do turista decide viajar, é justamente por motivo inverso e complementar: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir. E se ele embarca inteiro, paladar e intestinos juntos – sistemas racionais abstratos opostos entre si, quando considerados isoladamente – é porque consegue enlaçá-los na solidariedade que os une – ele próprio, o sujeito, que não é intestino, isoladamente, nem paladar, isoladamente, mas ele mesmo, que é também um outro de si mesmo, um estado de mudança.

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